O Morenismo e a Posição da CST (UIT) na Síria

Movimento dirigido pela oposição burguesa ou “revolução democrática”?
O Morenismo e a Posição da CST (UIT) na Síria

Leandro Torres
Outubro de 2012

Recentemente publicamos uma declaração [1] sobre o conflito que vem se desenvolvendo na Síria entre a ditadura de Bashar al-Assad e as tropas armadas da oposição burguesa organizada no Conselho Nacional Sírio (CNS), que tenta se impor enquanto uma liderança para o país. Em nossa declaração, insistimos na importância fundamental de organizar um movimento da classe trabalhadora, em oposição a todos os setores da burguesia — inclusive os rebeldes dirigidos pelo CNS. Compartilhamos imenso ódio contra a ditadura burguesa de Bashar, mas acreditamos que a vitória de um movimento armado dirigido pela oposição burguesa da Síria não pode representar nenhum tipo de interesse (nem democrático e nem social) para classe trabalhadora.

A Unidade Internacional dos Trabalhadores (UIT) e sua seção brasileira, a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST) – corrente interna do PSOL à qual é ligado o ex-parlamentar Babá – defendem uma política bem diferente disso. A explicação para essa divergência está no abismo existente entre o programa trotskista e o programa formulado e defendido historicamente pelo dirigente argentino Nahuel Moreno. A UIT surgiu em 1995, a partir de um racha na Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), a organização internacional dirigida pelo PSTU e fundada por Moreno. A própria CST é um racha mais tardio do PSTU brasileiro e segue reivindicando o legado teórico de Moreno.

A “revolução democrática” morenista

Esse conceito é uma pedra angular da teoria revisionista criada por Nahuel Moreno para justificar seus próprios ziguezagues oportunistas. Em seu livro As Revoluções do Século XX (1984), Moreno realiza uma verdadeira distorção do conceito de revolução, para encaixá-lo em suas próprias necessidades de enxergar nas lutas contra as ditaduras da América Latina (então em desenvolvimento) possíveis “revoluções democráticas triunfantes” que teriam sido lideradas por setores da burguesia. O conceito de revolução defendido por Moreno acaba por esvaziá-lo de seu conteúdo classista e revolucionário:

“O que Trotsky não colocou, apesar do paralelo que fez entre o stalinismo e o fascismo, foi que também nos países capitalistas era necessário fazer uma revolução no regime político: destruir o fascismo para reconquistar as liberdades da democracia burguesa, ainda que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia, do Estado burguês. Concretamente, não colocou que era necessária uma revolução democrática que liquidasse o regime totalitário fascista,como parte ou primeiro passo do processo até a revolução socialista, e deixou pendente este grave problema teórico.”

 As Revoluções do Século XX, Nahuel Moreno, 1984 (ênfase nossa).

Delineando uma estratégia semietapista para o combate às ditaduras em geral e a realidade latino-americana da época em particular, Moreno precisou falsificar deliberadamente o pensamento de Trotsky, que foi muito claro ao lidar com a questão das tarefas dos revolucionários frente a uma ditadura burguesa (no caso, o fascismo). O programa trotskista encarava que a derrubada de ditaduras burguesas deveria se dar através de uma revolução proletária, capaz de erguer um Estado da classe trabalhadora, e de expropriar inclusive os setores “democráticos” da burguesia. Ou seja, nada de “revolução no regime político” como “primeiro passo do processo até a revolução socialista”. O pensamento de Trotsky e da Quarta Internacional eram justamente a antítese de todo e qualquer etapismo:

“Isso significa que a Itália [fascista] não pode, por certo tempo, novamente se tornar um Estado parlamentar ou se tornar uma ‘república democrática’? Eu considero – em perfeito acordo com vocês, eu acho – que essa eventualidade não está excluída. Mas então, não seria fruto de uma revolução burguesa, mas sim o aborto de uma revolução proletária insuficientemente madura e prematura. No caso de uma profunda crise revolucionária e de batalhas de massas no curso das quais a vanguarda proletária não tome o poder, possivelmente a burguesia irá restaurar seu domínio sobre bases ‘democráticas’.”

Problems of the Italian Revolution, Leon Trotsky, 1930 (ênfase nossa). Disponível em inglês em:

Já Moreno preferiu definir como “revoluções vitoriosas” processos políticos hegemonizados pela burguesia, deixando o programa da revolução proletária para os dias de festa e defendendo vergonhosamente a necessidade de uma etapa (“primeiro passo”) democrático-burguesa que precedesse a revolução socialista na luta contra regimes ditatoriais burgueses. Durante essa luta, caberia aos morenistas apoiar os movimentos dirigidos por forças burguesas e leva-las ao poder, deixando para um futuro incerto a necessidade concreta da revolução socialista. Na realidade, portanto, essa “revolução democrática” no regime burguês, a ser liderada por partidos de outras classes, nada mais é do que uma receita para manter o proletariado iludido de que está conquistando “vitórias revolucionárias” enquanto na verdade permanece sob o domínio da burguesia e do imperialismo.

