Fração Trotskista (LER-QI) e sua ruptura incompleta com o morenismo
Sobre blocos oportunistas e “instrumentos desafinados” pablistas
Por Rodolfo Kaleb, maio de 2013
A Fração Trotskista – Quarta Internacional (FT-QI) é a organização internacional impulsionada pelo PTS argentino e da qual a LER-QI é a seção brasileira. Ao longo dos anos, ela se moveu para a esquerda com relação às suas origens na corrente política ultraoportunista de Nahuel Moreno, da qual se separou em 1988. A FT-QI desenvolveu gradualmente uma crítica à tradição morenista, desassociando-se formalmente do legado de Moreno, assim como de muitas de suas posições.
Devido à completa confusão que prevaleceu dentro do movimento trotskista, Moreno se alinhou em certo momento dos anos 1950 com as forças antirrevisionistas que combatiam a destruição da Quarta Internacional por Michel Pablo. Mas o morenismo refletiu historicamente uma variante particularmente à direita do pablismo.
Impactados pela enormidade das tarefas históricas colocadas diante das pequenas forças do movimento trotskista, os pablistas originais buscaram substitutos em movimentos e lideranças oportunistas e traidoras do movimento de massas. Eles esperavam que as “forças objetivas”, auxiliadas pela sua ação, fossem tornar esses agrupamentos aptos para as tarefas da revolução socialista. Isso os levou a inúmeras capitulações a essas mesmas forças, na esperança de “empurrá-las para a esquerda”. Se afastando da concepção leninista clássica, de que as organizações oportunistas são um dos maiores empecilhos para que o proletariado atinja sua consciência de classe, os pablistas passaram a ver tais forças como “instrumentos desafinados”, que apenas precisavam de uma “afinação” (promovida pelos pablistas) para que levassem a classe trabalhadora a uma vitória revolucionária.
Ao longo das décadas, a corrente de Moreno também se adaptou a muitos movimentos maiores que temporariamente tinham apoio das massas, desde o movimento peronista na Argentina, passando por correntes stalinistas como os maoístas e castristas nos anos 60, várias frentes populares na Europa e na América Latina, até os movimentos contrarrevolucionários que restauraram o capitalismo nos países do bloco soviético. Essas práticas oportunistas receberam uma racionalização por Moreno, que ressuscitou uma variante da teoria etapista de “revolução democrática” (e não apenas nos países de desenvolvimento capitalista tardio, mas de uma forma geral) [1].
A renúncia à teoria morenista da “revolução democrática” permitiu que a FT-QI se distanciasse de algumas políticas mais à direita de Moreno, mas ela reteve o seu impulso essencialmente pablista sobre a questão do partido. Enquanto não apoia heróis pablistas típicos, como fez Moreno em seu tempo, a FT-QI aparentemente redirecionou seus esforços para a tentativa similarmente utópica de “afinar” os “instrumentos desafinados” que são os próprios pablistas, morenistas e outras correntes revisionistas.
Argentina: uma frente “revolucionária” de capitulação ao centrismo
Desde 2011, a LER-QI vem convidando os morenistas do PSTU (a maior corrente que reivindica o trotskismo no Brasil) a formar uma frente para concorrer às eleições burguesas. Ela tem feito recorrentes chamados pela construção, no Brasil, de uma frente nos mesmos moldes da que o PTS (principal seção da FT-QI) compôs na Argentina em 2011. A LER-QI fez a seguinte descrição dessa frente eleitoral:
“Na Argentina, ano passado, a esquerda classista se unificou numa frente eleitoral a partir do elemento central da independência política dos trabalhadores diante de todas as frações burguesas. A partir de um chamado firme do PTS (Partido de los Trabajadores Socialistas) ao PO (Partido Obrero) e às demais organizações que se colocam no campo da independência de classe, organizou-se a FIT ― Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT em castelhano), integrada pelo PTS, PO e IS (Esquerda Socialista), que contou posteriormente com o apoio do PSTU argentino (da mesma tendência internacional do PSTU)…
“Este é um exemplo de primeira ordem para os revolucionários brasileiros, e acreditamos que deveria ser do interesse dos militantes do PSTU, pois aqui podemos ver sem sombras de dúvida como uma frente eleitoral principista ― classista e revolucionária ― pode ser constituída em base a princípios, programa, táticas e estratégia proletária, contribuindo efetivamente ― ainda que minoritariamente ― para constituir uma vanguarda forjada na independência de classe e na preparação para a luta revolucionária, não apenas em luta política contra os capitalistas, mas também contra as organizações e partidos reformistas ou centro-esquerdistas, ou seja, partidos que se dizem de esquerda, mas primam pela conciliação entre frações burguesas e as massas…”
— O Mau Exemplo que Vem de Belém, julho de 2012. Disponível em:
A FT-QI sustenta que o PO argentino (associado ao dirigente Jorge Altamira), assim como o PSTU brasileiro, é uma corrente centrista, entendendo-a enquanto um obstáculo na luta para que o proletariado e os oprimidos em geral adquiram uma consciência revolucionária. Apesar dessa caracterização, a FT-QI busca se aliar programaticamente com essas correntes maiores e, no caso da FIT argentina, apresentou os revisionistas como fazendo parte de uma iniciativa supostamente “principista – classista e revolucionária”, como capazes de defender “princípios, programa, táticas e estratégia proletária”, e “contribuindo efetivamente para constituir uma vanguarda forjada na independência de classe e na preparação para a luta revolucionária”. Será mesmo?
A Fração Trotskista diz combater a posição oportunista do Partido Obrero de apoio a candidaturas de colaboração com a burguesia. O PO apoiou, por exemplo, a candidatura burguesa de Evo Morales na Bolívia em 2005 (como a própria FT-QI denunciou na época). Mas se é assim, como o PO poderia supostamente “constituir uma vanguarda forjada naindependência de classe e na preparação para a luta revolucionária”? Os altamiristas teriam modificado suas posições e feito autocrítica de suas capitulações? De forma alguma.
Para a Fração Trotskista, o papel supostamente “revolucionário” cumprido pela FIT não seria abalado pelos seus componentes centristas, o que inclui também a corrente morenista Esquerda Socialista (IS). Mas os fatos são como crianças teimosas. Nas eleições de 2011, Jorge Altamira, principal dirigente do PO e candidato a presidente pela Frente, concedeu uma entrevista a um jornal argentino no qual falou sobre a FIT da seguinte maneira:
“[Entrevistador] Quais são as expectativas que tem a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) para essas eleições?
