Arquivo Histórico: Contra a Teoria do Capitalismo de Estado

Resposta ao Camarada Cliff
Contra a Teoria do Capitalismo de Estado
Este documento foi escrito em 1949 por Ted Grant como parte da disputa interna no Partido Comunista Revolucionário (RCP), seção britânica da Quarta Internacional, sobre a caracterização da URSS e dos Estados do Leste Europeu. Embora discordemos do rumo tomado por Grant e outros membros da liderança do RCP posteriormente, reconhecemos nos seus escritos do fim da década de 1940 muitos pontos positivos contra as diversas adaptações da liderança da Quarta Internacional e também da corrente de Toni Cliff, hoje Tendência Socialista Internacional [IST], reivindicada no Brasil pela Revolutas. Esta versão foi copiada daquela disponível no tedgrant.org

O documento do camarada Cliff intitulado A Natureza da Rússia Estalinista à primeira vista dá a impressão de uma análise erudita e científica. Contudo, um exame mais cuidadoso demonstrará que nenhum de seus capítulos contém uma tese elaborada. O método que utiliza é o de realizar uma série de paralelismos baseados em citações e sua debilidade básica se revela no fato de que a análise não respalda as conclusões. A partir de suas teses não é possível concluir se a Rússia estalinista permanece como um sistema progressista (a despeito de suas deformações), ou se, pelo contrário, como afirma Cliff, desempenha o mesmo papel reacionário do capitalismo ou do fascismo. A debilidade é ainda mais visível pelo fato de que delas não emerge nenhuma conclusão prática. O partido revolucionário deve defender a Rússia ou ser derrotista? Em vez de a resposta estar enraizada na análise e fluir dela, tem de imposta a posteriori. 

A despeito do fato de que o camarada Cliff afirme que a burocracia estalinista é uma nova classe, em nenhum lugar de seu documento é feita uma análise real ou se apresentam evidências de porque e como a burocracia se converte em classe capitalista.
E isto não é acidental; flui de seu método. Partindo da idéia pré-concebida da existência do capitalismo de Estado, tudo o mais se ajusta artificialmente a essa concepção. Em vez de aplicar o método teórico utilizado pelos clássicos do marxismo para analisar a sociedade russa em seu processo de movimento e desenvolvimento, ele realiza seu trabalho recolhendo citações e tentando comprimi-las dentro de uma teoria.
Em nenhuma parte do seu documento Cliff utiliza o principal critério para os marxistas quando se trata de analisar um sistema social: a nova formação social conduz ao desenvolvimento das forças produtivas? A teoria marxista baseia-se no desenvolvimento material das forças produtivas como a força motriz do progresso histórico. A transição de um sistema a outro não se decide subjetivamente, mas se enraíza nas necessidades da própria produção. É sobre esta base, e somente sobre esta base, que a superestrutura é erigida: o estado, a ideologia, a arte, a ciência… É verdade que a superestrutura tem um importante efeito secundário sobre a produção e, inclusive dentro de certos limites, como explicou Engels, desenvolve seu próprio movimento independente. Mas, em última análise, o desenvolvimento da produção é decisivo.
Marx explicou que a justificação histórica do capitalismo – apesar dos horrores da revolução industrial, da escravidão dos negros africanos, do trabalho infantil nas fábricas, das guerras de conquista através do planeta – se baseava no fato de que era uma etapa necessária ao desenvolvimento das forças produtivas. Marx demonstrou que, sem a escravidão – não apenas a antiga escravidão, mas também a escravidão na primeira época de desenvolvimento do capitalismo –, o desenvolvimento moderno da produção teria sido impossível. Sem estas condições nunca poderiam ter sido preparadas as bases materiais para o comunismo. Marx escreveu:
A escravidão direta é o pilar da indústria burguesa da mesma maneira que o são a maquinaria, os créditos etc. Sem a escravidão, não haveria algodão; sem algodão, não haveria indústria moderna. É a escravidão que deu as colônias o seu valor; são as colônias que criaram o comércio universal e é o comércio universal que é a condição necessária à indústria em grande escala. Deste modo, a escravidão é uma categoria econômica da maior importância.
Sem a escravidão, a América do Norte, o país de mais rápido progresso, seria transformado num país patriarcal. Elimine-se a América do Norte do mapa do mundo, e ter-se-ia a anarquia, a completa decadência do comércio e da civilização moderna” [1]
Naturalmente, a atitude de Marx para com os horrores da escravidão e da revolução industrial é bem conhecida. Seria uma grosseira distorção da posição de Marx argumentar que, porque ele escreveu o parágrafo anteriormente mencionado, por essa razão ele era favorável à escravidão e ao trabalho infantil. Da mesma maneira, tampouco se pode argumentar contra os marxistas que, devido ao seu apoio à propriedade estatal na URSS, estariam automaticamente justificando os campos de concentração e outros crimes do regime de Stalin.
O apoio de Marx a Bismarck [2] na guerra franco-prussiana foi ditado por considerações similares. A despeito da política de “sangue e ferro” de Bismarck e da natureza reacionária de seu regime, Marx deu apoio crítico à guerra da Prússia contra a França, porque a unificação nacional da Alemanha facilitaria o desenvolvimento das forças produtivas. O critério básico era o desenvolvimento das forças produtivas. No longo prazo, tudo o mais deriva disto.
Qualquer análise da sociedade russa deve partir destas bases. Uma vez que Cliff admite que, enquanto está em decadência em escala mundial, o capitalismo ainda preserva um papel progressista na Rússia com relação ao desenvolvimento das forças produtivas, então, logicamente, teria de dizer que o capitalismo de Estado é a próxima etapa da sociedade ou, pelo menos, dos países atrasados. Contraditoriamente, ele afirma que a burguesia russa não foi capaz de levar até o fim o papel que foi cumprido pela burguesia no Ocidente e, em conseqüência disso, tornou inevitável a revolução proletária.
Se tivéssemos capitalismo de Estado na Rússia (precedido por uma revolução proletária), então é claro que a crise do capitalismo, sobre a qual baseamos nossas análises nas décadas passadas, não era insolúvel, mas simplesmente as dores de parto de uma nova e mais alta etapa do capitalismo. A citação que nos dá de Marx o próprio Cliff – que nenhuma sociedade desaparece do cenário até que todas as possibilidades que lhe são inerentes para desenvolver as forças produtivas não se tenham exaurido – indicaria que, se seu argumento está correto, uma nova época, a época do capitalismo de Estado, abre-se diante de nós. A idéia de Lênin de que o imperialismo é a fase superior do capitalismo seria, portanto, falsa. Haveria que se revisar por completo o marxismo e as bases teóricas do movimento leninista-trotskista.
Cliff afirma, sem fundamentar, que, se defendemos a teoria da degeneração da revolução russa, deveríamos abandonar a teoria da revolução permanente. É precisamente o contrário: se aceitarmos a teoria do capitalismo de Estado, então deveríamos renunciar à teoria da revolução permanente, porque esta se baseia na idéia de que o capitalismo se esgotou em escala mundial e é incapaz de realizar sequer as tarefas da revolução democrático-burguesa nos países atrasados. Na Europa do Leste, seriam os agentes do “capitalismo de Estado” que teriam realizado as tarefas da revolução burguesa, solucionado a questão agrária etc. Obviamente, Cliff dá um rodeio sobre a questão da revolução agrária que, nos países atrasados, como assinala Trotsky, somente o proletariado poderia resolver. Se os partidos “capitalistas de Estado” dos estalinistas podem cumprir esta tarefa, não é somente a teoria da revolução permanente que deve ser lançada pela borda, mas também a viabilidade, num sentido histórico, do novo estado capitalista.
Se for correta a tese do camarada Cliff de que atualmente o capitalismo de Estado existe na Rússia, então é impossível não chegar à conclusão de que o capitalismo de Estado existe desde a Revolução Russa e que a função da própria revolução foi a de introduzir na sociedade este sistema capitalista de Estado. Apesar de seus tortuosos esforços para traçar uma linha que separe as bases econômicas da sociedade russa antes e depois de 1928, as bases econômicas da sociedade russa de fato permaneceram inalteráveis.

 

A Utilização Incorreta das Citações

O camarada Cliff tenta provar que Trotsky estava se aproximando da posição de que a burocracia era uma nova classe dominante. Com este objetivo oferece citações dos livros Stalin e O Pensamento Vivo de Karl Marx.
Cliff escreve:
Um passo claro na direção de uma nova avaliação da burocracia como uma classe dominante encontra expressão no último livro de Trotsky, Stalin, onde escreve: ‘a essência do Termidor foi, e não poderia deixar de ser, social quanto ao caráter. Representou a cristalização de uma nova camada privilegiada, a criação de um novo substrato para a classe economicamente dominante. Havia dois pretendentes a este papel: a pequena burguesia e a própria burocracia. Combateram ombro a ombro [na batalha que levou à vitória] frente à resistência da vanguarda proletária. Quando esta tarefa foi cumprida, uma batalha selvagem irrompeu entre eles. A burocracia se assustou de seu isolamento, de seu divórcio do proletariado. Sozinha não podia esmagar nem ao kulak nem à pequena burguesia que tinha crescido e continuava a crescer sobre as bases da NEP; para lograr isto, tinha de recorrer à ajuda do proletariado. Daí a tentativa de apresentar sua luta contra a pequena burguesia, pelo produto excedente e pelo poder, como uma luta do proletariado contra as tentativas de restauração capitalista’” [3].
E continua:
A burocracia, diz Trotsky, enquanto pretendia lutar contra a restauração capitalista, na realidade usou o proletariado apenas para esmagar os kulaks e para ‘a cristalização de uma nova camada privilegiada, a criação de um novo substrato para a classe economicamente dominante’”.
Um dos pretendentes ao papel de classe economicamente dominante, segundo Cliff, é a burocracia. Insiste muito nesta formulação, associando esta análise da luta entre a burocracia e os kulaks com a definição de Trotsky da luta de classes. E assinala: “A luta de classes não é mais que a luta pela mais-valia. Quem se apropria da mais-valia é o dono da situação – é o dono da riqueza, do estado, tem a chave da Igreja, dos tribunais, das ciências e das artes” [4].
E Cliff conclui:
A luta entre a burocracia e os kulaks foi, segundo a conclusão última de Trotsky, a ‘luta… pelo produto excedente’”.
Para ilustrar a forma pela qual o camarada Cliff elaborou sua idéia, examinaremos estas citações em seu contexto e veremos que a conclusão a que chega é precisamente o oposto do que Trotsky pretende:
O kulak, juntamente com o modesto industrial, trabalhava pela completa restauração do capitalismo. Deste modo se abriu uma luta irreconciliável pelo produto excedente do trabalho nacional. Quem disporá dele em futuro próximo – a nova burguesia ou a burocracia soviética? Esta é a questão que se coloca. Aquele que dispuser do produto excedente tem o poder do Estado a sua disposição. Assim começou a luta entre a pequena burguesia, que havia auxiliado a burocracia a esmagar a resistência das massas operárias e de seu porta-voz, a Oposição de Esquerda, e a própria burocracia termidoriana, que havia ajudado a pequena burguesia a dominar as massas agrárias. Era uma luta direta pelo poder e pela renda.
Evidentemente, a burocracia não derrotou a vanguarda proletária, livrando-se das complicações da revolução internacional e legitimando a filosofia da desigualdade, para logo se render à burguesia, converter-se em seu criado e ser eventualmente afastada, por sua vez, do embornal do Estado” [5].
Cliff faz de Trotsky um insensato ao apresentá-lo se contradizendo a si mesmo através da justaposição de duas citações e aduzindo, daí, que Trotsky estava mudando sua posição sobre o caráter de classe da burocracia. Algumas páginas depois, Trotsky explica sua posição e demonstra o caráter orgânico da decadência do capitalismo em todo o mundo. Somente sobre esta base puderam ser mantidas as forças produtivas nacionalizadas da Rússia.
A tendência geral da economia mundial nos últimos 50 anos tem sido em direção à estatização das forças produtivas. Os próprios capitalistas têm sido compelidos, em parte, a “reconhecer as forças produtivas como forças sociais” (Engels). De fato, este é o ponto fundamental que explica a sobrevivência da Rússia à guerra. A desorientação do movimento [trotskista], expressado no documento de Cliff, deve-se em grande parte ao fracasso na hora de compreender as implicações que acarreta esta tendência. De fato, em seu livro sobre Stalin, Trotsky explica a possibilidade teórica de a burocracia continuar governando durante algumas décadas.
Algumas páginas depois das citações fornecidas por Cliff, Trotsky diz:
A contra-revolução inicia quando começa a retroceder a bobina das conquistas sociais progressistas. E este retrocesso não parece ter fim. Mas sempre se conservam algumas destas conquistas. Deste modo, a despeito das monstruosas distorções burocráticas, a base de classe da URSS continua sendo proletária. Mas recordemos que este processo ainda não terminou e que o futuro da Europa e do mundo, durante os próximos decênios, não foi ainda decidido. O Termidor russo indubitavelmente teria inaugurado uma nova era de domínio burguês, se este domínio não estivesse desacreditado em todo o mundo. Em todo caso, a luta contra a igualdade e o estabelecimento de diferenças sociais muito profundas não conseguiram até agora eliminar a consciência socialista das massas ou a nacionalização dos meios de produção e da terra, que foram as conquistas socialistas básicas da revolução…” [6].
Cremos que isto demonstra, suficientemente, que Cliff utilizou, fora do contexto, uma citação do livro de Trotsky, Stalin. Tanto em sua última obra quanto em suas outras sobre a Rússia, Trotsky manteve uma postura conseqüente quanto a sua caracterização da União Soviética. De nenhum de seus escritos é possível chegar à conclusão de que tenha alguma vez modificado sua posição básica.

 

Podem Lutar entre si Dois Setores da Mesma Classe? Revolução Francesa – Revolução Russa

Para melhor compreender a Revolução Russa é possível fazer uma analogia com a Revolução Francesa, cujos rumos mostram notáveis similaridades, embora, obviamente, tenham bases econômicas diferentes. Como já se sabe, o domínio da burguesia na França foi introduzido pela revolução de 1789. Marx explicou o papel progressista dos revolucionários jacobinos: esta ditadura revolucionária dos sans-culottes foi além do que pretendia o regime burguês, eliminando completamente todas as sobrevivências feudais e conseguindo assim, em meses, o que para a burguesia teria requerido décadas. Depois da ditadura dos jacobinos, seguiu-se a reação termidoriana e a contra-revolução Bonapartista.
Quem quer que compare a contra-revolução bonapartista com a revolução – pelo menos no que se refere a sua superestrutura – encontraria uma grande diferença entre o regime de Lênin e Trotsky na Rússia e o de Stalin nos últimos anos. Para observadores superficiais, pode ser que a diferença entre os dois regimes não seja fundamental. Mas, de fato, quanto à superestrutura, a diferença era manifesta. Napoleão tinha reintroduzido muito dos costumes, condecorações e graus militares do feudalismo; restaurou a Igreja e até mesmo fez-se coroar Imperador. Ainda assim, a despeito desta contra-revolução, está claro que ela nada tinha em comum com o velho regime. Era uma contra-revolução sobre as bases de uma nova forma de propriedade introduzida pela própria revolução. As formas burguesas de propriedade, isto é, as relações sociais de produção burguesa, continuavam formando a base da economia.
Quanto mais estudamos a história da França, podemos observar a rica variedade de governos e formas que adotam os diferentes regimes (superestrutura) que se desenvolveram no transcurso da luta de classes. A restauração da monarquia depois da derrota de Napoleão, as revoluções de 1830 e 1848. Que luta de classes havia? A repartição da renda era diferente, mas, uma vez terminadas todas estas revoluções, a economia continuava sendo burguesa.
A história subseqüente da França viu a ditadura de Luís Bonaparte, a restauração da democracia burguesa e da república e, nos últimos tempos, o regime de Petain. Sob todos estes regimes existiam diferenças na divisão da renda nacional entre as classes e entre as diferentes camadas da própria classe dominante. Ainda assim, chamamos todos estes regimes de burgueses. Por quê? Porque todos descansam sobre determinadas relações de propriedade.
Dado o atraso da União Soviética, que Cliff explica muito bem, e o isolamento da revolução, por que não poderia ocorrer um processo semelhante? Na realidade, ocorreu. Retornemos ao livro de Trotsky, Stalin. O Velho era muito claro. Depois da citação onde Trotsky demonstra que a essência do Termidor não podia ser senão social em seu caráter e que se tratava da luta pelo produto excedente, continua explicando o que isto significava na realidade. Continuemos a partir de onde se deteve Cliff:
Aqui a analogia com o Termidor francês cessa. A nova base social da União Soviética tornou-se intangível. Defender a nacionalização dos meios de produção e da terra é lei de vida ou morte para a burocracia, pois esta é a origem social de sua posição dominante. Esta é a razão de sua luta contra o kulak. A burocracia podia sustentar esta contenda, e resistir até o fim, somente com a ajuda do proletariado. A melhor prova deste fato foi a avalanche de capitulações por parte de representantes da nova Oposição.
A luta contra o kulak, a luta contra a ala de direita, a luta contra o oportunismo – que eram os slogans oficiais daquele período – pareceram aos trabalhadores e a muitos representantes da Oposição de Esquerda como o renascimento da ditadura do proletariado e da revolução socialista. Advertimo-los, então: não se trata apenas do que se faz, mas também de quem o faz. Em condições de democracia soviética, isto é, de democracia operária, a luta contra os kulaks não teria assumido uma forma tão convulsa, apavorada e bestial e poderia ter levado a um crescimento geral do nível econômico e cultural das massas sobre as bases da industrialização. Mas a luta da burocracia contra o kulak era um combate singular [conduzido] sobre as costas dos trabalhadores; e como nenhum dos gladiadores confiava nas massas, como ambos temiam as massas, a luta assumiu um caráter extremamente convulsivo e sanguinário. Graças ao apoio do proletariado, ela terminou com a vitória da burocracia. Mas não acrescentou nada ao peso específico do proletariado dentro da vida política do país” [7].
Quando Trotsky fala de “a criação de um novo substrato para a classe economicamente dominante”, explica claramente que se trata do proletariado, que predomina através da forma de propriedade. Cliff assinala: “Um dos pretendentes ao papel de classe dominante é a burocracia. Deve-se dar grande ênfase a esta formulação…”. Vemos aqui os perigos de um método de trabalho baseado em idéias pré-concebidas e a tentativa de selecionar citações para adaptá-las a estas idéias.
Neste mesmo capítulo, Trotsky mostra as semelhanças e as diferenças com a Revolução Francesa e porque a reação adotou uma forma diferente na França da que adotou na Rússia:
Os privilégios da burocracia tem outra fonte de procedência. A burocracia se apropriou daquela parte da renda nacional que pôde assegurar mediante o exercício da força ou em virtude de sua autoridade, ou por sua direta intervenção nas relações econômicas. Quanto ao produto excedente nacional, a burocracia e a pequena burguesia rapidamente trocaram a aliança pela inimizade. O controle do produto excedente abriu para a burocracia o caminho ao poder” [8].
Para Trotsky a questão está suficientemente clara. A luta pelo produto excedente pode ocorrer não somente entre diferentes classes, mas entre diferentes camadas e diferentes grupos que representam a mesma classe.

 

Funciona a Lei do Valor dentro da Economia Soviética?

A economia marxista explica que a lei do valor determina toda a produção de mercadorias e constitui a sua base. Chega a seu ápice sob o capitalismo, onde a produção de mercadorias é universal. A base desta lei é que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário nelas contido. Este valor, por sua vez, se expressa através do intercâmbio de mercadorias. Esta lei regula o sistema capitalista mediante mudanças na oferta e na procura através da concorrência. Inclusive sob um estado operário – que é um regime de transição entre o capitalismo e o socialismo – ainda se produziriam mercadorias e, assim, a lei do valor também continuaria funcionando de forma modificada.
Cliff tentou utilizar esta lei para argumentar que poderia haver crises (auges e recessões) na URSS. Não obstante, todo o seu enfoque da questão da lei do valor era pouco sólido a partir de um ponto de vista marxista. Da forma mais rebuscada e peculiar possível, ele argumentou que a lei do valor não era aplicável à economia soviética, e sim somente as suas relações com o capitalismo mundial. Acreditava que tinha encontrado as bases da lei do valor, não na sociedade russa, mas no entorno capitalista mundial.
Assim que se examinam as relações dentro da economia russa, tem-se o dever de concluir que a fonte da lei do valor, como motor e regulador da produção, não se encontra nela”, diz Cliff. E conclui: “A lei do valor pode assim apresentar-se como o árbitro da estrutura econômica russa tão logo ela se veja na situação concreta de hoje: o mercado mundial anárquico”.
Segundo o marxismo, a lei do valor se manifesta no intercâmbio. E isto é aplicável a todas as formas de sociedade. Por exemplo, a dissolução do comunismo primitivo teve lugar através do intercâmbio e do escambo entre distintas comunidades primitivas. Isto conduziu ao desenvolvimento da propriedade privada. Da mesma forma, na sociedade escravista os produtos dos escravos se converteram em mercadorias, quando eram permutados. Através deste desenvolvimento, já na Antiguidade, a “mercadoria das mercadorias” – o dinheiro – apareceu, embora só tenha alcançado expressão total sob o capitalismo: uma sociedade em que a produção de mercadorias não é a exceção, mas a regra. Assim, inclusive na Antiguidade, existiu a lei do valor, levando à escravização do produtor pelo produto e terminando na destruição da velha sociedade escravista, minada pelas contradições causadas pela economia monetária. Sob o feudalismo, através do intercâmbio, o excedente produzido pelos barões e senhores auto-suficientes em sua “economia natural” convertia-se em mercadorias e, de fato, foi este o ponto de partida do desenvolvimento capitalista através da ascensão do capital mercantil.
Portanto, se a lei do valor se manifestou tão somente no intercâmbio entre a Rússia e o mercado exterior, como assegura Cliff, tudo o que isto significaria é que a mais-valia russa era trocada sobre a base da lei do valor.
Contudo, a participação da União Soviética no mercado mundial, em comparação com sua produção total, é extremamente pequena. Inevitavelmente, Cliff se deu conta da debilidade de sua afirmação fundamental. Assim, numa incrível façanha de acrobacia mental, descobriu que a lei do valor se manifesta não no intercâmbio, mas na concorrência. Inclusive isto não seria tão ruim se tivesse argumentado que se tratava de concorrência no mercado mundial nas linhas capitalistas clássicas. Mas não pôde fazê-lo porque estava em desacordo com os fatos. Portanto, introduziu um novo conceito. Encontrou sua “concorrência” e sua “lei do valor” na produção de armamentos! “Devido a que a concorrência internacional toma principalmente uma forma militar, a lei do valor se expressa em seu oposto, isto é, no esforço para obter valores de uso. (…) Mas, visto que a concorrência com outros países é principalmente militar, o Estado como consumidor está interessado em certos valores de uso, como tanques, aviões e outros”. Esta linha de argumentação tão peculiar, longe de resolver alguma coisa, simplesmente nos faz aterrissar em contradições ainda mais insolúveis.
A pressão do capitalismo mundial obriga a União Soviética a dedicar uma enorme proporção da renda nacional à produção armamentista e à defesa. É aqui que Cliff reivindica ter encontrado sua lei do valor. A lei do valor se manifestaria na competição armamentista entre dois sistemas sociais! Isto somente pode ser descrito como uma concessão à teoria do coletivismo burocrático de Shachtman. Se esta teoria fosse correta, estaríamos ante uma economia inteiramente nova, nunca antes vista na história ou prevista pelo marxismo.
Novamente temos que assinalar os perigos da utilização indiscriminada de citações e amálgamas de idéias para formar uma “tese”. Na realidade, o documento de Cliff é um híbrido das teorias do coletivismo burocrático e do capitalismo de Estado. Se esta seção do documento de Cliff significa algo, é que nos leva diretamente ao caminho do coletivismo burocrático de Shachtman.
Toda esta idéia foi tomada em parte de Hilferding [9], que sustentava persistentemente que na Rússia e na Alemanha nazista a lei do valor não se aplicava e que estas eram formações sociais inteiramente novas. Também está baseada na má interpretação de algumas passagens de Imperialismo e Economia Mundial de Bukharin. Este livro, em que Bukharin, junto com Lênin, brilhantemente profetizou uma forma de ditadura que mais tarde se materializou no fascismo, trata do “capitalismo de Estado” – a união orgânica dos trustes com o capital financeiro. Este conceito nada tinha a ver com a propriedade estatal dos meios de produção, e sim com a fusão do capital financeiro com o Estado. De fato, Bukharin escolheu como um de seus exemplos clássicos de tal capitalismo monopolista de Estado aos… Estados Unidos da América.
O argumento de Cliff sobre o armamento corresponde a uma categoria mística e não econômica. No melhor dos casos, inclusive se o aceitássemos como correto, apenas explicaria porque a Rússia produz armamentos, mas não como ou sobre que bases econômicas os mesmos são produzidos. Inclusive se a URSS fosse um estado operário sadio cercado pelo imperialismo, teria sido absolutamente necessário produzir armamentos e competir na produção e desenvolvimento técnico de armas com os sistemas capitalistas rivais. Mas este argumento sobre armamentos é inteiramente falso. A maior parte da produção na Rússia não é de armamentos, mas de meios de produção. De novo, isto explicaria porque a burocracia está tentando acumular meios de produção em velocidade frenética, mas nada explicaria sobre o sistema de produção em si mesmo. É verdade que em um estado operário sadio a acumulação de armas seria menor por razões sociais (política internacionalista e revolucionária com relação aos operários de outros países), mas de toda forma isto teria que ocorrer devido às pressões a que se veria submetido por parte do imperialismo mundial.
Um ritmo mais rápido ou mais lento no desenvolvimento dos meios de produção não nos revela necessariamente o método pelo qual são produzidos. Cliff diz que a burocracia está desenvolvendo os meios de produção sob a pressão do imperialismo mundial. Bom. Mas isto nos diz o porquê do ritmo acelerado. Inclusive a partir do ponto de vista da economia política burguesa, o argumento de Cliff é uma pura evasão. Simplesmente deu por suposto o que tinha de demonstrar.
Não gratuitamente Trotsky assinalou em A Revolução Traída que toda a preocupação da burocracia estalinista e todo o conteúdo progressista de sua atividade consistiam no aumento da produtividade do trabalho e na defesa do país. Vimos que, se a lei do valor somente se aplica devido à existência do capitalismo na economia mundial, então somente seria aplicável para aqueles produtos trocados no mercado mundial. Mas Cliff sustenta duas teses contraditórias em relação à economia soviética. Por um lado, diz:
Isto não significa que o sistema de preços na Rússia seja arbitrário, dependente do capricho da burocracia. Aqui também, a base do preço é o custo de produção. Se o preço vai ser utilizado como uma correia de transmissão através da qual a burocracia dirige a produção em seu conjunto, deve acomodar-se a seu objetivo e refletir tanto quanto possível os custos reais, isto é, o trabalho socialmente necessário absorvido nos diferentes produtos…” [10].
Três páginas mais adiante, Cliff descreve o ponto central que tenta demonstrar:
… Ao se examinar as relações dentro da economia russa, tem-se o dever de concluir que a fonte da lei do valor (…) não se encontra nela” [11].
Na primeira citação, Cliff mostra precisamente a maneira como a lei do valor se manifesta internamente na sociedade russa sob o estalinismo. Mesmo que se abstraia do mercado mundial, deixando de lado o efeito recíproco que indubitavelmente tem – quando Cliff diz que “os custos reais, isto é, o trabalho socialmente necessário absorvido nos diferentes produtos devem refletir os preços reais”, está dizendo que a mesma lei se aplica à sociedade russa de igual maneira que numa sociedade capitalista. A diferença é que, enquanto na sociedade capitalista ela se manifesta cegamente mediante as leis do mercado, na economia soviética a atividade consciente desempenha um importante papel.
Com relação a isto, a segunda citação rechaça esmagadoramente o argumento de Cliff de que é capitalismo o que existe na Rússia sob estas dadas condições, porque a lei do valor não opera cegamente, mas é conscientemente aproveitada. Na sociedade capitalista, a lei do valor, como ele diz, manifesta-se através da “autonomia da atividade econômica”, isto é, é o mercado que domina. A primeira citação demonstra claramente que o mercado – e esta é a questão – estava, dentro de limites determinados, controlado conscientemente e, portanto, não é capitalismo, como o entendem os marxistas.
Cliff assinalou anteriormente que a lei do valor não opera na Rússia. Aqui, ele está demonstrando precisamente como opera: não nas linhas do capitalismo clássico, mas de uma sociedade em transição entre o capitalismo e o socialismo. Vemos, portanto, que Cliff pretende que a Rússia estalinista é uma sociedade capitalista e, não obstante, encontra a fonte da lei básica da produção capitalista fora da Rússia. Como explicou Engels:
… se este fundo de produção e reserva existe efetivamente nas mãos da classe capitalista, se efetivamente surgiu através da acumulação de lucros (prescindindo aqui momentaneamente da renda da terra), então consiste necessariamente na acumulação do excedente do produto do trabalho, entregado pela classe trabalhadora à classe capitalista, sobre a soma dos salários pagos pela classe capitalista à classe trabalhadora. Mas, neste caso, o valor não se determina pelo salário, mas pela quantidade de trabalho; a classe trabalhadora entrega, pois, à classe capitalista, no produto do trabalho, uma maior quantidade de valor do que a que recebe como pagamento no salário e, então, o lucro do capital se explica, como todas as demais formas de apropriação do produto do trabalho alheio e não pago, como mero elemento desta mais-valia descoberta por Marx” [12].
Isto indica que onde há trabalho assalariado, onde há acumulação de capital, deve se aplicar a lei do valor, por mais complicada que seja a forma como se manifeste. Mais tarde, contestando a teoria de Dühring que falava de cinco tipos diferentes de valor e dos “custos naturais de produção”, Engels explica que, em O Capital, Marx se ocupa do valor das mercadorias e “em toda a seção de O Capital que trata do valor, não há o menor indício da opinião de Marx com respeito ao grau de aplicação da teoria do valor das mercadorias a outras formas de sociedade, sequer se é aplicável no todo”. Neste sentido, fica claro que na sociedade de transição também “o próprio valor não é mais que a expressão do trabalho socialmente necessário materializado num objeto”.
Aqui apenas é necessário perguntar: o que determina o valor das máquinas, bens de consumo etc., produzidos na União Soviética? É arbitrário? O que determina os cálculos da burocracia? O que mede o preço? O que determina os salários? São pagos salários pela força de trabalho? O que determina o dinheiro? O que determina os lucros das empresas? Existe capital? Está abolida a divisão do trabalho?
Cliff dá duas respostas contraditórias a estas questões. Por um lado, concorda que são sobre a lei do valor que se desenvolvem todos os cálculos e o movimento da sociedade russa. Por outro, afirma que a lei do valor somente funciona como resultado da pressão do mundo externo, se bem que não explique de maneira séria como isto ocorre.

 

O Papel do Dinheiro na Rússia

O que surpreende é que o próprio Cliff assinala que a burocracia não pode determinar arbitrariamente os preços. Tampouco pode determinar arbitrariamente a quantidade de dinheiro em circulação. E isto tem sido assim em toda sociedade onde o dinheiro (lembremos, a mercadoria das mercadorias) tem desempenhado um papel. Engels, tratando deste problema, perguntou oportunamente a Dühring:
Se a espada [não importa quem a empunhe – um burocrata, um capitalista ou um governo] tem este poder mágico que lhe atribui o Sr. Dühring, por que nenhum governo não conseguiu permanentemente infundir ao dinheiro ruim o ‘valor de distribuição’ do dinheiro bom ou aos assignants [papel moeda na França durante a Revolução Francesa] o ‘valor de distribuição’ do ouro?” [13].
Em A Revolução Traída, Trotsky explica este problema de maneira clara, mostrando que as categorias econômicas próprias do capitalismo ainda permanecem na sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, isto é, durante a ditadura do proletariado. Eis aqui a chave: as leis permanecem, mas são modificadas. Algumas das leis do capitalismo são aplicáveis e outras são anuladas. Por exemplo, como Trotsky explica:
O papel do dinheiro na economia soviética, longe de ter terminado, deve se desenvolver a fundo. A época transitória entre o capitalismo e o socialismo, considerada em seu conjunto, não exige a redução da circulação de mercadorias, e sim, pelo contrário, seu extremo desenvolvimento. Todos os ramos da indústria se transformam e crescem, criam-se novos incessantemente, e todos devem determinar quantitativa e qualitativamente suas recíprocas situações. A liquidação da economia rural de subsistência que produzia para o consumo individual e familiar significa a entrada na circulação monetária de toda a energia de trabalho que se dispersava antes nos limites de uma granja ou das paredes de uma habitação. Pela primeira vez na história, todos os produtos e todos os serviços podem ser trocados uns pelos outros” [14].
Qual é a chave deste enigma? Precisamente o fato de que estamos ante uma sociedade em transição. O estado pode agora regulamentar, mas não arbitrariamente, e sim dentro dos limites da lei do valor. Qualquer tentativa de ultrapassar os limites estritos impostos pelo desenvolvimento das forças produtivas, termina imediatamente na reafirmação da dominação da produção sobre o produtor. É isto o que Stalin teve que descobrir em relação ao preço e ao dinheiro quando a economia russa se viu castigada por uma crise de inflação que destorceu e desbaratou completamente o plano. A lei do valor não foi abolida, e sim modificada. Tal e como Trotsky assinala na obra anteriormente citada:
A nacionalização dos meios de produção e do crédito, a pressão das cooperativas e do Estado sobre o comércio interno, o monopólio do comércio externo, a coletivização da agricultura, a legislação sobre a herança impõem limites estreitos à acumulação pessoal de dinheiro e dificultam a transformação do dinheiro em capital privado (seja ele o capital usurário, comercial ou industrial). Contudo, esta função do dinheiro, unida à exploração, não poderá ser liquidada no início da revolução proletária, e sim será transferida, sob um novo aspecto, ao Estado comerciante, banqueiro e industrial universal. Ao mesmo tempo, as funções mais elementares do dinheiro, medida de valor, meio de circulação e de pagamento, serão conservadas, mas adquirirão um campo de ação mais vasto do que tinham sob o capitalismo” [15].
Há que se colocar o problema desta forma para se ter a resposta adequada. Uma análise econômica séria deve levar-nos à conclusão de que estamos ante uma sociedade em transição, na qual se aplicam algumas leis próprias do socialismo e outras próprias do capitalismo. Afinal, este é o significado de transição. Embora Cliff não o reconheça, na prática o admite, quando diz que a burocracia poderia regulamentar conscientemente (embora dentro de certos limites) a taxa de investimento, as proporções entre os meios de produção e os meios de consumo, o preço dos artigos de consumo etc. Ou seja, está demonstrando que determinadas leis básicas do capitalismo não se aplicam.
Outra questão pertinente é a seguinte: há transformação de dinheiro em capital na URSS? Polemizando contra Stalin, Trotsky responde a isto demonstrando que os investimentos se fazem baseados num plano, mas, contudo, o que se investe é a mais-valia produzida pelos trabalhadores. Trotsky demonstra a falácia básica da idéia de Stalin de que o Estado poderia decidir e regulamentar sem relação à economia. Deveríamos acrescentar que Stalin nunca negou que houvesse produção de mercadorias na Rússia.
A despeito do fato de que há somente um “empregador” na Rússia, apesar disto, o Estado compra a força de trabalho. É verdade que, devido ao pleno emprego que normalmente colocaria o vendedor da mercadoria força de trabalho numa posição forte, o Estado impôs diversas restrições à venda livre de força de trabalho, da mesma forma que, num período de pleno emprego, sob o fascismo (ou inclusive na “democrática” Grã-Bretanha, se fosse o caso), os patrões fazem com que o Estado intervenha para compensar as desvantagens derivadas desta situação na venda da força de trabalho. Mas somente alguém desesperadamente perdido em abstrações poderia sustentar que isto negue a teoria do valor do trabalho.
É verdade que na economia capitalista clássica existia venda livre de força de trabalho. Contudo, já em O Capital de Marx há toda uma seção dedicada à feroz legislação introduzida para manter baixos os salários na Inglaterra, quando a Peste Negra havia reduzido a população a tal ponto que o nascente proletariado encontrava-se em posição favorável para exigir salários mais altos. Significava isto que as leis básicas do marxismo não se aplicavam? Pelo contrário. Nos três tomos de O Capital, Marx estava tratando do capitalismo “puro”, a “norma ideal” que nunca existiu concretamente, e da qual ele extraiu as leis fundamentais. Mas, na prática, a realidade sempre diferirá da norma, de uma forma ou outra.
O fato de que, em casos particulares, pode haver uma distorção deste ou daquele de seus elementos não modificará as leis fundamentais. A Alemanha nazista, apesar das muitas perversões, continuou sendo fundamentalmente um sistema econômico capitalista, porque a economia estava dominada pela produção sobre as bases da propriedade privada e da produção de mercadorias. Basta comparar o trabalho escravo nos campos de concentração de Stalin com o proletariado das cidades russas para se ver a diferença. Um era o escravo baseado no trabalho escravo; o outro, um escravo assalariado. Um vendia sua força de trabalho; o outro era apenas o instrumento do próprio trabalho. Aí se encontra a distinção fundamental.
Não é uma casualidade, em absoluto, que o dinheiro utilizado pelo Estado na Rússia deva, necessariamente, ter as mesmas bases que o dinheiro na sociedade capitalista. Não por casualidade, como explicou Trotsky, o único dinheiro real na Rússia (ou em qualquer economia de transição – inclusive num estado operário ideal) deva estar baseado no ouro. A recente desvalorização do rublo na Rússia foi por si mesma uma evidente confirmação do fato de que a lei da circulação do dinheiro e, portanto, da circulação das mercadorias, mantém sua validade na URSS. E não somente na URSS. Em qualquer economia em transição, as categorias econômicas de dinheiro, valor, mais-valia etc., devem continuar necessariamente como elementos da velha sociedade dentro da nova.
Cliff argumenta que “a fonte mais importante de renda estatal é o imposto sobre o volume das vendas, que é um imposto indireto”. Contudo, o imposto sobre o volume das vendas demonstra, de maneira indireta, que a lei do valor se aplica na Rússia estalinista. Mas não compreende que este imposto deve estar baseado em algo. Não importa quanto o Estado adicione ao preço através da imposição de um imposto; o preço deve estar baseado em algo. Que outra coisa isto pode ser senão o valor do produto, o tempo de trabalho socialmente necessário contido nele? Ou acreditamos que o Estado simplesmente decide tais coisas sobre bases arbitrárias, isto é, por mandato administrativo respaldado pela força? Este é um argumento totalmente infantil e que já foi totalmente demolido nas páginas de Anti-Dühring. Engels ridicularizou o “imposto pela espada” de Dühring, do qual supostamente se extraía a mais-valia, quando escreveu:
… ou, por outro lado, as alegadas sobrecargas de impostos representam uma soma de valor real, a saber, uma soma produzida pela classe trabalhadora e produtora de valor, mas apropriada pela classe dos monopolistas, e então esta soma de valor consiste meramente de trabalho não-pago; neste caso, a despeito do homem com a espada na mão, apesar dos supostos tributos e do suposto valor de distribuição, encontramo-nos novamente com a teoria marxista da mais-valia” [16].
O imposto sobre o volume das vendas na Rússia e outras manipulações da burocracia de forma alguma invalidam a lei do valor. Qual é a essência da lei do valor? Que o valor do produto é determinado pela quantidade média de tempo de trabalho socialmente necessário. Esse deve ser o ponto de partida e, necessariamente, este fato se manifesta através do intercâmbio. Marx dedicou grande parte de seu primeiro volume de O Capital à explicação do desenvolvimento histórico da forma da mercadoria, desde a troca acidental entre selvagens, até chegar à produção de mercadorias por excelência, a produção capitalista.
Mesmo numa economia capitalista clássica a lei do valor não se revela diretamente. Como se sabe, as mercadorias são vendidas acima ou abaixo de seu valor. Apenas acidentalmente uma mercadoria se venderá por seu valor real. No terceiro livro de O Capital Marx explica o preço de produção das mercadorias. Ou seja, que o capitalista só obtém o custo de produção de sua mercadoria mais a taxa média de lucro. Deste modo, a alguns capitalistas se lhes pagará abaixo do valor real e a outros, acima. Devido às diferentes composições orgânicas dos diferentes capitais, a lei do valor só se manifesta desta forma complicada. Isto se realiza, naturalmente, através da concorrência.
O monopólio é apenas um desenvolvimento mais complicado da lei do valor na sociedade capitalista. Devido à posição dominante obtida por alguns monopólios, eles podem impor à força preços acima do valor das mercadorias, mas somente à custa de que outras mercadorias sejam vendidas abaixo de seu valor. Os valores totais produzidos pela sociedade, ainda assim, somariam o mesmo valor. Na medida em que se desenvolve o socialismo, a lei do valor se “desvaneceria”. E Engels, tendo rido às gargalhadas à custa de Dühring, termina assinalando que, sob o socialismo, “as pessoas serão capazes de administrar tudo da forma mais simples sem a intervenção do famoso ‘valor’”.