As tarefas revolucionárias na Síria e a posição da CST

No que tange às tarefas revolucionárias na Síria, defendemos em nossa declaração a necessidade de criar um amplo movimento do proletariado, politicamente independente das forças burguesas. Através de demandas transitórias, caberia a esse movimento combinar um combate aos efeitos da crise econômica (como o crescimento do desemprego e do preço dos alimentos), com uma luta consequente por liberdades democráticas e pelo socialismo. Apontamos também que a burguesia síria está umbilicalmente ligada ao “arcaísmo” existente hoje no país, cuja face mais evidente é o fundamentalismo religioso de muitas de suas frações e a submissão política e dependência estrutural de toda essa classe com relação às burguesias imperialistas. O sucesso de uma luta pelos direitos democráticos na Síria, que incluem a emancipação das mulheres, da minoria curda, a distribuição da terra e a libertação do país contra o imperialismo passam necessariamente pela expropriação dos capitalistas.

A direção da UIT às vezes cria a impressão de que defende os mesmos princípios gerais que acabamos de expor. Por exemplo:

“Fraternalmente nós dizemos ao heroico povo sírio que apenas um governo baseado em suas próprias organizações insurgentes de base, como os Comitês Locais de Coordenação e organizações operárias e populares, o rechaço à intervenção imperialista e a ruptura e expropriação do imperialismo e do clã de Assad, pode leva-los a conquistar seus objetivos democráticos e sociais de fundo.”

—     Siria: ¡basta de masacres al pueblo!, de março de 2012. Disponível em espanhol em:

Porém, analisando com mais cautela tal declaração, logo ficam evidentes duas importantíssimas diferenças. A primeira delas diz respeito aos Comitês Locais de Coordenação, que a UIT chama a comporem um governo junto a “organizações operárias e populares”. A princípio, um governo composto de “organizações operárias e populares” poderia ser entendido enquanto um governo direto dos trabalhadores – um governo de tipo soviético, assentado sobre um Estado proletário. Mas acontece que os “Comitês Locais”, que vêm transmitindo notícias sobre os conflitos e ajudando na convocação e organização dos atos de ruas, compõem a coalização da oposição burguesa proimperialista, o citado Conselho Nacional Sírio.

Nesse sentido, esse órgão está politica e organizativamente submetido à mesma burguesia que tem pedido repetidamente para que a ONU realize um intervenção armada no país, o que só serviria para apertar ainda mais a corda imperialista que já sufoca o pescoço do povo sírio. Um governo composto por tal organização seria, necessariamente, não um governo direto dos trabalhadores, mas o governo de um braço subordinado do CNS.

Considerando que a UIT compôs no último 1º de maio uma reunião de “solidariedade internacional ao povo sírio e à revolução”, realizada em Regueb (Tunísia) [2], não podemos ter dúvidas que estes não sabem dessa submissão dos “Comitês Locais” ao CNS. Como veremos mais adiante, seu apoio aos “Comitês”, a “ala esquerda” do CNS burguês, não é um equívoco derivado da falta de informações, mas sim uma política consciente.

Quanto à segunda diferença, essa diz respeito à tarefa revolucionária de se expropriar a burguesia enquanto classe. A declaração da UIT chama pela “expropriação do imperialismo e do clã de Assad”, o que sem dúvidas colocaria nas mãos do proletariado importantes recursos agrônomos, industriais e tecnológicos. Mas e quanto à burguesia nativa que não é parte do “clã Assad”? Acaso os empresários proimperialistas do CNS merecem o perdão do proletariado por anos de conivência com Assad e de exploração dos trabalhadores só porque decidiram deflagrar um conflito armado e governar por si próprios o país?

A ausência de um chamado claro para a expropriação de toda a burguesia síria (incluindo os supostos “líderes” burgueses da suposta “revolução”), somada ao apoio aos “Comitês Locais de Coordenação” nos diz muito sobre a posição da UIT na Síria. Essa posição só faz sentido se sairmos do campo do trotskismo e nos embrenharmos na oportunista tradição morenista.

A UIT, embora criticando os líderes do CNS, disfarça o caráter burguês do movimento armado que ele dirige na luta pelo poder. Esse malabarismo não é ao acaso: serve para disfarçar o apoio dado pela UIT a esse movimento, com a esperança de que ele represente um “primeiro passo” para a vitória da classe trabalhadora. Considerando implicitamente que o conflito na Síria seria uma “revolução democrática” contra um regime ditatorial, a UIT:

“(…) chama a mais ampla unidade de ação mundial, a todos os sindicatos, movimento populares, correntes de esquerda, democráticas e anti-imperialistas para parar os massacres e apoiar incondicionalmente a rebelião popular para derrubar a ditadura de Al Assad. Reivindicamos dos governos a ruptura de relações com a ditadura síria. Convocamos a repudiar todo intento de intervenção imperialista! Que os povos e a juventude dos países árabes, em especial do Egito, Líbia e Tunísia, se mobilizem para exigir de seus governos que enviem armas e voluntários ao povo rebelde sírio!”