“[Altamira] Nossa expectativa é conseguir um bloco de esquerda no Congresso Nacional e modificar com ele a agenda política e social do país, e desenvolver uma perspectiva de poder.” (ênfase nossa)
…
“[Entrevistador] Quais são as medidas que impulsarão no caso de se tornarem governo?
“[Altamira] Pôr fim à intervenção oficial na ANSES [Administração Nacional de Seguro Social] para que seja dirigida por representantes eleitos por aposentados e trabalhadores. Desse modo, acabaria seu esvaziamento forçado para pagar a dívida externa e financiar a fuga de capitais. Também estabelecer um salário mínimo igual ao custo do gasto familiar e acabar com o trabalho precário — este último assegurando o convênio coletivo à atividade. Outro ponto é renacionalizar o petróleo, que é a única forma de fechar a porta à saída de recursos para os acionistas do exterior e o grupo de ‘amigos’ instalado na YPF-Repsol, e terminar com o esgotamento das reservas comprovadas de combustíveis. Derrubar os impostos ao consumo (IVA) e financiar o Estado com impostos diretos.”
— Blaquier y los K, outubro de 2011. Disponível, em espanhol, em:
A concepção de Altamira de usar uma frente eleitoral de esquerda para desenvolver uma “perspectiva de poder” por dentro do Estado burguês e “modificar a agenda política e social do país” não era uma exceção pontual, um mero descuido. O candidato a presidente da FIT não via a frente segundo a tradição bolchevique de campanhas eleitorais ― tribunas de denúncia do caráter de classe da democracia burguesa e do capitalismo, espaço de propaganda contra as ilusões de que mudanças sociais significativas podem se dar através das eleições burguesas. Pelo contrário, ele reproduziu uma contradição típica do discurso centrista ao defender um programa de grandes reformas por dentro do Estado burguês.
E diante dessa posição de Altamira e do PO, onde ficou a FT-QI? Não vimos, nos inúmeros elogios que a LER-QI fez à FIT desde 2011, nenhuma consideração a respeito desse desvio político do candidato a presidente da Frente. No mesmo artigo citado anteriormente, além de considerar a FIT como “revolucionária” e possuindo uma “estratégia proletária” (por dentro do Estado burguês?), a LER-QI afirmou que “A FIT realizou uma grande e exemplar campanha eleitoral em 19 estados do país”. É esse o conceito da LER-QI de uma “campanha exemplar”? Essa concepção certamente é bastante diferente do legado comunista de Lenin e Trotsky. As Teses do Segundo Congresso da Internacional Comunista defenderam que:
“(11) A tribuna do Parlamento burguês é um desses pontos de apoio secundários. Não se pode invocar contra a ação parlamentar a qualidade burguesa da instituição mesma. O Partido Comunista entra nele não para desenvolver uma ação orgânica, mas para solapar do interior a máquina governamental e o Parlamento.”
…
“(14) A campanha eleitoral em si mesma deve ser conduzida não no sentido da obtenção do máximo de mandatos parlamentares, mas no sentido da mobilização das massas a partir das palavras de ordem da revolução proletária.”
Em uma ocasião posterior não relacionada, a FT-QI criticou o PO por sua posição de que a vitória eleitoral de uma coalizão de esquerda pudesse representar uma perspectiva de poder para os trabalhadores. Na Grécia, onde o PO alimentou ilusões de que um governo da organização de esquerda Syriza seria um “governo de trabalhadores” eleito pelo voto por dentro do Estado burguês, o PTS apontou que:
“Ao não existirem organismos das massas na luta que tendam a criar um duplo poder, este chamado do PO apela à vontade da direção da Syriza para que ‘impulsione’ um governo de trabalhadores, o qual, longe de combater o reformismo e pacifismo, fortalece as ilusões parlamentaristas alimentadas por esta centro-esquerda.”
…
“O chamado a um eventual ‘governo de esquerda’ encabeçado pela Syriza, longe de contribuir para que setores dos trabalhadores e jovens avancem para tirar as conclusões de que o único programa para enfrentar o ajuste é um programa anticapitalista e revolucionário, alimenta as ilusões de que é possível uma saída parlamentar e pacífica à crise, sem enfrentar as instituições imperialistas como a UE nem atacar os interesses dos capitalistas.”
— Los revolucionarios y la cuestión del ‘gobierno de izquierda’, junho de 2012. Disponível, em espanhol, em:
No entanto, quando Altamira e o PO cometeram o mesmo oportunismo em casa, na Argentina, a Fração Trotskista não estava propriamente numa posição onde mantinha as mãos livres para criticá-los, mas sim conformando a própria frente a que Altamira se referia. E então esse mesmo oportunismo foi considerado como parte de uma “campanha exemplar” que contribui para a “preparação da luta revolucionária”. Na verdade, alimentou as mesmas “ilusões de que é possível uma saída parlamentar e pacífica à crise”.
A Fração Trotskista poderia objetar que não tem nenhum compromisso com o que Altamira escreveu ou disse na imprensa, como principal porta-voz e candidato de sua frente conjunta, mesmo quando falando em nome da FIT. Mas levadas em consideração as devidas proporções, como isso se distingue das afirmações do PSTU brasileiro, por exemplo, de que na sua frente de Belém (com PSOL e PCdoB) eles mantinham sua “total independência”? Na época, a LER-QI afirmou que isso era “o direito de espernear” e zombou do PSTU dizendo que “chamam isso de ‘autonomia’ ou ‘independência’ do partido”.
Outros pontos no programa da FIT também representaram uma capitulação do PTS aos seus companheiros de viagem. Quando mencionou a conjuntura internacional, o programa da FIT proclamou:
“Na Líbia, a intervenção da OTAN tem como objetivo evitar a queda revolucionária de Kadafi e trata de intervir nesse país para conter o conjunto do processo desatado na região. Chamamos a apoiar o triunfo dessas revoluções que sacodem o mundo árabe. Diferenciamo-nos claramente dos falsos esquerdistas que apoiaram a intervenção imperialista da OTAN. Como também denunciamos os supostos anti-imperialistas como o castro-chavismo que fazem causa comum com os ditadores que massacram seus povos.” (ênfase nossa)
— Declaración programática del Frente de Izquierda y de los Trabajadores, agosto de 2011. Disponível, em espanhol, em:
O próprio PTS teve uma posição traiçoeira na Líbia, ao não defender na prática tomar o lado da nação oprimida (sem nenhum apoio político ao seu governo ditatorial burguês) contra a OTAN e seus aliados locais. Mas pelo menos o PTS não defendeu o triunfo da suposta “revolução” dos rebeldes aliados com a OTAN (a “tropa terrestre” dos imperialistas, como os classificou na época). [2] Já no programa da FIT, assinado e defendido pelo PTS, onde foram parar as suas críticas (ainda que inconsistentes) às posições dominantes na esquerda internacional de apoio aos rebeldes que recebiam auxílio direto da OTAN? Qual a importância de escrever dúzias de polêmicas contra essas correntes centristas maiores se, quando se tornam aliados de bloco, o PTS deixa de lado as suas visões para defender a mesma posição de apoio a uma “revolução” financiada, armada e com auxílio direto da intervenção militar da OTAN, ao mesmo tempo em que cinicamente diz ser “contra o imperialismo”?