 

Havia Mais-Valia antes de 1928? A Divisão Arbitrária de Cliff

Com relação a isto, Cliff não é de todo consistente. Shachtman, em sua tentativa de negar que a Rússia é uma sociedade em transição na qual as leis capitalistas continuam a operar ademais das leis da futura sociedade, ao menos tenta argumentar consistentemente. Ele disse que a lei do valor não funciona e, portanto, tampouco o fazem todas as leis que dela emanam; que não é mais-valia o que se produz, senão produto excedente; que não é força de trabalho o que os trabalhadores vendem, visto que são escravos etc., etc. Cliff, contudo, admite que haja produção de mercadorias e que a força de trabalho e a mais-valia permaneçam. Mas, uma vez que estas categorias marxistas são aceitas como válidas para a sociedade russa, então claramente a lei do valor deve operar internamente, a não ser assim, toda a argumentação se converte num disparate.
A contradição, desde que seja uma contradição realmente existente na sociedade e não imposta arbitrariamente, está no próprio conceito da ditadura do proletariado. Ao se considerar este problema em abstrato, comprova-se ser este um fenômeno contraditório: a abolição do capitalismo e, contudo, a continuação das classes. O proletariado não desaparece, situa-se na posição de classe dirigente e acaba com a classe capitalista. Mas, no transcurso deste período, a classe trabalhadora permanece. Portanto, o produto excedente que se produz na sociedade adota a forma de mais-valia, tanto hoje quanto na época de Lênin e Trotsky.
Apenas temos de colocar o problema: O que era a mais-valia produzida quando a Rússia ainda era um estado operário, apesar das deformações burocráticas? Qual foi o processo através do qual o produto excedente antes de 1928 misteriosamente se converteu em mais-valia depois de 1928?
Ainda mais: deixando de lado o período de 1917 a 1923, qual era a situação entre 1923 e 1928 quando a burocracia já estava se consolidando? Então, na economia do país existiam mais elementos capitalistas individuais do que existem hoje. A pressão do capitalismo mundial, de um ponto de vista econômico, era indiscutivelmente maior. Basta fazer a pergunta para se comprovar a arbitrariedade do método utilizado por Cliff.
O abuso de poder e o consumo legal e ilegal de mais-valia por parte da burocracia tiveram lugar, necessariamente, mesmo nas primeiras etapas do controle burocrático. O camarada Cliff construiu um esquema amorfo que não guarda relação com a realidade, com a intenção de separar dois períodos: o período quando a burocracia representava um estado operário degenerado e o momento em que a burocracia se converte em classe capitalista. Qual é a diferença para Cliff? Por mais incrível que possa parecer, para ele a burocracia realmente conseguiu seus rendimentos somente a partir de 1928 e desde este momento começou a consumir mais-valia. Cliff escreve o seguinte:
As estatísticas que temos a nossa disposição mostram, conclusivamente, que a burocracia, embora tivesse uma posição privilegiada no período precedente ao Primeiro Plano Qüinqüenal, sob nenhum conceito se pode dizer que recebesse mais-valia do trabalho dos demais. Pode-se dizer peremptoriamente que, com a introdução dos Planos Qüinqüenais, a renda da burocracia consistia em larga medida de mais-valia” (p. 45).
Esta idéia é uma variação da análise feita não somente por Trotsky, mas por outros marxistas da época com relação ao problema. Em primeiro lugar, mesmo no mais ideal dos estados operários, no período de transição, os técnicos e os burocratas, inevitavelmente, consumirão certa quantidade de mais-valia. Se não fora assim, estaríamos ante a imediata introdução do comunismo, sem quaisquer desigualdades e sem a continuidade da divisão entre trabalho intelectual e manual. Basta referir-nos aqui ao que defendia a Oposição de Esquerda sobre este mesmo problema. No início de 1927, a Oposição de Esquerda chamou a atenção sobre a mais-valia que estava consumindo o aparato burocrático e protestou contra “o aparato administrativo privilegiado e inflado que está devorando uma parte muito considerável da mais-valia” (ver A Revolução Traída).
É evidente que, de 1920 em diante, a burocracia consumia uma grande parte da mais-valia, legítima e ilegitimamente. Como explicou Marx, em qualquer caso, em um estado operário durante o período de transição, a mais-valia será utilizada para desenvolver rapidamente a indústria e preparar assim o caminho para a transição mais rápida possível, em direção à igualdade e, então, para completar o comunismo.
A que fazia referência Lênin quando em 1920 e 1921 destacava o passo atrás que se tinham visto obrigados a dar os bolcheviques ao pagar aos especialistas de acordo com as normas burguesas e ao “velho modo burguês”?

 

A Economia do Período de Transição

O mais significativo entre todas as tendências que tentam revisar a posição de Trotsky sobre a questão russa é que elas sempre se ocupam do problema em abstrato e nunca explicam concretamente as leis de transição da sociedade entre capitalismo e socialismo e como funcionaria esta sociedade. Isto não é acidental. Uma análise concreta do problema os levaria inevitavelmente à conclusão de que as bases fundamentais da economia russa são as mesmas que sob Lênin e que não poderiam ser de outra forma.
O germe do modo de produção capitalista, que começou sob o feudalismo mediante o desenvolvimento da produção de mercadorias, está enraizado na função dos artesãos e mercadores independentes. Quando se chega a certa etapa, as relações capitalistas surgem e coexistem com uma superestrutura feudal. Esta última explode em pedaços, como resultado da revolução, e as possibilidades latentes da produção capitalista têm a oportunidade de frutificar sem o estorvo das restrições feudais.
A essência da revolução (tanto capitalista quanto proletária) consiste no fato de que as velhas relações e as velhas formas não mais correspondem ao novo modo de produção que amadureceu no seio da velha sociedade. Para serem liberadas destas restrições, as forças produtivas têm que ser organizadas sobre uma base diferente. Toda a história humana consiste no desenvolvimento deste antagonismo através de suas diferentes etapas em diferentes sociedades.
As formações sócio-econômicas nunca aparecem numa forma quimicamente pura. Dentro de uma forma de sociedade dada, elementos de antigas formações e relações sociais podem coexistir junto às novas de uma forma mais ou menos tensa e contraditória. Ademais, esta situação pode permanecer durante algum tempo. A revolução burguesa não destrói o feudalismo de um só golpe. Elementos feudais poderosos perduram e, até o dia de hoje, existem vestígios de feudalismo inclusive nos países capitalistas mais altamente desenvolvidos: o campesinato, a aristocracia, a Câmara dos Lordes na Grã-Bretanha, a monarquia etc. Mas também sob o feudalismo existiram contradições similares. Na Idade Média, dentro do marco de produção feudal começaram a se desenvolver nas cidades elementos do capitalismo. Estes elementos capitalistas desempenharam um papel significativo (comércio, usura etc.) e finalmente derrubaram a ordem feudal. Poder-se-iam fazer observações similares quanto à escravidão ou a qualquer outra forma de sociedade. O marxismo analisa formações sociais concretas, com todas as suas características contraditórias e não como formas ideais.
Eis aqui o erro fundamental da teoria do capitalismo de Estado: parte de uma apresentação abstrata do período de transição e não sabe distinguir entre o modo de produção e o modo de apropriação. Em toda sociedade de classe há exploração e mais-valia que é utilizada pela classe exploradora. Mas isto em si mesmo nada nos diz acerca do modo de produção. Por exemplo: o modo de produção sob o capitalismo é social, em contradição com a forma de apropriação individual. Como Engels explicou:
A separação entre os meios de produção concentrados nas mãos dos capitalistas, de um lado, e os produtores reduzidos à propriedade exclusiva de sua força de trabalho, de outro, tornou-se completa. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se no antagonismo entre o proletariado e a burguesia” [17].
A economia de transição que, como Lênin assinalou, pode variar e variará enormemente em diferentes países e em diferentes momentos, e até no mesmo país em diferentes momentos, também se caracteriza pelo modo social de produção, mas com apropriação estatal, e não com apropriação individual como sob o capitalismo. Esta é uma forma que combina características tanto socialistas quanto capitalistas.
Sob o capitalismo, o sistema de produção de mercadorias por excelência, o produto domina completamente o produtor. Isto flui da forma de apropriação e da contradição entre a forma de apropriação e o modo de produção; ambos os fatores emanam da propriedade privada dos meios de produção. Uma vez introduzida a propriedade estatal, qualquer que seja o sistema resultante, ele não mais pode ser capitalista, porque esta contradição básica terá sido resolvida. Assim, desaparece o caráter anárquico da produção social com a supressão da apropriação privada e, com isto, também desaparece a lei do movimento da sociedade capitalista (auges e recessões).
Sob o socialismo, como sob o capitalismo, o sistema de produção será social, mas, diferentemente do capitalismo, também haverá um modo social de distribuição. Pela primeira vez, a produção e a distribuição estarão em harmonia.
Simplesmente assinalar as características capitalistas que indubitavelmente existem na Rússia estalinista (trabalho assalariado, produção de mercadorias e o fato de que a burocracia consome uma grande parte da mais-valia) não é suficiente para esclarecer-nos sobre a natureza do sistema social. Aqui, também, é necessária uma visão global. Somente se pode entender a natureza das relações sociais que existem na União Soviética considerando a sua totalidade. Desde o início da revolução, várias escolas sectárias elaboraram as mais insustentáveis idéias como resultado de sua incapacidade de fazer análise semelhante.
Lênin resumiu o problema da seguinte maneira:
Mas que significa a palavra ‘transição’? Significa, aplicada à economia, que a ordem atual contém elementos, partículas, pedaços, tanto do capitalismo quanto do socialismo? Todos admitirão que seja assim. Mas nem todos que admitem isto se preocupam em examinar a natureza precisa dos elementos que constituem as distintas formas sócio-econômicas que existem na Rússia no presente momento. E isto é o essencial da questão” [18].
Abstrair só uma parte da questão conduz ao erro. O que confunde acerca do fenômeno russo é precisamente o caráter contraditório da economia, agravado ainda mais pelo atraso e isolamento da União Soviética. Isto culminou no regime totalitário estalinista, onde as piores características do capitalismo se evidenciaram – as relações entre os diretores e os trabalhadores, a desigualdade, o trabalho por peça etc. Em lugar de analisar estas contradições, o camarada Cliff, com a finalidade de justificar suas teorias do capitalismo de Estado, tenta encaixá-las no padrão das leis “normais” de produção capitalista.
Ademais, a tendência, sob o capitalismo, em direção à centralização das forças produtivas, ou, mesmo, em direção a medidas de estatização, pode levar a uma conclusão equivocada. Para demonstrar que o “capitalismo de Estado” na Rússia é, em última instância, o mesmo que o capitalismo individual e que é regido através das mesmas leis, Cliff cita em sua obra sobre a Rússia a seguinte passagem de Anti-Dühring:
Quanto mais forças produtivas assume [o Estado], mais ele se torna o órgão coletivo de todos os capitalistas e mais cidadãos explora. Os trabalhadores permanecem assalariados, proletários. As relações capitalistas não são abolidas; mais precisamente, são exacerbadas. Mas neste extremo se produz a transformação. A propriedade estatal das forças produtivas não é a solução do conflito, mas contém dentro de si mesma o meio formal, o mecanismo da solução” [19].
Na realidade, Engels está argumentando precisamente o oposto de Cliff. Reexaminemos as passagens e vejamos porque extraímos conclusões muito diferentes das dele:
Se as crises revelam a incapacidade da burguesia de continuar administrando as modernas forças produtivas, a transformação das grandes organizações da produção e do transporte em sociedades anônimas e em propriedade do Estado mostra que a burguesia não mais é imprescindível para a realização daquela tarefa. Todas as funções sociais dos capitalistas são agora desempenhadas por empregados assalariados. O capitalista não mais tem atividade social salvo a de perceber rendimentos, cortar cupões e jogar na bolsa, onde os diversos capitalistas arrebatam uns aos outros os seus capitais. Se o modo de produção capitalista desalojou, primeiro, aos trabalhadores, agora está fazendo o mesmo com os capitalistas, lançando-os, como antes a muitos trabalhadores, na população supérflua, embora não, pelo momento, no exército industrial de reserva.
Mas nem a transformação em sociedades anônimas nem a transformação em propriedade do Estado suprimem a propriedade do capital sobre as forças produtivas. No caso das sociedades anônimas isto é óbvio. E o Estado moderno, por seu lado, não é mais que a organização com que a sociedade burguesa se provê para sustentar as condições gerais externas do modo capitalista de produção contra ataques dos trabalhadores ou dos capitalistas individuais. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista; é o Estado dos capitalistas, a organização coletiva ideal de todos os capitalistas. Quanto mais forças produtivas assume [o Estado], mais se torna o órgão coletivo de todos os capitalistas e mais cidadãos explora. Os trabalhadores permanecem assalariados, proletários. As relações capitalistas não são abolidas; mais precisamente são exacerbadas. Mas, neste extremo, se produz a transformação. A propriedade estatal das forças produtivas não é a solução do conflito, mas contém dentro de si mesma o meio formal, o mecanismo da solução” [20].
Não fica a idéia mencionada anteriormente suficientemente clara? Na medida em que as forças produtivas agora se desenvolveram para além do marco das relações capitalistas (ou seja, o germe da contradição agora cresceu até se converter numa enfermidade maligna do sistema social refletindo-se através das crises), os capitalistas são obrigados a “socializar” amplos setores da economia – primeiro, através de sociedades anônimas e, mais tarde, inclusive “estatizando” setores das forças produtivas. A mesma idéia foi expressa claramente por Lênin em seu livro O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, onde demonstrou que o desenvolvimento dos monopólios e a socialização do trabalho eram de fato elementos do novo sistema social dentro do velho.
A partir do momento em que as forças produtivas alcançaram esta etapa, o capitalismo já tinha realizado sua missão histórica e, devido a isto, a burguesia se tornou cada vez mais supérflua. Os capitalistas, de necessários para o desenvolvimento das forças de produção, agora se converteram em parasitas supérfluos, vivendo de renda. Da mesma maneira e pela mesma razão, os senhores feudais também se tornaram parasitas quando sua missão histórica foi cumprida. Esta é simplesmente uma prova do amadurecimento do capitalismo para a revolução social. Em O Capital, Marx demonstrou que o crédito e as sociedades anônimas já eram o indício de que as forças produtivas tinham ultrapassado os limites da propriedade privada. E Engels demonstra como o desenvolvimento da produção obrigou aos próprios capitalistas a reconhecer que as forças produtivas tinham um caráter social e não individual.
Ainda que numa etapa determinada o Estado capitalista se veja obrigado a tomar posse de um ou outro setor da economia, as forças produtivas não perdem o seu caráter capitalista. Mas a essência do problema é que, onde temos completa estatização, como na URSS, a quantidade se transforma em qualidade, o capitalismo se transforma em seu contrário.
Sob o capitalismo observamos a tendência crescente à concentração de capital; à formação, primeiro, de sociedades anônimas e, mais tarde, de monopólios e multinacionais gigantescas. Num momento determinado, também ocorre a tendência crescente à estatização (nacionalização) de certos setores da economia. Naturalmente, este capitalismo monopolista de Estado, para lhe dar o verdadeiro nome, nada tem a ver com o socialismo. Nele, as indústrias nacionalizadas são somente a criada do setor privado, pois proporcionam aos monopólios privados carvão, gás, eletricidade, transporte de mercadorias e correio baratos, ademais de aceitar todos os gastos de educar os filhos dos trabalhadores, para que lhes proporcionem mão-de-obra qualificada; de cuidar dos anciãos e enfermos, do sistema de canalização de água e outras atividades “não rentáveis”, mas que, não obstante, são essenciais para os capitalistas para que não as paguem.
Como explicar de outra forma a declaração de Engels: “Mas, neste extremo, se produz a transformação. A propriedade estatal das forças produtivas não é a solução do conflito, mas contém dentro de si mesma o meio formal, o mecanismo da solução”?
Se levarmos em consideração de que este parágrafo é a continuação da passagem anteriormente citada na mesma seção onde Engels define o modo de produção capitalista (como produção social e apropriação individual), devemos concluir que Engels se contradiz desafortunadamente se aceitarmos as conclusões de Cliff. Mas, em seu contexto, o que Engels quer dizer está claro. Ele explica que a solução das contradições do capitalismo reside no reconhecimento da natureza social das forças produtivas modernas “desta forma: pondo em consonância o modo de produção, apropriação e intercâmbio com o caráter social dos meios de produção”. Mas ele demonstra que este “reconhecimento” consiste, precisamente, em fazer valer a planificação e organização conscientes, em lugar do jogo cego das forças do mercado sobre as bases da propriedade individual. Isto, contudo, não pode ser feito de golpe. Somente de “maneira gradual” se pode fazer valer o controle social, e a forma transicional para se conseguir isto é a propriedade estatal. Mas a propriedade estatal completa não elimina imediatamente todos os traços do capitalismo, porque, senão, teríamos propriedade social, ou seja, o socialismo poderia ser introduzido imediatamente.
Da mesma forma que existem elementos da nova sociedade no seio da velha, também na sociedade em transição ainda há o velho dentro do novo. A estatização total marca o limite extremo do capital. A relação capitalista se transforma em seu contrário. Os elementos da nova sociedade que estavam crescendo dentro da velha agora se tornam dominantes.
O que causa o conflito dentro do capitalismo é o fato de que suas leis se manifestam cegamente. Mas uma vez que o conjunto da indústria é nacionalizado, pela primeira vez o controle e a planificação podem ser exercidos conscientemente pelos produtores. Contudo, na primeira etapa, o controle e a planificação terão lugar dentro de limites dados. Estes limites estarão determinados pelo nível tecnológico existente. A sociedade não pode passar do reino da necessidade ao reino da liberdade da noite para o dia. Somente sobre as bases de um ilimitado desenvolvimento das forças produtivas, a liberdade, em seu mais pleno sentido, se tornará realidade. Chegar-se-á à etapa em que o domínio das coisas sobre as pessoas e a opressão do homem pelo homem serão substituídos pela administração das coisas por parte de seres humanos conscientes.
Antes que chegue esta etapa, a sociedade deve passar por um período de transição. Mas imediatamente depois da abolição da propriedade privada, o controle e a planificação se convertem numa possibilidade real pela primeira vez. Então, em certo sentido, o reino da necessidade fica para trás e seria possível falar de “liberdade”, mas somente no sentido de que a necessidade foi conscientemente reconhecida. Nesta etapa (o período de transição), Engels assinalou:
Com isso, o caráter social dos meios de produção e dos produtos (…) será utilizado com plena consciência pelos produtores e se transformará de causa de perturbação e afundamento periódicos, na mais poderosa alavanca da própria produção.
As forças que operam na sociedade obram exatamente da mesma forma que as forças que operam na natureza – de forma cega, violenta e destrutiva –, enquanto não as descobrimos nem contamos com elas. Mas quando as descobrimos, quando compreendemos sua atividade, sua tendência, seus efeitos, depende já de nós mesmos submetê-las progressivamente a nossa vontade e alcançar por seu meio os nossos fins. Isto vale muito particularmente para as atuais gigantescas forças produtivas” [21].
Engels, citando Hegel, fez um resumo das relações entre liberdade, necessidade e o período de transição desta forma: “A liberdade é a realização da necessidade. ‘A necessidade é cega somente enquanto não é entendida’” [22].
Marx e Engels apenas aludiram ao caráter contraditório do período de transição, e de forma passageira. Deixaram sua elaboração para as gerações próximas, limitando-se a apontar as leis gerais. Mas eles demonstraram a necessidade da propriedade estatal como o estágio transitório necessário para o desenvolvimento das forças produtivas. Engels explicou a necessidade do Estado durante esta etapa por duas razões:
a) Para tomar medidas contra a antiga classe dirigente;
b) Porque a sociedade em transição não pode garantir imediatamente o necessário para todos.
A lógica das teses de Tony Cliff conduz a que na sociedade de transição não poderia haver vestígios de capitalismo na economia interna. Embora o camarada Cliff possa argumentar veementemente que ele concorda com a necessidade do Estado no período de transição, é evidente que não encontrou as razões econômicas que tornam necessário o Estado nem o caráter da economia durante esta etapa. Antes que se possa introduzir o socialismo deve haver, forçosamente, um tremendo desenvolvimento das forças produtivas, muito além do nível obtido sob o capitalismo.
Como explicou Trotsky, mesmo nos EUA não há ainda produção suficiente para garantir a imediata introdução do socialismo. Portanto, terá que haver um período intermediário no qual as leis capitalistas ainda funcionarão sob forma modificada. Naturalmente, nos EUA, este período seria de curta duração. Mas não seria possível saltar este estágio completamente. Quais são as leis capitalistas que permanecerão? O camarada Cliff não somente não responde a isto, como também cai na armadilha do “coletivismo burocrático” ao não reconhecer que o dinheiro, o trabalho assalariado, a permanência da classe trabalhadora, a mais-valia etc., são todos sobrevivências do velho sistema capitalista que remanesceram inclusive sob o regime de Lênin. É impossível introduzir imediatamente de maneira direta a socialização da produção e da distribuição. Em particular, foi este o caso na Rússia atrasada.
Engels, numa carta a Conrad Schmidt em 1890, deu um exemplo magnífico do enfoque materialista do problema da economia na transição do capitalismo ao comunismo. Ele escreveu:
Também em Volkstribüne houve uma discussão sobre se a divisão dos produtos na futura sociedade se fará de acordo com a quantidade de trabalho ou de outra forma. A questão foi focalizada de um ponto de vista muito ‘materialista’, em oposição a certas frases idealistas sobre a justiça. Mas, por mais estranho que isto pareça, a ninguém ocorreu pensar que o modo de distribuição depende essencialmente da quantidade de produtos a distribuir, e que esta quantidade varia, naturalmente, com o progresso da produção e da organização social e que, portanto, o modo de distribuição tem que mudar também. Contudo, para todos os que participaram na discussão, a ‘sociedade socialista’ não é algo que muda e progride continuamente, e sim algo estável, algo fixo de uma vez para sempre, pelo que também deve ter um modo de distribuição fixo de uma vez para sempre. Razoavelmente, a única coisa que se pode fazer é (1) tratar de descobrir o modo de distribuição que se há de aplicar no início e (2) tratar de estabelecer a tendência geral que haverá de seguir o desenvolvimento ulterior. Mas, sobre isto, não encontro uma só palavra em toda a discussão” [23].
Em Anti-Dühring, Engels assinalou:
A produção diretamente social, da mesma forma que a distribuição imediatamente social, exclui todo intercâmbio de mercadorias, também, portanto, a transformação dos produtos em mercadorias (pelo menos, no interior da comunidade) e, com isto, também sua transformação em valores” [24].
Somente o socialismo pode realizar esta tarefa. No período transicional, a distribuição continua sendo indireta – só gradualmente a sociedade obtém o controle total do produto – e, por esta razão, a produção de mercadorias e o intercâmbio entre os diferentes setores da produção necessariamente deve ter lugar. A lei do valor se aplica e deve se aplicar até que exista acesso direto ao produto pelos produtores. Isto só pode acontecer com a socialização total da produção e da distribuição, em que cada indivíduo recebe aquilo que necessita. Marx se ocupou deste problema da produção capitalista em seu conjunto:
Segundo isto, uma parte do lucro e, portanto, também da mais-valia e, conseqüentemente, também do produto excedente em que se representa (do ponto de vista do valor) apenas o trabalho novamente acrescentado, serve de fundo de seguro (…). É também a única parte da mais-valia e do produto excedente, isto é, do trabalho excedente, que teria de seguir existindo depois da abolição do modo capitalista de produção, além da parte destinada à acumulação, isto é, à ampliação do processo de reprodução (…) e o fato de que todo capital novo que surja do lucro, da renda do solo ou de outras formas de renda, ou seja, do trabalho excedente, conduz à falsa idéia de que todo valor das mercadorias provém da renda” [25].
Neste capítulo, Marx realiza a análise do processo de produção, em suas próprias palavras: “o valor da soma total do fruto do trabalho, [que] está em discussão, em outras palavras, o valor da soma total do capital social”.
Repetindo isto no mesmo capítulo, em resposta a Storch (um economista burguês), declarava:
Em primeiro lugar, é uma falsa abstração considerar uma nação, cujo modo de produção se baseia no valor e que, além disso, está organizada de modo capitalista, como um organismo que trabalha para as necessidades nacionais.
Em segundo lugar, depois da supressão do modo capitalista de produção, mas conservando a produção social, continuará predominando a determinação do valor no sentido de que serão mais essenciais que nunca a regulação do tempo de trabalho e a distribuição do trabalho social entre os diferentes grupos de produção e, finalmente, a contabilidade de tudo isto” [26].
Esta idéia está em sintonia com os comentários dispersos feitos por Marx e Engels em várias ocasiões com relação ao período de transição. Em diferentes fragmentos de sua obra teórica, Engels explica que, sob o capitalismo, as sociedades anônimas e a propriedade estatal são fenômenos que se encontram fora do marco da produção capitalista propriamente dita. Em outros escritos, Marx assinalou que o crédito também estendia a produção capitalista para além de seus limites, inclusive antes da transição a um Estado operário. E, como demonstram as passagens anteriores (e também em A Crítica ao Programa de Gotha), Marx considerava que a lei burguesa, a distribuição burguesa e, nesse sentido, o Estado burguês continuam existindo durante a transição do capitalismo ao socialismo.
Trotsky, discutindo sobre o papel do dinheiro e do Estado no período de transição, desenvolveu ainda mais esta idéia:
Os dois problemas, o do Estado e o do dinheiro, têm diversos aspectos comuns, pois ambos se reduzem, afinal, ao problema dos problemas que é o da produtividade do trabalho. A coerção estatal, assim como a coerção monetária, é uma herança da sociedade dividida em classes, que é incapaz de definir as relações entre os homens exceto na forma de fetiches, religiosos ou laicos, designando para defendê-los o mais aterrador de todos os fetiches, o Estado – com um grande punhal entre os dentes. Na sociedade comunista, o Estado e o dinheiro desaparecerão. Sua agonia progressiva deve começar sob o socialismo somente no momento histórico em que o Estado se transforme em semi-Estado e o dinheiro comece a perder seu poder mágico. Isto significará que o socialismo, tendo-se liberado dos fetiches capitalistas, está começando a estabelecer relações mais límpidas, mais livres e mais dignas entre os homens.
Os postulados de ‘abolição’ do dinheiro, de ‘abolição’ do salário, ou de ‘eliminação’ do Estado e da família, característicos do anarquismo, somente podem apresentar interesse como modelos de pensamento mecânico. O dinheiro não pode ser ‘abolido’ arbitrariamente, nem o Estado e a velha família ‘liquidados’. Eles têm de antes esgotar sua missão histórica, perder seu significado e desaparecer. O fetichismo do dinheiro somente receberá o golpe final quando o crescimento ininterrupto da riqueza social liberar aos bípedes da cobiça por cada minuto suplementar de trabalho e do medo humilhante pelo tamanho de suas rações. Tendo perdido o seu poder de proporcionar ou a felicidade ou o afundamento do homem na humilhação, o dinheiro se reduzirá a um cômodo meio de contabilidade para propósitos estatísticos e de planificação. Depois, é provável que já não seja mais necessário sequer para isto. Mas devemos deixar estes cuidados para nossos bisnetos que, seguramente, serão mais inteligentes que nós.
A nacionalização dos meios de produção e crédito, a pressão das cooperativas e do Estado sobre o comércio interno, o monopólio do comércio exterior, a coletivização da agricultura, a legislação sobre a herança impõem limites estreitos à acumulação pessoal de dinheiro e dificultam a transformação do dinheiro em capital privado (seja usurário, ou comercial ou industrial). Contudo, estas funções do dinheiro, como elas são quando estão unidas à exploração, não poderão ser liquidadas no começo da revolução proletária, mas, em forma modificada, serão transferidas ao Estado mercador, credor e industrial universal. Ao mesmo tempo, as mais elementares funções do dinheiro, como medida de valor, meio de circulação e de pagamento, não somente serão preservadas, mas adquirirão um campo de ação mais amplo do que tinham sob o capitalismo” [27].
Antes da abolição da propriedade privada dos meios de produção, o mercado domina sobre o homem, que está indefeso ante as leis da economia que ele mesmo criou. Depois de sua abolição, o homem começa pela primeira vez a exercer o controle consciente. Mas a consciência aqui só significa o reconhecimento da lei, não a abolição da lei. Nisto consiste a peculiaridade do período transitório: uma vez que o homem agora é consciente da natureza das forças produtivas, pode exercer controle sobre estas somente até este ponto. Mas não pode transcender os limites dados do desenvolvimento das forças produtivas. Contudo, agora que as forças produtivas foram liberadas das travas da produção capitalista individual, podem ser desenvolvidas e estendidas a tal ritmo que as bases materiais da sociedade podem alcançar novas alturas. Desta forma, podem ser estabelecidas as condições materiais para a evolução até uma sociedade sem classes, onde a forma intermediária de propriedade estatal se transforma em propriedade social real.
Uma vez alcançada esta etapa (socialismo), haverá produção e distribuição sociais reais pela primeira vez. O dinheiro, a lei do valor e o Estado se dissolverão, porque não serão mais necessários. Em outras palavras, todas as forças restritivas, que são o reflexo necessário da natureza limitada da técnica e do desenvolvimento da produção numa etapa determinada, desaparecem em simultâneo com a divisão do trabalho. Não obstante, isto não ocorre de imediato. A condição prévia é o aumento colossal dos níveis de vida e do nível cultural da sociedade. Até que chegue este momento, todos os traços mencionados anteriormente – traços capitalistas herdados da velha sociedade capitalista – persistirão durante a etapa de transição.
A posição do camarada Cliff, Shachtman e de todos os outros que revisaram a posição de Trotsky sobre a Rússia, permanece na mais profunda obscuridade no que se refere ao período de transição. E isto por boas razões. Ao se considerar a teoria da etapa de transição à luz da experiência russa, somente se pode tirar uma conclusão: ou a Rússia é ainda hoje um Estado em transição que sofreu horríveis distorções, ou nunca foi um Estado operário. Não há alternativa.