Seguindo a lógica de que o conflito sírio é uma “revolução” ao estilo morenista, não se faz necessário falar em classes, mas sim em “povo sírio” em geral (que aliás, não parece incluir a minoria curda e também minorias religiosas que temem e desconfiam da oposição). Não vale a pena compreender qual força de classe é a direção política do movimento oposicionista, ou qual é o seu programa, mas sim “apoiar incondicionalmente a rebelião popular”. Não vale a pena defender a criação de um movimento proletário politicamente independente da oposição burguesa e de seus braços, como os Comitês Locais de Coordenação, mas sim “exigir dos governos que enviem armas e voluntários ao povo rebelde sírio”.

Marxistas não agem dessa forma. Frente a todo e qualquer processo de luta, analisamos as classes envolvidas. No caso da Síria, os setores diretamente em luta são a odiosa oposição burguesa proimperialista do CNS, que dirige o movimento rebelde, e a igualmente odiosa burguesia ditatorial representada por Assad. Defendemos um programa próprio do proletariado. Por isso dizemos claramente que a vitória de qualquer um dos lados burgueses não significa nenhum “passo” ou um avanço com relação à perspectiva revolucionária.

A nota de um grupo com o qual a UIT mantém relações fraternais e que foi reproduzida no seu site, indicando uma concordância política em termos gerais, corretamente reconhece que:

“A falta da intervenção ativa da classe trabalhadora na revolução e a carência de uma direção política revolucionária cria uma situação de ‘empate’ e faz com que os que buscam uma saída em uma intervenção do imperialismo ganhem terreno dentro da oposição.”

La ONU y Bashar contra la revolución Siria, de abril de 2012. Disponível em espanhol em:

Entretanto, a ausência da classe trabalhadora organizada e a falta de sua “intervenção ativa” não impedem que a UIT considere o processo como “revolucionário”. Então qual classe “revolucionária” está à frente de um processo caracterizado como tal? Apesar de criticar o CNS, a UIT parece tirar a conclusão de que um movimento “sem a intervenção ativa da classe trabalhadora”, que age sob o seu programa burguês, segue a sua liderança e nutre ilusões nas suas promessas, poderia representar os interesses revolucionários da classe trabalhadora.

Seguindo a cartilha morenista, a UIT se coloca do lado da oposição burguesa liderada pelo CNS, caracterizando seu movimento como “revolução”, e não tira dessa situação de guerra civil a conclusão da necessidade urgente de construir um partido revolucionário, capaz de levar as massas trabalhadoras a cumprir um papel protagonista em uma luta contra a ditadura burguesa e também em oposição ao CNS pró-imperialista. Esse seria o único processo, diferentemente do atual, merecedor do nome de revolução. Na nota dos colaboradores internacionais da UIT, afirma-se que:

“Construção de comitês de solidariedade com a Revolução síria; cooperação destes comitês de solidariedade com os Comitês Locais de Coordenação, que são auto-organizações de massas que lideram as mobilizações; fornecimento de armas, munição e material de saúde para as forças revolucionárias; daria um impulso enorme à Revolução síria.”

Idem.

Da mesma forma que seus companheiros da UIT, o “Comitê Internacional de Enlace” [3] que assina tal nota embeleza os “Comitês Locais” submissos ao CNS, defende o fortalecimento das “forças revolucionárias” armadas (que não podemos entender senão enquanto o fortalecimento do Exército Livre da Síria, braço armado do CNS financiado por países burgueses vizinhos e potências imperialistas) e secundariza ou mesmo ignora a necessidade de um partido revolucionário e mesmo de um proletariado que se diferencie politicamente da burguesia e das “massas” em geral.

Diferente da UIT, nós nos baseamos no legado de Leon Trotsky, e não no de Moreno, opostos pela raiz. Para nós na Síria hoje, um governo do CNS ou mesmo da sua “ala esquerda”, os Comitês de Locais de Coordenação, não seria senão “o aborto de uma revolução proletária insuficientemente madura e prematura”. Uma vez no poder, estes dirigentes burgueses virariam as armas do seu Exército “Livre” contra qualquer um que ousasse organizar uma oposição proletária e falar em expropriação da burguesia ou ruptura com o imperialismo. Traição e derrota: é exatamente isso que espera o proletariado sírio no caso de este apoiar uma vitória do CNS, seja este a governar diretamente, ou mesmo os Comitês Locais de Coordenação a ele subordinados. A UIT, como tantos outros grupos na esquerda, está preparando o clima para que os trabalhadores sírios sejam arrastados a uma armadilha.

NOTAS

[1] Conferir O Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários, de setembro de 2012. Disponível em:
http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2012/09/o-conflito-sirio-e-as-tarefas-dos_5523.html

[2] Conferir Llamamiento de Regueb-Tunez en apoyo al pueblo sirio. Disponível em espanhol em:

[3] Composto pelos grupos Luta Internacionalista, da Espanha, e Frente Operária, da Turquia.