Outros pontos do programa da Frente eram deliberadamente vagos, com o objetivo de abarcar as posições bastante divergentes dos seus componentes, como o que chama “Por um governo dos trabalhadores e do povo, imposto pela mobilização dos explorados e oprimidos”. É muito fácil proclamar a necessidade de um “governo de trabalhadores” – qualquer oportunista pode fazer isso dando a esse termo seu próprio significado, como já apontava Trotsky no Programa de Transição. Mas como esse governo seria construído e estabelecido? Em uma revolução em duas etapas, com uma primeira etapa “democrática”, como sugerem os morenistas? Ou ganhando assentos no parlamento burguês, como sugere o Partido Obrero? Ao defender a mesma proposição de “governo dos trabalhadores” lado a lado com o PO e os morenistas, a FT-QI ajudou a confundir a classe trabalhadora e a sua vanguarda.
A Fração Trotskista parece gostar de acreditar que, ao compor a FIT, estava diminuindo a distância entre si e PO. Em certo sentido tem razão, mas essa convergência não se dá sob um programa revolucionário, mas sob um acordo oportunista. A construção da FIT não foi o resultado de uma evolução à esquerda do PO, ou dos morenistas da Esquerda Socialista para convergir com o programa do PTS, mas sim de uma combinação sem princípios entre os programas desses grupos que, ao considerarem que seu bloco conjunto era “revolucionário”, estão implicitamente afirmando que suas divergências não são tão relevantes.
Os trotskistas, em sua luta pelo resgate dos princípios que tornaram possível a Revolução de Outubro, viam a necessidade fundamental de combater o centrismo e de manter contra ele uma intransigência programática, para o que é necessário manter as mãos livres. Ao defender que a FIT possui uma “estratégia revolucionária” apesar do caráter oportunista reconhecido de seus componentes, e ao apresenta-la muitas vezes de forma acrítica, a FT-QI está blindando o caráter oportunista do PO e IS diante da vanguarda da classe trabalhadora. E faz isso porque considera que essa Frente pode vir a ser um substituto suficiente (ainda que não perfeito) para o partido revolucionário.
Embora algumas vezes, perante a vanguarda, a FT-QI faça críticas corretas a essas organizações revisionistas, quando se dirige a um público mais amplo ela as deixa de lado em prol da ilusão de que é possível defender um programa político “revolucionário” em conjunto tais organizações. Assim, a Fração Trotskista secundariza, diante da perspectiva de uma união com os oportunistas, o papel de denunciar o centrismo que desvia o proletariado de uma consciência revolucionária. Por trás da sua Frente “revolucionária” se escondia a disposição da FT-QI em encobrir e colaborar com os centristas na sua esperança inócua, como nós demonstraremos, de aperfeiçoar tais “instrumentos desafinados” para a revolução.
FIT: um bloco oportunista com os “instrumentos desafinados”
Os companheiros da seção simpatizante da FT-QI na Alemanha, a Revolutionary Internationalist Organisation (RIO), disseram que a FIT não era um projeto de longa duração, e que também não implicava nenhum compromisso estratégico entre os seus integrantes:
“Outra característica importante para a formação da FIT é a questão de frentes eleitorais como uma frente única temporária baseada em acordos parciais em uma situação concreta, em oposição a projetos de longo prazo baseados em acordos mais profundos em termos de programa, estratégia e prática. A FIT não é de forma alguma um projeto que foi designado em termos de um alinhamento de longo prazo do PTS com o PO, mas sobre a necessidade concreta de uma frente única dos trabalhadores contra a repressão burguesa…”.
— The Electoral Campaign of the FIT in Argentina, julho de 2011. Disponível, em inglês, em:
Não é necessariamente oportunista que organizações da classe trabalhadora (desde que em oposição a quaisquer representantes da burguesia) combinem suas forças para lutar contra restrições legais antidemocráticas para concorrer às eleições, ou para o propósito limitado temporário de organizar um voto de protesto contra os partidos e coalizões capitalistas. Mas isso não pode ser feito ao custo de minimizar a plena exposição de desacordos públicos entre tais correntes, e nem apresentando a frente com um programa político comum, ou como algum tipo de alternativa “revolucionária” portadora de uma estratégia que possa levar a classe trabalhadora à vitória, como foi feito pela Fração Trotskista. Vejamos o que disse o PTS vários meses depois das eleições argentinas terem sido encerradas:
“Por outro lado, nos vemos obrigados a insistir que não apenas defendemos com todas as nossas forças a continuidade da FIT, como também temos sido consequentes impulsionadores de dar um novo salto, lançando uma grande revista da Assembleia de Intelectuais, Docentes e Artistas em apoio à FIT, a medida mais audaz para produzir um novo impacto no cenário político nacional que transcenda os marcos do acordo eleitoral e a publicação de declarações comuns.”
— Propuestas concretas para avanzar, março de 2012. Disponível, em espanhol, em:
Apesar de a FIT ter sido uma frente eleitoral nas eleições argentinas de 2011, o PTS adotou a sua bandeira para muito além desse período. O partido passou a ter uma seção do seu site voltada exclusivamente para discutir sobre a Frente e até hoje ela continua sendo propagandeada nos setores do movimento onde ele atua. Mais significativamente, a FIT manteve colunas próprias em protestos de rua e também tem emitido declarações conjuntas, elaboradas nas suas reuniões. No Brasil, a LER-QI continua defendendo a FIT como o grande “exemplo a ser seguido” de como realizar uma campanha “revolucionária”. Nós não sabemos quanto os companheiros alemães sabem sobre a FIT, mas a sua caracterização em muito difere das próprias ações das demais seções da FT-QI.