 

A Teoria Marxista do Estado. Duas Classes, Um Estado. A Contradição de Cliff

No primeiro capítulo de seu trabalho, Tony Cliff esforça-se por demonstrar que a análise de Trotsky sobre o Estado russo contradiz a teoria do Estado elaborada por Marx e desenvolvida posteriormente por Lênin.
O primeiro capítulo contém um esquema elaborado com a intenção de demonstrar que duas classes não podem usar uma mesma maquinaria estatal. Aqui Cliff acredita ter encontrado um erro fundamental em Trotsky. Tomando as idéias desenvolvidas pelo Velho em diferentes momentos e em diferentes circunstâncias, ele as contrapõe umas às outras. Ele contrapõe, por exemplo, uma citação de Trotsky relativa às primeiras etapas de degeneração da burocracia e de expulsão da Oposição de Esquerda, quando Trotsky defendia a reforma do Estado soviético e, incidentalmente, também a reforma do Partido Bolchevique que controlava o Estado (nesta etapa, Trotsky escreveu a carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética exigindo a destituição de Stalin). Quem podia pensar naquele momento que os acontecimentos internacionais se desenvolveriam de forma diferente da esperada? Era possível, teoricamente, que o Partido Bolchevique expulsasse a burocracia e restabelecesse um Estado operário sadio? Cliff contrapõe a isto uma citação de A Revolução Traída em que Trotsky afirmava que, se os trabalhadores russos recuperassem o poder tomando-o da burocracia através de uma revolução política, expurgariam o aparato estatal; e que, se fosse a burguesia que chegasse ao poder restaurando o capitalismo, nesse caso também seria necessário “um expurgo” do aparato de Estado. Cliff, diante deste raciocínio, responde o seguinte:
[nós] aceitamos que o proletariado deve desmantelar a máquina do Estado existente quando chega ao poder, enquanto que a burguesia, sim, pode usá-lo; mas se considerarmos, por outro lado, que tanto o proletariado quanto a burguesia podem usar o aparato de Estado (o ‘expurgo’ do aparato do Estado necessariamente implica em profunda mudança que transformaria a quantidade em qualidade), então, a conclusão deveria ser que a Rússia não é um Estado operário. Aceitar que o proletariado e a burguesia podem utilizar a mesma maquinaria estatal como instrumento de supremacia, equivale a justificar a base teórica da democracia e repudiar o conceito revolucionário de Estado expresso por Marx, Engels, Lênin e Trotsky. Aceitar que as distintas camadas, grupos ou partidos de uma mesma classe não se podem basear na mesma maquinaria estatal é a mesma coisa que repudiar o conceito marxista do Estado” (Cliff, p. 4).
Este método formalista é a debilidade fatal de Cliff. Trotsky, nas primeiras etapas, poderia ter tratado este problema em abstrato, mas tinha de se ocupar da situação concreta e de dar uma resposta específica. Uma vez aceita a impossibilidade de reforma do partido estalinista e do Estado soviético (supomos que Cliff também acredita que era esta a tarefa até 1928 quando diz que a Rússia era um Estado operário degenerado), então toda a questão deve ser abordada a partir de uma ótica diferente. Procurar contradições isoladas, reais ou aparentes, é algo totalmente alheio ao método do marxismo: quando se analisa uma teoria, esta deve ser vista em seu desenvolvimento geral e amplo, em seu movimento e em suas contradições.
Mas examinemos o processo de pensamento de Cliff sobre esta matéria. Ele também não pode evitar cair na armadilha em que tenta aprisionar Trotsky. No primeiro capítulo de seu trabalho, dedica nada menos que 18 páginas para demonstrar que é impossível duas classes utilizarem o mesmo Estado. Mas, ora vejam, no capítulo 4 acontece o milagre! O abismo intransponível é superado! Tanto a classe capitalista quanto o proletariado russos utilizaram precisamente a mesma máquina estatal. Por quê? Porque se produzia mais-valia! Ao se dar conta deste dilema, Cliff se vê obrigado a avançar por um caminho realmente novo e único: antes de 1928 a burocracia não consumia mais-valia, mas com a introdução do Plano Qüinqüenal, o Estado foi transformado de um Estado operário em um Estado capitalista. Qualquer inimigo da IV Internacional imediatamente poderia responder que o Estado de Stalin, sobre estas bases, é simplesmente uma extensão e aprofundamento do Estado de Lênin; e, além disto, no sentido econômico não mudou nada de fundamental, tal como deixamos claro nas páginas anteriores.
Resulta significativo que seja somente no aspecto econômicoe, daí, a surpresa – onde Cliff aplica sua teoria. Apesar do título que leva o seu primeiro capítulo: “Um Exame da Definição da Rússia como Estado Operário Degenerado”, não se ocupa da questão política, nem aqui, nem em nenhum outro capítulo. É assim que Cliff vê a transformação de um Estado operário em um capitalista:
As estatísticas que temos a nossa disposição mostram, de maneira conclusiva, que, embora a burocracia tivesse uma posição privilegiada antes do Plano Qüinqüenal, sob nenhum conceito se pode afirmar que recebesse mais-valia do trabalho dos demais. Pode-se afirmar, indiscutivelmente, que, com a introdução dos planos qüinqüenais, parte importante da renda da burocracia provinha da mais-valia” (Cliff, p. 45).
Em outras palavras, Cliff considera possível a transição de um sistema a outro sem o despedaçamento da maquinaria do Estado. Como se enquadra isto com o seu esquema do primeiro capítulo?
Cliff tenta construir uma ponte artificial entre o Estado operário e o Estado capitalista porque não foi capaz de encontrar o golpe que, supostamente, a burocracia assestou à maquinaria do Estado operário e, por esta razão, busca diferenças entre os dois períodos – antes e depois de 1928. Em sua tentativa, cai em concepções formalistas e abstratas sobre o Estado operário anterior a 1928. Como demonstramos nos parágrafos anteriores, inclusive no Estado operário mais sadio, segundo Marx, necessariamente, se produz mais-valia para desenvolver a indústria até que o Estado, o dinheiro, o próprio proletariado e todos os demais vestígios do capitalismo tenham desaparecido. Enquanto a classe trabalhadora existir como classe, a mais-valia será produzida.
Numa declaração de 1927, a Oposição de Esquerda afirmava que a burocracia estava consumindo uma grande parte da mais-valia. O método que Cliff utiliza para introduzir esta questão é totalmente incorreto. Em vez de se dedicar à tarefa de demonstrar suas teses, faz afirmações cegas e as apresenta como já demonstradas. Que importa se no capítulo quarto contradiz tudo o que disse no capítulo primeiro? Examinemos de que maneira o camarada Cliff resume o capítulo quarto, no qual abertamente afirma que já se produziu a transição, sem revolução e sem destruir a maquinaria estatal.
Começa assim:
Neste capítulo descreveremos a transformação do caráter de classe do Estado russo, de um Estado operário a um Estado capitalista. Faremos isto abordando os seguintes pontos…” (Cliff, p. 33).
Depois, passa a detalhar algumas mudanças econômicas que nada têm a ver com a estrutura ou a transformação do poder estatal e termina com a subseção: “Por que o Plano Qüinqüenal Significa a Transformação da Burocracia em Classe Dirigente?”. Todos os argumentos econômicos deste capítulo não guardam relação alguma com o Estado ou com a sua derrubada.
Finalmente, Cliff lida com a diferenciação no exército, a introdução de privilégios para os oficiais, a disciplina militar etc. Neste caso, simplesmente repete o que disse Trotsky milhares de vezes sobre a transformação da burocracia numa casta incontrolada. Mas vejamos suas conclusões:
Novamente o Plano Qüinqüenal representa o momento decisivo. A partir desse momento, a organização e a estrutura do exército começaram a mudar de maneira fundamental. De um exército dos trabalhadores com deformações burocráticas, converteu-se no corpo armado da burocracia como classe dirigente…” (Cliff, p. 59).
Vejamos, agora, se o que exclui uma revolução social gradual também exclui uma contra-revolução gradual.
Se os soldados de um exército organizado hierarquicamente se esforçam por conseguir o controle decisivo sobre ele, imediatamente encontrarão a oposição da casta de oficiais. Não há como destituir esta casta, exceto mediante a violência revolucionária. Em troca, se os oficiais de uma milícia popular dependem cada vez menos da vontade dos soldados, poderiam se converter numa burocracia institucional; sua transformação em casta militar independente poderia ser gradual. A transição de um exército permanente a uma milícia não se pode obter senão acompanhada de uma tremenda onda de violência revolucionária; por outro lado, a transição de uma milícia a um exército permanente, como resultado das tendências existentes dentro da própria milícia, pode e deve ser gradual. A oposição dos soldados à ascensão da burocracia, finalmente, levaria ao uso da violência contra os soldados. Mas isto não exclui a possibilidade de uma transição gradual de uma milícia a um exército permanente. O que se aplica ao exército aplica-se igualmente ao Estado. Um Estado sem burocracia ou sem uma burocracia débil dependente da pressão das massas, gradualmente se transformará num Estado em que a burocracia estará livre do controle dos trabalhadores” (Cliff, p. 82. Ênfase nossa).
Cliff se propõe demonstrar que é possível se produzir uma transição gradual de um Estado operário a um Estado capitalista e encerra o seu capítulo reproduzindo uma citação de, nada mais nada menos, que Trotsky, a quem desacreditou tão severamente em seu primeiro capítulo, como se o próprio Cliff fosse uma autoridade nesta matéria. Cliff escreve o seguinte:
Os julgamentos de Moscou [28] representaram uma guerra civil da burocracia contra as massas, uma guerra em que somente um dos lados estava armado e organizado. Foi a consumação da libertação completa da burocracia do controle popular. Trotsky, que até este momento pensava que os julgamentos de Moscou e a Constituição eram passos em direção à restauração do capitalismo através de meios legais, retratou-se nesse momento da idéia de mudança gradual de um Estado proletário a um Estado burguês, de ‘rebobinar para trás o filme do reformismo’. Trotsky escreveu: ‘na realidade, a nova Constituição… abre à burocracia caminhos capitalistas através de um golpe frio (A IV Internacional e a União Soviética, Teses adotadas pela Primeira Conferência Internacional da IV Internacional. Gênova, julho/1936)’” (Cliff, p. 82. Ênfase no original).
Observamos, aqui, claramente, o método incorreto das teses de Cliff, começando pela idéia de que Trotsky não é marxista quando afirma que duas classes podem usar uma mesma maquinaria estatal, e quando Cliff encerra reconhecendo precisamente o mesmo utilizando como autoridade o próprio Trotsky.

 

Nacionalização e Controle Operário

Em seu livro sobre a Rússia, Cliff cita A Revolução Traída:
A nacionalização da terra, dos meios de produção industrial, do transporte e do intercâmbio, junto ao monopólio do comércio exterior, constitui a base da estrutura social soviética. Mediante estas relações estabelecidas pela revolução proletária, a natureza da União Soviética, como Estado proletário, está fundamentalmente definida para nós” [29].
Uma das conclusões de Cliff é que, neste caso, “nem a Comuna de Paris nem a ditadura bolchevique eram Estados operários, porque a primeira não nacionalizou os meios de produção em absoluto e a última demorou algum tempo para fazê-lo”. Aqui vemos como Cliff fundamenta o seu argumento sobre se a classe operária tem ou não tem o controle sobre o aparato estatal. Mas examinemos o método de Cliff de separar as bases econômicas de um Estado operário da questão do controle operário do aparato estatal.
Durante um período temporário, de duração mais curta ou mais longa, seria possível que o proletariado tomasse o poder político, sem transformar imediatamente as relações de propriedade existentes. Era esta a posição na Rússia quando o proletariado tomou o poder em Outubro de 1917, mas não empreendeu a maior parte das nacionalizações até que se viu obrigado a fazê-lo em 1918. Mas, se o proletariado não tivesse procedido à transformação econômica, inevitavelmente o regime proletário estaria condenado ao colapso. As leis da economia sempre abrem caminho no final. Ou o proletariado nacionalizava toda a economia, ou, inevitavelmente, o sistema capitalista se imporia novamente. Cliff não consegue demonstrar como seriam distintas as formas básicas da economia russa sob um Estado operário sadio. Refugia-se na questão do consumo de mais-valia, mas se evade do aspecto central do problema.
A análise não melhora quando Cliff tenta basear-se na experiência da Comuna de Paris e na primeira etapa da Revolução Russa, visto que estes dois exemplos são idênticos ao caso anteriormente mencionado. Estes eram regimes de transição ao domínio econômico completo do proletariado. Tais transições são mais ou menos inevitáveis na mudança de uma sociedade à outra. Nem a Comuna de Paris nem a Revolução Russa poderiam ter durado muito tempo se o proletariado não tivesse realizado a nacionalização da indústria. Esqueceu Cliff que uma das principais lições de Marx, que os bolcheviques aprenderam pontualmente, foi o de apontar o erro do proletariado francês ao não nacionalizar o Banco da França? Dessa forma, vemos que um Estado pode ser: proletário sobre as bases do poder político, ou sobre as bases da economia, ou uma transição a ambos, como vamos demonstrar.
As mesmas leis se aplicam à contra-revolução capitalista. Trotsky argumentou corretamente que, no caso de uma contra-revolução burguesa na Rússia, a burguesia deveria, por um tempo, inclusive conservar a propriedade estatal antes de liquidá-la e de entregá-la à propriedade privada. A um escolástico pareceria que pode haver um Estado operário ou um Estado burguês sobre as bases da propriedade estatal, ou a mesma coisa sobre as bases da propriedade privada. Contudo, somente se pode chegar a esta forma de raciocínio se não se toma em consideração o movimento da sociedade em uma direção ou outra.
Todo tipo de relações imprevistas podem derivar da estrutura classista da sociedade e do Estado. Tomemos o exemplo da Rússia em 1917 esboçado por Trotsky em História da Revolução Russa. Até o momento em que os bolcheviques tomaram a maioria nos sovietes, estes últimos estavam dominados pelos mencheviques, de maneira que, em certo sentido, a burguesia governou através dos sovietes – os órgãos do poder operário por excelência. Se aceitarmos o argumento de Cliff, semelhante situação seria impensável. Desde logo, se os bolcheviques não tivessem tomado o poder, a burguesia, tendo utilizado os mencheviques e, através deles, os sovietes no período transitório, os teria abolido, como o fez na Alemanha depois de 1918.
Na transição de uma sociedade à outra, está claro que não existe um abismo intransponível. Não é dialético pensar através de categorias prontas e acabadas; o Estado operário ou o Estado capitalista e, ao diabo com qualquer transição ou movimento entre os dois! Está claro que, quando Marx falava do esmagamento da velha forma de Estado em relação à Comuna de Paris, deu por seguro que a economia seria transformada dentro de um ritmo maior ou menor e se colocaria em consonância com as formas políticas. Veremos isto, mais tarde, com relação à Europa do Leste, quando Cliff adota o mesmo método formalista.

 

A Concepção Dialética do Estado

Marx, Engels e Lênin explicaram que o Estado é um poder especial que se situa acima da sociedade e que cada vez mais se aliena dela. Como proposição geral, podemos aceitar que todos os Estados refletem os interesses de uma classe dominante concreta. Na realidade, a burocracia estatal tem seus próprios interesses que não correspondem necessariamente e a todo instante com os da classe dominante e que, inclusive, podem entrar em conflito aberto com esta. Como explicaram Marx e Lênin, o Estado, em última instância, consiste em corpos de homens armados e seus apêndices. Esta é a essência da definição marxista. Contudo, é preciso ir com cuidado no momento de se utilizar as generalizações marxistas que, sem dúvida, são corretas em sentido absoluto. A verdade é sempre concreta e se não se analisam as especificidades particulares e as circunstâncias concretas, inevitavelmente se cai em abstrações e erros. Observemos a maneira tão cautelosa com que Engels trata da questão, inclusive quando generalizava. Em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels escreve:
Mas a fim de que estes antagonismos, estas classes com interesses econômicos em luta, não se devorem a si mesmas e à sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder situado aparentemente por cima da sociedade e chamado a amortecer o choque, a mantê-lo nos limites da ‘ordem’. E esse poder – nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e se divorcia dela cada vez mais – é o Estado” [30].
Mais adiante, acrescenta:
E, se não, examine-se nossa Europa atual, onde a luta de classes e a rivalidade nas conquistas fizeram crescer tanto a força pública que ameaça devorar a sociedade inteira e inclusive o próprio Estado” [31].
Engels continua explicando que, uma vez surgido o Estado, dentro de certos limites, este desenvolve um movimento próprio independente e o faz necessariamente sob certas condições: “Donos da força pública e do direito de coletar impostos, os funcionários aparecem agora como órgãos da sociedade situados por cima desta” [32].
Ao contrário do método de Cliff, observa-se o cuidado meticuloso com que Engels aborda a questão. Em todo o seu material, Cliff esquece o fato de que o Estado, em determinadas condições, pode desempenhar e desempenha um papel relativamente independente na luta entre as classes. No esquema “lógico” de Cliff, o raciocínio é simples: ou é um Estado operário, diretamente controlado pelos trabalhadores, ou deve ser um Estado capitalista. No método de Cliff, não há margem para a interação de forças. Demo-nos conta da diferença entre a formulação de Cliff e a maneira extremamente cuidadosa e científica como se expressa Engels. “Em todos os períodos normais”, “é, regra geral, o Estado da classe mais poderosa” etc. Engels entendia claramente que havia situações anormais em que este princípio geral da teoria marxista não se podia aplicar.
Como o Estado nasceu da necessidade de amortecer os antagonismos de classe, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito dessas classes, regra geral é o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, que se converte também, com a ajuda dele, na classe politicamente dominante, adquirindo, com isto, novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. (…) Contudo, excepcionalmente, há períodos em que as classes em luta estão tão equilibradas, que o poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea com relação a ambas (…)” [33].
E, novamente, Engels assinala:
A essência da sociedade civilizada é o Estado, uma maquinaria essencialmente destinada a reprimir a classe oprimida e explorada e que em todos os períodos típicos é exclusivamente o Estado da classe dominante” [34].
Qual a razão da afirmação de Marx de que a classe trabalhadora não pode tomar o controle da maquinaria estatal capitalista tal como é e utilizá-la para os seus próprios fins? Não por motivos místicos, e sim devido a certos fatos muito concretos. No Estado moderno todas as posições fundamentais estão nas mãos de indivíduos que se encontram sob o controle da classe dominante. Indivíduos que foram selecionados especialmente por sua educação, opiniões e condições de vida, para servir aos interesses da burguesia. As idéias e pontos de vista dos oficiais do exército, particularmente dos de maior graduação, dos altos funcionários do Estado e dos técnicos mais importantes, são modelados para servir aos interesses da classe capitalista. Todos os cargos de direção na sociedade são ocupados por pessoas em que a classe capitalista pode confiar. Por este motivo, a maquinaria do Estado é uma ferramenta nas mãos dos capitalistas que não pode ser utilizada pela classe trabalhadora e deve ser quebrada e varrida por esta. Agora, o que quer dizer quebrar a maquinaria do Estado?
É possível que ao chegar ao poder a classe trabalhadora venha a utilizar muitos, talvez a maioria, dos funcionários do Estado capitalista. Mas eles estarão subordinados a comitês e organizações operárias. Por exemplo, na União Soviética, de início, após a dissolução do exército czarista, o Exército Vermelho viu-se obrigado a utilizar os serviços de ex-oficiais czaristas, sob o controle de comissários políticos. Igualmente, no aparato estatal soviético havia uma proporção considerável de ex-funcionários czaristas. Devido a fatores históricos desfavoráveis este fato desempenhou posteriormente importante papel na degeneração do regime soviético. Não foi por casualidade que Lênin disse que o Estado soviético era “a maquinaria burguesa czarista… ungida de um leve verniz socialista”.
O proletariado, de acordo com o conceito clássico, quebra a velha maquinaria do Estado e procede à criação de um semi-Estado. Contudo, vê-se obrigado a utilizar os velhos técnicos. Mas o Estado, inclusive nas melhores condições, por exemplo, de um país avançado com um proletariado educado, continua sendo uma relíquia da sociedade classista e, com ele, está implícita a possibilidade de degeneração. Por esse motivo, os marxistas insistem no controle das massas, para assegurar que o Estado não se desenvolva como uma força independente. Deve se dissolver na sociedade o mais rápido possível.
Pelas razões apresentadas acima, o Estado, em determinadas condições, pode conseguir certa independência da base que originalmente representava. Engels explicava que, embora a superestrutura – Estado e ideologia – seja dependente da base econômica, entretanto tem movimento próprio independente. Durante um período bastante prolongado, pode haver conflito entre o Estado e a classe que este Estado representa. Por esse motivo, Engels fala que o Estado em situações normais, ou em períodos típicos, representa diretamente a classe dominante. Somente se pode entender a sociedade classista quando se leva em consideração a interdependência e os antagonismos multifacéticos e dialéticos de todos os fatores que convivem em seu seio.
Marx desenvolveu esta aproximação dialética à questão do Estado em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, onde explica o fenômeno do bonapartismo, em que a relação entre o Estado e a classe dominante não corresponde à norma. Marx assinalou como os soldados bêbados de Luís Bonaparte, em nome “da lei, da ordem e da família”, fuzilaram membros da burguesia que presumivelmente representavam.
Os formalistas normalmente se perdem num ou noutro lado do problema. Por exemplo, Cliff escreve:
… É necessário realizar uma grande quantidade de acrobacias mentais para pensar que Mikalafjick [35] e sua ILK, que ou fugiam para o estrangeiro ou se consumiam nas prisões, eram os dirigentes da Polônia, bem como considerar que a classe dirigente da Rússia é formada pelos peões escravos na Sibéria” (Cliff, p. 13).
Com Luís Bonaparte era a burguesia a classe dirigente? Não se necessita de uma enorme dose de acrobacias mentais para se responder a esta pergunta.
Quando analisamos o desenvolvimento da sociedade, a economia deve ser considerada como o fator dominante. A superestrutura que se desenvolve sobre esta base econômica se separa desta e se converte em antagônica. A essência da teoria marxista da revolução é que, mediante mudanças graduais na produção sob a antiga forma social, desenvolve-se uma contradição que somente pode ser resolvida eliminando a superestrutura e reorganizando a sociedade sobre a base do novo modo de produção que se desenvolveu dentro da velha sociedade.
A economia é decisiva. Por essa razão, todos os mestres marxistas explicaram que, no longo prazo, a superestrutura deve corresponder com a base econômica. Uma vez abandonado o critério da estrutura econômica básica da sociedade, torna-se possível toda classe de construções superficiais e arbitrárias. Com esse método estaríamos perdidos, inevitavelmente, no labirinto da história, como na Mitologia da Antiga Grécia Perseu se perdeu no Palácio de Minos, ao não ter um fio que o conduzisse à saída. O fio da história é a estrutura econômica básica da sociedade ou a forma de propriedade, seu reflexo legal.
Tomemos um caso extremamente rico em exemplos, a história da França. A revolução burguesa começou em 1789. Em 1793, os jacobinos [36] franceses tomaram o poder. Como Marx e Engels assinalaram, eles foram além do marco das relações burguesas e completaram em poucos meses o que a burguesia teria demorado décadas para obter: a limpeza da França de todos os traços do feudalismo. Contudo, o regime dos jacobinos permaneceu enraizado nas formas de propriedade burguesa. A ele se seguiu o Termidor francês e o governo do Diretório, seguido, por sua vez, pela ditadura clássica de Napoleão Bonaparte. Napoleão reintroduziu muitas formas feudais, coroou-se Imperador e concentrou o poder supremo em suas mãos. Contudo, ainda podemos classificar o seu regime como burguês. Com a restauração de Luís XVIII o regime continuou sendo capitalista. E, depois, tivemos não somente uma, mas duas revoluções, a de 1830 e a de 1848. Estas duas revoluções tiveram conseqüências sociais importantes. Provocaram mudanças significativas inclusive no pessoal do próprio Estado. Contudo, classificamo-las como revoluções políticas burguesas, nas quais não ocorreu nenhuma mudança na classe que detinha o poder: a burguesia.
Vamos mais além. Depois da Comuna de Paris de 1871 e da sacudida nas relações sociais que ela provocou, tivemos a organização da Terceira República, com uma democracia burguesa que se prolongou por décadas. Esta foi seguida pelo regime de Petain, o governo de colaboração entre De Gaulle e os estalinistas e, agora, o governo Quielle [37]. Consideremos por um momento a surpreendente diversidade destes regimes. Para alguém que não fosse marxista pareceria um absurdo definir na mesma categoria, por exemplo, os regimes de Robespierre e o de Petain. Contudo, nós os marxistas os definimos fundamentalmente da mesma maneira: regimes capitalistas. Qual é o critério? Apenas um: as formas de propriedade, a propriedade privada dos meios de produção.
Tomemos, de maneira similar, a diversidade dos regimes existentes nos tempos modernos para ver as extremas diferenças que ocorrem em superestruturas que correspondem à mesma base econômica. Por exemplo, comparemos o regime nazista da Alemanha com o da democracia parlamentar britânica. São superestruturas tão fundamentalmente diferentes que muitos teóricos não-marxistas ou ex-marxistas consideraram o fascismo como uma nova estrutura de classes e um sistema de sociedade totalmente novo. Por que dizemos que representa a mesma classe e o mesmo regime? A resposta é: apesar da diferença na superestrutura, a base econômica destas sociedades continua sendo a mesma.
Na China, em 1927, depois de Chiang Kai-shek ter esmagado a classe trabalhadora com a ajuda do rebotalho das gangues de Xangai, os banqueiros organizaram banquetes em sua homenagem e o aplaudiram como benfeitor e salvador da humanidade. Mas Chiang queria algo mais tangível que os elogios de seus donos e, sem contemplações, enviou muitos empresários ricos e banqueiros de Xangai à prisão conseguindo milhões em resgates antes de liberá-los. Havia feito o trabalho sujo para eles e agora exigia seus honorários. Ele não havia esmagado os operários de Xangai para benefício dos capitalistas, mas pelo que isto significava de poder e renda para ele e sua gangue de ladrões. Apesar disso, quem se atreveria a dizer que os banqueiros que estavam no cárcere não continuavam sendo a classe dominante embora não dispusessem do poder político? A burguesia chinesa teve tempo de refletir amargamente sobre a complexidade de uma sociedade em que grande parte do botim da mais-valia extraída dos trabalhadores tinha que ir parar nos bolsos de seus cães de guarda e enquanto muitos dos membros de sua classe definhavam na prisão.
A burguesia nessas condições é expropriada politicamente e a força bruta domina a sociedade. Os militares e funcionários consomem uma parte considerável da mais-valia. Mas estes burocratas estão interessados na continuação da exploração capitalista dos trabalhadores e, portanto, embora tratem de tirar da burguesia tudo o que podem, defenderão a propriedade privada. Por isso, a burguesia continua sendo a classe dominante, embora tenha perdido o poder político direto. Nisto reside a resposta àqueles defensores do capitalismo de Estado que asseguram que é um sofisma afirmar que a Rússia é um Estado operário deformado e que a classe trabalhadora pudesse ser a classe dominante sob a bota do estalinismo enquanto uma parte dela encontrava-se internada em campos de trabalho. Podem-se dar muitos exemplos da história de como um setor da classe dominante atacou a outro e de como o Estado se elevou por cima da sociedade. Por exemplo, na “guerra das Rosas” na Grã-Bretanha, as duas frações dos barões dominantes se exterminaram mutuamente. Somente há a considerar a ameaça que representou Hitler para seus oponentes burgueses. Muitos deles não só perderam a sua propriedade como também suas vidas.
Com relação ao papel do Estado, a questão mais importante seria responder ao que Cliff não é capaz de responder: se o Estado deve ser o instrumento de uma classe, a que classe representa o Estado na Rússia e na Europa do Leste? Não pode representar a classe capitalista porque ela foi expropriada. Tampouco se pode dizer que represente os interesses do campesinato ou dos pequenos proprietários das cidades. Sob um regime fascista ou bonapartista, mesmo que os gangsteres pudessem ter a burguesia agarrada pelo pescoço, ainda há uma classe capitalista, a cujos interesses o conjunto da economia serve. Se a burocracia não representa o proletariado, como disse Trotsky, então estamos ante uma forma especial de bonapartismo, no sentido de que defende a nacionalização dos meios de produção, a planificação e o monopólio do comércio exterior. A quem representam os burocratas estalinistas? A resposta de Cliff é que a burocracia constitui a nova classe dominante, a classe capitalista da Rússia. Mas, ao analisarmos seriamente esta idéia, dar-nos-emos conta de que isto é impossível. Cliff está dizendo que o Estado é uma classe. A burocracia controla o Estado, o Estado controla os meios de produção, portanto, a burocracia é uma classe. Com estas idéias apenas se pretende esquivar a questão, porque está dizendo, na prática, que o Estado controla o Estado.
De acordo com Lênin, o Estado:
… sempre foi certo aparato que se separava da sociedade e consistia num grupo de pessoas dedicado única, ou quase unicamente, ou principalmente, a governar. As pessoas se dividem em governados e em especialistas em governar. Os que se elevam acima da sociedade são conhecidos como governantes, como representantes do Estado.
Este aparato, este grupo de indivíduos que governam outros, apodera-se sempre de certos meios de coerção, de violência física, independentemente de se esta coerção se expresse no porrete primitivo ou – na época do escravismo – em tipos mais perfeitos de armas, ou em armas de fogo que apareceram na Idade Média, ou, finalmente, nas armas modernas que, no século XX, são maravilhas da técnica e se baseiam totalmente nas últimas conquistas da tecnologia moderna.
Os métodos de coerção mudaram, mas onde quer que tenha existido um Estado, existia em cada sociedade um grupo de pessoas que governava, que dirigia, que dominava e que, para poder conservar seu poder, dispunha de um aparato de coerção física, de um aparato de violência, com aquelas armas que melhor correspondessem ao nível técnico de cada época dada. E somente examinando estes fenômenos gerais, perguntando-nos por que não existiu o Estado quando não existiam as classes, quando não havia exploradores nem explorados, e por que surgiu quando surgiram as classes, somente desta maneira podemos encontrar uma resposta definitiva para a questão da essência do Estado e de seu significado.
O Estado é uma maquinaria para manter a dominação de uma classe sobre outra” [38].
O Estado por sua própria natureza é composto de burocracia, oficiais, generais, chefes de policia etc. Mas estes não constituem uma classe; eles são o instrumento de uma classe e inclusive podem entrar em antagonismo com esta classe. Mas, em si mesmo, não podem ser uma classe.
Devemos fazer a seguinte pergunta a Cliff: qual o setor da burocracia que controla o Estado? Não podem ser todos os burocratas, pois a própria burocracia se divide hierarquicamente. O pequeno funcionário faz tanto parte da burocracia quanto o grande burocrata. Qual é, então, o estrato dominante na sociedade soviética? Na sociedade, em qualquer sociedade com classes, não importa o quanto sejam privilegiados os de cima, eles manejarão o instrumento para proteger a classe dominante, que mantém uma relação direta com os meios de produção. Sabemos a quem representavam Napoleão, Bismarck, Chiang Kai Shek, Hitler, Churchill e Attlee. Mas, a quem representam os burocratas? Aos burocratas? Responder afirmativamente seria um erro. Em outra parte deste documento demonstramos que as relações da burocracia estalinista com os meios de produção são necessariamente de parasitismo e que ela participa do mesmo tipo de parasitismo que a burocracia nazista. Não constituem uma categoria necessária e inevitável de um modo de produção particular. No melhor dos casos, têm direito a salários de superintendência. E, ao apropriarem-se de mais do que isto, fazem-no da mesma forma que a burocracia nazista ao consumir parte da mais-valia produzida pelos trabalhadores. Mas não constituem uma classe.
Podem-se dar inumeráveis exemplos para demonstrar como um Estado capitalista pressupõe a propriedade privada, a propriedade individual dos meios de produção. O Estado é o instrumento de domínio, não pode ser por si mesmo a classe que domina. A burocracia é somente uma parte do aparato do Estado. Pode “ostentar” o Estado, no sentido de que se eleva por cima da sociedade e se converte em relativamente independente da economia dominante. Este foi o caso da Alemanha nazista, onde a burocracia ditava aos capitalistas o que deviam produzir e como produzi-lo etc., para os objetivos de guerra. Na economia de guerra, na Grã-Bretanha, nos EUA e em outros países, o Estado ditava aos capitalistas o que e como deveriam produzir. Mas este fato não converte a burocracia estatal numa classe dominante. Por quê? Porque estavam defendendo a propriedade privada dos meios de produção da burguesia.
Cliff afirma que a burocracia dirige e planifica a indústria. De quem é a indústria que eles dirigem e planificam? Na sociedade capitalista, os diretores planificam e dirigem a indústria nas empresas e trustes individuais. Mas isto não os converte em proprietários dessas empresas. A burocracia dirige toda a indústria. Nesse sentido é verdade que têm mais independência de sua base econômica que qualquer outra burocracia ou maquinaria estatal já teve em toda a história humana. Mas, como Engels sublinhou, e devemos voltar a destacar, em última instância, a base econômica é decisiva. Quando Cliff afirma que é a sua função de diretores que converte os burocratas em classe dominante, então, evidentemente, tampouco conseguiria elaborar uma definição marxista correta da classe capitalista. Qualifica como classe a burocracia russa, mas deve elaborar uma teoria e explicar a que classe pertence.
O Estado é um instrumento da classe dominante, de coerção, um policial glorificado. Mas o policial não é a classe dominante; pode tornar-se incontrolável, converter-se num bandido, mas não em um capitalista ou senhor feudal.

 

O Que aconteceu na Europa do Leste

Os acontecimentos na Europa do Leste e a natureza dos Estados que surgiram somente podem ser explicados baseando-nos na teoria marxista-leninista do Estado e somente as concepções de Trotsky podem explicar os acontecimentos na Europa do Leste a partir deste ponto de vista.
Em primeiro lugar, é necessário compreender o que aconteceu na Europa do Leste com o avanço do Exército Vermelho. Não se pode negar (deixando de lado por um momento a questão da Alemanha) que em todos os países dos Bálcãs e da Europa do Leste, o avanço do Exército Vermelho terminou num movimento revolucionário não somente dos trabalhadores como também dos camponeses. A razão reside no contexto geral destes Estados antes da guerra, em que, com exceção da Checoslováquia, o capitalismo era muito débil. Nestes países havia decadentes ditaduras feudal-militar-capitalistas, cujos regimes eram completamente incapazes de desenvolver as forças produtivas de seus respectivos países. A crise econômica mundial do capitalismo foi exacerbada especialmente nestes países devido à debilidade e à divisão artificial da região que se seguiu à Primeira Guerra Mundial.
O termo balcanização provém desta parte da Europa. Dividida em pequenos e débeis Estados, com caráter esmagadoramente agrário, com uma indústria muito débil, estas zonas se converteram inevitavelmente em semi-colônias das grandes potências. A França, a Grã-Bretanha, até certo ponto a Itália e, depois, a Alemanha converteram-se no poder dominante desta região. Através do comércio, a indústria alemã dominava as atrasadas economias da Europa do Leste nos Bálcãs. Em todos estes países o capital estrangeiro desempenhou papel dominante devido a pouca indústria existente.
Quando Hitler ocupou estes países não somente expropriou o capital “não-ariano”, como também os capitalistas nativos, que, em sua maioria, foram substituídos pelos bancos e trustes alemães. O capital alemão se apoderou dos setores decisivos e fundamentais da economia. O capital restante era propriedade de colaboradores e estava subordinado ao capital alemão.
O regime foi formado por colaboradores que dependiam das baionetas alemãs para sobreviver. O escasso apoio popular que os regimes anteriores à guerra (ditaduras policial-militares) tinham, no transcurso da guerra foi perdido. O colapso do poderoso imperialismo alemão e a vitória do Exército Vermelho deram, indubitavelmente, impulso à revolução socialista. Por exemplo, na Bulgária, em 1944, quando o Exército Vermelho cruzou a fronteira, estalou uma sublevação em Sofia e em outras grandes cidades. As massas começaram a organizar sovíetes e comitês operários. Os soldados e os camponeses criaram comitês e os trabalhadores ocuparam as fábricas.
Acontecimentos semelhantes ocorreram em todos os países da Europa do Leste. Examinemos o que aconteceu na Checoslováquia. Também aqui o avanço do Exército Vermelho foi seguido por uma insurreição em Praga, ocupações de fábricas pelos trabalhadores e da terra pelos camponeses. Também houve confraternização nas fronteiras da Boêmia e da Moravia entre os checos e as massas alemãs.
Os elementos da revolução proletária foram rapidamente seguidos pela contra-revolução estalinista. O problema com Cliff é que separou os elementos da revolução proletária da contra-revolução estalinista que se seguiu imediatamente.
Tomemos dois exemplos: Bulgária e Checoslováquia. Na Bulgária se deu uma situação que já se apresentou mais de uma vez na trágica história da classe trabalhadora. O poder real encontrava-se nas mãos dos trabalhadores. O Estado burguês encontrava-se destroçado. Os alemães tinham ido embora, os oficiais não controlavam os soldados, a polícia se escondia, os latifundiários e os capitalistas não tinham o controle da situação. Existia um vazio, um período clássico de dualidade de poder onde as massas não eram suficientemente conscientes para organizar o seu próprio poder e a burguesia demasiado débil para exercer sua dominação.
Esta situação não é desconhecida para os marxistas: Alemanha em 1918; Rússia em 1917; Espanha em 1936. Talvez uma comparação com a Espanha pudesse ser útil. Aqui, também, as massas ocuparam as fábricas e a terra, na Catalunha e no Aragão. O “governo burguês” encontrava-se suspenso no ar. As massas esmagaram totalmente a polícia e o exército. Somente havia uma força armada, as milícias dos trabalhadores. Tudo que as massas necessitavam era organizar sovíetes ou comitês, varrer o governo fantasma de Giral e tomar o poder.
Já se sabe o que aconteceu depois. Os estalinistas impulsionaram uma coalizão de governo, não com a burguesia – os proprietários das fábricas e a burguesia haviam fugido para o lado de Franco, devido à insurreição das massas –, mas com a “sombra da burguesia”. Os estalinistas fizeram isto na Espanha com o propósito concreto de destruir a revolução socialista, pois tinham medo das repercussões que esta teria na Rússia e, desde logo, desejavam demonstrar aos imperialistas franceses e britânicos que nada tinham a temer. Na Espanha, portanto, aos poucos, ajudaram a sombra a ganhar “corpo”.
Gradualmente, reconstruíram o exército e a força policial capitalista, sob o controle da classe capitalista. Uma vez obtido isto, acabaram com uma grande quantidade de coletividades agrárias e devolveram parte considerável da terra e das fábricas ocupadas aos seus anteriores proprietários. A conseqüência se viu no final da guerra civil, quando o Estado burguês – a maquinaria militar burguesa que eles tinham ajudado a criar – organizou um golpe de estado que estabeleceu uma ditadura militar no território republicano e rapidamente ilegalizou o próprio Partido Comunista.
Na Bulgária, como nos outros países da Europa do Leste, os estalinistas chegaram a um acordo com a sombra da burguesia. A revolução socialista havia começado e existia o perigo de que chegasse até o final. Os estalinistas estavam aterrorizados. Mas, por outro lado, tampouco queriam entregar o poder à burguesia. Descarrilaram a revolução socialista organizando uma denominada “Frente Patriótica” e desviaram o movimento das massas com palavras de ordem chauvinistas e anti-alemãs. A confraternização com a população alemã era castigada, os sovíetes formados pelo exército foram dissolvidos, os comitês de trabalhadores e camponeses foram eliminados. Contudo, a diferença com a Espanha era que aqui as posições fundamentais desta “coalizão”, em que a sombra da burguesia não ostentava o poder, permaneciam firmemente em mãos estalinistas. Tinham a polícia e o exército, selecionaram o pessoal dirigente. Todas as posições importantes na administração pública estavam nas mãos de obedientes testas de ferro. Por trás do biombo da unidade nacional, os estalinistas concentravam em suas mãos o poder estatal. Criaram um instrumento a sua própria imagem e semelhança, uma maquinaria estatal similar à de Moscou.
No caso da Checoslováquia, o processo foi cristalino. Quando os estalinistas entraram no país não havia governo. Os alemães, com seus colaboracionistas traidores, tinham fugido. Os comitês formados pelas massas detinham o controle da indústria e da terra. Os estalinistas dirigiam o governo de Benes [39] desde Moscou. O poder real, os postos mais importantes, estava firmemente em suas mãos; tinham o “corpo” e deixaram a “sombra” para a burguesia.
Em parte para destruir a revolução socialista, em parte para chegar a um compromisso com o imperialismo EUA, permitiram a certos setores da burguesia conservar em suas mãos as empresas privadas. Mas o poder decisivo, por exemplo, os corpos armados de homens, estavam organizados por eles e sob o seu controle. Não era esta a mesma maquinaria estatal de antes. Era uma nova maquinaria estatal de criação própria. Para descarrilar a revolução, os estalinistas utilizaram o chauvinismo e deram ao país um terrível golpe com a expulsão dos alemães. O instinto original das massas era internacionalista. Os informes que chegam desde a Checoslováquia demonstram que, de início, existia confraternização entre os checos e os alemães. Cliff não considera o elemento da contra-revolução nem as atividades da burocracia para destruir a revolução.
Naturalmente, a tentativa dos estalinistas de manter um compromisso com a burguesia – sem renunciar a seu controle e poder de Estado – não poderia durar indefinidamente. As “sombras” poderiam adquirir “corpo”. A tentativa da burguesia EUA de instalar seus pontos de apoio na Europa do Leste baseando-se nos remanescentes da burguesia e nos setores da economia que estes controlavam com o Plano Marshall como moeda, era um sinal de perigo. Com uma velocidade inusitada, a burocracia agiu e ordenou a todos os Estados da Europa do Leste rejeitar o Plano Marshall. A história demonstrou que é impossível manter duas formas antagônicas de propriedade. Embora a burguesia fosse muito débil, começava a ganhar uma base, devido ao fato de manter uma boa proporção da indústria ligeira sob seu controle. O crescente antagonismo com os EUA, a impossibilidade de depender da burguesia e a incompatibilidade desta com o Estado nas mãos da burocracia… tudo isto obrigou à burocracia a tomar medidas para completar o processo. Chegados a este ponto, deveríamos recordar que Trotsky via na extensão da propriedade nacionalizada às zonas de dominação estalinista uma prova óbvia de que a Rússia era um Estado operário. Os acontecimentos de fevereiro, que centralizaram a atenção mundial, sublinharam de maneira dramática o processo que estava tomando lugar em todas as zonas dominadas pelos estalinistas.
O fator decisivo foi que os estalinistas contavam com o apoio dos trabalhadores e dos camponeses na nacionalização e na partilha da terra. Tudo o que Cliff viu foi que a maquinaria do Estado permanecia igual, cabe supor que da mesma forma quando se encontrava sob o domínio dos alemães. Sem dúvida era isto o que a burguesia desejaria!
Segundo todos os observadores, os estalinistas, devido a seus arranjos e à desilusão das massas nas fábricas, provavelmente teriam perdido votos nas futuras eleições. Os elementos burgueses se fortaleciam baseando-se na pequena burguesia das cidades e entre os trabalhadores e camponeses desiludidos. Gradualmente, a burguesia esperava conseguir o controle do Estado e organizar uma contra-revolução com a ajuda do imperialismo anglo-norteamericano. Embora a burocracia tivesse em suas mãos o controle da maquinaria estatal, este controle era precário devido à forma como fora obtido.
Para completar o processo, como já Trotsky tinha previsto, a burocracia viu-se obrigada a recorrer às massas permitindo a criação de Comitês de Ação que, burocraticamente, estavam controlados de cima, embora fossem, contudo, relativamente democráticos por baixo. Os estalinistas armaram os trabalhadores e organizaram uma milícia operária. Estas medidas, naturalmente, entusiasmaram as massas. Inclusive os trabalhadores social-democratas, que odiavam e desconfiavam dos estalinistas, participaram entusiasticamente da luta contra a burguesia. Trotsky afirmou numa ocasião que contra um leão usa-se uma arma e contra uma pulga, a unha. A burguesia, enfrentada à ameaça do aparato do Estado estalinista e do movimento das massas, mostrou-se totalmente impotente.
Contudo, a formação dos Comitês de Ação e a entrega de armas aos trabalhadores necessariamente significava que se estavam criando as condições para um novo regime. Naturalmente, a burocracia estalinista procedeu rapidamente para esmagar a ação independente das massas e de seus órgãos de poder. Organizaram novas eleições seguindo as diretrizes de Moscou, com uma candidatura única e uma supervisão estrita. Desta forma, asseguravam o controle férreo do novo regime.
Ante estes acontecimentos, Cliff pergunta:
Qual é então o futuro da IV Internacional; qual a sua justificação histórica? Os partidos estalinistas contam com todas as vantagens frente a IV Internacional: um aparato estatal, organizações de massas, dinheiro etc. A única vantagem que carecem é uma ideologia internacionalista e de classe (…)
Se uma revolução social ocorrer nos países da Europa do Leste sem uma direção proletária revolucionária, deveríamos concluir que nas revoluções sociais, tanto no futuro quanto no passado, serão as massas que combaterão, mas não as dirigirão. Em todas as lutas da burguesia, não foi a própria burguesia quem combateu, mas as massas que assim acreditavam defender seus interesses. Os sans-cullotes da Revolução Francesa lutavam pela liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto que a meta real do movimento era o estabelecimento do domínio da burguesia. Nesse momento, a burguesia era progressista. Nas guerras imperialistas reacionárias, quanto menos sabem as massas do verdadeiro propósito da guerra, melhores soldados são. Aceitar que as ‘novas democracias’ são Estados operários, significa aceitar que, em princípio, a revolução proletária, como as guerras burguesas, baseia-se no engodo das massas (…)
Se estes países são Estados operários, então para que serve o marxismo? Por que a IV Internacional? As massas poderiam nos considerar somente como aventureiros ou revolucionários impacientes, cujas diferenças com os estalinistas são meramente táticas” (Cliff, p. 14-15).
Cliff perguntou às pessoas erradas. Na realidade, deveria ter perguntado e respondido a si mesmo. Se sua teoria fosse correta, então toda a teoria de Marx se converteria numa utopia. Cliff pensa que se põe a etiqueta de “capitalismo de Estado” sobre o fenômeno do estalinismo, então salvou a sua consciência e restaurou o papel perdido da IV Internacional. Encontramo-nos ante o fetichismo de que falava Marx e que afeta, inclusive, o movimento revolucionário: mudar o nome das coisas e tentar, assim, mudar a sua essência.
Não é possível explicar ou recompor os fios históricos dos acontecimentos atuais sem aceitar a existência e degeneração do Estado operário na Rússia. Os acontecimentos da Europa do Leste somente podem ser entendidos se forem unidos à Revolução de Outubro de 1917. É inútil Cliff afirmar que a burocracia utilizou as massas na Checoslováquia, sem colocar-se a questão de quem as utilizou em 1917. Não foi a Revolução de Outubro seguida pela vitória do estalinismo? As boas intenções ou os desejos subjetivos da direção bolchevique ou da classe trabalhadora estão aqui fora de lugar. Segundo a teoria de Marx, nenhuma sociedade abandona a cena histórica até que tenha esgotado todas as possibilidades de desenvolver as forças produtivas que alberga em seu seio.
Se um novo período de capitalismo de Estado nos ameaça – e esta é necessariamente a idéia que se desprende da teoria de Cliff – porque não pode existir nenhum limite ao desenvolvimento da produção sob este assim chamado capitalismo de Estado, então falar deste período como sendo o da desintegração do capitalismo mundial reduz-se à mera fraseologia. Encontramo-nos ante a absurda teoria de que uma nova revolução – a revolução proletária de 1917 – mudou, organicamente, a economia e se converteu em capitalismo de Estado. Também estamos ante a não menos absurda afirmação de que se produziu uma revolução na Europa do Leste, onde toda a classe capitalista foi expropriada… para instalar o quê? O capitalismo? Uma reflexão séria demonstraria que não é possível que Cliff possa manter esta posição com relação à Europa do Leste sem trasladar a mesma argumentação à própria Rússia.
O próprio Cliff assinala o fato de que na revolução burguesa as massas combateram e a burguesia colheu os frutos. As massas não sabiam por que estavam lutando e ainda menos que o faziam pelo domínio da burguesia. Tomemos o exemplo da Revolução Francesa. Sua ideologia se baseava nas obras dos filósofos do Iluminismo, Voltaire, Rousseau etc. Contudo, acreditavam realmente na idealização da sociedade burguesa. Acreditavam nas proposições de liberdade, igualdade e fraternidade que ela predicava. Como já se sabe, e o próprio Cliff cita Marx para demonstrá-lo, a Revolução Francesa foi além de sua base social. Terminou na ditadura revolucionária dos sans-culottes que ultrapassaram os limites da sociedade burguesa. Como Marx explicava, este fato teve o efeito saudável de obter em poucos meses o que, de outra forma, teria custado à burguesia décadas. Os dirigentes do setor revolucionário da pequena burguesia que exerciam esta ditadura – Robespierre, Danton etc. – acreditavam sinceramente nas doutrinas dos filósofos e tentaram levá-las à prática. Não o conseguiram porque era impossível ir além da base econômica da sociedade. Era inevitável que perdessem o poder e que somente preparassem o caminho para a sociedade burguesa.
Se o argumento de Cliff é correto, poder-se-ia chegar à conclusão de que o mesmo ocorreu na Rússia e que Marx era o profeta do novo capitalismo de Estado, que Lênin e Trotsky foram os Robespierre e Carnot da Revolução Russa. O fato de que Lênin e Trotsky tivessem boas intenções nada tem a ver com o caso (os dirigentes da revolução burguesa tampouco tinham más intenções e simplesmente prepararam o terreno para o domínio do novo Estado da classe capitalista).
Deste modo, se a burocracia utilizou as massas da Checoslováquia, e se tal fato constitui uma prova de que isto era capitalismo de Estado, a burocracia russa não utilizou menos o proletariado na revolução de 1917. Contudo, esta teoria não pode satisfazer ninguém. O fato de que a burocracia, devido ao fato de que a Rússia é um Estado operário totalmente deformado, tenha assimilado a Europa do Leste em sua esfera econômica e, imediatamente, estrangulado o desenvolvimento da revolução socialista, quer dizer que, ao mesmo tempo, conscientemente, realizaram de forma abreviada um processo que se prolongou durante muitos anos na Rússia. Deveria ficar claro que, sem a existência de um forte Estado operário deformado, nas proximidades destes países, teriam sido impossíveis estes processos, a não ser que o proletariado tivesse triunfado com uma revolução saudável nas linhas clássicas e assim estendendo a revolução.
Significa isto que os estalinistas realizaram a revolução e, portanto, não mais é necessária a IV Internacional? Muitas vezes na história as forças do marxismo enfrentaram situações complicadas. Por exemplo, na Revolução de Fevereiro que derrubou o czarismo, as massas caíram sob a influência dos mencheviques e social-revolucionários. Isto não significava mais que, depois de completar a tarefa da derrubada do czarismo através de uma revolução política, foram colocados novos obstáculos ante as massas e havia que derrubá-los com uma segunda revolução, a revolução social de Outubro. O fato de que as massas realizassem a revolução social básica na Europa do Leste, embora esta revolução fosse imediatamente burocratizada pelos estalinistas termidorianos, significa que agora terão que realizar uma segunda revolução – a revolução política.
Cliff só precisa colocar a questão: quais são as tarefas da IV Internacional na Rússia? São idênticas as da Europa do Leste. Para conseguir o socialismo as massas devem ter o controle da administração e do Estado. Os estalinistas nunca poderão permitir isto, que somente poderá ser conseguido com uma nova revolução. Isto somente poderá ser obtido com a derrubada da burocracia da Europa do Leste, assim como na Rússia; portanto, a tarefa da IV Internacional é clara: a luta por uma revolução política para estabelecer uma democracia operária, um semi-Estado, e a transição rápida ao socialismo sobre as bases da igualdade. A forma de propriedade não mudará. O fato de que Cliff chame isto de revolução social nada modifica.
Onde Trotsky encontrava a prova da existência de um Estado operário na extensão da forma de propriedade, Cliff encontra a prova do contrário.
Cliff poderia argumentar que, a menos que a classe trabalhadora tenha o controle direto do Estado, este não pode ser um Estado operário. Nesse caso, teríamos que rejeitar a idéia de que havia um Estado operário na Rússia, exceto possivelmente nos primeiros meses após a Revolução de Outubro. Mesmo assim é necessário repetir que a ditadura do proletariado foi concretizada através do instrumento da vanguarda da classe, ou seja, do partido e, no partido, através de seus órgãos dirigentes. Nas melhores condições, isto deveria se efetuar com a máxima democracia tanto dentro do Estado quanto do partido. Mas a própria essência da ditadura, sua necessidade de conseguir a mudança de sistema social, já é uma prova das profundas contradições sociais que se pode encontrar em circunstâncias históricas desfavoráveis, e que se refletiram dentro do Estado e dentro do partido. Por este motivo, Lênin pensava que os sindicatos representavam um fator necessário para a defesa dos trabalhadores contra seu próprio Estado, bem como um baluarte para a defesa do Estado operário.
Tendo sido possível à organização política da classe trabalhadora (a social-democracia), especialmente através de sua direção, degenerar e fracassar diretamente em refletir os interesses da classe antes da derrocada do capitalismo, por que é impossível que um Estado criado pelos trabalhadores possa seguir um modelo similar? Por que não pode o Estado operário ganhar independência sobre a classe e a burocracia do mesmo enriquecer parasitariamente enquanto, ao mesmo tempo (e em seu próprio interesse) defende as novas formas econômicas criadas pela revolução? Como vimos anteriormente, Cliff trata de criar uma distinção metafísica a partir de 1928, quando pensava que a burocracia não consumia mais-valia e, posteriormente, quando, sim, o fazia. Além de basear-se em fatos incorretos, esta também é uma forma simplista de examinar o fenômeno.
Na realidade, a transição de uma sociedade à outra tem sido mais complicada do que teria pensado os fundadores do socialismo científico. Não mais do que a qualquer outra classe ou formação social, foi dado ao proletariado o privilégio de inevitavelmente fazer uma passagem suave na transição ao seu domínio e daí ao seu indolor e tranqüilo desaparecimento na sociedade, isto é, ao socialismo. Era esta uma variante possível. Mas a degeneração tanto da social-democracia quanto do Estado soviético, em condições determinadas, não foi de todo acidental. Ela representava, de certo modo, as relações complexas entre uma classe, seus representantes e o Estado. Em mais de uma ocasião na história a classe dominante, seja ela burguesa, ou feudal ou escravista, sofreu esta situação, que refletia, por sua vez, a multiplicidade de elementos que constituem o fator decisivo: o econômico.
O ponto de vista mecanicista de Cliff contrasta com o de Lênin. Este último sempre insistia na necessidade de se estudar os períodos de transição das épocas passadas, em especial a do feudalismo ao capitalismo, para se entender as leis da transição na Rússia. Lênin havia rejeitado que o Estado surgido depois de Outubro deveria seguir uma norma pré-concebida; porque, se fora assim, deixaria de ser um Estado operário.
Lênin sabia bem que o proletariado não havia entregado o poder ao seu partido e a sua direção para que o levasse tranquilamente, sem contradições, até o socialismo, uma vez derrubado o capitalismo. De fato, Lênin insistiu em que a ditadura do proletariado diferirá profundamente em diferentes países e em distintas condições. Um método absolutamente distanciado das normas categóricas kantianas utilizadas por Cliff.
Lênin insistia constantemente em que durante a transição do feudalismo ao capitalismo, a ditadura da ascendente burguesia podia se refletir na ditadura de um homem. Uma classe podia governar através do domínio pessoal de um homem. Cliff é bastante complacente ao aceitar esta concepção quando a mesma se aplica à burguesia. Mas, de seus argumentos, pode-se chegar à conclusão de que tal coisa é impossível no caso do proletariado. O domínio de um homem implica absolutismo, ditadura arbitrária encarnada num único indivíduo, sem direitos políticos para a classe dominante, cujos interesses, em última instância, ele representa. Mas Lênin fez este comentário para demonstrar que, em determinadas condições, a ditadura do proletariado poderia também se realizar através da ditadura de um homem. Lênin não desenvolveu esta idéia. Mas, hoje, à luz da experiência da Rússia, da Europa do Leste e dos acontecimentos na China, podemos aprofundar e entender não somente o presente como também os acontecimentos do passado.
Se a ditadura do proletariado pode se realizar através da ditadura de um homem, o que implica na separação do Estado da classe que representa, também significa que o aparato terá a tendência de se tornar independente de sua base e assim adquirir interesses próprios, inclusive hostis e alheios à classe que representa, como no caso da Rússia estalinista. Quando estudamos o desenvolvimento da sociedade burguesa, vemos que a autocracia de um indivíduo, em determinadas condições sociais, servia às necessidades do desenvolvimento dessa sociedade. Cromwell e Napoleão são umas boas provas disto, mas, embora ambos se sustentassem sobre uma base burguesa, em determinado estágio a autocracia burguesa deixa de ser um fator favorável ao desenvolvimento da sociedade capitalista e se converte num obstáculo absoluto para o pleno e livre desenvolvimento da produção burguesa. Quando chega este momento, a ditadura do absolutismo se debilita. Na França e na Inglaterra, foram necessárias revoluções políticas adicionais antes que fosse possível mudar da autocracia à democracia burguesa. Mas, sem plena democracia burguesa, não teria sido possível o livre desenvolvimento das forças produtivas até os níveis que foram alcançados sob o capitalismo.
Se esta análise se aplica à evolução histórica da burguesia, por que não pode ser aplicada ao proletariado de um país atrasado e isolado, onde a ditadura do proletariado degenerou em ditadura de um homem?
Para que o proletariado empreenda o caminho do socialismo, é necessária uma nova revolução, uma revolução política, que transforme o Estado bonapartista proletário numa democracia operária. Tal concepção coincide com a experiência do passado. O capitalismo se desenvolveu através de muitas fases contraditórias e tormentosas (ainda estamos longe de termos acabado com elas, como vemos em nossa época) que, em dadas condições históricas, levou à tomada do poder pelo proletariado na Rússia. E também por reação mútua, a fase bonapartista, que estão atravessando a Europa do Leste e a China, terminará inevitavelmente em novas revoluções políticas em todos estes países para instalar a democracia operária como requisito prévio à transição ao socialismo.
É na inter-relação entre a classe e seu Estado, em determinadas condições históricas, onde encontramos a explicação da degeneração estalinista, e não na idéia mística de que um Estado operário, em condições concretas, deve ser uma perfeita democracia operária ou, senão, o Estado se transformará numa classe.
A classe operária se enriqueceu com a experiência histórica e, extraindo dela as lições necessárias, derrubará triunfalmente o absolutismo estalinista, instaurará uma democracia operária sã em nível muito superior. Então, o Estado corresponderá à forma ideal elaborada por Marx e Engels.
Notas
[1] Marx e Engels, Carta de Marx a P. V. Annenkov em Paris, em Obras Escogidas, v. 1, pp. 523-4. Na edição inglesa.
[2] Otto Von Bismarck, chanceler do governo prussiano desde 1862, introduziu a Lei Anti-Socialista de 1878. Realizou a unificação da Alemanha, sob a Prússia, através de guerras vitoriosas contra a Dinamarca, a Áustria-Hungria e, depois, a França.
[3] Tony Cliff, La Naturaleza de Rusia Estalinista, junho de 1948, p. 10.
[4] Ibid., p. 10.
[5] Leão Trotsky, Stalin. Buenos Aires. Editorial El Yunque, 1975, p. 275.
[6] Ibid., p. 285.
[7] Ibid., p. 288. (Ênfase nossa).
[8] Ibid., p. 291.
[9] Rudolf Hilferding foi dirigente social-democrata alemão.
[10] Cliff, p. 94 (Ênfase nossa).
[11] Ibid., p. 96. (Ênfase nossa).
[12] F. Engels, Anti-Dühring, Madrid, Editorial Crítica, 1978, p. 201.
[13] Ibid., p. 197.
[14] Leão Trotsky, La Revolución Traicionada. Madrid, Fundação Frederico Engels, 1991, p. 94 (Ênfase nossa).
[15] Ibid., p. 94 (Ênfase no original).
[16] F. Engels, Anti-Dühring, p. 196.
[17] F. Engels, Anti-Dühring, p. 282.
[18] Lênin, Left wing childness and the petty-bourgeois mentality, em Obras Completas, v. 27, p. 335. No original em inglês.
[19] F. Engels, Anti-Dühring, p. 289.
[20] Ibid., pp. 289-290 (Ênfase nossa).
[21] F. Engels, Anti-Dühring, p. 290 (Ênfase nossa).
[22] Ibid., p. 123.
[23] F. Engels, Carta a Conrad Schmidt. Moscou, Obras Escogidas de Marx e Engels. Editorial Progreso. 1981. Volume III, p. 511.
[24]  F. Engels, Anti-Dühring, p. 319 (Ênfase nossa).
[25] Marx, El Capital. Madrid. Editorial Akal. Volume III, Capítulo 49, p. 309.
[26] Marx, El Capital, p. 314.
[27] Leão Trotsky, A Revolução Traída, pp. 93-94.
[28] Os julgamentos de Moscou de 1936 e 1938 foram uma montagem monstruosa contra toda uma geração de revolucionários e opositores da burocracia que foram exterminados fisicamente. Em 1936, Stalin propôs uma nova Constituição, que foi abandonada após a explosão da Guerra Civil espanhola em julho de 1936, visto que a burocracia tinha medo de suas repercussões dentro da URSS.
[29] Leão Trotsky, A Revolução Traída, p. 248.
[30] F. Engels. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Madrid, Fundação Frederico Engels, 2007, p. 183-4.
[31] Ibid., p. 185.
[32] F. Engels. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Madrid, Fundação Frederico Engels, 2007, p. 185.
[33] Ibid., pp. 185-186.
[34] Ibid., p. 190.
[35] Stanislaw Mikalafjick, líder do Partido Camponês Polonês, foi o primeiro chefe do “governo no exílio” polonês com base em Londres desde 1943. Com a liberação em 1945, converteu-se em vice-primeiro-ministro da Polônia, mas o poder real estava nas mãos dos estalinistas, apoiados pelo Exército Vermelho. No momento das eleições celebradas em 1947, muitos de seus seguidores estavam encarcerados e o Partido foi mais tarde banido.
[36] Os jacobinos formavam a ala radical da Revolução Francesa. Seu líder, Maximiliano Robespierre (1758-1794) deteve o poder supremo desde 1793 até que foi derrubado e executado em 1794. O Diretório foi o governo da Primeira República Francesa desde 1795-99.
[37] Desde 1945-48, o PC francês manteve vários postos no gabinete do governo da União Nacional, liderado por De Gaulle. O governo de Henri Quielle, estabelecido em setembro de 1948, foi atacado pelo PCF por estar “dirigido contra os trabalhadores”.
[38] Lênin, El Estado. Moscou, Editorial Progreso. 1981, p. 18.
[39] Edvard Benes, membro do Partido Social Nacionalista, foi presidente da Checoslováquia entre 1935 e 1938, e, desde 1941, chefe do governo provisório checoslovaco em Londres. Em 1945, converteu-se em presidente do governo provisório da Checoslováquia. Demitiu-se em junho de 1948 em conseqüência do “golpe de Praga”.

Postagem de Fim de Ano

Dos Arquivos do Trotskismo
A Declaração dos Comunistas Internacionalistas de Buchenwald
Este artigo introdutório, seguido do documento original dos trotskistas de Buchenwald, foi originalmente impresso em inglês na revista Spartacist (número 26) em 1979. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011.

É com grande satisfação que nós publicamos pela primeira vez em nossa língua este documento comovente e historicamente importante. A “Declaração dos Comunistas Internacionalistas de Buchenwald” é um manifesto programático feito por quadros e simpatizantes do movimento trotskista que sobreviveram ao campo de concentração nazista. Nem a tortura fascista nem a perseguição stalinista quebraram a coragem política desses camaradas.

Originalmente escrita em alemão, a declaração foi publicada pouco mais de uma semana depois que Buchenwald foi liberada, em abril de 1945. A sua terceira seção foi publicada em uma edição de 1946 de Neuer Spartakus, a primeira imprensa trotskista em língua alemã publicada após a guerra. Esta parte do documento foi reimpressa em outubro de 1974 em Die Internationale, jornal dos pablistas na Alemanha Ocidental. Mais recentemente, duas traduções francesas diferentes do texto integral foram publicadas. Uma apareceu no Bulletin (número 10) do Centro de Estudos e Pesquisas sobre os Movimentos Trotskista e Revolucionário Internacionais (CERMTRI). A segunda foi na Critique Communiste (número 25, novembro de 1978), jornal dos pablistas franceses. A nossa tradução é do original em alemão que foi obtido dos arquivos dos CERMTRI em Paris. Esta introdução é largamente baseada nos prefácios ao texto que apareceram no Bulletin do CERMTRI e na Critique Communiste.

A “Declaração dos Comunistas Internacionalistas de Buchenwald” foi o trabalho colaborativo de quatro camaradas: os dois austríacos Ernst Federn e Karl Fischer, e Marcel Beaufrere e Florent Galloy, trotskistas francês e belga respectivamente. Como muitos outros trotskistas alemães e austríacos, Federn e Fischer foram capturados pelos nazistas mesmo antes do início da segunda guerra imperialista. Ambos foram primeiramente presos pelas suas atividades revolucionárias na Áustria em 1935. Federn foi libertado, mas Fischer e outros trotskistas austríacos foram aprisionados e julgados em Viena em 1937. Sentenciados a cinco anos de prisão, eles foram libertados com a anistia decretada na véspera da anexação da Áustria pela Alemanha em fevereiro de 1938 e escaparam para a Bélgica e depois para a França. Federn foi preso novamente em 1939 e mandado para o campo nazista de Dachau e depois transferido para Buchenwald.

Muitos dos quadros trotskistas que iriam se juntar a Federn em Buchenwald passaram os primeiros anos da guerra na clandestinidade, organizados entre trabalhadores e soldados alemães sob a ocupação nazista. A sua luta internacionalista fez das dispersas células trotskistas alvos não apenas da Gestapo, mas também dos stalinistas. Marcel Beaufrere foi tipicamente um daqueles militantes trotskistas cujo trabalho clandestino foi punido pelos nazistas com prisão nos campos de extermínio. Colocado para dentro e para fora da prisão desde 1939, quando foi inicialmente preso por “provocar desobediência no exército”, Beaufrere trabalhou de forma próxima com Marcel Hic, que havia sido bem sucedido em realizar uma publicação regular, La Verite [A Verdade], bem debaixo do nariz dos nazistas. Em setembro de 1943, Beaufrere foi encarregado de liderar a célula trotskista na Bretanha, onde o jornal clandestino Albeiter und Soldat [Trabalhador e Soldado] era impresso e distribuído entre as forças armadas alemãs. Apesar da repressão feroz (em outubro de 1943 a Gestapo capturou e fuzilou cerca de 65 membros da célula, incluindo 30 soldados e marinheiros alemães), a propaganda trotskista na Alemanha continuou a ser produzida em grande quantidade (com uma circulação que chegava a 10 mil cópias) e foi disseminada até agosto de 1944. Beaufrere foi finalmente preso em outubro de 1943, torturado e enviado para Buchenwald.

Muitos dos militantes trotskistas ativos nesse trabalho não viveram para ler o documento produzido pelos camaradas de Buchenwald. Marcel Hic sobreviveu a Buchenwald apenas para morrer em Dora em 1944. Robert Cruau, o militante de 23 anos que liderou a célula trotskista dentro das forças armadas alemães em Brest, foi preso em 1943 e, de acordo com a introdução da Critique Communiste feita por Rodolphe Prager:

Um pouco após a sua prisão, Robert Cruau forjou uma fuga com o objetivo de levar à própria morte. Ele queria ter certeza de que não falaria, e ele era o alvo primário dos interrogadores.”

E Abram Leon, talentoso autor do ainda definitivo trabalho trotskista sobre a questão judaica e líder da célula trotskista belga dentro das forças armadas alemães, foi preso em junho de 1944 quando chegou na região de Charleroi para assumir o controle do trabalho clandestino entre os mineiros, que cobria cerca de 15 minas e incluía a publicação de Le Reveil des Mineurs [O Despertar dos Mineiros]. Torturado pela Gestapo, Leon foi exterminado numa câmara de gás em Auschwitz aos 26 anos de idade.

Apesar do terror nazista, os trotskistas nos campos de concentração buscaram continuar lutando pelo seu programa revolucionário. Inúmeros relatos testemunham o heroísmo e coragem da célula trotskista em Buchenwald. De acordo com uma entrevista que Beaufrere deu para um representante da iSt [tendência Espartaquista internacional] em janeiro de 1979, quando os nazistas estavam se preparando para abandonar Buchenwald às forças dos Aliados que se aproximavam, os comandantes do campo difundiram através do sistema de alto-falante uma ordem para que os prisioneiros se reunissem. Reconhecendo que era muito provável que ocorresse uma concentração e extermínio dos judeus no fim, Beaufrere e o seus camaradas imediatamente começaram a clamar aos presos para que não seguissem para a assembleia, e que os presos políticos trocassem os seus emblemas vermelhos de identificação com os judeus, que eram obrigados a usar estrelas amarelas no seu uniforme. Assim, um extermínio em massa quase certo de judeus (e talvez também de comunistas) foi parcialmente evitado.

A autoridade política que os Comunistas Internacionalistas ganharam dentro do campo não desempenhou menor papel na sua sobrevivência. Como foi o caso em outros campos nazistas, em Buchenwald os trotskistas viviam sob constante ameaça de assassinato pelos stalinistas, que na maioria dos casos controlavam os aparatos militares clandestinos formados em alguns campos. De acordo com a entrevista com Beaufrere, a célula stalinista francesa em Buchenwald lhe reconheceu como um trotskista desde a sua chegada em janeiro de 1944 e prometeu matá-lo. Em toda a parte, os trotskistas foram de fato assassinados pelos stalinistas – por exemplo, Pietro Tresso (Blasco), um líder da organização trotskista clandestina (o PCI), “desapareceu” depois que a incursão organizada pelos stalinistas libertou cerca de 80 lutadores da resistência em Puy, um campo nazista na França. Em Buchenwald os stalinistas franceses usaram as suas posições organizativas para encarregar Beaufrere de tarefas que iriam quase certamente levar à sua morte. Beaufrere foi salvo dessa “sentença de morte” pela solidariedade ativa das células stalinistas alemã e tcheca, no fim ganhando apoio também de outras células (que eram organizadas ao longo de linhas nacionais), incluindo o grupo russo.

O que permitiu a Beaufrere ganhar a simpatia e o respeito desses quadros stalinistas foi em grande medida a posição anti-chauvinista dos trotskistas. Evidentemente, muitos dos stalinistas alemães e austríacos eram repelidos pelo chauvinismo anti-alemão dos seus “camaradas” do PC francês. (Na época da “liberação” da França pelos Aliados, L’Humanite [jornal dos stalinistas franceses] correu manchetes tais como “Cada um pegue um alemão!”). Após a sua chegada em Paris em 1945, Beaufrere relatou para a imprensa trotskista francesa o impacto da declaração de Buchenwald sobre os stalinistas alemães:

Alguns velhos comunistas alemães vieram encontrar nossos camaradas trotskistas [em Buchenwald], relembrou Beaufrere em seu retorno a Paris, e disseram a eles: chegou a hora, vocês devem se mostrar publicamente, e pediram uma discussão política preliminar. Um texto de nossos camaradas alemães que nos declarava a favor de uma república soviética alemã teve um profundo impacto nos camaradas comunistas alemães, que pediram para manter contato com os trotskistas.”
La Verite, 11 de maio de 1945, citado na Critique Communiste, novembro de 1978.

A declaração de Buchenwald não deixa de ter suas fraquezas. Do ponto de vista do trotskismo, o manifesto contém formulações sobre a questão da URSS e da Quarta Internacional que são vagas, senão simplesmente ambíguas. Assim, enquanto a burocracia soviética recebe referência como uma casta, a declaração evita caracterizar a URSS como um Estado operário degenerado. Ela coloca uma interrogação bastante explícita sobre a evolução futura do regime e em nenhum lugar chama pela defesa militar incondicional da URSS.

Da mesma forma, enquanto “IV Internacional” aparece no fim do documento entre parênteses, a Quarta Internacional e o trotskismo não são mencionados no texto. Ao invés disso, a declaração afirma que “um novo partido revolucionário mundial” precisa ser criado.

Essas não foram formulações precipitadas, mas o resultado de muita discussão. Beaufrere e Fischer tinham posições amplamente divergentes sobre o caráter de classe da URSS e sobre a Quarta Internacional. Mesmo antes da guerra, Fischer havia adotado a análise do “Capitalismo de Estado” para a URSS e seu grupo havia crescido cada vez mais afastado da Quarta Internacional.

A declaração de Buchenwald representou um compromisso. Karl Fischer explicou em 29 de maio de 1946 em uma carta que para seus camaradas em Paris que:

Ela foi composta conjuntamente por Federn, Marcel Beaufrere, Florent Galloy e eu. No que diz respeito à Rússia e aos trotskistas, eu tive que entrar em um compromisso, já que de outra forma nada teria saído.”
Citado no Bulletin do CERMTRI, número 10.

Também deve-se notar que a declaração prediz bastante categoricamente uma erupção iminente de grandes rivalidades inter-imperialistas entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Tal projeção, é claro, se revelou falsa pouco depois. Entretanto, a questão envolvida não era nova. Em meados dos anos de 1920, Trotsky analisou as bases de possíveis futuras rivalidades inter-imperialistas anglo-americanas. Mas no fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam claramente emergindo como um poder imperialista hegemônico.

Mesmo com essas fraquezas, a declaração de Buchenwald é, no geral, uma declaração principista e poderosa de internacionalismo revolucionário, uma afirmação do otimismo revolucionário na capacidade da vanguarda comunista para liderar o proletariado ressurgente para longe da crise de liderança e rumo à conquista do poder.

***

I. A Conjuntura Internacional do Capitalismo

No fechamento da segunda guerra imperialista, Itália, Alemanha e Japão perderam a sua altura como grandes potências imperialistas, enquanto a da França foi severamente minada.

Os antagonismos e conflitos imperialistas entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha dominam a conjuntura da política imperialista mundial.

No início dessa guerra imperialista, a Rússia emergiu do seu isolamento e hoje se confronta com a tarefa de consolidar política e economicamente os seus sucessos militares em oposição aos apetites das potências imperialistas vitoriosas.

Apesar dos seus enormes esforços, a China permanece um peão das grandes potências imperialistas, uma consequência inevitável da vitória da burguesia chinesa sobre o proletariado chinês.

A unanimidade disposta de forma tão ostentosa nas conferências de paz imperialistas tem o objetivo de enganar as massas ao esconder os antagonismos inerentes entre as potências capitalistas. Entretanto, interesses militares coincidentes no que diz respeito à Alemanha não podem prevenir a explosão de antagonismos dentro do campo dos Aliados. A esses antagonismos deve ser adicionada a crise inevitável e o tumulto social do modo de produção capitalista decadente.

Uma análise precisa da situação internacional, usando o método do marxismo leninista é a precondição indispensável para uma linha revolucionária bem sucedida.

II. A Situação Internacional da Classe Trabalhadora

Esse desenvolvimento torna possível para o proletariado alemão se recuperar rapidamente da sua profunda derrota e novamente se posicionar nas cabeças da classe trabalhadora européia na batalha pela derrubada do capitalismo. Isolada pelo fracasso da revolução na Europa, a revolução russa tomou um curso que a levou mais e mais para longe dos interesses do proletariado europeu e internacional. A política do “socialismo em um só país”, a princípio somente uma defesa dos interesses do círculo burocrático dominante, leva hoje o Estado russo a propagar uma política nacionalista ombro a ombro com as potências imperialistas. Qualquer que seja o curso dos eventos na Rússia, o proletariado internacional deve se livrar de todas as ilusões no que diz respeito a este Estado, e com a ajuda de uma análise marxista clara, perceber que a atual casta burocrática e militar dominante defende exclusivamente os seus próprios interesses e que a revolução internacional não pode contar com qualquer apoio desse governo.

O total colapso militar, político e econômico da burguesia alemã abre o caminho para a libertação do proletariado alemão. Para prevenir o restabelecimento da burguesia alemã, facilitado pelos antagonismos imperialistas, e para estabelecer o poder proletário, é necessária a luta revolucionária da classe trabalhadora de cada país contra a sua própria burguesia. A classe trabalhadora foi privada da sua liderança pelas políticas de duas organizações internacionais dos trabalhadores, que ativamente lutaram contra e sabotaram a revolução proletária, que por si só poderia ter prevenido esta guerra. A Segunda Internacional é uma ferramenta da burguesia. Desde a morte de Lenin, a Terceira Internacional foi transformada em uma agência da política externa da burocracia russa. Ambas internacionais participaram ativamente na preparação e na realização dessa guerra imperialista e, portanto, dividem responsabilidade por ela. Atribuir responsabilidade, ou responsabilidade parcial, por essa guerra à classe trabalhadora alemã e internacional é outra forma de continuar servindo à burguesia.

O proletariado pode cumprir a sua tarefa histórica apenas sob a liderança de um novo partido mundial revolucionário. A criação desse partido é a tarefa mais pulsante dos setores mais avançados da classe trabalhadora. Os quadros revolucionários internacionais já se reuniram para construir esse partido mundial na luta contra o capitalismo e os seus agentes reformistas e stalinistas. Para levar a frente essa difícil tarefa, não se deve buscar evitar a questão através do slogan mais conciliatório da nova Internacional 2½. Tal formação intermediária evitaria a clarificação ideológica necessária e iria ceifar a vontade revolucionária.

III. Nunca Mais um 9 de Novembro de 1918!

No período pré-revolucionário iminente, o que é necessário é mobilizar as massas trabalhadoras na luta contra a burguesia e preparar a construção de uma nova Internacional revolucionária que irá forjar a unidade da classe trabalhadora na ação revolucionária.

Todas as teorias e ilusões sobre o “Estado popular” ou uma “democracia popular” levaram a classe trabalhadora às derrotas mais sangrentas no curso da luta de classes na sociedade capitalista. Somente a luta irreconciliável contra o Estado capitalista – até, inclusive, a sua destruição e a construção de um Estado de conselhos de trabalhadores e camponeses – pode evitar novas derrotas similares. A burguesia e a pequeno-burguesia marginalizada trouxeram o fascismo ao poder. O fascismo é criação do capitalismo. Apenas a ação independente bem sucedida da classe trabalhadora contra o capitalismo é capaz de erradicar o mal do fascismo junto com as suas causas de origem. Nessa luta, a pequeno-burguesia hesitante irá juntar forças com o proletariado revolucionário na ofensiva, conforme a história das grandes revoluções demonstra.