Já que a FIT claramente não era apenas uma associação temporária sem compromisso programático para burlar a legislação eleitoral antidemocrática da Argentina (que na prática impede pequenos grupos de lançarem candidatos), qual era o seu verdadeiro propósito do ponto de vista da Fração Trotskista?
O PTS buscou uma forma de se conectar ao Partido Obrero (não é segredo para ninguém que a Esquerda Socialista, um grupo menor que o PTS, era um fator insignificante na FIT) esperando estabelecer um esquema no qual o PO, como parte da Frente, transcenderia as suas posições centristas e seria capaz de defender uma perspectiva revolucionária:
“O que é seguro é que se apresentará a oportunidade de aproveitar a tribuna eleitoral para nos dirigirmos aos trabalhadores descontentes com o governo, levantando um programa operário e socialista que responda às demandas dos trabalhadores e do povo pobre, e uma perspectiva revolucionária. Apostamos que a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores esteja à altura dessa nova realidade.”
— La nueva militancia obrera, los cambios en la clase trabajadora y el PTS, dezembro de 2012. Disponível, em espanhol, em:
Os dirigentes do PTS acreditavam estar realizando uma manobra com o objetivo de aproximar o Partido Obrero das suas próprias concepções: influenciar o PO, que era a maior organização da FIT, a cumprir um papel “revolucionário” uma vez que estivessem associados. Esse tipo de impulso pablista, que faz concessões programáticas ao centrismo (como o PTS fez) para apostar na capacidade dos revisionistas de evoluírem até posições revolucionárias, foi certamente o que orientou a atuação do PTS.
Para os trotskistas, um programa revolucionário só pode ser defendido consistentemente por um partido proletário de vanguarda que se aproprie de forma crítica das mais importantes experiências históricas da classe trabalhadora, ou seja, um partido capaz de recuperar o programa marxista e atualizá-lo, em oposição a todas as variantes do oportunismo. A ideia de que uma formação oportunista pode simplesmente ser forçada a conclusões genuinamente trotskistas pela pressão das massas, ou mesmo pela pressão de pretensos “revolucionários”, é uma concepção pablista. Isso foi explicado resumidamente pelo trotskista norte-americano James P. Cannon na época do seu rompimento com Pablo:
“Se o nosso rompimento com o pablismo, como nós agora vemos claramente, for resumido a um ponto e puder ser concentrado em um ponto – esse ponto é a questão do partido. Isso nos parece claro agora conforme nós temos visto o desenvolvimento do pablismo na prática. A essência do revisionismo pablista é o abandono daquela parte do trotskismo que é hoje a sua parte mais vital – a concepção da crise da humanidade como a crise de liderança do movimento proletário resumida à questão do partido.
“O pablismo busca não apenas destruir o trotskismo; ele busca destruir aquela parte do trotskismo que Trotsky aprendeu de Lenin. A maior contribuição de Lenin a toda sua época foi sua compreensão e sua luta determinada para construir um partido de vanguarda capaz de liderar os trabalhadores na revolução. E ele não confinou sua teoria à sua própria época de atividade. Ele voltou a 1871 e disse que o fator decisivo na derrota da primeira revolução proletária, a Comuna de Paris, foi a ausência de um partido de vanguarda marxista revolucionário capaz de dar ao movimento de massas um programa consciente e uma liderança resoluta. Foi a aceitação por Trotsky dessa contribuição de Lenin em 1917 que fez de Trotsky um leninista.
“Isso está escrito no Programa de Transição, esse conceito leninista do papel decisivo do partido revolucionário. E é isso que os pablistas estão jogando pela janela a favor de uma concepção de que as ideias vão de alguma forma se filtrar para dentro das cabeças da burocracia traidora, dos stalinistas ou dos reformistas, e de que de uma forma ou de outra, no ‘dia de São Nunca’, a revolução socialista vai ser realizada e levada adiante sem um partido marxista revolucionário, isto é, leninista-trotskista. Essa é a essência do pablismo. Pablismo é a substituição do partido e do programa por uma fé e uma crença mística.”
A Fração Trotskista irá responder que ela não capitula aos stalinistas, socialdemocratas ou ao nacionalismo burguês, como fazem tradicionalmente os pablistas e morenistas, e que não está negando a necessidade de um partido revolucionário para a vitória do socialismo. Mas o exemplo da FIT demonstrou que a FT-QI tem plena disposição para capitular ao “trotskista” Partido Obrero. E não apenas sobre a Líbia ou sobre a questão de um “governo de trabalhadores” por dentro do Estado burguês, mas na questão mais importante de todas – que é o papel do partido. Se não está negando aberta e formalmente o papel do partido, a FT-QI está fazendo isso na prática, ao atribuir um papel revolucionário a um bloco com os centristas nada regenerados do PO.
Dizer que uma Frente como a FIT era “revolucionária” não é um mero equívoco, ou um “erro” infeliz. É dizer que essa Frente centrista pode cumprir o papel que na realidade pertence a um partido revolucionário. Ao considerar a FIT como uma frente “revolucionária”, a FT-QI está compartilhando da concepção pablista segundo a qual a vanguarda revolucionária pode utilizar “instrumentos desafinados” para armar programaticamente a classe trabalhadora para a conquista do poder.
O PTS responderá que não está se liquidando dentro da FIT, como fazem os pablistas. Talvez não organizativamente. Mas também nem todas as variantes do pablismo pregaram o desaparecimento organizativo de seus grupos. O que sempre está presente é o liquidacionismo programático, a atribuição de capacidades revolucionárias a uma força que não a classe trabalhadora liderada pelo seu partido de vanguarda. É isso que a Fração Trotskista está fazendo com relação a esse Frente, que não é nem um partido revolucionário, e nem revolucionária sob qualquer ponto de vista.
Diferentemente da atitude do PST e da FT-QI, Trotsky foi bem enfático ao discutir com a seção francesa da Quarta Internacional o significado de blocos oportunistas como o que a FIT representa:
“A ideia de uma ‘paridade de formações’, isto é, de tendências, é inerentemente absurda e depravada. As tendências não são iguais em números; mas o que é mais importante são os diferentes valores ideológicos e políticos das tendências. Há tendências certas e erradas, progressivas e reacionárias. Aventureiros, para quem nada é sagrado, podem muito bem se acomodar junto à todas as possíveis tendências. Mas marxistas são obrigados a combater impiedosamente as tendências sem princípios e a não fazer alianças com elas em uma base comum. A paridade de tendências significa a paridade entre o marxismo, o centrismo, o aventureirismo, etc.”