Para emergir vitoriosa das batalhas de classe que estão por vir, a classe trabalhadora alemã deve lutar pela realização das seguintes demandas:

  • Liberdade de organização, reunião e imprensa!
  • Liberdade de ação coletiva e restauração imediata de todas as conquistas sociais pré-1933!
  • Confisco da propriedade dos fascistas para o benefício das suas vítimas!
  • Julgamento de todos os representantes do Estado fascista por tribunais eleitos livremente pelo povo!
  • Dissolução das forças armadas alemães e a sua substituição por milícias de trabalhadores!
  • Imediata eleição livre para conselhos de trabalhadores e camponeses ao longo de toda Alemanha e a convocação de um congresso geral desses conselhos!
  • Preservação e extensão desses conselhos enquanto são usadas as instituições parlamentares da burguesia para a propaganda revolucionária!
  • Expropriação dos bancos, da indústria pesada e das grandes propriedades!
  • Controle da produção pelos sindicatos e conselhos de trabalhadores!
  • Nenhum homem, nenhum centavo para pagar as dívidas de guerra e reparações da burguesia!
  • A burguesia deve pagar!
  • Pela revolução socialista em uma Alemanha unificada! Contra o desmembramento da Alemanha!
  • Fraternização revolucionária com os proletários dos exércitos ocupantes!
  • Por uma Alemanha de conselhos de trabalhadores em uma Europa de conselhos de trabalhadores!
  • Pela revolução proletária mundial!

Os Comunistas Internacionalistas de Buchenwald
(IV Internacional) – 20 de abril de 1945

Arquivo Histórico: Declaração de Princípios da Liga Espartaquista

Declaração de Princípios da Liga Espartaquista

A linha geral desta declaração foi aprovada de forma unânime na Conferência de Fundação da Liga Espartaquista em 3 de setembro de 1966. A redação final foi aprovada pelo Secretariado Político em 8 de novembro do mesmo ano. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011.

1. A Revolução Socialista e a Liga Espartaquista

A Liga Espartaquista dos Estados Unidos é uma organização revolucionária que, como parte de um movimento revolucionário internacional, está comprometida com a tarefa de construir o partido que irá liderar a classe trabalhadora para a vitória da revolução socialista nos Estados Unidos.
Apenas o proletariado, através da tomada do poder político e da destruição do capitalismo em todos os países, pode lançar as bases para a eliminação da exploração e a resolução da contradição entre o crescimento das forças produtivas da economia mundial e as barreiras dos Estados nacionais. O capitalismo há muito tempo deixou de cumprir o seu papel histórico progressivo de criar uma economia industrial moderna. Agora, para manter o seu poder, as classes capitalistas nacionais precisam intensificar as divisões nacionais e raciais, oprimir os povos coloniais através do imperialismo e empobrecer as massas de todo o mundo, entrar em contínuas guerras pela manutenção e redivisão dos mercados mundiais para levantar a decrescente taxa de lucro, e tentar esmagar a luta revolucionária dos trabalhadores onde quer que ela estoure. Em seu esforço frenético final para manter o seu poder fechado, a burguesia não irá hesitar em mergulhar a humanidade em um holocausto nuclear ou opressão totalitária de ferocidade sem precedentes. Os Estados Unidos da América são hoje a pedra chave de toda a ordem capitalista internacional.
Por outro lado, a vitória do proletariado em uma escala mundial iria colocar uma abundância material inimaginada a serviço das necessidades humanas, lançar as bases para a eliminação das classes sociais, e eliminar para sempre a busca pela guerra inerente ao sistema econômico mundial do capitalismo. Pela primeira vez a humanidade irá tomar as rédeas da história e controlar a sua própria criação, sociedade, resultando em uma emancipação não-sonhada de potencial humano, a expansão sem limites da liberdade em todas as áreas, e um monumental salto à frente da civilização. Somente então será possível realizar o livre desenvolvimento de cada indivíduo como condição para o livre desenvolvimento de todos.

2. A Crise de Liderança Proletária

A história mostrou que a auto-emancipação da classe trabalhadora, junto com os oprimidos de toda a Terra, se decide na questão da liderança. As precondições econômicas para o socialismo há muito foram atingidas. Mas as contradições do capitalismo em sua época de decadência imperialista produzem não apenas guerras, mas também oportunidades revolucionárias. O sucesso ou fracasso da classe trabalhadora em atingir a vitória nessas oportunidades históricas depende da organização e da consciência científica das massas em luta, ou seja, da liderança revolucionária. Apenas uma liderança revolucionária – a arma indispensável da população trabalhadora – provou ter a estratégia e a determinação para liderar as massas trabalhadoras para a vitória. A responsabilidade pelas derrotas sofridas pela classe trabalhadora e o aborto de oportunidades revolucionárias anteriores está junto aos maus líderes traidores socialdemocratas e stalinistas. Mas a vontade revolucionária do proletariado irá triunfar! A crise de liderança será resolvida! É para a solução da crise de liderança do proletariado que a Liga Espartaquista dirige o seu trabalho.

3. As Raízes Teóricas e Históricas da Liga Espartaquista

A Liga Espartaquista continua as tradições revolucionárias do movimento internacional da classe trabalhadora exemplificado no trabalho de revolucionários como Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Luxemburgo e Liebknecht. Acima de tudo nós observamos a experiência do Partido Bolchevique, que culminou na revolução russa de 1917, a única revolução até hoje feita pela classe trabalhadora.
Nós buscamos particularmente levar adiante as perspectivas proletárias do marxismo desenvolvidas na teoria e prática de V. I. Lenin e L. D. Trotsky, encarnadas nas decisões dos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista e pelo Programa de Transição e outros documentos adotados na conferência de fundação de 1938 da Quarta Internacional. Esses materiais são uma codificação documental indispensável do movimento comunista internacionalmente, e são fundamentais para as tarefas revolucionárias da nossa organização.
Nós também buscamos inspiração no exemplo de revolucionários nos Estados Unidos tais como F. A. Sorge, Vincent Saint John, Daniel De Leon, Louis Farina e James P. Cannon. A Liga Espartaquista é a continuadora da herança revolucionária do início do Partido Comunista e do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP). As origens imediatas da Liga Espartaquista estão na Tendência Revolucionária do SWP que se baseou primariamente na declaração Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária e no documento Perspectiva Mundial para o Socialismo.

4. O Papel de Vanguarda da Classe Trabalhadora e o Caminho para o Socialismo

É central para a perspectiva marxista do socialismo mundial o papel de vanguarda da classe trabalhadora, e particularmente o peso decisivo do proletariado dos países industrializados. Apenas a classe trabalhadora tem o poder social e a compulsão de um interesse objetivo claro de libertar a humanidade da opressão. Não tendo nenhuma amarra com a ordem burguesa, o seu enorme poder está no seu potencial produtivo, em seu número e na sua organização.
O poder continuado de um pequeno punhado de capitalistas só é sustentado através da manutenção de uma classe trabalhadora dividida e confusa sob a sua verdadeira situação. Nos Estados Unidos, a classe dominante foi bem sucedida em criar profundas divisões em linhas raciais. Os trabalhadores negros como uma casta de raça-cor duplamente oprimida, exige modos especiais de luta enquanto as atitudes racistas continuem a permear o semblante da classe trabalhadora como um todo. O socialismo nesse país será atingido apenas pela luta comum entre trabalhadores brancos e negros sob a liderança de uma vanguarda revolucionária unificada.
A experiência histórica mostrou que o caminho para o socialismo só pode ser aberto pela intervenção das massas no curso da história e pela criação de um poder dual culminando na destruição do Estado capitalista e na vitória do Estado operário e o desenvolvimento de uma nova ordem social. A polícia, as forças armadas, a burocracia, a Justiça, e o aparato político da velha ordem serão substituídos pela ditadura do proletariado baseada em conselhos da população trabalhadora e apoiada pela força armada dos trabalhadores. Tal Estado iria defender a si próprio contra os esforços contrarrevolucionários da classe dominante deposta para retornar ao poder e iria reorganizar a economia ao longo de linhas racionais. Conforme a base econômica das classes sociais diminuísse, o Estado operário irá mais e mais assumir uma função puramente administrativa, por fim esvaindo-se com o advento do comunismo sem classes.

5. O Caráter Internacional da Revolução Socialista

O capitalismo é um sistema econômico mundial que criou uma classe trabalhadora internacional com interesses idênticos por todo o mundo. O caráter internacional da classe trabalhadora dá a ela uma enorme superioridade potencial sobre a burguesia, já que o capitalismo opera sob métodos anárquicos que lançam uma classe capitalista nacional contra a outra e constantemente criam novas irregularidade e crises. Para realizar essa superioridade, o proletariado precisa de um partido internacional para unificar a classe através das barreiras nacionais e setoriais que a dividem e coordenar as lutas independentes dos trabalhadores em cada país. Enquanto a revolução pode começar em um só país, qualquer vitória parcial será somente assegurada definitivamente com o espalhar da revolução para outros países e o eventual domínio mundial de uma organização econômica socialista. A Quarta Internacional é o partido mundial da revolução socialista, cujo programa e propósito permanecem válidos hoje como na sua fundação em 1938, apesar da sua presente dispersão organizativa. Nós nos colocamos com aqueles grupos que buscam o renascimento da Quarta Internacional e, como um primeiro passo, a criação de um genuíno Comitê Internacional de trotskistas revolucionários baseado num centralismo democrático real e vívido.

6. A Necessidade da Consciência Revolucionária

A classe dominante tem sob seu comando o monopólio dos meios de violência, o seu aparato dominante político e burocrático, sua enorme riqueza e conexões, e seu controle da educação, da mídia de massa e todas as outras instituições da sociedade capitalista. Contra tal força, um Estado operário pode ganhar vida apenas por um proletariado completamente consciente das suas tarefas, organizado para realizá-las, e determinado a defender as suas conquistas contra a violência contrarrevolucionária da classe dominante. A luta decisiva – a conquista do poder de Estado – exige consciência política. Através da sua aquisição de consciência política a classe trabalhadora deixa de ser meramente uma classe em si e se torna uma classe para si. Tal consciência não é gerada espontaneamente no curso das lutas de classe do cotidiano dos trabalhadores. Ela deve ser trazida aos trabalhadores pelo partido revolucionário. Por isso a tarefa do partido revolucionário é forjar o proletariado em uma força política suficiente ao influí-lo com a consciência da sua real situação, educá-lo nas lições históricas da luta de classes, temperá-lo em lutas cada vez mais profundas, destruir as suas ilusões, enchê-lo de vontade e confiança revolucionárias, e organizá-lo para derrubar todas as forças que estejam no caminho da conquista do poder. Uma classe trabalhadora consciente é a força decisiva na história.

7. A Base Burguesa do Revisionismo

Até quando a consciência revolucionária não prevalecer entre os trabalhadores, a sua consciência será determinada pela ideologia da classe dominante. Objetivamente, o capitalismo domina através do capital financeiro, do seu monopólio dos meios de violência, e do seu controle de todas as instituições sociais existentes. Mas ele prefere, quando possível, comandar através do domínio de suas ideias entre os oprimidos, promovendo ilusões e ocultando a sua essência sanguinária. As idéias da burguesia penetram nos próprios movimentos e organizações dos trabalhadores através da agência de comparsas pequeno-burgueses no mundo do trabalho – particularmente as burocracias parasitas sindicais, socialdemocratas e stalinistas que se baseiam na camada superior “aristocrática” da classe trabalhadora. Aproveitando privilégios não concedidos à maioria dos trabalhadores, esses maus líderes traem as massas da população trabalhadora através da colaboração de classes, social-patriotismo, e políticas racistas-chauvinistas que sabotam o entendimento e a solidariedade proletários. Se não são substituídos por lideranças revolucionárias, eles permitirão que as organizações dos trabalhadores se tornem impotentes na luta pelas necessidades econômicas dos trabalhadores sob as condições da democracia burguesa ou deixarão essas organizações serem derrotadas pelo fascismo vitorioso.
A degeneração do capitalismo e a capitulação de tendências dentro do movimento marxista têm sido de valor especialmente crítico para a preservação da dominação imperialista. Submissão à pressão da sociedade burguesa tem repetidamente impulsionado correntes nominalmente marxistas rumo ao revisionismo, o processo de abandono das conclusões essenciais do marxismo. O revisionismo de Bernstein, o menchevismo, o stalinismo e a sua variante maoísta, são todos ilustrações desse processo que constitui uma ponte para práticas abertamente reformistas.
Dentro do movimento trotskista os problemas postos pelas expansões stalinistas após 1943 deram origem à corrente revisionista do pablismo. O pablismo é caracterizado principalmente por uma renúncia da necessidade de uma liderança revolucionária e a adaptação às lideranças pequeno-burguesas e stalinistas existentes. Essa deterioração da teoria levou à degeneração da Quarta Internacional fundada por Leon Trotsky, e à sua destruição organizativa.
A Liga Espartaquista, ao contribuir com a clarificação teórica do movimento marxista e para a reconstrução das necessárias armas organizativas dos trabalhadores, levanta os princípios revolucionários do marxismo e os levará adiante para a vanguarda da classe trabalhadora.

8. Os Estados Operários Deformados e a Revolução Política

Ganhos históricos foram obtidos ao expulsar o imperialismo e destruir as relações de propriedade capitalistas em certos países atrasados, ou seja, os Estados operários degenerados da URSS, e os Estados operários deformados na Europa Oriental e da China, Coréia do Norte, Vietnã do Norte e Cuba. A nacionalização dos meios de produção, o estabelecimento de um planejamento econômico, e o monopólio estatal do comércio exterior trouxe melhorias tangíveis nos padrões de vida das massas junto com avanços no crescimento industrial apesar da hostilidade do imperialismo. Por outro lado, a falha até o momento do proletariado em conduzir de forma bem sucedida uma revolução social em qualquer dos países avançados, a relativa baixa produtividade do trabalho e níveis culturais dos Estados operários comparados com os países capitalistas chefes, e a preponderância numérica da classe camponesa permitiram a formação de castas burocráticas dominantes que excluem a classe trabalhadora do poder político e que são suscetíveis ao desenvolvimento de tendências restauracionistas burguesas. Essas burocracias privilegiadas, elas próprias um reflexo da contínua dominação do capitalismo em uma escala mundial, se colocam como uma barreira para a eliminação das diferenças de classe dentro das suas próprias fronteiras e para o alcance do socialismo em uma escala mundial. Através dos seus desvios crescentemente nacionalistas, elas enfraquecem essas conquistas da classe trabalhadora diante do imperialismo e abrem o caminho para a repenetração de formas econômicas capitalistas.
A Liga Espartaquista levanta a defesa incondicional desses países contra todas as tentativas do imperialismo de restabelecer o seu controle. Ao mesmo tempo, nós afirmamos a necessidade da classe trabalhadora de tomar o controle direto e a defesa desses Estados em suas próprias mãos através da revolução política e assim varrer as barreiras internas para o avanço rumo ao socialismo. Apenas o espalhar da revolução internamente e internacionalmente pode manter de maneira bem sucedida essas conquistas parciais dos trabalhadores. É uma necessidade imediata e pulsante construir seções da Quarta Internacional nos Estados operários deformados para guiar a luta dos trabalhadores pelo poder político e para coordenar a sua luta com aquela do proletariado nos países avançados e coloniais.

9. A Revolução Colonial e a Revolução Permanente

O caráter parcial das revoluções anti-capitalistas no mundo colonial nas últimas duas décadas (China, Cuba, Vietnã do Norte e Coréia do Norte) nos leva a reafirmar o conceito marxista e leninista do proletariado como chave para a revolução socialista. Apesar de que os movimentos pequeno-burgueses liderados por nacionalistas devem ser defendidos contra o imperialismo, a tarefa dos comunistas é liderar a intervenção ativa classe trabalhadora para tomar hegemonia na luta nacional-social. A luta da liderança proletária pela autodeterminação das nações oprimidas é uma poderosa ferramenta para quebrar o domínio dos líderes nacionalistas pequeno-burgueses sobre as massas. A Liga Espartaquista se opõe fundamentalmente à doutrina maoísta, enraizada nos reformismos stalinista e menchevique, que rejeita o papel de vanguarda da classe trabalhadora e o substitui pela guerra de guerrilhas com base camponesa como o caminho para o socialismo. Movimentos desse tipo podem sob certas condições, ou seja, a extrema desorganização da classe capitalista no país colonial e na ausência de uma classe trabalhadora disputando por si própria o poder social, esmagar as relações de propriedade capitalistas. Entretanto, eles não podem levar a classe trabalhadora ao poder político. Ao invés disso, eles criam regimes burocráticos anti-proletários que suprimem qualquer desenvolvimento posterior dessas revoluções rumo ao socialismo. A experiência desde a Segunda Guerra Mundial validou completamente a teoria trotskista da Revolução Permanente que declara que no mundo moderno, a revolução democrático-burguesa só pode ser completada pela ditadura do proletariado apoiada pelo campesinato. Apenas sob a liderança do proletariado revolucionário os países coloniais e semicoloniais podem obter a solução completa e genuína às suas tarefas de obter democracia e emancipação nacional.

10. O Partido Revolucionário: seu Programa, Organização e Disciplina

“Sem um partido, separada do partido, por cima da cabeça do partido, ou substituindo o partido, a revolução proletária não pode triunfar.” O partido revolucionário não é apenas um instrumento para trazer consciência política para o proletariado, ele é também a principal força ofensiva e guia através da qual a classe trabalhadora realiza e consolida a revolução socialista. O partido revolucionário é o apoio geral da revolução. Seus quadros de liderança são treinados e testados na luta de classes, ele ganhou a liderança da classe com base no seu programa e determinação revolucionária, ele entendeu todo o passado para compreender a situação presente com clareza cristalina, ele reconhece e responde audaciosamente ao momento revolucionário quando ele chega, aquele momento quando as forças do proletariado estão mais confiantes e preparadas e as forças da velha ordem estão mais desorganizadas e desmoralizadas. No partido revolucionário está cristalizada a aspiração das massas para obter sua liberdade, ele simboliza a sua determinação revolucionária e é o seu instrumento de vitória.
O programa da Liga Espartaquista, como parte da Quarta Internacional, é de natureza transitória. Ele forma uma ponte entre o curso da luta diária entre as atuais demandas e o programa socialista da revolução. Da consciência da classe trabalhadora hoje, ele formula as suas demandas e tarefas de um modo que leve inalteravelmente a uma conclusão final: a conquista do poder pelo proletariado. A frente única de organizações diferentes, e por vezes hostis entre si, da classe trabalhadora é uma tática primária em períodos incertos para ao mesmo tempo mobilizar uma ampla massa para a luta e fortalecer a autoridade do partido de vanguarda dentro da classe. O programa transitório dirige a luta de forma cada vez mais aberta e decisivamente contra as próprias bases do regime burguês e mobiliza as massas para a revolução proletária.
O princípio organizativo da Liga Espartaquista é o centralismo democrático, um equilíbrio entre democracia interna e disciplina funcional. Como uma organização de combate, a vanguarda revolucionária deve ser capaz de ação unificada e decisiva em todos os momentos da luta de classes. Todos os membros devem ser mobilizados para levar em frente as decisões da maioria. A autoridade deve ser centralizada em uma liderança selecionada que interprete taticamente o programa da organização. A democracia interna permite a determinação coletiva da linha do partido de acordo com as necessidades sentidas pelas bases do partido, que estão mais próximas da classe como um todo. O direito à democracia fracional é absolutamente vital para um movimento com vida. A própria existência desse direito ajuda a canalizar as diferenças para meios menos exaustivos de resolução.
A disciplina da Liga Espartaquista flui do seu programa e do seu propósito, a vitória da revolução socialista e a libertação de toda a humanidade.

11. Nós Vamos Intervir para Mudar a História!

“O marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação”. A Liga Espartaquista, como uma seção nacional do movimento trotskista internacional, está na linha de frente da luta por um futuro socialista. Nossa preparação cotidiana da classe trabalhadora e nossa intervenção e liderança nos momentos decisivos da luta de classes irão impulsionar a luta rumo à sua vitória final. “Encarar a realidade de frente; não buscar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelos seus nomes; falar a verdade para as massas não importa o quão amarga ela seja; não temer os obstáculos; ser verdadeira nas pequenas coisas como nas grandes; basear o seu programa na lógica da luta de classes; ser ousada quando a hora da ação chegar – estas são as regras da Quarta Internacional”. Estas são as regras da Liga Espartaquista conforme nós seguimos em direção à tarefa histórica de liderar a classe trabalhadora para a vitória do socialismo nos Estados Unidos!

A Necessidade de Uma Organização Revolucionária

Introdução a 1917
A Necessidade de uma Organização Revolucionária
Originalmente publicado no verão de 1986, o presente artigo é uma introdução à primeira edição de 1917, revista internacional da então Tendência Bolchevique, predecessora da Tendência Bolchevique Internacional (TBI). Sua tradução para o português for realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011.

Toda a história da luta entre Bolcheviques e Mencheviques é marcada por essa pequena palavra ‘processo’. Lenin sempre formulou tarefas e propôs métodos correspondentes. Os Mencheviques concordavam com as mesmas ‘metas’ de forma genérica, mas deixavam sua realização para o futuro. Não há nada de novo sob o sol.”
Leon Trotsky, “Ao Camarada Sneevliet sobre o Congresso do IAG”, Escritos (1934-35).

Essa é a primeira edição de 1917, revista política da Tendência Bolchevique. Tomamos nosso nome do Ano Um da revolução proletária, o ano em que a classe trabalhadora russa esmagou a corrente do imperialismo mundial em seu elo mais fraco. A Revolução de Outubro não foi primariamente um evento russo em sua significância – ela foi o começo da luta internacional do proletariado pelo poder.

A brilhante promessa dos primeiros anos da revolução foi diminuída por seis décadas de traição e perfídia stalinista. Hoje o Kremlin já não é mais o quartel-general da revolução proletária, mas o domínio de uma casta burocrática e nacionalista que é uma barreira para o socialismo e que precisa ser derrubada através de uma revolução política dos trabalhadores. Ainda assim, as lições da Revolução Russa mantêm toda a sua significância para o futuro revolucionário da classe trabalhadora, e a defesa das conquistas sociais de 1917 continua a ser um medidor para diferenciar autênticos revolucionários dos variados social democratas do “Terceiro Campo”. Nós somos partidários de 1917. Nós baseamos no programa e estratégia na liderança daquela revolução: Lenin e Trotsky. Nós defendemos os documentos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista; a luta da Oposição de Esquerda contra a contrarrevolução política do stalinismo; os documentos fundacionais da Quarta Internacional e a tradição revolucionária do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) liderado por James P. Cannon dos anos 1930 aos anos 1950. A liderança do SWP abandonou a luta pela construção de uma vanguarda trotskista no início dos anos 1960 em troca de uma confiança no processo objetivo da História (personificado, em um primeiro momento, por Fidel Castro). A Tendência Revolucionária, predecessora da Liga Espartaquista (SL) nasceu na luta contra as consequências liquidacionista do castrismo de segunda-mão da maioria do SWP. Através dos anos 1960 e 1970 a herança programática do trotskismo foi representada pela tendência Espartaquista. Essa tradição nós reivindicamos como nossa.

Os fundadores da Tendência Bolchevique são, em sua maioria, veteranos da tendência Espartaquista internacional (iSt) que foram expulsos, junto com dúzias de outros quadros, no curso da transformação dessa organização desde um grupo de propaganda trotskista em uma obediente seita pseudo-revolucionária. Inicialmente organizados por fora da iSt enquanto uma “Tendência Externa”, nós decidimos que, de acordo com o nosso nível formal de similaridade programática, era apropriado solicitar o reingresso na tendência Espartaquista. Fizemos isso com a intenção declarada de cristalizar uma oposição à acelerada degeneração política da organização. A liderança da SL (que em certo momento fingiu estar interessada em nosso reingresso) respondeu ao nosso pedido com uma muralha de calúnias e injúrias destinadas bater a porta e fechá-la de uma vez por todas. Desde então tivemos sucesso em consolidar uma organização que representa a continuidade da tradição trotskista que a SL carregou à frente a partir do SWP há duas décadas.

A Liga Espartaquista não pode mais ser considerada, em nenhum sentido, uma organização revolucionária. Uma indicação prematura da ruptura política da SL com o seu passado trotskista foi a decisão da liderança de acabar com a implantação do grupo no proletariado industrial. Tem sido uma louca jornada desde então. De proclamações apocalípticas de um incipiente golpe fascista em julho de 1984 em São Francisco até caracterizações misóginas de oponentes feministas negras enquanto “fêmeas de dobermanns no cio” – a SL hoje é um dos grupos mais insanos (e nojentos) na esquerda. O centrismo deles é de um tipo particular – banditismo politico – no qual a posição política formal do grupo é submetida a flutuações selvagens de acordo com as percebidas exigências de manter “o partido” (particularmente seus aparatos organizativos e outras vantagens) ou por capricho do “líder-fundador”, Jim Robertson. Um dos artigos de fé exigidos de todos aqueles que se mudam para “Jimstown” é a alucinação paranoica de que virtualmente todas as outras tendências na esquerda estão envolvidas em uma gigantesca teia de intriga patrocinada pela polícia e voltada contra (quem mais?) a Liga Espartaquista. Esse esquema é chamado em Workers Vanguard[jornal da Liga Espartaquista] de “Campanha da Grande Mentira” e é usado para “justificar” expulsões na SL e provocar, acusando de policiais, os seus adversários na esquerda. 

Programa e Período 

O presente período na América do Norte é caracterizado por um giro generalizado à direita e pela diminuição da esquerda organizada. Uma grande variedade de organizações ditas “revolucionárias”, notadamente as antes formidáveis correntes maoístas, simplesmente fecharam suas portam e deixaram de existir. Aqueles que sobreviveram, particularmente entre os que se reivindicam trotskistas, giraram significativamente à direita em busca de um espaço no qual atuar. Isto talvez seja mais evidente no caso dos membros do “Secretariado Unificado” da Quarta Internacional (SU), liderado por Ernest Mandel. Quinze anos atrás, jovens mandelistas corriam por Paris e Londres balançando bandeiras da Frente Nacional para a Libertação do Vietnã e cantando os louvores de Ho Chi Min. Não mais. Nos últimos anos, o SU abraçou cada movimento de massas anticomunista, da “Revolução Islâmica” do Aiatolá Khomeini ao restauracionista e pró-capitalista Solidariedade de Lech Walesa. Os mandelistas coroaram sua opção pela socialdemocracia através da adoção formal, em seu Congresso Mundial de 1985, de “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, documento no qual esses ilegítimos pretendentes ao manto da Quarta Internacional propõem o “socialismo democrático” de Karl Kautsky e da Segunda [Internacional]. 

Os revolucionários devem entender o clima político e social no qual eles existem. Devem necessariamente adaptar a forma pela qual se apresentam ao nível existente de consciência de massa e à experiência de seus ouvintes. Mas uma organização revolucionária não pode adaptar o conteúdo de seu programa sem que deixe de ser revolucionária. O programa marxiano representa os interesses históricos do proletariado enquanto um fator consciente na política mundial – uma “classe para si”. Como tal, ele é necessariamente contraposto à existente falsa consciência da classe “em si” na sociedade burguesa.

 

O Problema do Revisionismo


1917 será tanto partidária quanto polêmica. Uma faca cega não tira sangue. Lutar pelo marxismo revolucionário em nosso tempo significa, acima de tudo, combater politicamente aqueles agrupamentos falsamente revolucionários que são a materialização organizativa da ideologia burguesa no seio da classe trabalhadora. A história do movimento marxista é uma de continuo enfrentamento com aquelas correntes que, sob a bandeira de “continuar”, “aprofundar” ou “estender” o marxismo, buscam corroer (ou revisar) os princípios fundamentais do programa revolucionário.

No fundo, o “revisionismo” reflete a pressão da sociedade burguesa sobre aqueles que buscam transformá-la. O denominador comum de todas essas correntes é a resignação “pragmática” à imutabilidade do mundo tal como ele é. A forma de acomodação política proposta varia de acordo com as circunstâncias, mas em geral as tendências revisionistas adicionam pouca coisa de nova – ao contrário, eles tendem a ressuscitar esquemas e impulsos há muito descreditados pela experiência do proletariado.

O revisionismo no movimento marxista raramente se mostra de forma aberta sob todas as suas cores. Ao menos inicialmente, ele se expressa através da terminologia marxista. Rosa Luxemburgo comentou sobre tal fenômeno em uma polêmica (“Reforma ou Revolução”) escrita há quase noventa anos atrás:

Esperar que uma oposição contra o socialismo científico, logo em seu início, se expresse de forma clara, completa, e até a última instância no objetivo de seu verdadeiro conteúdo; esperar que ela negue aberta e abruptamente a base teórica da social democracia [ou seja, o movimento marxista] – equivaleria a menosprezar o poder do socialismo cientifico. Hoje em dia, aquele que deseja fazer-se passar por um socialista e ao mesmo tempo declarar guerra à doutrina marxista (…) deve começar (…) procurando nos próprios ensinamentos de Marx os pontos de apoio para um ataque a este, enquanto apresenta este ataque como um desenvolvimento da doutrina marxista.”

Cuidadosa atenção às questões de programa e teoria e a vigorosa defesa das conquistas políticas do passado não é nem um exercício no sentido do escolasticismo talmúdico, nem uma forma de veneração a ancestrais, como é frequentemente imaginado pelos presunçosos e cínicos defensores do “não-sectarismo”. O que podem parecer ao novato ou ao diletante como divisões sem sentido com base em pequenas nuances de posição, frequentemente representam profundas diferenças em termos de apetite político com enormes implicâncias no futuro. A política é um campo em que uma diferença de um por cento irá muitas vezes se mostrar decisiva.

A “Questão Organizativa”

Desde a origem de nossa tendência temos insistido que a questão organizativa é uma questão política de primeira ordem para um agrupamento revolucionário. Uma tendência revolucionária não precisa estar sempre correta – mas ela precisa sempre ser corrigível. Se ela é ou não corrigível é em função do regime interno que prevalece. Isso não é essencialmente questão de adesão a uma fórmula, mas da realidade pulsante da vida interna da organização. James P. Cannon, o fundador do trotskismo norte-americano, certa vez observou que:

É perfeitamente possível para líderes escorregadios escreverem dez constituições garantindo liberdade de crítica dentro de um partido e então criarem uma atmosfera de terror moral na qual um camarada jovem ou inexperiente não desejará abrir sua boca com medo de ser feito de idiota, pisoteado, ou acusado de algum desvio político que ele na verdade não possui.”
O Partido dos Trabalhadores Socialistas na Segunda Guerra Mundial

Uma vida interna vibrante e democrática dentro de uma organização revolucionária não é só uma opção desejável, mas uma necessidade vital. Ela é simultaneamente o único mecanismo para a correção de erros da liderança e o único ambiente no qual quadros revolucionários podem ser criados. Grupos como a SL em fins dos anos 1970, nos quais a liderança é capaz de possuir um efetivo monopólio de expressão política interna, em nome da “eficiência” (ou seja, estabelecendo um curto-circuito do necessário gasto de tempo e do difícil processo de solucionar disputas políticas através de lutas internas e democráticas) preparam sua própria e inevitável degeneração política.

Os membros de uma organização leninista têm o direito de eleger para posições de liderança aqueles indivíduos em que possuem maior confiança política e de substituí-los caso seja necessário. Ao mesmo tempo, uma organização revolucionária só pode operar na base do estrito centralismo, com os órgãos dirigentes tendo total autoridade para determinar a linha política pública da organização como um todo e para dirigir o trabalho de todos os órgãos subordinados do partido, bem como membros individuais. O direito de dissidência interna ao partido (e particularmente o direito das minorias de lutar para substituir a direção), e a própria consciência política dos membros, representam as únicas garantias contra a degeneração da vanguarda antes da vitória da revolução proletária.

A Necessidade de uma Organização Revolucionária

A vanguarda revolucionária se distingue acima de tudo pelo fato de que ela é a portadora do conhecimento programático historicamente derivado necessário para o avanço da luta dos trabalhadores pelo poder. Isso não é algo que pode ser anunciado ou proclamado, é algo que precisa ser provado através das respostas da organização aos eventos da luta de classes. Os centristas zombam daqueles que checam cuidadosamente o histórico de uma organização ao avaliar suas credenciais revolucionárias. Para eles isso não passa de tarefa de bibliotecário. Mas o melhor teste para saber o que uma organização fará no futuro não é o que ela promete hoje, mas o que ela fez em momentos críticos do passado.

A importância de uma organização revolucionária dentro do movimento dos trabalhadores em períodos de refluxo é essencialmente servir de polo ideológico para o qual recrutar e treinar os quadros necessários para que lidere as inevitáveis batalhas por vir. Uma vanguarda revolucionária não pode ser improvisada do dia para a noite. Ela não irá emergir de forma semi-espontânea no “processo” da luta de classes. Ela precisa ser forjada de forma antecipada dentro do combate político entre o marxismo revolucionário e todo o leque de lideranças equivocadas da classe trabalhadora, de socialdemocratas a falsos trotskistas. É a esse combate que 1917 está dedicada.

O elemento decisivo em toda situação é a força, permanentemente organizada e pré-ordenada por um longo período, que pode avançar quando se julgar que a situação é favorável (e ela é favorável apenas na condição em que tal força exista e esteja repleta de ardor combativo); assim, a tarefa essencial é aquela de dedicar uma atenção sistemática e paciente à formação e desenvolvimento dessa força, tornando-a ainda mais homogênea, compacta, consciente de si mesma.”
Antonio Gramsci, “O Moderno Príncipe”. [Cadernos do Cárcere, Caderno 13 – nota 17]

Arquivo Histórico: Lutas Estudantis Engolem o Brasil

Batalhas Campais Contra a Repressão do Estado Policial
Lutas Estudantis Engolem o Brasil

Este artigo foi primeiramente impresso em inglês em Jovem Spartacus, publicação de juventude da Liga Espartaquista dos Estados Unidos, em Julho/Agosto de 1977. Ele relata a luta dos estudantes brasileiros contra a ditadura militar e aponta a necessidade estratégica de que o movimento rompesse com as ilusões nos setores burgueses democráticos e se aliasse à classe trabalhadora. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011. Publicamos este material como inspiração para as lutas estudantis presentes e futuras e como um manifesto em defesa da aliança operário-estudantil.

Em 25 de junho, em um continente conhecido pela selvageria sem limites de suas muitas ditaduras militares, o regime brasileiro do “presidente” Ernesto Geisel adquiriu reputação pelo seu recurso arbitrário ao terror do Estado policial.

Há muito os queridinhos dos investidores imperialistas e de seus conselheiros acadêmicos, a camarilha dominante dos generais do exército, tem notoriedade ao redor da América Latina pela repressão brutal e tortura sistemática, e pelo “desaparecimento” de oponentes políticos do regime brasileiro. Mas nas semanas recentes, os carrascos brasileiros foram confrontados com uma erupção de descontentamento popular que abalou a sua “lei e ordem” com punho de ferro.

Pela primeira vez desde 1968, um grande levante de protesto estudantil contra o regime militar fez surgir uma série de confrontos corajosos com as brutais forças armadas do Estado. Apesar dos perversos ataques físicos da policia e prisões de massa, as greves estudantis continuaram a desafiar as autoridades, exigindo a soltura dos presos políticos e a concessão de plenos direitos democráticos – principalmente a liberdade de reunião e de expressão.

Primeiros Tremores de Protesto

Os primeiros tremores do atual levante ocorreram em 30 de março, quando estudantes realizaram um ato de rua no centro industrial de São Paulo. Em resposta a um anúncio do governo da redução de 40 por cento da verba para a Universidade de São Paulo, demissões generalizadas entre trabalhadores do campus e da faculdade e um aumento dos preços dos restaurantes universitários, os estudantes tomaram as ruas e distribuíram uma “carta aberta” que em parte declarou:

“A nossa luta não é apenas nossa; é a de toda a população, de todos que lutam contra uma vida difícil, por melhores salários, por mais escolas, por restaurantes universitários, pela liberdade de protestar.” (*) Reimpresso em Informations Ouvrieres, 2 de junho de 1977.

Embora este protesto tenha se mantido geograficamente isolado e politicamente limitado a preocupações locais do campus, ele representou um passo tentador rumo a uma mobilização mais ampla contra o regime Geisel.

Em 28 de abril, a atual onda de protestos começou quando a polícia prendeu oito estudantes e trabalhadores (aparentemente membros de uma organização de esquerda) enquanto eles estavam distribuindo panfletos chamando por um “Dia de Lutas” no primeiro de maio. Protestos rapidamente se alastraram depois que estudantes e membros da oposição sindical dos metalúrgicos de São Paulo lançaram panfletos exigindo a liberdade dos militantes de esquerda presos.

Para o receio de Geisel, o 5 de maio trouxe 10 mil estudantes (apoiados pelos metalúrgicos) para as ruas de São Paulo no que foi o maior protesto de rua desde 1968. O ato de rua – que eletrificou todo o espectro da vida política brasileira – testemunhou a publicação da segunda “Carta Aberta ao Povo Brasileiro”, que num formato mais político exigiu “que as autoridades respeitem a liberdade de protestar e o direito à expressão e à organização de todos os setores oprimidos da população” (*) (citado na Intercontinental Press, 13 de junho).

O desafio aberto às autoridades exibido no 5 de março em São Paulo atingiu o descontentamento generalizado da população trabalhadora brasileira com as contínuas arbitrariedades e repressão do regime. Sob o impacto do colapso do “milagre brasileiro” (que economistas burgueses impressionistas tais como Walt Rostow haviam tomado como prova do “estágio de propulsão” de teorias antimarxistas do desenvolvimento industrial) divisões ficaram aparentes mesmo dentro da camarilha bonapartista dominante. Cada vez mais isolado, Geisel foi forçado a dissolver o Congresso em abril e ficou sob pressão crescente da oposição de mentira do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e de renovadas agitações de descontentamento entre oficiais de baixa patente do exército.

As atividade grevistas se ampliaram, e por volta do “Dia Nacional de Lutas” de 19 de maio, ao menos 10 universidades ficaram fechadas. Atos de rua se espalharam por 16 cidades, incluindo Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Brasília (onde toda a população estudantil de 15.800 entrou em greve).

A polícia em todo o país atacou protestos de uma forma que testemunhas visuais descreveram como a repressão mais imoral desde 1968. 77 mil policiais e tropas foram colocados em alerta em São Paulo enquanto estimados 8 mil estudantes marchavam na escola de medicina da Universidade. Conforme a polícia se aproximou para prender os participantes do protesto, ela bateu em repórteres que estavam, apesar da censura do governo, cobrindo os eventos desde cedo.

Encontro Nacional de Estudantes

Logo depois do “Dia Nacional de Lutas”, “Comitês de Anistia Primeiro de Maio” começaram a se espalhar pelo Brasil conforme estudantes buscavam criar corpos nacionais para avançar a sua luta por direitos democráticos. Em São Paulo foram criados Diretórios Centrais de Estudantes livres. Nas palavras dos organizadores estudantis, estes corpos “são livres porque nós não seguimos as leis impostas pelas autoridades, que não permitem eleições livres diretas e restringem nossa liberdade de protestar e organizar”. Mais de 16 mil dos 30 mil estudantes da Universidade de São Paulo participaram das eleições do Diretório Central.

Enquanto isso, uma tentativa foi feita para reviver a União Nacional dos Estudantes, a organização banida que liderou os protestos estudantis brasileiros durante os anos 1960. Foi publicado um chamado por um “Encontro Nacional” em 4 de junho em Belo Horizonte – a capital do estado industrial de Minas Gerais – com o objetivo de eleger um órgão de liderança delegada em escala nacional.

A repressão policial mais uma vez se intensificou conforme o governo tentou interromper os protestos prendendo os líderes da greve estudantil. No Rio de Janeiro, 30 estudantes suspeitos de serem delegados do Encontro foram presos, interrogados e liberados só depois que já era muito tarde para viajar para Belo Horizonte. Em São Paulo, a polícia não conseguiu prender os delegados, mas de acordo com a revista semanal Veja (8 de junho), “a polícia de São Paulo tem em suas mãos os nomes de um bom número de delegados ao Encontro – as contas serão acertadas no seu retorno a São Paulo” (*). Quando o Encontro foi realizado como planejado, a polícia atacou e prendeu em massa mais de 800 estudantes; 98 serão julgados sob a draconiana Lei de Segurança Nacional.

“SWAT” ao Estilo Brasileiro

O palco foi armado para um grande confronto no segundo “Dia Nacional de Lutas” chamado pelos líderes estudantis para 15 de junho.

A atividade foi centrada em São Paulo, onde 32 mil policiais foram mobilizados – dois mil ocupando uma praça central para onde os protestos foram chamados para a hora do rush no início da noite. O cabeça da “segurança pública”, coronel Erasmo Dias, chegou no lugar e aproveitou a oportunidade para demonstrar as suas mais recentes “novidades” anti-protestos para a imprensa reunida: uma “lanterna” que projeta uma irradiação de alta intensidade capaz de cegar os participantes dos protestos por vários minutos,  latas de gás lacrimogêneo que cabem no bolso (que ele “jocosamente” jogou para os repórteres) e uma coleção de rifles M-16 (muito populares entre o exército brasileiro após a introdução da série de televisão norte-americana “SWAT”).  Balançando descontroladamente o seu revólver Browning de 9 milímetros favorito, o chefe Dias trovejou, “Ninguém vai passar por aqui” (citado em Veja, 22 de junho).

Apesar da vigilância da polícia, um audacioso grupo de estudantes conseguiu realizar uma rápida marcha na praça. Evitando o escrutínio da polícia, aproximadamente 50 estudantes (em uma praça que em geral comporta 500 mil durante a hora do rush no início da noite) começaram a cantar “Liberdade, Liberdade!”. Uma vez começado, o canto foi uma deixa. Dias e os seus soldados entraram em um espanto atordoado quando a praça de repente ganhou vida com pessoas gritando em protesto. O que pareciam ser meros transeuntes e compradores acabaram se mostrando estudantes em protesto esperando a deixa para emergir das filas de ônibus e lanchonetes.

Quando a polícia começou a perseguição com cães treinados e a bater com selvageria em quem protestava com cassetetes e cintos, espectadores torciam para os estudantes, e as ruas ficaram inundadas de confetes jogados das varandas acima. Até mesmo os donos de lojas da vizinhança se solidarizaram com os estudantes. Os cinemas de São Paulo abriram as portas gratuitamente no dia seguinte em gesto de solidariedade.

Checando na imprensa, as greves continuam. Dez universidades estão completamente fechadas, ou por protesto estudantil ou por retaliação da administração. Encontros do corpo estudantil da Universidade de Brasília continuam votando unanimemente pela manutenção da greve – e o reitor fechou a escola por todo o período do recesso de julho. (Além disso, um Terceiro Encontro Nacional de Estudantes havia sido agendado para São Paulo em 21 de junho).

Abaixo Geisel!

Apesar da coragem manifesta dos estudantes radicais, falta ao protesto centrado no campus uma estratégia para a derrubada revolucionária da ditadura Geisel. Faixas proclamando “Trabalhadores e Estudantes, Unam-se” apareceram nos atos de rua, mas prevaleceu muito mais o slogan moralista “Ficar calado é ser cúmplice” (o equivalente brasileiro do ditado da Nova Esquerda “Se você não é parte da solução, você é parte do problema”). As “Cartas Abertas” ao povo brasileiro foram seguidas por uma carta aberta para [a primeira-dama norte-americana] Rosalyn Carter durante a sua estada no país – repleta de apelos pelo fortalecimento dos “direitos humanos” no Brasil. Ainda por cima, The Economist (28 de maio) publicou uma fotografia de estudantes vendando um busto de John Kennedy para “proteger os seus olhos” contra a investida policial – como se Kennedy não tivesse sido responsável por treinar torturadores da América Latina e dado uma mãozinha para ajudar tiranos de meia-tigela e ditadores militares através da sua, assim chamada, “Aliança para o Progresso”.

Além disso, estudantes em protesto por inúmeras ocasiões não apenas uniram forças com o MDB – o que, em si, não está incorreto – mas expressaram ilusões com as suas pretensões democráticas. Com as crescentes fissuras no governo militar, todo mundo no Brasil está pagando tributo à demagogia populista “democrática” – de Geisel em diante. Quando Geisel alterou arbitrariamente a Constituição brasileira em abril passado, de tal forma que a indicação de governadores dos estados estaria firmemente nas mãos dos seus lacaios, ele destruiu as esperanças de políticos do MDB que esperavam chegar ao poder em vários estados na próxima eleição. Consequentemente, o MDB foi levado a uma “oposição” de faz-de-conta a Geisel. As declarações ultra-democráticas do MDB foram tão longe a ponto de chamar por uma “Assembléia Constituinte que seja a síntese da luta pela legalidade democrática e a restauração da dignidade jurídica ao país” (*) (Jornal de Brasil, 19 de junho).

Mas aparte da sua retórica pseudo-democrática, o MDB pode ser contado entre aqueles que se opuseram aos estudantes no momento em que suas lutas estavam para colocar um desafio sério ao regime. O MDB foi formado em 1965 pela junta militar para cumprir o papel de “oposição eleitoral” domada à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) cativa dos militares. O MDB, que incluiu formações tais quais o Partido “Trabalhista” burguês do antigo homem-forte Getúlio Vargas, foi cúmplice nas atividades sanguinárias da ditadura brasileira ao longo do seu reino de terror de treze anos. Os estudantes não devem confiar em nenhum setor da burguesia brasileira para se oporem ao terror militar continuado. Os militares tomaram o poder em 1964 para prevenir o antigo presidente João Goulart de levar adiante a sua proposta de implementar a mínima reforma agrária (muito menos “reformadora” do que aquela realizada pelos governos burgueses na Itália e na Guatemala no período pós-Segunda Guerra), e dar restritos direitos democráticos aos soldados e oficiais não-comissionados. O medo de excitar as massas era tão intenso entre todas as seções da burguesia que não houve oposição significativa ao golpe – apesar do conhecimento de que o governo militar iria monopolizar o poder político em suas mãos. Assim, mesmo do alto da sua “oposição”, os líderes parlamentares do MDB tomaram as dores de denunciar os protestos estudantis em junho (Veja, 22 de junho).

Na época de decadência capitalista, a tendência para regimes bonapartistas – geralmente baseados nos militares – aumenta em países onde a dominação imperialista e a indústria moderna às vezes se colocam lado a lado com condições agrárias semi-feudais. As pretensões populistas “democráticas” dos oficiais de baixa patente e oposicionistas domesticados não são nada além de demagogia de pequenos aspirantes a Bonaparte fora do poder.  Esses são os “oposicionistas” que ficaram parados observando enquanto os generais brasileiros fizeram por um período de treze anos o que a Aliança Anti-comunista Argentina tem feito nos últimos anos: assassinar, torturar e oprimir sem piedade.

Por um Governo Operário e Camponês no Brasil!

No contexto de desenvolvimento desigual e combinado do Brasil, o que começou como um protesto estudantil floresceu e atingiu um reservatório de ódio generalizado pela ditadura: o “milagre brasileiro” se mostrou um fiasco e no seu fim permanecem a mesma pobreza de massa, terror policial e pilhagem imperialista. Os modernos arranha-céus e fábricas tecnologicamente avançadas coexistem com favelas que se alastram e com a miséria abjeta dos peões que trabalham nos latifúndios. Isso fornece uma prova dramática de que na época imperialista, enquanto a burguesia mantiver o poder de Estado, os países atrasados como o Brasil não podem nem atingir o nível dos países industriais desenvolvidos nem elevar qualitativamente o padrão de vida das massas trabalhadoras. Ao mesmo tempo, um levante revolucionário centrado na classe trabalhadora contra os chefes militares iria claramente gerar um apoio popular de massas – incluindo largos setores da pequeno-burguesia urbana.

Em nenhum outro lugar está mais claro, e em nenhum outro lugar é mais importante lançar as bases para ações unitárias entre a classe trabalhadora e os estudantes radicalizados de São Paulo – a clássica cidade explosiva do Brasil. Neste moderno centro industrial ainda não existem esgoto ou saneamento básico para muitos dos seus 11 milhões de habitantes. O trabalhador médio – cujo salário de fome é rapidamente corroído pelos 44% anuais de inflação – perde seis horas por dia simplesmente viajando para ir e voltar do trabalho. O desemprego, que é endêmico entre as massas não-qualificadas, tem crescido agudamente mesmo entre os trabalhadores qualificados, dos quais 5.500 trabalhadores automotivos, assim como eletricitários e operários da construção civil foram colocados recentemente na rua.

A emancipação social das massas brasileiras empobrecidas e horrivelmente oprimidas espera a tomada do poder pelo proletariado e a formação de um governo operário e camponês. Os protestos estudantis de hoje devem ser conectados com o poder estratégico do proletariado nas zonas industriais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

As massas urbanas e rurais devem ser mobilizadas ao redor de um programa revolucionário que inclua as demandas democráticas, inclusive a liberdade imediata de todas as vítimas da repressão de direita, por plenos direitos sindicais, por uma revolução agrária avassaladora, por liberdade de expressão, imprensa e de associação política, e por uma genuína assembléia constituinte baseada no sufrágio universal. A luta pelas liberdades democráticas, a derrubada dos generais brasileiros e a expropriação dos vorazes imperialistas exigem, acima de tudo mais, a construção de um partido trotskista brasileiro, seção de uma Quarta Internacional reconstruída.

Nota da Tradução

(*) Todos os trechos indicados com um asterisco no fim foram traduzidos para o português a partir da versão em inglês do artigo de Jovem Spartacus, e podem não coincidir exatamente com o original em português.

Arquivo Histórico: Por um Trotskismo Negro

Por um Trotskismo Negro 

Por James Robertson e Shirley Stoute

3 de Julho de 1963 

Este artigo foi originalmente publicado como um documento interno da Tendência Revolucionária (TR) do Partido dos Trabalhadores Socialistas norte-americano (SWP) em julho de 1963. Ele se insere no debate teórico sobre qual é a estratégia correta para o movimento negro norte-americano, combatendo as vertentes nacionalistas e também o giro oportunista que era então realizado pelo SWP para adaptar-se às lideranças reformistas do movimento pelos Direitos Civis. O documento coloca a necessidade de o partido lutar pela liderança revolucionária dos trabalhadores negros e promover a sua luta por igualdade numa perspectiva integracionista revolucionária da classe trabalhadora.

Contra o rascunho “Liberdade Já!” do Comitê Político!

Em defesa dos fundamentos programáticos!
Pela construção de uma coluna de quadros trotskistas negros!

“Se acontecer de nós no SWP não encontrarmos o caminho para os negros, então nós seremos um desperdício completo. A revolução permanente e todo o resto seriam somente uma mentira.”
 L. D. Trotsky, citado na Resolução de 1948-50 do SWP sobre a questão negra


I. Introdução Geral

A questão negra foi posta diante do partido para consideração excepcional e com agudeza crescente conforme se alargou o vão nos últimos dez anos entre o nível crescente de luta negra e o nível contínuo qualitativamente menos intenso de atividade sindical em geral. 

1. Teoria Básica: Questão Nacional ou de Raça/Cor? Breitman vs. Kirk, 1954-57

[A referência diz respeito à discussão interna no SWP entre George Breitman e Richard Fraser, cujo pseudônimo era Kirk] 

No nosso entendimento, o que estava em questão na época era um sombreamento de diferença teórica. Breitman via o povo negro como o embrião de uma nação em relação a qual o direito de autodeterminação era reconhecido, mas ainda não reivindicado por ora. Kirk interpretou a questão negra como uma questão racial que, sob condições de catástrofe histórica (por exemplo, a vitória do fascismo) poderia se transformar numa questão nacional. Portanto, ele concordava com o apoio à autodeterminação se ela se tornasse uma exigência na luta dos negros, mas ele assumia que isso só poderia surgir sob condições vastamente alteradas. Ambas as partes concordavam que era inapropriado usar a autodeterminação como um slogan do partido naquele momento.

Os presentes autores concordam essencialmente com a visão de Kirk da época, em particular com a apresentação de 1955, “Pela Concepção Materialista da Questão Negra” (Boletim de discussão do SWP, 30 de agosto de 1955). Nós concordamos ao notar a ausência entre a população negra daquelas qualidades que poderiam criar uma economia política separada, ainda que embrionária ou atrofiada. Essa ausência explica porque o impulso de massa pela liberdade do negro por mais de cem anos tem sido na direção de esmagar as barreiras para uma integração igualitária e plena. Mas integração em que tipo de estrutura social? Obviamente apenas em uma que possa sustentar essa integração. Essa é a contribuição recíproca poderosa da luta dos negros para a luta de classes em geral.

É o mais vulgar impressionismo ver no atual sentimento de setores da população negra de isolacionismo desesperado, que coloca acima do possível ganhar pontos reais de apoio de outros setores da sociedade, como um tipo de processo que transformaria as formas de segregação opressiva em uma barreira protetora, atrás da qual ocorreria a gestação de uma nova nação. Nacionalismo Negro, como ideologia e origem, é um tanto próximo ao sionismo como ele era da virada do século até a segunda guerra mundial. Os enormes guetos negros das cidades do norte são as áreas férteis para essa ideologia entre uma camada de elementos pequeno-burgueses e sem condição de classe que imagina, vicariamente, que áreas residenciais segregadas podem ser o germe para um novo Estado no qual eles vão explorar (“dar emprego para”) os trabalhadores negros. Portanto, ocorre que esses sentimentos separatistas ou tendências entre os negros têm uma fundação e significado muito diferente de uma luta nacional.

Quanto à questão específica da autodeterminação, nós acreditamos que a resolução de 1957 do partido fez uma formulação boa e equilibrada:

“Teoricamente, o profundo crescimento de solidariedade e consciência nacional entre a população negra pode, sob certas condições futuras, dar nascimento a demandas separatistas. Já que populações de minoria têm o direito democrático à autodeterminação, os socialistas seriam obrigados a apoiar tais demandas uma vez que elas refletissem a vontade das massas. No entanto, mesmo sob tais circunstâncias, os socialistas ainda continuariam reivindicando a integração ao invés da separação como a melhor solução da questão racial tanto para os trabalhadores negros como para os brancos. Enquanto defendendo o direito à autodeterminação, eles iriam continuar a chamar por uma aliança da população negra e da classe trabalhadora para gerir uma solução socialista para o problema dos direitos civis dentro do parâmetro nacional existente.”

2. Da Fraqueza Teórica ao Atual Revisionismo

Entretanto, é de importância imediata apontar que essa disputa de fundo está longe da questão central em nossa crítica da Resolução de 1963 do Comitê Político, “Liberdade Já: o Novo Estágio na Luta pela Emancipação dos Negros e as Tarefas do SWP”. Assim, a resolução partidária de 1948-50, intitulada “Libertação do Negro Através do Socialismo Revolucionário”, apesar de conter a perspectiva teórica defendida por Breitman, é um documento solidamente revolucionário em sua intenção e objetivo. O que aconteceu nesse intervalo é simplesmente que a presente maioria do partido transformou a fraqueza teórica prévia no ponto de partida para uma profunda degradação atingida agora no documento de 1963 sobre o papel da classe trabalhadora nos Estados Unidos e também do seu partido marxista revolucionário. Com evidente perda de confiança de uma perspectiva revolucionária por seus autores, a revisão essencial no texto de 1963, não importa quão sofisticada, é a substituição do eixo da luta para oprimido versus opressor no lugar de classe versus classe.

3. O Revisionismo de 1963

A essência do que é “novo” se encontra nas seguintes porções do rascunho de 1963 do Comitê Político:

“Mas aqui, como na África, a liberação do povo negro exige que os negros se organizem a si próprios de forma independente, e controlem sua própria luta, e não permitam que ela seja subordinada a nenhuma outra consideração ou interesse”. 

“Isso significa que os negros devem atingir a máxima unidade de suas forças – em um movimento de amplitude nacional forte e disciplinado ou congresso de organizações, e unidade ideológica baseada em dividir, expor e isolar o gradualismo e outras tendências que emanam de seus supressores brancos. Essa fase do processo está agora começando.” 

“Tendo unido as suas próprias forças, o movimento negro independente irá então provavelmente tomar as tarefas de divisão e aliança. Ele irá buscar formas de rachar a maioria branca de forma que a desvantagem negra de ser uma minoria numérica possa ser compensada por uma divisão e conflito do outro lado” [ênfase adicionada]

E em:

“A aliança geral entre o movimento operário e os lutadores negros pela libertação pode ser preparada e precedida pela cimentação de uma firme unidade de trabalho entre a vanguarda da luta negra e a vanguarda socialista da classe trabalhadora, representada pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas”.

O menor dos pecados nesse esquema do futuro para a luta dos negros é a completa capitulação ao nacionalismo negro. (Para ver isso vivamente, basta reler as citações acima substituindo, por exemplo, “negro” por “argelino” e “branco” por “francês”). Isso é tão sério que o texto não faz nenhum esforço para competir com a compreensível reação dos nacionalistas negros contra a ladainha liberal-pacifista. Certamente é dever dos marxistas lutar para separar elementos militantes de uma ideologia regressiva. [Mas] dizer que a luta dos negros não deve estar subordinada a nenhuma outra consideração é negar o internacionalismo proletário. Toda luta, sem exceção, adquire significado progressivo somente porque ela aproxima direta ou indiretamente a revolução socialista internacionalmente. Qualquer luta que não a luta de classe dos trabalhadores tem por si própria, no máximo, valor indireto. Lenin e os bolcheviques russos foram obrigados a travar uma disputa ideológica em duas frentes para livrar a vanguarda revolucionária de concepções erradas a esse respeito – contra os social-nacionalistas pequeno-burgueses, que viam a luta nacional como tendo um significado histórico progressivo em seus próprios limites; e contra a visão sectária de Rosa Luxemburgo e do partido dos trabalhadores da Polônia que, da premissa correta de que o Estado-nação havia se tornado reacionário no mundo moderno, desenvolveu a conclusão errada e excessivamente simplificada – “contra a autodeterminação (para a Polônia)”. Lenin apontou que um envolvimento independente da classe trabalhadora na luta pela autodeterminação avançava de várias formas importantes a luta de classes e, portanto, adquiria justificação. Similarmente, Trotsky apontou que a defesa da União Soviética era subordinada e parte da revolução proletária internacionalmente e que, diante de um confronto de interesses, os interesses menores da parte (e uma parte degenerada já então) iriam ficar em segundo lugar para os revolucionários.

É digno de nota que a luta dos negros nos Estados Unidos é mais diretamente relacionada com a luta de classes do que qualquer questão essencialmente nacional poderia ser – já que a luta dos negos por liberdade é uma luta de uma casta de cor da classe trabalhadora que é a camada mais explorada nesse país. Portanto, qualquer passo adiante nessa luta imediatamente põe a questão de classe e a necessidade da luta de classes na sua forma mais aguda.

A consequência mais grave do texto proposto pela maioria é o seu corolário necessário de que a maioria consideraria o partido revolucionário dos trabalhadores excluído de mais uma arena de luta. Nos seus documentos sobre a questão cubana de 1961, a maioria deixou claro que, para ela, na revolução cubana, e por implicação na revolução colonial também, o partido revolucionário da classe trabalhadora é, antes da revolução, uma conveniência dispensável. Essa visão agora foi explicitamente generalizada e confirmada pela maioria na seção 13 do seu “Pela Mais Breve Reunificação do Movimento Trotskista”:

“13. Ao longo da estrada de uma revolução começando com simples demandas democráticas e terminando na ruptura das relações de propriedade capitalistas, a luta de guerrilhas conduzida por camponeses sem-terra e forças semiproletárias, sob uma liderança que se torna comprometida a levar adiante a revolução até uma conclusão, pode desempenhar um papel decisivo em minar e precipitar a queda do poder colonial ou semicolonial. Essa é uma das principais lições a serem tiradas da experiência desde a Segunda Guerra Mundial. Ela deve ser conscientemente incorporada à estratégia de construir partidos marxistas revolucionários nos países coloniais.”

Pela sua extensão dessa linha para incluir a questão negra nos Estados Unidos, a maioria do SWP cometeu a mais séria negação aberta já feita de uma perspectiva revolucionária. O que ela fez foi excluir a si própria a priori de lutar pela liderança de uma seção crucial da classe trabalhadora norte-americana, e no lugar disso restringe essa luta a uma hipotética organização paralela da população negra unida, que iria “provavelmente”, um dia, trabalhar com a liderança socialista da classe trabalhadora nos Estados Unidos. Em essência, as conclusões erradas desenvolvidas pela maioria desde a revolução cubana serão agora incorporadas na perspectiva norte-americana do partido na forma de “esperar por um Castro negro”. Assim, a suprema responsabilidade do partido, a revolução norte-americana, está sendo corrompida! 

II. Para a revolução socialista – e as amplas massas 


1. Método do objetivismo versus aproximação analítica 

Ao pesquisar desenvolvimentos atuais, os artigos descritivos e relatórios de Breitman foram valiosos (por exemplo, o seu “Novas Tendências e Novos Sentimentos na Luta dos Negros”, Boletim de Discussão do SWP, Verão de 1961). Entretanto, o material é falho e limitado por sua forma e apresentação em razão de uma análise que é “objetiva”, “sociológica” e “descritiva”. Isto está em contraste com a aproximação analítica que é indicada aos marxistas. Sublinhar essa diferença no método de tratamento é a mais clara distinção entre ver o desenvolvimento como um observador externo – que ganha agora codificação formal no texto da resolução do Comitê Político – ao invés de conceber os desenvolvimentos do ponto de vista do envolvimento na sua solução fundamental. Isso porque para a luta dos negros, essa solução envolve integralmente o partido marxista revolucionário, que está faltando na análise de Breitman dos eventos atuais. 

2. Nosso ponto de partida – a revolução socialista 

Nosso ponto de partida é, por sua vez, a conclusão de que a questão negra está tão profundamente enraizada na estrutura social capitalista norte-americana – regionalmente e nacionalmente – que apenas a destruição das relações de classe existentes e a mudança na dominação de classe – a passagem de poder para as mãos da classe trabalhadora – será suficiente para atacar o coração do racismo e trazer uma solução ao mesmo tempo real e durável. Nossa compreensão das presentes lutas não pode ser “objetiva”. Ao invés disso, ela deve se basear em nada mais do que no critério sobre o que aproxima ou afasta a revolução socialista

Portanto, nós podemos encontrar um ponto de partida bastante suficiente em uma declaração chave da resolução de 1948-50: 

“A necessidade primária e final do movimento negro é a sua unificação com as forças revolucionárias sob a liderança do proletariado. A força guia dessa unificação só pode ser o partido revolucionário.” 

3. Organizações Negras de Massa e o Partido Revolucionário 

Seria extremamente tolo e presunçoso buscar qualquer esquema fechado que detalhasse o caminho a ser percorrido das lutas de hoje até os nossos objetivos finais. Mas há certas qualidades e elementos que, como em todas as lutas sociais, vão se manifestar ao longo do caminho. 
Uma dessas questões é a da aproximação básica com as organizações dos trabalhadores negros e da juventude negra. A regra geral é que na sociedade norte-americana, em que largas seções da população trabalhadora estão saturadas com preconceitos de raça e intolerância sobre as necessidades particulares de outros setores ou extratos, organizações específicas são obrigatórias para vários setores. Essa consideração encontra a sua expressão mais aguda na luta dos negros. Hoje, no despertar do levante das lutas pelos direitos civis, existe a sensação e a necessidade real urgente de organizações amplas de massa da luta dos negros, livres de limitações, fraquezas, hesitações, e às vezes da traição explícita que aflige às maiores competidoras atualmente existentes. Essa necessidade estará conosco por um longo tempo. Participação no trabalho de construção de tal movimento é uma grande responsabilidade para o partido revolucionário. Muito provavelmente, ao longo do caminho, uma combinação complexa e instável de trabalho nos grupos já existentes e a construção de novas organizações estarão envolvidas. Mas enquanto soubermos o que nós temos por objetivo, poderemos nos orientar em meio às complexidades e vicissitudes do processo. 
No fundo, o que os marxistas devem reivindicar, e buscar realizar, é uma organização transitória da luta dos negros que se coloque como uma conexão entre o partido e as amplas massas. O que está envolvido em trabalhar de um ponto de vista revolucionário é não buscar nem um substituto nem um oponente para o partido de vanguarda, mas ao invés disso uma formação unificada formada apenas, ou dominada amplamente, pelos membros negros do partido junto com o maior número de outros militantes que desejem lutar por aquela seção do programa marxista revolucionário lidando com a questão negra. Tal movimento expressa simultaneamente as necessidades especiais da luta dos negros e a sua relação com as lutas amplas – em última instância pelo poder dos trabalhadores. 
Essa aproximação com a questão da opressão específica dos negros decorre das táticas da Internacional Comunista de Lenin e Trotsky. Foi lá que todo o conceito foi trabalhado para relacionar o partido com as organizações de massas de extratos específicos sob condições onde a necessidade havia ficado evidente e havia se tornado importante que os movimentos contribuíssem para a luta de classes proletária e que os seus melhores elementos fossem ganhos para o próprio partido. As organizações militantes de mulheres, ligas revolucionárias da juventude, e associações de sindicalistas radicais são outros exemplos desse formato. 
Entre parêntesis, deve-se notar o quão pouco há em comum entre este aspecto e aquele do rascunho de 1963 do Comitê Político. Assim, mesmo no caso hipotético de que fosse criada de alguma forma uma base social e material suficiente para gerar uma consciência nacional negra de massa, a resposta bolchevique não é simplesmente se afastar e falar sobre facilitar um trabalho comum eventual entre “eles” daquela nacionalidade e “nós” da vanguarda socialista (branca) da classe trabalhadora (branca). Mesmo se um novo Estado – uma república negra separada – fosse criado, os nossos camaradas negros, mesmo nessa reviravolta dificilmente concebível, não se tornariam nada além de uma nova seção de um partido internacional politicamente comum – a Quarta Internacional. E a luta deles pelo socialismo iria continuar a ser também a nossa causa. 
4. Rumo a uma coluna de quadros trotskistas negros 
Para retornar à realidade da luta dos negros tal como ela é e ao SWP como ele é, há um elemento vital sem o qual o programa básico de trabalho permanece um simples pedaço de papel no que diz respeito a um envolvimento real na luta. Esse elemento é a existência, ainda que modesta, de uma seção de membros negros no partido, que funcionem ativamente e politicamente no movimento pela liberdade dos negros. 
Visto deste aspecto, o recente rascunho do Comitê Político é de uma vez só a racionalização e a acomodação à fraqueza das forças negras do nosso partido e mais ainda, vai exacerbar essa fraqueza. O abstencionismo organizativo é escancarado na implicação direta do rascunho de que ele não está realmente preocupado com o SWP porque o movimento negro pode seguir muito bem sem o partido revolucionário da classe trabalhadora e, um dia, a vanguarda negra pode, de uma forma ou de outra, vir na nossa direção. O parágrafo chave do rascunho do Comitê Político citado nesse artigo resume a aura que permeia toda a resolução, coloca o papel do partido como um de relação fraternal entre duas estruturas paralelas: a classe trabalhadora (branca) e a sua vanguarda de um lado, e a população negra e a sua vanguarda do outro. Essa concepção nega a necessidade fundamental de que o partido deva liderar, ou mesmo tentar liderar, a seção decisiva da classe trabalhadora nos Estados Unidos. A resolução dá crédito ao conceito de que “nós não podemos liderar a população negra”. Isso é absolutamente contrário a uma perspectiva revolucionária. A nossa liderança significa que o programa da luta de classes revolucionária está sendo levado adiante por revolucionários no movimento de massas, unidos no partido revolucionário. Assim como sindicalistas não vão se unir ao partido revolucionário se eles não virem este como essencial para vencer as lutas, também os lutadores negros que lutam pela libertação não vão entrar no partido em qualquer instância que não seja a de reconhecer que o único caminho para a sua liberdade é o caminho socialista revolucionário de luta através de uma vanguarda de combate. Os militantes negros não verão nenhuma vantagem de se juntar a um partido que diz, de fato: “Nós não podemos liderar a população negra. Nós somos a vanguarda socialista da classe trabalhadora branca, e nós achamos que é bom ter relações fraternas com a vanguarda de vocês (aquela do movimento pela liberação)”. 
Da mesma forma, uma vez que nós tenhamos recrutado militantes negros para o partido, a linha expressa pelo rascunho do Comitê Político não serve para ajudá-los a desenvolverem-se como quadros trotskistas e a recrutar outros trabalhadores negros na base do nosso programa, mas ao invés disso, serve para desperdiçá-los e liderá-los incorretamente. Quando o partido nega o seu papel de liderança das massas negras, então porque razão nós precisamos de uma coluna de quadros trotskistas negros? A lógica dessa posição significa que não existe espaço para um negro como membro do partido que preste um papel diferente daquele que ele poderia desempenhar sem entrar no partido; ou, como no caso da posição tomada sobre o trabalho no Sul, ser membro do partido iria, na verdade, isolá-lo de importantes áreas de trabalho porque “o partido não é necessário lá”. 
Alguns camaradas, em resposta às críticas feitas aqui, irão dizer que o partido não está desistindo de uma perspectiva revolucionária, mas que está apenas sendo realista e encarando o fato de que a maioria dos nossos membros é branca, e de que nós temos apenas uma pequena e frágil coluna de quadros negros. Nós devemos buscar nos tornar, na realidade, o que nós somos em teoria, ao invés de o contrário – ou seja, não devemos adaptar o nosso programa a uma séria fraqueza de composição. Se nós tomarmos esse caminho de adaptação, o programa do partido, em um processo de degeneração grosseira, passará a se basear em uma seção privilegiada da classe trabalhadora. 
Negros que são ativistas no movimento, como por exemplo, os militantes de tempo integral que fazem trabalho na SNCC [1], estão formulando diariamente conceitos de luta para o movimento. O significado da linha do rascunho do Comitê Político é de que nós não estamos interessados em recrutar essas pessoas para o nosso partido branco porque nós só temos o programa socialista revolucionário para a seção da classe trabalhadora da qual nós somos a vanguarda, e eles (os militantes negros) devem liderar a sua própria luta, apesar de que nós gostaríamos de ter relações fraternais com eles. Esse é o significado do rascunho do Comitê Político. 
Ao conceito de partido branco, deve ser contraposto o conceito de partido revolucionário. Já que se nós formos apenas o primeiro, então os trabalhadores negros não têm lugar no SWP. Há três elementos principais que nós recrutamos para o partido: trabalhadores de minorias, trabalhadores brancos e intelectuais. No processo de trabalho que traga os elementos de minoria para o partido, há considerações especiais que devem fazer referência às suspeitas das populações de minoria (“precaução com os brancos”) no que diz respeito ao pessoal, etc. Entretanto, uma vez que estejamos dentro do partido, somos todos revolucionários. Todos esses elementos estão fundidos na luta para atingir o programa revolucionário entre os militantes que, como um todo, constroem o partido revolucionário. Assim, a “precaução com os brancos” das organizações negras está errada dentro do partido. Uma política interna de “precaução com os brancos” equivale ao paternalismo, à patronagem [2], à criação de uma camada de “negros do partido”, etc. e não tem espaço em um partido bolchevique. 
A declaração de Trotsky, citada no início desse artigo, de que se o SWP não puder encontrar o caminho para os negros então ele será um desperdício completo, encontra o seu paralelo na escolha que agora está diante de nós. Ou a perspectiva revolucionária nos Estados Unidos se tornará desafinada e sem vida, ou então ela ganhará expressão como um objetivo vivo dos pivôs do partido, num contexto de relativa passividade da classe trabalhadora, e de luta negra ativa, rumo ao desenvolvimento de uma coluna de quadros trotskistas negros. 
O principal objetivo desse artigo é mostrar que essa deficiência nas forças não é culpa das condições objetivas – isolamento e coisas do gênero – mas está enraizada em um complexo de falhas políticas e organizativas relacionadas, decorrentes de uma perda de confiança e da orientação rumo à revolução proletária pela maioria do SWP. 
[Em razão das pressões de outros trabalhos sobre os autores, as últimas duas seções deste artigo não foram completadas a tempo de alcançar o prazo final da edição do boletim, mesmo na forma rascunhada das primeiras seções. As seções esperadas para a inclusão eram:

III. O Partido


(1) Aspectos externos e intrapartidários de ganhar e construir uma coluna de quadros negros; (2) Contra a concepção de que “o nosso partido é um partido branco” e contra a patronagem; (3) Diferença qualitativa de uma aproximação necessária dentro e fora do partido; (4) Prioridades do trabalho negro – definindo as camadas recrutáveis pelo partido.

IV. Trabalho de Massas Hoje 


(1) Falhas comuns e essenciais na agitação baseada em “Tropas federais para o Sul” ou “Kennedy – Arme e torne deputados os negros de Birmingham!”; (2) Contra audiências para que sindicatos percam seus certificados como uma forma de combater as Leis Jim Crow [3]; por piquetes de massa para romper a exclusão racial nos sindicatos; (3) Objetivos específicos e balanço do nosso trabalho – Norte e Sul; (4) Apreciação das organizações existente, incluindo a SNCC, os Muçulmanos Negros, etc. 


Ao invés dessas seções desenvolvidas, nós estamos concluindo com algumas poucas notas fragmentárias. É nossa esperança que a próxima Convenção do partido aja para continuar, após a sua realização, uma discussão literária sobre as rápidas mudanças da questão negra. Para uma breve declaração das nossas visões sobre o trabalho de massas, atenção deve ser dirigida à emenda da Tendência Minoritária ao rascunho do Comitê Político sobre a questão norte-americana (no Boletim de Discussão volume 24, número 23, junho de 1963)]. 

1. Os Muçulmanos Negros são, com muitas contradições, primariamente uma organização religiosa. A sua atividade política é primariamente limitada à esfera da propaganda. Eles não têm um programa para a luta que vá de encontro às demandas das massas negras na comunidade de hoje, apesar de que a sua promessa de candidatos políticos iria representar uma certa mudança. Nós os tomamos como exceção à declaração do camarada Kirk de que “a fundação do movimento muçulmano é basicamente o reflexo do lumpemproletariado contra o gradualismo, a traição dos intelectuais e a falta de um movimento sindical”. O movimento muçulmano tem um programa pequeno-burguês – empresários negros, economia negra. Separação nessa base, com esse objetivo, é a sua resposta para a opressão. A sua organização interna é estruturada burocraticamente, com uma pesada drenagem financeira dos membros de base para o enriquecimento do “Mensageiro”. Por outro lado, enquanto eles chamam por todos os níveis da sociedade negra, empresários, trabalhadores, até mesmo socialistas e comunistas enquanto negros, na realidade o apelo é atrativo principalmente para a classe trabalhadora e especialmente para as camadas lumpens, mas eles não são lumpens quando se unem ao movimento. Uma tendência da liderança representada por Malcom X condena a sociedade capitalista norte-americana e mostra-se a favor de Cuba e da China Vermelha em oposição a Chiang Kai-shek. Outra tendência reivindica que assuntos internacionais não lhes interessam e que os problemas dos negros nos Estados Unidos não têm relação com a revolução cubana, etc. É realista esperar que nós possamos ser capazes de ganhar alguns dos seus membros de base e da sua periferia para o programa revolucionário, mas em razão da natureza religiosa, não-orientada para a ação, exigente e burocrática da organização, isso pode ser feito da melhor forma através de discussão e ação comum onde possível, ao invés de estar por dentro dela. 