– The Crisis of the French Section, L. Trotsky, 1935-36.
Apesar de insistirem ingenuamente que a FIT era um agrupamento de curto prazo para barrar a legislação eleitoral, os companheiros alemães da RIO nos ofereceram (sem ter sido sua intenção) uma visão bastante eloquente do que era o programa da FIT, e mostram como o papel do partido foi deixado de lado por essa Frente:
“A única coisa que o programa [da FIT] não faz é mostrar um caminho claro para a revolução socialista, em termos de uma estratégia concreta para a construção de um partido revolucionário. De fato, ele nem mesmo faz menção à necessidade de um partido revolucionário … Essa discrepância entre as demandas de um programa transitório e a ausência de referência a um partido revolucionário, e nesse sentido a ausência de referência a uma estratégia revolucionária clara, só pode ser explicada pelas grandes diferenças entre as forças na Frente, especialmente o PO e o PTS, em termos da construção de um partido e o papel da auto-organização das massas, que também podem ser vistas claramente pela atuação diferente de ambos na campanha eleitoral.”
…
“Em conclusão, o programa não é de forma alguma perfeito, mas estabelece uma boa base para uma unificação temporária das forças contra uma ameaça concreta (a reforma eleitoral). Não é um programa 100% revolucionário, mas, como dito antes, essa frente não é de longo prazo, mas uma solução temporária para um problema concreto, que também pode mostrar as diferenças entre os membros da frente e assim ajudar o PTS a adquirir um perfil mais claro contra o PO no que diz respeito à auto-organização das massas e a construção de um partido revolucionário.”
Para uma frente considerada tão entusiasticamente como “revolucionária”, é interessante que a “única coisa” ausente do seu programa tenha sido exatamente o que há de mais importante: “mostrar um caminho claro para a revolução socialista” e uma “estratégia concreta para a construção de um partido revolucionário”. Também é difícil de acreditar, tendo em vista o que expusemos acima, que a constituição da FIT tenha ajudado o PTS a se diferenciar do PO.
Ora, nenhuma organização revolucionária é perfeita. Todas cometem erros e desvios. A questão é sua capacidade de corrigi-los e avançar. Mas o que quer dizer que o programa da FIT não era “100% revolucionário”? Um programa político não pode ser 80% ou 60% revolucionário (que é o que a descrição dos companheiros alemães deixa a entender).
A caracterização de um partido ou de um agrupamento como revolucionário é qualitativa, e não quantitativa. Diz respeito à sua capacidade de armar a classe trabalhadora com o programa e a estratégia revolucionários para a vitória contra a burguesia e seu Estado, apesar de eventuais erros. O que pode ser entendido a partir do fato de que, por um lado, a Fração Trotskista considerou a FIT como “socialista”, “revolucionária”, “constituída em base a princípios, programa, táticas e estratégia proletária” — ou seja, considerou-a capaz de cumprir tal propósito — e, de outro, que o programa dessa frente não fazia nenhuma menção à necessidade de um partido revolucionário? Somente uma coisa (para aqueles que quiserem enxergar). Que na prática, a FT-QI sustentou a posição de que essa Frente poderia cumprir um papel revolucionário sem nenhuma menção à questão do partido. Essa concepção entende o partido revolucionário como um elemento dispensável, facultativo – substituível por um bloco oportunista.
A Fração Trotskista não tem como objetivo, dentro da FIT, esclarecer e ganhar os militantes e trabalhadores de base do Partido Obrero para uma perspectiva de oposição aos seus dirigentes oportunistas, e sim de pressionar a direção altamirista na expectativa de que ela possa cumprir o papel de uma liderança revolucionária. Se não fosse essa a sua intenção, por que aceitaria fazer importantes concessões programáticas ao PO em uma plataforma conjunta, e consideraria essa frente com Altamira como “revolucionária”? Isso é uma tentativa de se aproximar da direção do Partido Obrero, não de esclarecer os militantes do PO sobre o oportunismo da sua direção.
É claro que a Fração trotskista não está plenamente satisfeita com a FIT. Ela quer construir um partido conjunto com o PO, como já deixou claro em mais de uma declaração. Através da FIT, podemos ter uma medida de qual é o padrão “revolucionário” (repleto de capitulações a um centrismo à sua direita) que a FT-QI estaria disposta a estabelecer. Por ora o Partido Obrero rejeitou tais propostas. Mas um partido resultante de uma fusão como essa não seria um genuíno reagrupamento dos revolucionários em oposição ao centrismo de suas direções, mas uma “FIT permanente” com Altamira e seu legado de traições aos interesses da classe trabalhadora – e o PTS servindo como seu advogado de esquerda.
Às vezes, os dirigentes da FT-QI deixam a entender que estão realizando apenas uma “manobra” através da qual estão conseguindo pressionar, ou mesmo atrair, os centristas do PO para uma posição mais à esquerda. Membros mais conscientes da Fração Trotskista deveriam estar se perguntando se, ao invés de influenciar os oportunistas a adotar posições “revolucionárias”, eles próprios não estão sendo puxados para posições cada vez mais oportunistas. Nos seus esforços para se adequar a essas organizações em uma Frente ou um partido conjunto, a máscara vai acabar se tornando o verdadeiro rosto.
Blocos com “instrumentos desafinados” vs. reagrupamento revolucionário
O motivo pelo qual é possível enxergar através das intenções da FT-QI, é porque a FIT não foi nem a primeira e nem a segunda ocasião em que ela afirmou que, se as correntes centristas à sua direita estiverem unidas com ela própria (mesmo que sem nenhum balanço de seus oportunismos prévios) elas podem, da noite para o dia, passar a cumprir um papel “revolucionário”.
Em 2007, por exemplo, a FT-QI lançou um “Chamado Internacionalista” assinado por todas as suas seções, onde chamava certas organizações – o PSTU brasileiro (LIT), o PO argentino (CRQI) e o POR boliviano – a “fazer uma campanha conjunta por três pontos fundamentais” em oposição ao governo Chávez na Venezuela. Esses pontos eram:
“(A) Contra as falsas nacionalizações de Chávez, lutar por uma nacionalização sem indenização de todas as indústrias estratégicas, sob controle e gestão operária; (B) Lutar por um partido operário independente, para que a classe trabalhadora comece a pensar na vida política nacional contra todas as variantes do reformismo e do nacionalismo burguês; (C) A perspectiva de um governo operário, camponês e do povo pobre como única via real para dar passos rumo à resolução das principais demandas operárias, camponeses e populares, contra toda falácia de ‘socialismo do século XXI’.”