2. R. Vernon como promotor em “A esquerda radical branca em julgamento” 

Em seu artigo, o camarada Vernon declara: “O absurdo de uma edição do The Militant [jornal do SWP] falar de sindicatos e de unidade entre negros e brancos, ao mesmo tempo em que parece que a própria voz das profundezas do gueto negro é encarada sem entusiasmo”. Isso é uma indicação gritante de que o camarada Vernon não está criticando do ponto de vista revolucionário e não vê a luta pelo socialismo – a luta de classes – como tendo qualquer conexão essencial com a luta dos negros por igualdade. Os escritos atuais de Vernon, “Por que os radicais brancos são incapazes de entender o nacionalismo negro” e “A esquerda radical branca em julgamento” são baseados na premissa, ou na tentativa de provar, que o marxismo e o socialismo revolucionário não têm lugar na luta da seção mais explorada da classe trabalhadora norte-americana, nem tão pouco na revolução colonial. Para Vernon, a construção de um partido revolucionário que busque o caminho da revolução norte-americana é, no mínimo, irrelevante e a solidariedade internacional da classe trabalhadora, insignificante. Para resumir, há pouco nos artigos do camarada Vernon que seja comum ao marxismo. Além do mais, as suas visões estão saturadas com o espírito da justificativa traiçoeira de que “o nosso partido é um partido socialista revolucionário branco” – uma lógica liquidacionista.

Para que nenhum camarada pense que nós estamos sendo demasiadamente duros ao criticar Vernon de ter se rendido teoricamente ao nacionalismo negro e rejeitado o marxismo (com ou sem aspas), deixemos que ponderem sobre a observação de que “O problema do nacionalismo revolucionário nunca foi tratado adequadamente em qualquer movimento marxista ou ‘marxista’ em qualquer lugar. Lenin apenas arranhou a superfície (…)”. De toda a penetrante teoria historicamente verificada da Revolução Permanente, Vernon não diz uma palavra! No entanto, acima de tudo, a teoria de Trotsky lida com “o problema do nacionalismo revolucionário” e lança para ele uma solução. 

Além do mais, mesmo que Lenin “tivesse apenas arranhado a superfície”, nossa sorte teria finalmente mudado. Vernon nos informa que o SWP agora provou que vale a pena: “Ele é o único grupo cuja vida interna pode, e pôde, produzir o documento ‘Por que os radicais brancos são incapazes de entender o nacionalismo negro’ (…)”. Aparentemente, Vernon, o autor do documento em questão, capitulou ao seu próprio ego ainda mais claramente do que ao nacionalismo! 

Nós estamos felizes em aceitar a opinião do camarada Vernon de que a nossa tendência é a mais distante das visões dele dentre todas no partido. 

NOTAS DA TRADUÇÃO


[1] SNCC, Comitê de Coordenação Estudantil Não-violento, foi uma das principais organizações no movimento pelos Direitos Civis norte-americano nos anos 60. Ela surgiu de uma série de reuniões estudantis em uma universidade na Carolina do Norte em abril de 1960. 


[2] Este termo, que se encontra fora de uso, indica no contexto do documento uma relação de hierarquização entre negros e brancos dentro de uma organização política. 

[3] As chamadas “Leis Jim Crow” se referem a uma série de leis adotadas a nível estadual como forma de reverter as conquistas políticas e econômicas obtidas pelos negros no Sul no período imediatamente posterior a guerra civil (conhecido como “Reconstrução”).

Tráfico, Polícia e Burguesia

Tráfico, polícia e burguesia
O Estado burguês reorganiza o tráfico de drogas no Rio de Janeiro

Por Rodolfo Kaleb
Janeiro de 2011

O presente artigo foi originalmente escrito pelo Coletivo Lenin em dezembro de 2010 e publicado em janeiro do ano seguinte. A presente versão possui notas de revisão adicionadas em 2011 pelo Reagrupamento Revolucionário e pequenas correções ortográficas. Encaramos que o mesmo se mantém extremamente atual, dada a continuidade e expansão do projeto burguês aqui debatido, a instalação de novas Unidades de Polícia Pacificadoras e criação de programas que buscam reabilitar a imagem da Polícia Militar e seus órgãos frente à população e aos trabalhadores do Rio de Janeiro – projeto este que já está sendo estendido para outras áreas do país e até mesmo além das fronteiras do Brasil. O artigo não faz uma discussão completa da transformação urbana desagregadora envolvida com a instalação das UPPs, dando ênfase ao aspecto repressivo do controle das populações locais.

Mais de vinte mil homens da polícia e das forças armadas participaram da operação que, no final de 2010, derrotou a organização traficante que dominava as favelas do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. A principal ação do Estado ocorreu em 28 de novembro, quando as forças policiais invadiram e tomaram o controle da região com o uso de tanques e veículos blindados. A operação foi iniciada no dia 22 do mesmo mês, desencadeada após ataques a veículos, supostamente realizados pelos comandos que controlam grande parte do tráfico de drogas da cidade.

Esses ataques a veículos teriam sido motivados pela progressiva instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. As empresas de ônibus, que foram os principais alvos, pararam de rodar pelas áreas atacadas. Isso manteve milhares de trabalhadores sem transporte durante os dias do conflito. Depois de uma semana de ataques e confronto, mais de cem veículos destruídos, meia centena de mortos e mais de trezentos presos, o poder da polícia se estabeleceu nas regiões antes dominadas militarmente pelo comando de traficantes.

Incessantemente, a grande imprensa trabalhou para apresentar os acontecimentos sob um ângulo pasteurizado. A tela da televisão convertia a polícia no órgão supremo da justiça social. Inúmeras vezes os telejornais leram cartinhas de crianças agradecendo ao governador Sérgio Cabral/PMDB ou ao BOPE (Batalhão de Operações Especiais da polícia carioca) por terem “resgatado” suas famílias. Simultaneamente, serviços públicos de energia elétrica e registros eram oferecidos para a população das regiões tomadas, com o objetivo de passar a impressão de que era simplesmente o domínio do comando de traficantes a causa das péssimas condições sociais das favelas. Toda essa cobertura buscou manter estagnada a consciência da classe trabalhadora no morro e no asfalto, ou seja, garantir que a população seguisse enxergando nos policiais os “defensores naturais” da sua segurança.

É verdade que muitos trabalhadores, inclusive grande parte daqueles que moram nas regiões agora ocupadas, apoiaram as ações policias. Isso é uma resposta compreensível, ainda que incorreta, diante da desesperança causada por décadas em que sofreram a opressão dos comandos. Mas não vai demorar para que os proletários que vivem nessas comunidades percebam a armadilha que é o domínio direto de uma polícia que mata uma pessoa a cada 8 horas nessa cidade [1]. As mentiras da imprensa burguesa cumpriram, como dissemos, um papel nesse processo de tomada de territórios pelo aparato estatal. Por isso, é fundamental que os revolucionários desconstruam tal mentira expondo a realidade violenta e corrupta da polícia.

Enquanto entrevistavam repetidamente Sérgio Cabral, que falava sempre em tom de triunfo, as grandes redes de jornalismo claramente evitavam tocar nos pontos sensíveis da operação. Nenhum comentário foi feito sobre as graves denúncias de abusos policiais que aconteceram nas comunidades. Em breve entrevista no Complexo do Alemão, o comandante geral da Polícia Militar, Mario Sérgio Duarte, declarou que “Todas as casas serão revistadas. Beco por beco, buraco por buraco” (Portal Terra). Como o conjunto de favelas tem mais de 30 mil moradias, é interessante notar que não houve pudor algum da PM em declarar que estava atentando diretamente contra as moradias dos trabalhadores.

Inúmeras foram as reclamações de moradores de que suas casas estavam sendo arrombadas, seus pertences revirados e de que estavam sofrendo saques. Milhares de operários eram revistados antes de entrar em suas casas e a opressão policial caiu principalmente em cima dos trabalhadores negros, que são geralmente os “suspeitos preferenciais” das batidas. A opressão policial contra a população das favelas ficou explícita, por exemplo, no caso da atendente Flávia Gomes, de 28 anos (registrado pela revista Época). Ela conta que sua irmã de apenas 14 anos ficou detida por um dia num ônibus da polícia, após ser presa sem nenhuma acusação enquanto caminhava de noite.

A atuação policial deixa clara a demagogia da polícia e da Justiça dos patrões. Em 2008, quando colocaram algemas no banqueiro corrupto Daniel Dantas, o caso causou um rebuliço nacional, com governantes e autoridades se manifestando contra o “excesso” da polícia. Agora, quando milhares de trabalhadores têm suas casas invadidas, são obrigados a fugir de tiros e encaram o terror policial, só o que se ouve dos governos é aplauso para a polícia, nenhum apelo humanitário. Nenhuma rede de televisão comentou o fato de que nem sequer um mandato de busca a domicílio foi expedido. Esta é a Justiça burguesa – “Não há direitos para o pobre. Ao rico, tudo é permitido”.

A polícia assassina e violenta do Rio também é sinônimo de corrupção. Como não é fácil conseguir provas, não vamos falar aqui sobre as conhecidas práticas policiais de venda do espólio de guerra(armas e drogas apreendidas em operações) para organizações traficantes rivais. Falaremos apenas sobre um caso ocorrido durante a operação conjunta das polícias e do exército. A Folha Online mostrou que a Polícia Militar e a Polícia Civil do Rio não registraram nenhuma apreensão, enquanto a Polícia Federal informou ter recolhido quase 40 mil reais e o exército 106 mil reais. Entretanto, apenas pouco mais de 75 mil reais foram entregues na Delegacia da Penha após o fim das ações militares. Para onde terá ido o restante do tesouro do tráfico?

Tudo isso deixa claro que nessa guerra entre comandos traficantes e a polícia, os trabalhadores não tem nenhum lado preferencial. Tanto o comando quanto a corporação são inimigos da população. Não se pode ter nenhuma confiança na polícia diante de operações que matam tantos inocentes e subjugam a população proletária das favelas. Os operários devem ter o direito de se proteger de maneira independente contra todos aqueles que os oprimem. Pelo direito dos trabalhadores de organizarem autodefesas em seus locais de trabalho e moradia![2]

A tomada de territórios por UPPs e milícias

A operação no Complexo de Favelas do Alemão foi um marco no enfraquecimento das organizações de traficantes, sobretudo o Comando Vermelho, que tinha na região o seu principal reduto. A bandeira do Estado brasileiro tremulando no alto do Complexo representou uma mudança no domínio direto sobre o local, onde foi prometida a instalação de uma UPP em 2011. Vendo isso, a esperança de muitos trabalhadores era de que essa ação significasse o fim do tráfico de drogas, que explora muitos jovens nesses bairros pobres com grande concentração operária.

Acontece que o tráfico de drogas é muito maior que qualquer organização traficante. Estimativas indicam que esse tráfico movimenta, no Rio de Janeiro, cerca de 1,4 bilhões de reais por ano [3]. Como qualquer outra mercadoria, existe uma demanda pelas drogas ilícitas e isso não é eliminado pelas UPPs. Nem seria interesse do Estado capitalista eliminar um comércio tão lucrativo quanto o tráfico de drogas. Já o interesse do Estado em desarticular as organizações traficantes tradicionais se mostrou consolidado com a tomada do Complexo do Alemão.

Os comandos traficantes são formações sociais com características mistas de empresa ilegal e poder armado que faz as últimas etapas da distribuição das drogas. Os patrões do negócio, a burguesia do tráfico, quase sempre permanecem nas sombras das suas mansões, enquanto os “gerentes locais” da distribuição são aqueles perseguidos pelo Estado burguês. Apesar dessa aparente repressão, o Estado cria as condições para que o processo de produção e circulação das drogas se mantenha, assim como faz com todas as outras frações da burguesia.

A vista grossa para que as drogas atravessem as fronteiras brasileiras, vindas dos países onde ocorrem as etapas principais de produção industrial, deixa isso claro. Mais ainda, a facilidade com que a polícia e o exército tomaram o Complexo do Alemão, em menos de uma semana, mostra que essa perspectiva sempre esteve ao alcance do Estado burguês, mas que ele permitiu que as organizações traficantes dominassem essas regiões.

Sempre existiu uma colaboração implícita do Estado com o chamado “poder paralelo”, que até hoje nunca chegou a ameaçar o poderio bélico muito superior do Estado burguês. Chama atenção o pouco ou nenhum treinamento militar das organizações traficantes, que não são concorrentes para o BOPE e o Exército. Isso não significa que não existiram conflitos entre polícia e organizações traficantes ao longo de mais de vinte anos no Rio de Janeiro, mas simplesmente mostra que esses conflitos eram por questões pontuais e que o Estado jamais quis realmente destruir os comandos.

A próprias UPPs não acabam com o tráfico, nem eliminam as organizações traficantes, como fica claro para um observador mais atento. Por exemplo, uma busca organizada pela Polícia Militar em dezembro do ano passado, na Cidade de Deus (onde foi instalada uma UPP em fevereiro de 2009), apreendeu 41 papelotes de cocaína (Folha online). Durante um evento sobre segurança pública, o chefe da Casa Civil do governo Cabral, Régis Fichtner, admitiu que as UPPs não tem o objetivo de acabar com o tráfico. Segundo ele, as UPPs buscam acabar com o uso de armamento pesado pelas organizações traficantes (site do governo do estado do Rio de Janeiro). Ou seja, as UPPs tem o objetivo de enfraquecer e desarticular os grupos traficantes tradicionais, como o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando (TC) e o Amigos dos Amigos (ADA). As UPPs, um projeto de Secretaria de Segurança Pública do governo Cabral, são um fenômeno muito recente. A mais antiga das 14 unidades instaladas na cidade foi a da Favela Santa Marta, em novembro de 2008. Mas o enfraquecimento dos comandos traficantes já vinha acontecendo desde bem antes, com o crescimento de um tipo novo de poder armado na cidade – as milícias.

As milícias existem no Rio de Janeiro desde o fim da década de 70, em alguns locais como Rio das Pedras, em Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade. A origem ocorreu quando comerciantes começaram a contratar o serviço de policiais para que não deixassem as suas comunidades serem ocupadas por comandos traficantes ou outros tipos de criminosos. Mas assombra o crescimento das milícias na década de 2000, quando elas se tornaram muito mais do que um “grupo de proteção”. Se até o começo da década as milícias se configuravam como um fenômeno local, limitado a um ponto ou outro da cidade, em dezembro de 2006 já havia conhecimento de seu controle sobre 92 favelas. Em novembro de 2010, quatro anos depois, as milícias controlavam 417 comunidades!

Quando as milícias começaram a se expandir, a imprensa e mesmo o então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, descreviam-nas como uma forma alternativa de segurança, que poderia livrar as comunidades das diversas facções traficantes existentes na cidade. As milícias eram descritas como “autodefesas comunitárias” ou “mal menor que o tráfico”. Mas não levou muito tempo para que apoiar as milícias se tornasse impopular. As milícias tomam comunidades fazendo uso de violência bem equipada e depois sustentam sua presença através da exigência de pagamentos dos trabalhadores e pequenos comerciantes para manter sua “segurança” (sendo que os próprios milicianos são a ameaça).

Em muitas comunidades, os milicianos impõem toque de recolher e outras regras para manter os trabalhadores sob controle. A pena para o descumprimento de suas leis são castigos violentos, inclusive há registros de casos de extermínio. As milícias também fazem questão de combater qualquer expressão de resistência política. Em 2007, o advogado e militante da Frente Internacionalista dos Sem-teto, André de Paula, foi ameaçado de morte e expulso de uma ocupação sem-teto em Campo Grande, numa região dominada pela milícia, por realizar trabalho político com os moradores.

As milícias são a melhor expressão de crime organizado na história do Rio de Janeiro. Elas são compostas por policiais, ex-policiais, bombeiros e outros agentes relacionados com o Estado burguês. Criam relações com o poder político do Estado para garantirem sua estabilidade. A principal facção miliciana conhecida é a Liga da Justiça, liderada pelo ex-vereador e policial Jerominho, que usa o apelido de Batman. Também o então deputado estadual Natalino Guimarães era líder do grupo miliciano. Ambos foram importantes apoios políticos de Sérgio Cabral em sua eleição para governador. Tendo seus redutos eleitorais na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde hoje se sabe que também comandavam a Liga da Justiça, contribuíram muito para que Cabral tivesse uma vitória esmagadora na região em 2006.

Diferente do que se imagina, as milícias não acabam com o tráfico de drogas – elas o tomam. A milícia destrói as organizações traficantes tradicionais e se torna a nova “gerente” do tráfico em todas as regiões tomadas. Na verdade, elas também passam a administrar outros negócios ainda mais lucrativos. Na maioria das favelas tomadas, as milícias controlam não apenas o tráfico de drogas como também exploram serviços de prostituição, venda de gás, transporte alternativo e fornecimento de televisão à cabo. A força de trabalho para todos esses serviços não pode ser outra que não a dos trabalhadores das favelas. É claro que a exploração largamente superior imposta à comunidade dominada exige, da parte dos milicianos, uma repressão maior do que aquela das antigas organizações traficantes, coisa que policiais e ex-policiais sabem fazer muito bem.

Um misto de poder armado paraestatal com uma empresa-leque, atuante em vários ramos da economia, as milícias tem relações íntimas com o Estado burguês. Além das lideranças políticas citadas, que tinham relações diretas com o governador Sérgio Cabral (um vídeo na internet mostra Cabral, Jerominho e Natalino abraçados durante um comício e o futuro governador dizendo que os três são amigos), há registros de casos em que a polícia ajudou a milícia a se estabelecer em comunidades. Foi o caso da favela Cidade Alta, no bairro Cordovil, em 2007, em que os milicianos tiveram apoio de um caveirão (carro blindado) da PM para tomar de assalto a comunidade. Qual é o significado de tudo isso?

Muito antes de as UPPs aparecerem, já havia uma força com relações íntimas com o Estado, formada por agentes ou ex-agentes do Estado, destruindo as organizações traficantes tradicionais e estabelecendo seus regimes nas comunidades com o apoio da polícia. Isso significa que o enfraquecimento das organizações traficantes antigas tem na UPPs apenas um dos seus pontos de apoio. O outro e principal elemento é a expansão das milícias, que ocorre, não com a displicência, mas com o apoio do Estado burguês! Ainda que haja prisões de alguns dos líderes mais conhecidos das organizações milicianas, ninguém duvida que eles continuam, dentro ou fora das prisões, comandando seus negócios e tirando deles os lucros. As características das milícias, suas relações políticas com o Estado, o papel que elas cumprem – tudo isso forma um padrão que dá a entender que as milícias cumprem as tarefas ilegais (a parte mais suja do serviço) que o Estado burguês não pode fazer à luz do dia, mas que apoia e garante o sucesso. Os objetivos da expansão das milícias é garantir que quem controla o tráfico de drogas e as comunidades seja muito mais próximo do Estado do que eram as antigas organizações traficantes.

Em 2008, as milícias começaram a chamar atenção da imprensa. Foi o ano em que ocorreram as prisões de Jerominho e Natalino. No mesmo ano, jornalistas que tentavam fazer uma matéria sobre as milícias foram torturados pelos milicianos e foi criada a CPI das milícias, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Esses fatos geraram repercussão internacional e é nesse momento que começa a se falar de UPPs. Quando a frente ilegal da tomada de territórios começa a chamar atenção demais (inclusive em suas relações com o Estado) é que a frente legal de uma operação se torna necessária.

Já há suspeitas de que uma milícia esteja se organizando no Complexo do Alemão, poucas semanas depois de ele ter sido tomado pelas forças policiais. Isso não é nenhuma surpresa: as UPPs cumprem um papel não menos assassino que as milícias, mas sob o pano da “legalidade”. Se o tráfico nesses locais foi temporariamente interrompido, isso só aumenta a demanda para o tráfico controlado pelas milícias, e não vai demorar para que se revelem quem serão os novos “gerentes locais” do tráfico de drogas no Complexo do Alemão.

A armadilha da legalidade das UPPs não pode continuar enganando os trabalhadores que acham que o Estado combate o tráfico, quando esse mesmo Estado impõe não apenas o tráfico mas uma opressão tirânica sobre a vida dos proletários, seja sob a forma legal da polícia ou a forma ilegal das milícias. Se o governador diz que sua gestão está comprometida em combater as milícias (compromisso para o qual ele nunca moveu um músculo), nós o desafiamos a expor os seus “segredos de Estado”. Pela quebra de todo sigilo econômico, telefônico e de internet da polícia e dos líderes do poder executivo! Essas informações devem ser colocadas à disposição dos movimentos sociais para desmascarar a cumplicidade do Estado com as milícias.

Uma polêmica mais do que necessária

A esquerda proferiu inúmeras respostas aos eventos no Rio de Janeiro. Dentre os grupos cuja “estratégia” é reformar o capitalismo (ainda que seus membros de base sejam convencidos do contrário) é importante destacar o Enlace, corrente interna do PSOL, cujo maior símbolo do reformismo é o deputado Marcelo Freixo, que ganhou grande reconhecimento ao presidir a CPI das milícias. [4] Freixo deixou claro em pronunciamento à Assembleia Legislativa do Rio no fim de novembro, que sua perspectiva é reformar a polícia e eliminar sua corrupção, e que deseja que haja UPPs em todas as regiões da cidade! (Por que as UPPs não chegam para todos?, site do deputado). Em entrevista no começo de dezembro, ele mostrou que é muito perspicaz em rastrear a origem tanto da violência policial, quanto miliciana contra os trabalhadores pobres:

A nossa polícia historicamente serve a uma elite política. Ela foi construída assim: barata e violenta porque serve para manutenção da relação do Estado com esses territórios desassistidos de direitos. Como a nossa elite política é clientelista e corrupta, ela precisa de uma polícia assim. Essa relação faz nascer a milícia no Rio. As milícias são fruto desse papel histórico que foi atribuído à polícia frente às populações mais pobres. Boa parte da zona oeste e da zona norte da cidade são hoje controladas por esses grupos. É o nosso instrumento de apartheid.”(Exame, 3 de dezembro de 2010).

Apesar disso, Freixo não tem problemas em afirmar suas boas relações com o secretário de segurança José Mariano Beltrame, o “homem honesto” que conduz a chacina que são as operações policiais nas favelas cariocas.

“Eu sou oposição política ao governador. No entanto, no debate da Segurança Pública não gosto de me posicionar como situação ou oposição. A nossa responsabilidade com a sociedade está acima dessas diferenças políticas. Por isso, eu fico muito mais confortável em falar do Beltrame que do Sérgio Cabral. O Beltrame leva uma grande vantagem porque sua honestidade o faz uma pessoa muito melhor do que os últimos secretários que existiram antes dele. Tenho uma relação muito sincera com ele. Com divergências, mas muito respeito.”

Em outras palavras, quando é uma questão de segurança pública, não existe oposição ou situação. De fato, na raiz, Marcelo Freixo nada tem para se opor a Sérgio Cabral – ambos defendem a continuidade de uma polícia racista, responsável pela repressão aos trabalhadores. A responsabilidade de Freixo com a (manutenção da) sociedade (burguesa) está acima de qualquer deiferença política. Enquanto Freixo alimenta as ilusões de que tal sociedade pode ser reformada, Cabral é uma face muito mais cínica da mesma moeda da manutenção do Estado burguês.

Não é de espantar a posição do Enlace/PSOL nesses ataques, já que, na prática, a corrente não defende nada mais do que a idéia utópica de gerir o Estado dos patrões a serviço dos trabalhadores. Na verdade, a polícia é irreformável, assim como o próprio sistema capitalista. O que Freixo vê como uma coisa que pode ser mudada – o reconhecido caráter racista, assassino e corrupto da polícia – são as suas caracteristicas intrísecas!

A polícia é um grupo de homens armados colocados à disposição do Estado dos patrões (coisa que uma mudança eleitoral não altera) e que não cumpre nenhuma função social que não seja a de manter a ordem capitalista e reprimir os movimentos sociais e setores mais oprimidos da classe trabalhadora com uso da força que for necessária. Os policiais não são trabalhadores explorados, mas agentes de repressão armada da burguesia. A segurança real dos trabalhadores é ignorada pela polícia enquanto a das empresas e bancos é garantida a todo custo.

A tentativa eleitoral de modificar a natureza fundamental do Estado burguês ganhando eleições, que constitui toda a “estratégia” do PSOL, e de Marcelo Freixo em especial, nada mais é que uma quimera. Na verdade, o Estado é um braço político, ideológico e militar do poder burguês para garantir o funcionamento da produção que visa o lucro. O funcionamento do capitalismo pressupõe, além de condições econômicas constantes (como o desemprego), a necessidade de ter uma força armada para reprimir qualquer tentativa das classes exploradas de se revoltarem. Por isso, a defesa da propriedade privada é o papel central das armas do Estado capitalista.

Enquanto Freixo tenta, com sua lógica de “reformar o capitalismo”, ensinar um cachorro raivoso a se sentar à mesa, ele na verdade contribui com os inimigos dos trabalhadores ao prestar apoio à instalação das UPPs. Em seu citado pronunciamento, ele questiona: “Por que não há UPPs para todos?” numa tentativa de demonstrar a conhecida ligação de Cabral com líderes políticos das milícias. Mas a visão neutra que Freixo faz da polícia, equivale a entregar a cabeça da população proletária aos seus maiores carrascos.

O deputado sonha em tornar a polícia um aparato que possa servir aos trabalhadores, enquanto ela permanece sendo firmemente subordinada a uma “elite política clientelista e corrupta”, ou seja, uma força armada a serviço da burguesia e comandada pelos seus “opositores políticos” (ou nem tanto), como Cabral. O que Freixo não vê é que essa é a própria razão de ser da polícia – intimamente ligada às necessidades do capitalismo, e não uma condição temporária em que Cabral ou outros políticos colocaram os policiais. Essa posição pró-UPP revela a total ausência de qualquer perspectiva revolucionária no PSOL, que defende a instalação de mais unidades de repressão contra os trabalhadores. Num futuro próximo, as UPPs irão com certeza combater qualquer resistência ou luta dos proletários, que terão unidades de repressão instaladas em seus locais de moradia.

Os trabalhadores são aliados da “base da polícia”?

Com a articulação da imprensa burguesa, como demonstramos, não foram poucas as ilusões com a polícia criadas entre os próprios trabalhadores moradores das favelas. A posição dos reformistas serve para criar muita confusão e desarmar a consciência dos oprimidos. Já uma posição única na esquerda [brasileira] é a do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Ao redor de uma declaração aparentemente revolucionária, defendendo o direito de os trabalhadores organizarem autodefesas, o partido defendeu através de seu principal dirigente, Eduardo Almeida Neto, a unificação da polícia (fusão da polícia civil e militar) num corpo que seja “controlado pelos trabalhadores”:

“A nova polícia teria que se organizar de forma radicalmente diferente da atual. Deve desaparecer a diferença entre polícia civil e militar, que não serve de nada, e assegurar todas as liberdades sindicais e políticas a seus participantes. É preciso também que seus comandantes ou delegados sejam eleitos pela população da região onde atuam. Ao contrário dos que se escandalizem com a proposta, a eleição de delegados locais é realizada em muitos países, inclusive nos EUA. É uma forma democrática de comprometer esses comandantes com a população local.”(site do PSTU).

Não nos escandalizamos nem um pouco pela proposta. Ela é mais que comum entre muitos reformistas que acreditam na possibilidade de criar uma “polícia para defender a população”. Ao mesmo tempo, sabemos que essa proposta é incapaz de mudar o caráter real da organização policial. Não precisamos ir muito longe para conseguir exemplos – o próprio Eduardo Almeida nos fornece o da “democrática” polícia americana, recordista de repressão à população negra e aos imigrantes. A palavra de ordem de uma polícia “eleita democraticamente” não é usada aqui para expor o caráter burguês e a hierarquia do aparato, mas é uma proposta real, como o exemplo americano de Almeida mostra, para gerir o capitalismo.

Além de apresentar essa perspectiva desoladora e dizer que o Estado burguês pode ter algum tipo de “compromisso” com a classe trabalhadora local, o PSTU reafirma sua famosa posição de defender todos os “direitos sindicais” dos policiais. Essa posição não é nova. Ela vem sendo defendida pelo PSTU de maneira mais clara desde a formação da Conlutas (mas é defendida pelo partido desde muito antes, como na greve policial nacional de 1997). Discutimos essa questão anteriormente no artigo Porque não apoiamos a greve da polícia(agosto de 2007), disponível [em coletivolenin.org]. A presença de “sindicatos policiais” na central dirigida pelo PSTU atualmente, a CSP-Conlutas, assim como o uso do slogan “Você aí fardado, também é explorado!” pelo partido, em atos e protestos, é justificado com dois argumentos.

O primeiro é de que os “trabalhadores” policiais de base têm o direito de reivindicarem melhores condições de trabalho e melhores salários, e que isso, inclusive, contribui para a luta dos demais trabalhadores. Enquanto reconhece que a polícia é usada para reprimir a população, o PSTU afirma que os policiais “não conhecem o seu papel” e tentam disputar sua consciência como se fosse a de um operário. O segundo argumento é o da necessidade fundamental de apoiar as lutas da “base da policia” para talvez rachá-la numa situação revolucionária futura.

Antes de tudo, o slogan usado pelo PSTU é puro oportunismo. Os policiais não são explorados pelo capitalismo pelo simples fato de não cumprirem nenhuma função socialmente necessária. Os policiais não produzem e nem realizam nenhuma tarefa indispensável para a produção, como é o caso dos serviços de transporte, comunicação, saúde ou educação. Não há na polícia nenhum papel progressivo, nada que seja útil para garantir o funcionamento da vida dos trabalhadores. A sua função exclusiva (por mais que sua base seja mal paga) é ser um corpo repressivo que garante o papel subjugado dos proletários na sociedade. Isso é uma questão objetiva, ou seja, independe das ilusões dos “policiais de base”.

Não acreditamos que as ilusões da “base da polícia” sejam grande coisa. Na verdade, quando um membro originário da classe trabalhadora decide se tornar um policial, na maioria das vezes operou-se nele uma transformação reacionária de consciência. Mas mesmo que os policias achassem que estão aí para distribuir flores para a população, seria tarefa dos marxistas apontarem a realidade e expor o seu papel claramente repressivo e anti-operário. O policial não é um trabalhador, é um membro do aparato repressor da burguesia colocado diariamente contra os verdadeiros trabalhadores.

Daí vem o fato de que o “sindicalismo policial” e as greves da base da polícia (contra suas instâncias superiores) por “melhores condições de trabalho e salários” não contribuem em nada para a luta dos trabalhadores, muito pelo contrário. Melhores “condições de trabalho” para os policiais significa melhores condições de repressão contra os trabalhadores, significa mais armas, caveirões e munição para serem usados contra os proletários. Melhor salário para os policiais significa aumentar a pressão material sobre os trabalhadores para integrarem a polícia, ou seja, aumentar o número de trabalhadores dispostos a integrar o aparato repressivo do Estado burguês e até mesmo aumentar o seu contingente policial. Por isso, qualquer marxista autêntico só pode rechaçar o “sindicalismo policial”, pois as manifestações corporativas dos policiais, se vitoriosas, significariam uma derrota e um passo atrás para a luta dos trabalhadores. Os trabalhadores devem limpar sua própria casa – “sindicatos policiais” fora das centrais! Nenhum apoio a greves policiais por “melhores condições”!

Já o discurso “estratégico” do PSTU sobre rachar a polícia, não resiste à menor investigação histórica. Primeiro, de nada vale tentar rachar a polícia virando as costas para os interesses dos oprimidos. Depois, não se conhece nenhuma situação revolucionária em que a polícia tenha apresentado um racha para apoiar a classe trabalhadora. Pelo contrario, abolir a polícia é, na maioria das vezes, a ação dos trabalhadores assim que começam a se organizar por seus objetivos históricos. Isso é muito coerente com a composição da polícia – profissionais de carreira que são ideologicamente homogeneizados pelo treinamento militar. O que é comum são rachas das patentes baixas do exército, principalmente em épocas de guerra, em que os reservistas são recrutados e se tornam maioria das forças armadas. Estes sim, trabalhadores recrutados completamente contra a sua vontade e que não passaram pela “lavagem cerebral” do militarismo burguês, tem chances reais de serem atraídos para a luta dos trabalhadores.

Independente disso, qualquer racha nos instrumentos do Estado burguês, seja no exército ou na polícia, não deve ser conseguido apoiando as reivindicações corporativas desses setores. Pelo contrário, devemos expor claramente qual é o seu papel e defender o fim de sua repressão e ataque contra os trabalhadores – essa é a maneira revolucionária de causar rachas no aparato burguês. As reivindicações que devem ser apoiadas, nessa perspectiva, são aquelas com conteúdo político que indicam o papel repressor do aparato, não as reivindicações para “melhorar” os órgãos armados do poder burguês (veja, por exemplo, o texto Militar é Preso por ser Homossexual, em nosso site).

Como bom centrista vacilante, o PSTU abandona o aspecto aparentemente revolucionário de seu programa, no papel, para na prática pegar carona na concepção dos reformistas e contribuir com a ideologia dos inimigos dos operários. Suas palavras de ordem e “estratégia” falham em expor a polícia diante da classe operária e, ao invés disso, criam confiança na “base da polícia” ao igualar ela com os trabalhadores. O que é necessário é mostrar o caminho da revolução no combate a tudo que a polícia representa. O PSTU, entretanto, parece buscar uma possibilidade real de reformar o aparato burguês (não nas UPPs, mas nos “policiais de base”) e contribui para semear a mesma concepção de adaptação ao capitalismo que seus companheiros de viagem do PSOL.

Uma vez mais a questão negra

A faceta mais marcante da conjuntura de derrotas da classe trabalhadora nessa década pôde ser vista com as operações no Rio de Janeiro. Foi total a falta de reação do proletariado, sobretudo do proletariado negro (o mais atingido), e dos movimentos sociais em geral, diante do conflito entre as organizações traficantes e a polícia. Enquanto os principais movimentos sociais do país são mantidos congelados pela direção traidora do PT de Dilma e Lula, cúmplices do governo de Cabral, a esmagadora maioria dos proletários, inclusive os seus setores mais explorados, são colocados para receber passivamente os golpes da violência burguesa. Enquanto CUT, MST e os movimentos negros e populares estiverem sob influência do governo, pouco poderá ser feito para a resistência dos trabalhadores. Muitos esperam que os setores da chamada “oposição de esquerda” possam apresentar uma alternativa, mas como vimos, eles não só falharam em apresentar uma resposta coerente, como também acabam fazendo o jogo dos maiores inimigos da nossa classe.

Enquanto o PT destaca o exército brasileiro para criar nas favelas cariocas a mesma “paz” que ele já deu ao Haiti, o PSOL, no fundo de seu grito por uma polícia melhor, deseja “UPP para todos” e aborta qualquer possibilidade de expressão independente da classe trabalhadora. Já o PSTU, cheio de ilusões e apego aos candidatos a reformadores do capitalismo, também luta por “uma polícia com melhores condições de trabalho”. O que falta para que esses caras-de-pau defendam “mais tropas” ou “melhores condições de trabalho para os soldados” no Haiti?

Ao vacilarem e semearem a ilusão na classe, esses partidos desmoralizam a esquerda diante dos trabalhadores mais oprimidos, que sabem quem são seus inimigos. Esses partidos, no entanto, tem algo em comum. Ambos representam a total ausência de uma estratégia revolucionária capaz de pôr fim ao sofrimento dos trabalhadores. A maior expressão disso se coloca na questão da opressão aos trabalhadores negros, os mais atingidos nesses ataques e os mais perseguidos desde sempre pelo tráfico, polícia e milícias no Rio de Janeiro.

A polícia do Rio de Janeiro realizou inúmeras invasões a moradias, agressões físicas e agressões psicológicas contra os trabalhadores nessa operação. É a mesma polícia que mata duas vezes mais negros do que pessoas de outras etnias, de acordo com estudo do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento]. O foco da polícia em “combater o tráfico” onde estão os trabalhadores negros, mas não o local estratégico de alguém que estivesse realmente interessado em acabar com o tráfico (o transporte da droga na fronteira), tem razões na natureza do capitalismo brasileiro.

No Brasil, os trabalhadores negros constituem uma casta super-explorada da classe operária. A manutenção de aparelhos racistas na atuação e ideologia da polícia em todos os momentos da nossa história e a colocação, consciente por parte do Estado, da população negra em condições precárias de educação, moradia e emprego cumpre um papel. Eles permitiram que o capitalismo brasileiro obtivesse aí um exército industrial sem qualificação tanto para os empregos baratos e sem necessidade de formação profissional, assim como para o contingente de desempregados, fundamental para estar à disposição do mercado capitalista.

É preciso combater na raiz o rumo que o capitalismo quer dar à vida da classe trabalhadora. Emprego pleno para todos os trabalhadores! Devemos lutar para reduzir a jornada de trabalho sem redução de salário para gerar novas vagas até acabar com o desemprego, que atinge principalmente os operários negros. Fim do vestibular e qualificação para todos os proletários! Se for necessário, o lucro dos empresários deve ser usado para financiar a educação até que haja acesso global ao ensino superior.

A ação preferencial predatória da polícia dentro das favelas é instrumento fundamental nas mãos do Estado burguês para garantir com sangue que o proletariado negro nem mesmo ouse pensar em lutar contra as condições destacadamente inferiores de vida na qual é mantido. Uma dessas condições mantidas diretamente pelos patrões é o salário consideravelmente mais baixo que recebem os negros, mesmo aqueles que atuam em postos iguais aos de operários de outras etnias. De acordo com estudo citado pela Folha, trabalhadores negros recebem bem menos que trabalhadores brancos atuando na mesma função de trabalho, na mesma cidade. “Pesquisa divulgada hoje pela Fundação Seade mostra que, na mesma função, homens negros (R$ 639) e mulheres (R$ 652) recebem salários até 47,8% inferiores aos pagos para trabalhadores brancos do sexo masculino (R$ 1.236)” (Folha online). Exigimos salário igual para trabalho igual! – deve-se nivelar pelo salário mais alto até eliminar a diferença entre trabalhadores homens e mulheres, negros e brancos, em todas as empresas públicas e privadas.