— La tarea de la izquierda ante el proyecto de Chávez, março de 2007. Disponível, em espanhol, em:
Novamente, a proposta não era por uma frente única, unidade de ação por um objetivo de luta, da qual os revolucionários participariam sempre que possível. A Fração Trotskista estava chamando essas organizações centristas maiores para lutarem junto com ela por programa transitório (“nacionalização sem indenização de todas as indústrias estratégicas, sob controle e gestão operária”) e por um “governo operário, camponês e do povo pobre” – ou seja, por um bloco programático.
Esse “chamado internacionalista” era bastante diplomático. Ele não continha nenhuma crítica àqueles a quem a FT-QI propôs a campanha. Não denunciou, por exemplo, que o PSTU brasileiro não luta ativamente por um programa transitório no seio da classe trabalhadora ou que sua teoria da “revolução democrática” subordina o proletariado a “variantes do reformismo e do nacionalismo burguês”; nem tampouco que em momentos chave do passado ambos o PO argentino e POR boliviano abandonaram a luta por um governo dos trabalhadores em troca de uma ou outra variante da burguesia “anti-imperialista”, algo que certamente repetirão no futuro.
Esse tipo de “manobra” só tem como resultado prestigiar os centristas aos olhos da vanguarda da classe trabalhadora. Isso só cumpre o papel de desorientar sobre a natureza do centrismo. Se a Fração Trotskista tivesse cumprido nessa ocasião o papel de denunciar o fato de que as organizações a quem propõe essa campanha cruzam repetidamente a linha de classe, o próprio chamado não faria sentido. A Fração Trotskista estaria, no mínimo, pedindo para que esses centristas que se encontram à sua direita rejeitassem todo o seu longo histórico de capitulações. Diferente do que parece esperar a Fração Trotskista, nenhuma dessas correntes irá simplesmente repudiar sua trajetória e passar a cumprir um papel “revolucionário”, mesmo que num bloco conjunto com ela.
Se há alguma coisa de consistente nessas tentativas da FT-QI, é a sua disposição em tentar criar blocos oportunistas para substituir o papel de um partido revolucionário. Se os pablistas clássicos buscavam “afinar” “instrumentos desafinados” que já existiam, a FT-QI busca se associar a estes instrumentos, criando um bloco ainda mais “desafinado” perante as tarefas revolucionárias.
Um dos maiores testes políticos para uma seção da FT-QI até hoje, a crise argentina de 2001-2002, não foi exceção nas tentativas utópicas de criar blocos oportunistas com os “instrumentos desafinados”. Com o enorme clamor popular pela queda do presidente burguês, ao mesmo tempo em que faltava às massas trabalhadoras precisamente um programa claro e a preparação para defender uma solução revolucionária, a posição do PTS foi propor um “bloco de esquerda” para atuar conjuntamente com centristas de direita e reformistas:
“Para impulsionar essas tarefas e um programa como o que propomos nessas páginas, é preciso buscar unir a esquerda em um bloco. Mas nem toda esquerda está disposta a lutar por uma saída desse tipo. Para pôr um exemplo recente, na marcha à Praça do Congresso convocada pela CGT de Moyano, o PC se opôs acirradamente a que a coluna da esquerda fosse encabeçada pela bandeira de ‘greve geral até que se vão’. Os companheiros do MST e do PO cederam. Por isso marchamos separados. O PC está comprometido com a cúpula dirigente da CTA e a Frente Contra a Pobreza, que mostrou toda a sua impotência nos atuais acontecimentos. Não querem nenhuma saída de fundo por fora desse regime de engano e miséria porque pretendem reformas cosméticas. Propomos ao MST, se decidir se separar do PC-IU, e ao PO formar um bloco da esquerda, operário, socialista e revolucionário para intervir em comum no processo atual.”
— Expropiar a los expropiadores, dezembro de 2011. Disponível, em espanhol, em:
Mesmo sem entrar na discussão sobre o programa levantado pelo PTS nesse mesmo artigo (que defendeu substituir o governo burguês por uma Assembleia Constituinte para criar uma “democracia muito mais ampla”, em que as massas “fariam muito mais rapidamente sua experiência”), vemos aqui mais uma demonstração de como a FT-QI defendeu que os oportunistas poderiam ser parte de um “bloco da esquerda, operário, socialista e revolucionário”.
Quando a classe trabalhadora argentina mais precisou de um partido revolucionário, o objetivo principal da FT-QI não foi trabalhar para construir um de forma independente dos oportunistas em geral, mas sim apostar em um bloco oportunista com eles, para tentar utilizar “instrumentos desafinados” para cumprir tarefas revolucionárias. Trotsky defendeu que “Para levar a cabo eficazmente” todas as tarefas revolucionárias “são necessárias três condições: o partido, o partido, e uma vez mais o partido.” (A revolução espanhola e as tarefas dos comunistas, janeiro de 1931). Para a FT-QI, era necessário, acima de tudo, um bloco com os centristas e reformistas.
Alguns companheiros da FT-QI sustentam que através das “manobras” como a FIT, estão apenas lutando para construir um partido revolucionário o mais rápido possível. Verificar as possibilidades de fusão com outras organizações é uma tarefa fundamental para que os pequenos grupos trotskistas possam se desenvolver. Mas isso deve se dar ao mesmo tempo em que se trava uma batalha contra todas as concepções oportunistas. Não se combate seriamente o centrismo do PO, por exemplo, encobrindo as posições dúbias de Altamira, ou dizendo que este pode cumprir um papel revolucionário. Essa tarefa de combater seriamente o centrismo, a Fração Trotskista abandona quando quer se apresentar para a classe trabalhadora sob a mesma bandeira das organizações oportunistas.
O partido mundial da revolução socialista não será reconstruído em colaboração com o centrismo. Em alguns momentos, a Fração Trotskista tem o mérito de se opor à colaboração de classes com os setores da burguesia com os quais muitos na esquerda flertam e consideram “anti-imperialistas”, “objetivamente revolucionários”, “progressivos” ou coisas do gênero. Mas isso não tem nenhum valor se ela está a serviço de um projeto de construção de partido que não é independente desses grupos centristas e, por vezes, cumpre o papel de blindar os seus oportunismos sob o rótulo de “revolucionário”.
A história da construção da Quarta Internacional está repleta de exemplos de como é possível se aproximar de organizações centristas jovens e instáveis e ganha-las para o programa revolucionário. Isso foi feito sem capitular ao centrismo, e sem dizer que este podia simplesmente passar a cumprir um papel revolucionário sem um rompimento claro e aberto com seu programa prévio. Tanto o PSTU brasileiro quanto o PO argentino são grupos centristas consolidados, com uma trajetória de várias décadas de traições aos interesses da classe trabalhadora. É extremamente improvável, para dizer o mínimo, que esses grupos, com sua atual liderança, possam ser ganhos como um todo para o programa revolucionário. Mas mesmo se isso fosse possível, certamente não aconteceria através da postura “diplomática” dos chamados da FT-QI e nem nas ilusões nutridas no caráter “revolucionário” de frentes como a FIT. Como nós explicamos em outra ocasião:
“Os revolucionários não são indiferentes ao fato de que as organizações centristas (como o PSTU), e mesmo partidos reformistas, possuem contradições internas, muitas à esquerda, e que podem ser resolvidas ganhando largas frações de tais grupos para uma política revolucionária. Mas essa ruptura precisa se dar em algum momento e somente os revolucionários podem cumprir o papel de separar os militantes honestos que são atraídos inadvertidamente para organizações engessadas e aqueles que já estão conscientemente presos a políticas centristas ou ao aparato burocrático do partido… Mas o PSTU em si, como partido que existe hoje, afasta os militantes honestos das concepções genuinamente revolucionárias, ao invés de aproximá-los delas.”
“A liderança da LER-QI possui sérias ilusões no PSTU (e em sua direção) se compreende que esse partido pode ser influenciado por ela e simplesmente passar a cumprir um papel progressivo na luta pela construção da vanguarda comunista. Como em todas as épocas, os revolucionários devem saber separar os elementos mais avançados daqueles que simplesmente se adaptaram ao ritmo ou ao aparato conservador dos partidos centristas.”
— O Vermelho Deles e o Nosso, agosto de 2011. Disponível em:
FT-QI: uma ruptura incompleta com o morenismo
Para aqueles que têm alguma familiaridade com a tradição morenista, fica patente a proximidade que a FT-QI ainda mantém com esta no que diz respeito à questão de como construir o partido. O impulso da FT-QI por construir blocos com correntes oportunistas (“instrumentos desafinados”) que estejam à sua direita tem equivalentes diretos nessa tradição. Nesse sentido, sua estratégia de construção de partido está muito mais próxima do morenismo do que da perspectiva trotskista de reagrupamento revolucionário. Moreno, que expunha de forma muito mais descarada o seu oportunismo, explicou da seguinte forma o seu método:
“Concretamente, é preciso formar por meio de acordos com centristas e grupos progressivos um partido centrista de esquerda legal que nos permita chegar melhor à vanguarda operária.”
— El Golpe Gorila de 1955, meados de 1956. Disponível, em espanhol, em:
Desde o início de sua militância, Moreno e seus colaboradores próximos construíram os mais diversos blocos oportunistas com outros grupos nacionais e internacionais, que raramente duraram muito. [3] Entretanto, em fins dos anos 50, quando ainda estava alinhado ao Comitê Internacional anti-pablista, Moreno racionalizou na forma de uma teoria o seu oportunismo acerca da construção do partido, tal qual fizera antes ao elaborar a estratégia semi-etapista da “revolução democrática”. Aos blocos que visava construir com os oportunistas à sua direita, Moreno passou a chamar de “Frente Única Revolucionária”. Essa racionalização, junto à estratégia da “revolução democrática”, pavimentou sua reunificação temporária com o Secretariado Internacional pablista em 1963, seguindo os passos do SWP norte-americano.
O documento que contém tal racionalização de forma mais clara são as chamadas “Teses de Leed”, ou “Teses Sobre a Frente Única Revolucionária”, apresentadas em 1958, em uma conferência do Comitê Internacional (ocorrida na cidade inglesa de Leed). Delineando uma análise quase igual à dos pablistas do Secretariado Internacional, Moreno alegou que o ascenso revolucionário de então produziria uma crise nos aparatos e organizações oportunistas da classe trabalhadora, que rachariam e dariam origem a “forças revolucionárias inconscientes” (termo de Moreno). Devido a sua fraqueza, Moreno previa que as forças trotskistas revolucionárias não seriam capazes de absorver tais tendências de imediato. Propôs então que se formasse “unidades de ação revolucionária” com tais forças, alçando-as à direção das massas ao buscar responder às “necessidades revolucionárias mais urgentes” destas. Conforme resume o próprio documento:
“O importante é compreender que a Frente Única Revolucionaria significa toda uma nova estratégia geral que se sintetiza na necessidade de que nossas organizações trotskistas nacionais assumam a tarefa obrigatória de organizar a ação comum das tendências revolucionarias que surjam da crise dos aparatos no movimento de massas, para postular com redobradas forças o direito e a necessidade de que haja uma direção revolucionária do movimento de massas, e para ajudar essas tendências a se elevarem verdadeiramente a atuarem enquanto uma direção revolucionária.”
— Tesis Sobre El Frente Unico Revolucionario, N. Moreno, 1958. Disponível, em espanhol, em:
Obviamente, em momentos de crise e de conflitos internos nas organizações centristas, os trotskistas buscam intervir de forma a promover um reagrupamento de forças revolucionárias – muitas vezes, possível apenas com um setor dessas organizações, que precisam rachar para tal. Entretanto, as forças com as quais Moreno visava reagrupar nesse momento de crise (e com as quais passou a buscar se reagrupar mesmo em momentos de calmaria) eram, na sua própria definição, “centristas de esquerda ou ultraesquerdistas”. Forças que “não se elevaram à compreensão da necessidade de nosso programa”, mas que supostamente, mesmo “com todas as suas limitações e erros levarão o movimento de massas a posições revolucionárias”.
Portanto, Moreno claramente propunha algo que na prática era idêntico à ideia pablista de “afinar” “instrumentos desafinados” – porém, no lugar de uma dissolução organizativa (“entrismo sui generis”), colocava a formação de um bloco oportunista (“Frente Única Revolucionária”).
Sem dúvidas é aí que reside o impulso da FT-QI de formar blocos com grupos “trotskistas” à sua direita. Nesse artigo buscamos apresentar de maneira aprofundada o aspecto prático que esse impulso assume na Argentina, através das ações da maior seção da FT-QI. Entretanto, a vontade do PTS de se amalgamar com o PO (que já gerou alguns chamados públicos para discussões de fusão que não apresentavam nenhum balanço sério das diferenças entre ambas organizações) se expressa não só a nível nacional, mas é também generalizado para outras seções da FT-QI, constituindo assim uma verdadeira estratégia centrista de construção de partido. Em uma resolução adotada em seu último congresso, o PTS apontou como tarefa:
“3) Ratificar o chamado discutido pelos grupos da FT de colocar de pé um Movimento por uma Internacional da Revolução Socialista – que para nós é a Quarta Internacional – em base a um Manifesto Programático. Este chamado está dirigido tanto aos setores da vanguarda operária e da juventude, como à ala esquerda dos operários de Huanuni, como às organizações da esquerda trotskista, em particular a plataforma Y do NPA e a Coordenadoria pela Refundação da Quarta Internacional (CRCI a qual pertence o Partido Operário da Argentina), com quem esperamos abrir discussões que nos permitam confluir nesta tarefa de dimensões históricas.” (nossa ênfase)
— XIII Congresso do PTS, abril de 2013. Disponível em:
Diante da crítica que fazemos à sua política com relação aos grandes grupos centristas, algumas vezes companheiros da LER-QI (que no Brasil buscam aplicar uma lógica semelhante em relação ao PSTU) respondem verbalmente às nossas críticas com acusações de “sectários” ou mesmo de “puristas”. Trotsky explicou que uma organização revolucionária se distingue de uma organização centrista pelo seu “cuidado atento aos princípios, clareza de posição, consistência política e integralidade organizacional” (Dois Artigos sobre o Centrismo, 1934). Temos com ele pleno acordo nesse aspecto.
O nosso suposto “sectarismo” não seria por uma recusa em participar sempre que possível da luta de classes, dos sindicatos, de frentes únicas, das eleições burguesas (para propaganda revolucionária) ou de qualquer arena onde a classe trabalhadora esteja em luta; mas simplesmente por nos opormos a considerar “revolucionária” uma frente programática contendo partidos “trotskistas” que já realizaram grandes desserviços à causa da luta pela reconstrução da Quarta internacional e, consequentemente, pela revolução socialista. Durante a construção da Quarta Internacional, Trotsky fez uma descrição bastante relevante do papel do centrismo:
“… A nova Internacional não pode se formar de outra forma que não seja na luta contra o centrismo. A intransigência ideológica e a frente única flexível são, nessas condições, duas armas para buscar um mesmo fim.”
…
“O centrista, nunca certo da sua posição e métodos, detesta o princípio revolucionário: chamar as coisas do que são; ele se inclina a substituir os princípios políticos por combinações pessoais e pequenas diplomacias organizativas.”
“O centrista mantém sempre uma dependência espiritual com grupos à direita, é induzido a cortejar a boa vontade do mais moderado, a manter silêncio sobre as falhas oportunistas dele e a blindar suas ações diante dos trabalhadores.”
…
“… É precisamente nesse plano que se deve agora golpear com princípios o centrismo. Para realizar esse trabalho com sucesso, é essencial conservar as mãos livres; isso significa não apenas manter uma completa independência orgânica, mas também uma intransigência crítica com relação às ramificações mais ‘de esquerda’ do centrismo.”
— Two Articles on Centrism, fevereiro/março de 1934. Disponível, em inglês, em:
Por não ter sido capaz de absorver tal lição, a ruptura da FT-QI com o morenismo não pode ser tida como completa nem revolucionária. Ela certamente foi progressiva em muitos aspectos, mas ela apresenta nítidos resquícios do oportunismo morenista em alguns pontos centrais, como no que diz respeito à construção de um partido revolucionário. [4]
Concluímos com a seguinte citação de uma das organizações que, de um ponto de vista programático, foi predecessora do Reagrupamento Revolucionário. Ela condensa uma das linhas divisórias que nos separa da FT-QI e de outras organizações aparentemente “ortodoxas”:
“Nos últimos quinze anos o movimento fundado por Leon Trotsky sofreu uma profunda crise teórica, política e organizativa. A manifestação superficial dessa crise foi o desaparecimento da Quarta Internacional como uma estrutura significativa. O movimento consequentemente foi reduzido a um grande número de pequenos grupos … Políticos superficiais esperam superar a crise por uma fórmula organizativa – ‘unidade’ de todos pequenos grupos que queiram se unir em torno de um programa de denominador comum. Essa proposta obscurece e, na verdade, agrava as causas políticas e teóricas fundamentais dessa crise. … A Quarta Internacional não irá renascer através da adaptação ao revisionismo pablista: somente com uma luta teórica e política contra todas as formas de centrismo é que o partido mundial da revolução socialista pode finalmente ser estabelecido.”
— Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional, junho de 1963. Disponível em:
NOTAS
[1] Para uma análise crítica da estratégia morenista da “revolução democrática” (ou “revolução de fevereiro”), conferir estes artigos, disponíveis respectivamente em:
[2] Para uma crítica dessa posição de “neutralidade” ante a invasão imperialista, conferir:
[3] Para citar o que talvez seja um dos exemplos mais conhecidos, entre fins de 1979 até meados de 1981, Moreno formou um grupo internacional com Pierre Lambert. Extremamente instável, o bloco se desfez rapidamente com ambos os lados trocando acusações de “oportunismo”. Antes disso, Moreno havia rompido com Comitê Internacional em 1963, para se reunificar com os pablistas do Secretariado Internacional, tal qual estava fazendo o SWP norte-americano. Para mais detalhes sobre o bloco com Lambert, formado após a saída de Moreno do Secretariado Unificado, confira os seguintes dois artigos disponíveis em nosso Arquivo Histórico em espanhol:
[4] Encaramos que outro ponto central que demonstra a insuficiência dessa ruptura reside na ausência de um balanço crítico, por parte da FT-QI, das posições traidoras que o morenismo adotou diante das contrarrevoluções no Leste Europeu, durante meados da década de 80. Em geral essas posições se resumem no fato do morenismo ter apoiado politicamente os diversos movimentos restauracionistas, como o “sindicato” Solidariedade. A esse respeito, sugerimos a leitura dos seguintes materiais, disponíveis em nosso Arquivo Histórico em Português (mais alguns serão adicionados em breve):