Pela sua dependência estrutural histórica com o capitalismo, o racismo praticado pelo Estado não pode ser combatido como uma questão em separado, mas deve ser combatido no cerne das lutas operárias, onde está colocada a necessidade de expor o caráter intrinsecamente racista do Estado e seu objetivo de prover ao mercado capitalista mão de obra sem qualificação e historicamente reprimida em suas lutas. No livreto A Escravidão é a Chave da História do Brasil (revista Revolução Permanente número 3), analisamos como a questão da opressão negra foi historicamente subestimada e negligenciada pelas organizações da esquerda brasileira. Isso se demonstra de maneira trágica na inação das comunidades diante dos ataques e operações de novembro.

O potencial revolucionário dos trabalhadores negros e sua posição em setores industriais de base é estratégico para a revolução brasileira. Por isso, é fundamental para uma organização revolucionária estar inserida nesses setores e combater o racismo do Estado dos patrões em todas as oportunidades, com o intuito de recrutar trabalhadores negros e ter forte presença nos seus locais de trabalho e moradia. Também deve ser travado intenso combate contra as condições de trabalho inferiores dos negros e o desemprego maciço que os atinge. Essas questões devem ser tratadas no cotidiano do movimento dos trabalhadores e da juventude. Sem isso, o socialismo será apenas uma fantasia escrita num papel. Combater o racismo no movimento estudantil e sindical! O racismo só serve ao inimigo comum de todos os trabalhadores.

Hoje nas favelas e nos locais de trabalho dos setores mais explorados da classe operária, existe não uma crise, mas um completo vácuo de lideranças combativas, quanto menos uma liderança revolucionária. Os reformistas, ao negarem a necessidade de se enraizarem nos setores mais explorados da classe trabalhadora, que acreditamos serem os trabalhadores negros e as mulheres no Brasil, entregam este setor fundamental de bandeja para o conformismo de igrejas e associações de moradores, além do assistencialismo do Estado burguês. É preciso dizer que, mesmo que houvesse vontade, seria um pouco difícil para os que são amigos das UPPs e da “base da polícia” se inserirem entre os trabalhadores negros, que tem na polícia o seu maior inimigo.

Sempre dissemos que nosso Coletivo não é um fim em si mesmo. Nosso papel é contribuir para a construção de um partido revolucionário de trabalhadores capaz de combater de maneira coerente as ilusões com o Estado burguês em todas as lutas. A tarefa é árdua com a difícil correlação de forças em que vivemos, atrapalhada ainda pelos auxiliares voluntários da ideologia burguesa, disfarçados de “partidos de esquerda”. Ainda assim, é preciso dar desde já os primeiros passos.

Um partido revolucionário deve ser construído entre os setores mais explorados do proletariado brasileiro, principalmente as mulheres e negros. Esse partido deve lutar para concretizar as demandas históricas dos trabalhadores. Grande parte delas só pode ser conseguida com a destruição do Estado que nos oprime diariamente. É por isso que levantamos inúmeras bandeiras que expõem o caráter capitalista do Estado, mostrando a necessidade de destruí-lo e de construir o poder de todos os explorados e oprimidos. Por um Partido Revolucionário de Trabalhadores!

Notas de revisão

[1]Na edição número 67 do jornal A Nova Democracia, que possui correspondentes atuando em diversas favelas e morros cariocas, existe um apanhando de denúncias de abusos policiais publicado sob o nome Moradores de favelas denunciam crimes das UPPs. Além desses casos, ocorreram protestos no Complexo do Alemão durante o mês de setembro, após ações do Exército, como relata a matéria da Folha Moradores do Alemão organizam ato após conflito com Exército(de 05 de setembro).

[2]Para um exemplo concreto de autodefesa operária, confira o artigo Regionaldo UAW Organiza Autodefesa Negra e Operária, disponível no blog do Reagrupamento Revolucionário.

[3]De acordo com notícia publicada no PortalD24am em primeiro de dezembro deste ano, investigações da Polícia Civil indicam que apenas Fernandinho Beira-mar, enquanto parte do alto escalão do Comando Vermelho, movimentou cerca de R$62 bilhões no Complexo do Alemão durante seus anos de atividade fora da prisão.

[4]Freixo, apesar de não ser membro do Enlace, é um parlamentar do PSOL que recebe constantemente o apoio político dessa corrente, que tem votado nele em todas as últimas eleições burguesas e promove a sua imagem nos movimento sociais.

Reagrupamento Revolucionário n. 02

Nessa página é possível baixar em formato PDF a revista Reagrupamento Revolucionário n. 02 (verão de 2011-2012) ou ler os artigos dela online.

Reagrupamento Revolucionário n. 02
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Lenin e o Partido de Vanguarda (8)

Em Defesa do Centralismo Democrático

Um Discurso de James Robertson
 

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O discurso abaixo foi feito numa conferência do Grupo Spartacus da Alemanha Ocidental (Bolchevique-Leninista) em fevereiro de 1973.


O Spartacus/BL tinha se originado de um racha em dezembro de 1972 dos Internationale Kommunisten Deutschlands (IKD). Posteriormente ele sofreu debilidades e se fundiu novamente com o IKD no começo de 1974, para formar a Spartacusbund. O núcleo original da seção alemã da Tendência Espartaquista Internacional foi constituído por várias forças oposicionistas de esquerda originadas na Spartacusbund.

O texto foi publicado na edição alemã da revista Spartacist, Número 1 (primavera de 1974), e (integralmente) em inglês no livro da Liga Espartaquista Lenin e o Partido de Vanguarda (1978, 1997). Para essa versão foi tomada a transcrição contemporânea do discurso gravado, com correções tipográficas.

***
 
Eu gostaria de saudar os camaradas da conferência do grupo Spartacus/BL. [Aplausos]. Esta é a terceira vez que tenho a oportunidade de vir à Europa: em Londres na conferência do Comitê Internacional de 1966, em Bruxelas, em novembro de 1970, na conferência do Secretariado Unificado. Em nenhuma dessas duas ocasiões eu fui espancado. [Risos]. Então desta vez eu venho a Essen.
 
Um camarada outro dia disse, em relação a um ponto considerando a Declaração de Princípios da Liga Espartaquista, que vocês não tem nada a aprender com a Liga Espartaquista. Nós acreditamos que nós temos muito a aprender com vocês. [Aplausos].
 
A razão pela qual nós fizemos um considerável esforço em nos conectarmos com o Spartacus/BL é o seguinte. Como disse Trotsky em 1929 e ainda é verdade hoje: a Alemanha é a chave para a Europa. Nos anos 60 houve uma considerável radicalização na Europa e pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial emergiu uma camada da juventude originada do movimento estudantil que professa uma aparência revolucionária. A condição do proletariado alemão em 1945 era um dos elementos centrais desmoralizando o movimento trotskista mundial e lançando as bases para o pablismo. Milhares de jovens alemães com pensamento revolucionário representam um potencial precioso enquanto nos movemos para um período de novas e aprofundadas rivalidades inter-imperialistas. Se essa camada da juventude radical alemã não puder se inserir em seções avançadas do proletariado da Europa Central, na criação de uma nova formação partidária bolchevique, a relação de forças internacionalmente, entre o proletariado e os vários setores da burguesia, irá pender muito fortemente contra nossa vitória na luta de classes.
 
A não ser que essa camada da juventude alemã, que não é apenas o Spartacus/BL (e provavelmente o maior centro de gravidade está na juventude maoísta), possa interceder nas seções avançadas da classe trabalhadora alemã para construir um novo partido bolchevique de combate na Europa Central, o equilíbrio de forças entre a burguesia imperialista e o proletariado nas agudas lutas de classe nesse período irá pesar contra nós.
 
Como o último orador antes de mim atestou, o Spartacus/BL não tem falta de energia ou auto-confiança. [Risos e aplausos].
 
Nós vemos dois problemas em paralelo internacionalmente entre aqueles que professam serem trotskistas. Um não é o que ocorre aqui. É o bolchevismo formal com todas as lições formais propriamente assimiladas, representado por tais formações como o POUM espanhol, a OCI francesa, o POR boliviano. O problema, e não é uma questão definitivamente fechada, é que enquanto esses camaradas dominaram, até mesmo de uma maneira que vocês ainda não dominaram, o formato de uma organização bolchevique, eles minimizaram o seu conteúdo. Eles não vêem a frente única e todos os seus fenômenos relacionados – isto é, entrismo em outras formações operárias reformistas, processos de reagrupamento e similares – como a forma pela qual, para citar Trotsky, “a base proletária deve ser lançada contra sua liderança burguesa”. Ao invés disso, eles buscam embaçar o partido dentro da frente única, esperando, por exemplo na França, que o Partido Socialista e o Partido Comunista atinjam de alguma forma, por se unirem organizativamente, uma linha proletária revolucionária. Eles cancelam o papel que os bolcheviques tem a cumprir.
 
Nós vemos um problema diferente com a sua organização em particular, e essa é uma tendência de voltar à aparência política e formal da socialdemocracia russa como era em torno de 1903. Até onde alguns de vocês fazem isso de maneira ingênua, isso pode ser superado através de disputa política. Mas aqueles entre vocês que deliberadamente ignoram a experiência da revolução de outubro, a fundação da Internacional Comunista e tudo que veio depois – os primeiros quatro congressos da Comintern, a luta da Oposição de Esquerda trotskista – aqueles dentre vocês que viram as costas para isso, já são pequenos e oportunistas Kautskys embrionários.
 
Deixem-me explicar no que acreditamos ser o papel central e crucial da democracia partidária, sobre qual é a função da democracia interna, a chamada liberdade de criticar internamente, entre os revolucionários mais antigos. Por vezes se encontra, mesmo dentro do movimento trotskista, uma noção de que a disputa interna e o papel das minorias é um luxo necessário, enquanto entre os stalinistas e maoístas, um luxo desnecessário, traiçoeiro e dispensável. Ainda com todos os erros dos Bolcheviques, eles ainda conseguiram liderar os trabalhadores russos em direção ao poder. Há uma série de coisas erradas com a questão. Em primeiro lugar, se parte da premissa que se tem o programa perfeito, que não contém erros nesse momento. É necessário entender que em determinado ponto na história, enquanto a vanguarda pode ter assimilado e generalizado as experiências do passado, o futuro não é idêntico. Dessa forma, nós devemos acreditar que assim como o Iskra entre 1900-1903 continha os germes dos futuros Bolcheviques e futuros Mencheviques, também na Liga Espartaquista nós contemos os pontos de partida para muitas possibilidades. E, uma vez que nós iremos enfrentar novas, cruciais e inesperadas viradas nas quais iremos aplicar nossa teoria e experiência acumuladas, nós devemos esperar que haverá possibilidades íngremes e imprevisíveis surgindo de tais disputas – disputas internas do partido. E existe a possibilidade para os camaradas que cometem erros, desvios, superá-los através do processo de luta, na luz de continuada experiência. É assim que é essa luta interna do partido não é algo estranho, ou importado, ou externo ou o produto de agentes inimigos, como reivindicam os stalinistas.
 
Assim, a disputa interna do partido é uma necessidade. É necessário para um partido que deseja ser viável como um partido proletário revolucionário. Isso é uma coisa. As coisas são diferentes para aqueles que ignoram completamente as experiências previamente acumuladas do movimento marxista revolucionário e que se recusam a operar num formato já desenvolvido programática e teoricamente.
 
Qualquer variante da concepção kautskista do “partido de toda a classe” é uma posição completamente não-revolucionária e, em última instância, contra-revolucionária. O mais recente e mais amplo representante dessa espécie de revisionismo é Max Shachtman. O maior artigo recente que ele escreveu se intitula “Comunismo Americano: um Exame do Passado”. Ele encontra o pecado original do comunismo nos rachas à esquerda da socialdemocracia que ocorreram durante e após a Primeira Guerra Mundial, criando uma divisão na expressão política do proletariado. Ele descobre a causa desses rachas numa mudança do entendimento do papel do reformismo, do oportunismo, pelos revolucionários socialistas dentro do movimento da classe trabalhadora.
 
Shachtman cita Lenin muito favoravelmente ao longo do período de 1908. Em particular, ele observa que se os revolucionários tivessem simplesmente seguido a regra de “liberdade para criticar, unidade na ação”, a unidade do partido proletário poderia ter sido preservada. Ele argumenta que naquele tempo Lenin tinha um entendimento do oportunismo como um aspecto transiente, efêmero, secundário do movimento dos trabalhadores. Em particular, ele preza Lenin por defender que naquelas regiões onde os Bolcheviques estivessem em minoria, eles deveriam se subordinar aos Mencheviques e votar pelo partido Cadete [Constitucional Democrata] (onde os Bolcheviques tivessem a maioria, Lenin prossegue, eles deveriam ou votar por candidatos socialdemocratas ou, se não tivessem outra opção, se abster). Shachtman, por ter se tornado um socialdemocrata, não penetra na razão para a evolução nas visões da tendência Bolchevique. Ele meramente descreve as mudanças na posição leninista como uma forma de pecado original.
 
Nós estamos lidando, no período que vai da fundação do Iskra até a fundação do Partido Bolchevique em 1912, com a transformação da tendência Bolchevique de uma organização revolucionária socialdemocrata para uma organização comunista embrionária. O modelo para os socialdemocratas revolucionários russos no período inicial era a socialdemocracia alemã. Na determinação da ala bolchevique em conseguir uma revolução contra o czarismo, sua prática política veio antes de seu modelo teórico. E, é claro, sua prática organizativa chegou ainda mais tarde e foi altamente empírica sob condições clandestinas.
 
Era possível que Lenin, durante o período da reunificação da socialdemocracia russa, 1905-1907, desenhasse conclusões sobre a disciplina de um partido de reformistas e revolucionários que seria rejeitada de imediato por qualquer leninista hoje. Isso não nos torna mais espertos que Marx ou Lenin, isso significa meramente que nós somos capazes de enfrentar questões políticas atuais na luz da experiência deles.
 
Entre parênteses, uma das nossas principais diferenças com Healy e Wohlforth reside nesse ponto. Para Healy (e palavras me faltam para descrever a qualidade da arrogância em tal pressuposto), a cada dia e a cada novo acontecimento, ele se torna cada vez melhor – inclusive melhor do que Lenin.
 
A verdade é historicamente condicionada; isto é, o semblante do movimento comunista nos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista se ergueu sobre um levante histórico e bem sucedido do proletariado revolucionário.
 
Um rompimento teórico e uma generalização comparável acompanharam essa massiva conquista revolucionária….
 
Dessa forma, o desenvolvimento teórico da vanguarda proletária no período 1919-23 da Internacional Comunista esteve no alto de uma montanha. Mas desde aquele tempo, desde o período da Oposição de Esquerda trotskista até a sua morte e posteriormente, o proletariado tem testemunhado principalmente derrotas, e a vanguarda revolucionária ou tem diminuído ou sua continuidade tem se perdido em muitos países. Não se pode separar a habilidade de conhecer o mundo da habilidade para modificá-lo, e a nossa capacidade de mudar o mundo só pode ser comparada em muito pequena escala aos dias heróicos da Internacional Comunista.
 
[Troca da fita]
 
Ao mesmo tempo, uma das grandes conquistas dos Bolcheviques foi reconhecer que um racha político na classe trabalhadora é uma precondição para a revolução proletária. Os Bolcheviques tinham chegado a essa conclusão em 4 de agosto de 1914, mas eles não tinham generalizado isso nem teoricamente e nem internacionalmente. A esquerda revolucionária alemã desse tempo pagou com a perda de seus líderes, Luxemburgo e Liebknecht, e uma revolução perdida por sua falha em assimilar essa lição. 
 
Movimentismo e “Liberdade de Criticar”
 
Nós apresentamos para vocês, camaradas, em nossas saudações escritas à sua conferência, uma certa definição do nosso entendimento da forma de organização leninista: “Nós declaramos que o princípio fundamental para os comunistas é aquele da luta entre os camaradas para ganhar a maioria para o seu programa, e que qualquer um que busque mobilizar forças de consciência atrasada e elementos externos da classe de fora da organização marxista revolucionária para poder ascender dentro de tal organização não é um comunista”. Partir dessa concepção significaria imediatamente levar à organização dos setores de consciência mais atrasada da classe contra o partido, especialmente a sua maioria. Eu digo isso em conexão com o slogan “liberdade de criticar, unidade na ação” empregado no partido unitário Bolchevique-Menchevique de 1906. A longo prazo ele necessariamente leva a dissolver o partido de volta à classe como um todo.
 
Nos Estados Unidos, somos familiares com uma espécie particular de movimentismo, os semi-sindicalistas como o grupo de Ellens (relacionado ao Lutte Ouvrière) e a linha majoritária da Tendência Leninista, que tem uma concepção de que a classe trabalhadora, em suas condições naturais, tem uma essência puramente revolucionária. Agora foi lançado um excelente livro chamado A formação da classe operária inglesa, de E.P. Thompson, e nos parágrafos de abertura ele faz a observação de que a classe trabalhadora não pode ser descrita como uma classe desassociada da sociedade capitalista. Ela só pode ser vista no contexto, não apenas da economia, mas das relações sociais da sociedade como um todo. Há setores de consciência atrasada na classe trabalhadora. Os trabalhadores que apóiam a socialdemocracia na maioria dos países são relativamente avançados, como é o caso dos trabalhadores que apóiam os partidos stalinistas onde eles são partidos de massa.
 
Em uma classe trabalhadora como a dos Estados Unidos, amplos setores dos trabalhadores são muito atrasados de fato. Mas eles são atrasados do ponto de vista dos interesses históricos representados pela vanguarda proletária. Eles são adiantados em termos de idéias burguesas. Religião, alcoolismo, machismo e as mais virulentas formas de racismo são manifestações predominantes na ausência de luta de classes e sem a presença de uma vanguarda proletária. Os movimentistas se recusam a ver tudo isso e, no lugar, vêem um proletariado puro, descontaminado e isolado. Ao mesmo tempo, eles vêem o partido de vanguarda como uma mistura de trabalhadores radicais e intelectuais radicais que podem ser não tão diferentes de sua classe de origem.
 
O principal partido internacional dos Socialistas Internacionais (IS), a organização britânica de Tony Cliff, se tornou recentemente movimentista. A IS, como uma coleção dos melhores centristas do mundo, segue avidamente cada novidade política. Até poucos anos atrás, eles eram pró-Partido Trabalhista e seu jornal se chamava Operário Trabalhista. Hoje eles são bastante opostos ao Partido Trabalhista Britânico, negando que ele tenha qualquer caráter de classe operária, e agora chamam seu jornal de Operário Socialista (os pablistas fizeram algo parecido na Europa nos últimos três ou quatro anos).
 
Isso foi apenas uma prévia da atual visão de Tony Cliff.
 
Com a intenção de se unir à alma dos trabalhadores (enquanto se posiciona contra o malvado Partido Trabalhista, que ele certa vez idolatrou), ele escreveu um artigo chamado “Trotsky sobre Substituísmo” [no livro dos IS Partido e Classe], do qual eu gostaria de ler uma citação:
 
“Uma vez que o partido revolucionário não pode ter interesses que não sejam os da classe, todos os assuntos políticos do partido são aqueles da classe e eles deveriam portanto ser trabalhados abertamente na sua presença. A liberdade de discussão que existe numa reunião de fábrica, que busca a unidade de ação depois que as decisões são tomadas, devem se aplicar ao partido revolucionário. Isso significa que todas as discussões sobre questões básicas devem ser feitas na luz do dia, na imprensa aberta. Deixem as massas de trabalhadores tomar parte na discussão. Ponham pressão sobre o partido, seu aparato, sua liderança.”
 
É um pouco estranho saber o que dizer sobre isso. A idéia de que toda a classe, em todo o seu atraso de consciência setorial, racial, nacional, deve ser o júri para decidir questões de estratégia revolucionária é espantosa. Num sindicato, que é uma forma de frente única econômica, ou em uma frente única política, está claro que é necessário que todos os participantes mostrem suas críticas abertamente. Mas a idéia de que trabalhadores que seguem padres, trabalhadores que são stalinistas, trabalhadores que pertencem a partidos socialdemocratas, deveriam pôr pressão para determinar a política dos marxistas revolucionários é uma idéia que irá manter o poder da burguesia até o dia em que uma bomba termonuclear elimine de vez a questão. 
 
“Exceções” ao Centralismo Democrático
 
Em nossas saudações à sua conferência, nós falamos de certas circunstâncias excepcionais em conexão com a aplicação do centralismo democrático entre os revolucionários….
 
Entre as circunstâncias excepcionais está a situação na qual o formato do partido não impede, por breve período, um programa marxista revolucionário. No período após o fim da Primeira Guerra Mundial, diversos partidos grandes da Internacional Socialista romperam, com grandes seções, frequentemente maiorias, indo para a Terceira Internacional. França, Alemanha, Checoslováquia, Itália e Estados Unidos vêm à mente. Também foi ganha a ala esquerda do PPS polonês. No período dessa transição, havia apenas essa separação de forma entre partido e programa.
 
Outra circunstância comparável seria quando os revolucionários entram numa formação política reformista ou centrista. Aí, também, nós lutaríamos pelo máximo de liberdade na discussão pública e pelo mínimo de unidade de ação. Ainda outra circunstância excepcional seria quando a divisão entre o interno e o externo se tornou difusa, como em verdadeiros partidos de massa, especialmente aqueles no poder. Um terceiro caso aparece num documento que eu acabo de ter em mãos intitulado “Sobre o Princípio do Centralismo Democrático: Liberdade de Criticar, Unidade na Ação”. Trotsky é citado ao escrever “A história inteira do bolchevismo é aquela da livre disputa entre tendências e frações”. Essa é uma citação perfeitamente verdadeira, mas ela está fora de contexto porque todas as vezes nesse período (como até mesmo Barbara Gregorich, da Fração Leninista, que fez a pesquisa, admite) Trotsky falava da liberdade de discussão interna.
 
Aqui está uma citação que torna isso mais claro. Nos Escritos 1932-1933 de Trotsky, falando dos oposicionistas russos, ele comenta “Eles eram sujeitos à perseguição apenas por terem criticado a política da tendência da liderança dentro dos limites internos que haviam constituído o elemento vital da democracia do Partido Bolchevique”. Também no artigo que eu tinha em mãos havia outra citação tirada do Programa de Transição. Ela diz, “Ohne innere Demokratie gibt es keine revolutionäre Erziehung”[Sem democracia interna não existe educação revolucionária]. Para mim, “ohne innere Demokratie” significa “sem democracia interna”.
 
Mas a lista de circunstâncias excepcionais se esgotou. Houve o racha projetado de Shachtman e Burnham do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) em 1940. Ele dividiu o SWP pela metade na véspera da Segunda Guerra Mundial. Muitos na juventude que seguiram Shachtman e Burnham acreditavam que eles não estavam envolvidos em nenhum revisionismo, mas que estavam construindo um partido revolucionário maior, melhor e mais rápido. Trotsky e Cannon, num esforço para manter durante um pequeno espaço de tempo o estado de unidade formal, fizeram várias concessões substanciais numa tentativa de reter a minoria. Não houve, é claro, nada que detivesse a minoria, mas a maioria de Trotsky deixou claro que essas eram concessões especiais e episódicas numa tentativa de dar àqueles na minoria uma chance, sob condições organizativas mais abertas, para reconsiderar. Foi como quando vocês quiseram fazer concessões especiais ao IKD quando eles se separaram como uma minoria ampla. Mas até um boletim especial interno, que é muito menos que a apresentação pública das diferenças, não é uma condição estável ou saudável na vida interna do partido.
 
Eu estive em uma organização que teve tais garantias organizativas como uma posição permanente. Foi a Liga Socialista Jovem, o grupo jovem de Shachtman entre 1954-57. Os seguidores de Shachtman tinham posto diversas declarações democráticas sobre “liberdade de criticar” nas suas regras de organização para poder apelar aos liberais que tinham medo do bolchevismo totalitário. Ninguém nunca usava essas regras até que se formou uma ala de esquerda três anos depois. Nós então começamos a publicar o boletim da ala esquerda – não apenas internamente, mas um boletim público próprio. Não poderia haver nenhum outro significado, e ele tinha a intenção clara de ser um boletim de racha. Quando a disputa chegou ao fim, eles tiveram que colocar 22 emendas no seu regulamento. Mas está claro que essas novas restrições eram apenas para os trotskistas causadores de problemas. Os elementos socialdemocratas da ala direita poderiam continuar a praticar a liberdade de criticar.
 
Isso leva ao centro da questão. Por que, afinal de contas, vocês querem levar suas diferenças para fora da sua organização, para reunir os seus inimigos contra a sua organização? Shachtman também queria. Os liberais radicais norte-americanos tinham se virado de maneira aguda contra a Rússia após o pacto Hitler-Stalin. Aquele setor do SWP que foi mais sensível a essa opinião pública pequeno-burguesa queria provar que eles não eram tão ruins quanto outros trotskistas. E em tempos comuns é sempre desse jeito com aqueles que querem levar seus problemas para fora do partido revolucionário.
 
Em tempos de grandes turbilhões revolucionários, a massa da classe trabalhadora pode se elevar acima de um partido revolucionário inerte. Lenin enfrentou essa situação algumas vezes entre as revoluções de fevereiro e outubro. Quando ele se via diante da obstrução conservadora do comitê central, ele ameaçava levar a discussão aos trabalhadores. Isso não era liberdade de criticar dentro do partido: isso significava uma racha e a criação de um segundo partido, e Lenin sabia disso. Rachar não é crime, providenciando para que exista suficiente clareza política e necessidade de realizar um racha. Isso é parte do processo político vivo.
 
Eu agora gostaria de muito brevemente chegar ao assunto das relações internacionais. Nós tivemos uma explosão de separações na Liga Espartaquista no ano passado. Eu acredito que o camarada Hum declarou que nosso centralismo democrático se revelava na prática concreta como alguma forma de burocratismo típico de Healy ou algo do gênero, durante a discussão no ano passado. Eu gostaria de discutir isso um pouco mais concretamente. [Aplausos]. Na verdade, é claro, outra pessoa nos precaveu para nos mantermos longe de todo esse assunto organizativo batido que não trata de política, então eu pensei em virar a mesa e tratar disso concretamente. Entretanto, existe um significado político quando alguém se levanta e diz: “Paul Levi foi perseguido e eu também.” Nós tentamos por três vezes fazer análises políticas bem sucedidas dessa disputa por poder que ocorreu entre nós.
 
Eu quero dizer algo sobre a relação entre Vanguard NewsLetter, a Fração Leninista, a tendência separatista e, vai haver discussão, a organização de vocês…. O assunto é a combinação sem princípios, algumas vezes chamada mais familiarmente de “bloco podre”. Em algum lugar destas muitas páginas de anotações, eu tinha uma lista de todos os pontos, que até agora nós sabemos, que os vários camaradas desse bloco não tem em comum. Os separatistas evidentemente acreditam que Shachtman foi o melhor de si durante a luta de 1940 contra Trotsky. Eu acredito que os outros grupos citados não concordam com isso. Então nós temos o chamado pela “Quinta Internacional” da Fração Leninista, que parece argumentar essencialmente pelos mesmos termos da Oposição Operária da Rússia de 1921, que chamou nessa ocasião por uma Quarta Internacional.
 
Eu gostaria que houvesse tempo para discutir as implicações desse chamado por um lado e a posição do IKD, por outro, de construir a Quarta Internacional. Cada um do seu modo, compartilha algo em comum: uma negação da experiência do movimento revolucionário no mínimo, vamos dizer, de 1938 até hoje. Para cada um do seu modo, isso é irrelevante.
 
Outra contradição nesse bloco é que o Vanguard NewsLetter, de Turner, se vocês olharem bem, se devotou quase exclusivamente ao reagrupamento – isto quer dizer, a apelar por uma fusão aos membros e aos críticos da Workers League, do SWP, da Liga Espartaquista, etc. O camarada Hum descreveu a Liga Espartaquista como irrelevante porque ela apela a organizações cujos membros são irrelevantes à classe trabalhadora. O que isso faz de Turner, que apela para nós? A Fração Leninista, é claro, tem uma perspectiva bem diferente. Ela pode muito bem seguir a direção de Ellens e sepultar a si própria como ela fez genuinamente, mergulhando no nível de consciência da classe trabalhadora.
 
Alguns dos separatistas, no mínimo, já foram para fora do campo do comunismo. No entanto, a sua organização tem um recorde de favoritismo por essas pessoas. Dois dos seus camaradas trabalharam politicamente e intimamente com Moore neste verão, por trás das costas da Liga Espartaquista. Vocês camaradas, eu acredito, olham com aprovação para uma fusão destes heterogêneos grupos do VNL, Fração Leninista, os separatistas e, possivelmente, purgando a Liga Espartaquista de sua direção e trazendo os elementos de esquerda para essa fusão. O ponto não é que esse esquema não faz nada além de um apelo emocional, é que nós gostaríamos de dizer – e de fato nós vamos contar para vocês – qual programa tal formação pode ter. Isto é, o que vocês teriam criado seria apenas uma IS de segundo nível.
 
Eu indiquei que é possível para organizações cometerem erros, até mesmo erros muito profundos e se recuperarem deles. Trotsky esteve no bloco de agosto. Era um bloco muito ruim. Ele foi concebido originalmente na base de uma idéia aparentemente muito boa. Isto é, ignorando toda a experiência da primeira revolução russa, reunir todas as tendências socialdemocratas e ver se o partido não poderia ser reunificado. Uma conferência foi chamada e todas as tendências convidadas. A maior parte dos Bolcheviques se recusou a comparecer. Dessa forma, aqueles que foram, ainda que não fosse sua vontade talvez, adquiriram, como um todo, um caráter decisivamente anti-bolchevique. Alguns bolcheviques de ultra-esquerda estavam lá, e proeminentes membros independentes do partido, como Trotsky. Eu acredito que Trotsky posteriormente descreveu este como o maior erro político da sua vida. Mas há uma condição prévia para ter a possibilidade de superar erros políticos. E essa condição é uma implacável vontade de reconhecer a verdade da situação, não importa quanto constrangimento venha a causar aos seus aliados. Vocês podem acreditar que o bloco nos Estados Unidos é melhor do que nós. Isso é assunto para uma discussão. Mas vocês continuarem insistindo, para poder justificar essa crença, que certos elementos de clara deslealdade em relação a vocês são verdadeiros, então isso não é de fato um erro, mas um ato voluntário de oportunismo. Eu acredito que vocês, camaradas, publicaram em seu boletim internacional uma leitura dos eventos dentro da Liga Espartaquista que é, por documentos conhecidos por vocês e certificados pelos separatistas, demonstradamente falsa. Eu tenho uma página de citações aqui que eu gostaria de dividir com o seu comitê central.
 
Não há de fato tempo suficiente para ler e traduzí-las agora. Mas eu quero apontar o fato de que esse material é, ao menos agora, e deveria ter sido no tempo em que foi publicado, conhecido por vocês, como sendo não simplesmente falso, como um erro, mas voluntariamente falso e, além do mais, materiais que não são uma acusação de alguns erros e atos estúpidos da nossa parte, mas na verdade uma acusação de desonra da parte da Liga Espartaquista. Se nós permitíssemos que fosse publicada em um dos nossos boletins uma acusação dos nossos membros de que o Spartacus/BL tivesse ganho dinheiro do DKP para poder estorvar o SPD em sua campanha, vocês entenderiam como nós nos sentimos. Mas há muitas coisas no mundo que nós não gostamos e que não significam muito. A questão é realmente em termos do seu futuro político, porque se vocês não puderem encarar a realidade (não é por nada, inclusive, que numerosas publicações revolucionárias usam palavras como Pravda La Vérité [A Verdade]) – se vocês não puderem encarar a realidade, então há uma voluntariedade, um oportunismo, uma súplica de seguir a alma da ala direita que descansa por trás da sua ação, ou das ações de alguns de vocês.
 

Para concluir, camaradas, nós levamos o seu futuro muito a sério porque está sobre vocês a responsabilidade de criar um partido maior para a revolução mundial. Se vocês vão ou não fazer isso, isso cabe a vocês decidir.

 
Bibliografia
 
Ao longo do texto foram traduzidos do original em inglês, russo e alemão, tanto os títulos das fontes quanto os trechos citados como forma de facilitar a compreensão para o leitor de língua portuguesa. A seguir, estão as fontes originais em inglês, russo e alemão.
 
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Lenin e o Partido de Vanguarda (7)

Em Direção à Internacional Comunista

 
O evento que transformou Lenin de um socialdemocrata revolucionário russo no líder fundador do movimento comunista mundial pode ser precisamente datado – 4 de agosto de 1914. Com o começo da Primeira Guerra Mundial, a bancada parlamentar do SPD alemão votou unanimemente em favor de créditos de guerra para o Reich. Tendo agora experimentado mais de 60 anos de traições socialdemocratas e stalinistas dos princípios socialistas, é difícil hoje para nós entender o impacto absolutamente chocante de 4 de agosto sobre os revolucionários da Segunda Internacional. Luxemburgo sofreu um colapso nervoso em reação à onda de nacional-chauvinismo que varreu o movimento socialdemocrata alemão. Lenin a princípio se recusou a acreditar no relatório sobre a votação no Reichstag do órgão do SPD, Vorwärts, descartando aquela edição como uma farsa feita pelo governo do Kaiser.
Para socialdemocratas revolucionários, 4 de agosto não apenas simplesmente destruiu suas ilusões num partido em particular e sua liderança, mas desafiou toda a sua visão política mundial. Para marxistas da geração de Lenin e Luxemburgo, o progresso da socialdemocracia, melhor representado na Alemanha, tinha parecido firme, irreversível e inexorável. 
O Significado Histórico da Segunda Internacional
A era da (Segunda) Internacional Socialista (1889-1914) representou um crescimento extraordinariamente rápido no movimento operário europeu e das correntes marxistas dentro dele. Com a exceção dos sindicatos britânicos (que apoiavam os liberais burgueses), as organizações que formavam a Primeira Internacional (1864-74) eram grupos de propaganda que contavam quando muito com alguns milhares. Em 1914, os partidos da Internacional Socialista eram partidos de massa com milhões de apoiadores por toda a Europa.
No período da Primeira Internacional, havia talvez mil marxistas na face da Terra, esmagadoramente concentrados na Alemanha. Significativamente, não havia marxistas franceses na Comuna de Paris de 1871, apenas o húngaro Leo Franckel. Em 1914, o marxismo era a mais importante tendência no movimento internacional dos trabalhadores, a doutrina oficial dos partidos proletários de massa na Europa central e do leste. Pode-se entender portanto que Kautsky e os socialdemocratas poderiam considerar o marxismo como a expressão política natural e inevitável do movimento operário moderno.
A Grã-bretanha, é verdade, tinha um movimento operário de massa que era politicamente liberal e abertamente colaboracionista de classe. Entretanto, os próprios Marx e Engels tinham explicado o atraso do movimento operário britânico como um produto de circunstâncias históricas particulares (por exemplo, a dominação britânica na economia mundial, o antagonismo nacional inglês-irlandês, o Império). Além do mais, marxistas na Segunda Internacional, incluindo Lenin, consideravam a fundação do Partido Trabalhista em 1905 como um passo progressivo significativo em direção a um partido proletário socialista de massa na Grã-bretanha. Assim, o atraso político relativo do movimento dos trabalhadores britânicos não desafiava fundamentalmente a visão de mundo socialdemocrata ortodoxa (ou seja, kautskiana).
É fato consumado que o movimento marxista pré-1914 era familiar com renegados e revisionistas – os seguidores de Bernstein na Alemanha, Struve e os “marxistas legais” na Rússia. Lenin teria adicionado Plekhanov e os Mencheviques a essa lista. Mas essas regressões em direção ao reformismo liberal pareciam afetar apenas os elementos intelectuais no movimento socialdemocrata. O SPD, como um todo, parecia solidamente marxista em suas políticas, enquanto o marxismo era vitorioso contra o radicalismo socialista da velha escola (por exemplo, Jaures) em outras seções da Internacional (por exemplo, francesa, italiana).
4 de Agosto foi a primeira grande contra-revolução interna no movimento operário, e ainda mais destrutiva por que ela não era esperada. O triunfo do chauvinismo e colaboracionismo de classe nos partidos principais da Internacional Socialista despedaçou o otimismo trivial, passivo, do marxismo kautskiano. Depois da grande traição do SPD, indo para o lado de sua “própria” burguesia, os marxistas revolucionários não poderiam mais considerar o oportunismo no movimento dos trabalhadores como um fenômeno episódico ou marginal ou como um produto de um atraso político num caso histórico particular (como na Grã-bretanha).
As lideranças estabelecidas da maioria dos partidos socialistas de massa dificilmente poderiam ser descartados como intelectuais democratas pequeno-burgueses instáveis, como parceiros de viagem da socialdemocracia. Foi assim que Kautsky caracterizou os revisionistas bernisteinianos e como Lenin tinha descartado os Mencheviques. Mas os líderes chauvinistas do SPD em 1914 – Friedrich Ebert, Gustav Noske, Philipp Scheidemann – tinham construído sua trajetória ascendente no partido a partir de sua base, começando como jovens. Todos os três tinham sido trabalhadores: Ebert tinha sido um fabricador de selas, Noske um açougueiro e Scheidemann um tipógrafo. Ebert e Noske começaram suas carreiras no SPD como funcionários locais no sindicato, Scheidemann como um jornalista para um jornal local do partido. Os líderes oportunistas e chauvinistas eram portanto em muito feitos da carne e do sangue da socialdemocracia alemã.
Nem podiam as ações do SPD ser explicadas como um reflexo de um atraso político histórico da classe operária alemã. Ebert, Noske e Scheidemann tinham sido treinados como marxistas pelos seguidores pessoais de Marx e Engels. Eles tinham votado vezes e mais vezes por resoluções socialistas revolucionárias. Ao apoiar a guerra, os líderes do SPD sabiam que estavam violando os princípios socialistas de longa data do seu partido.
Até o momento do fatídico voto do Reichstag, o SPD adentrou em uma agitação anti-guerra de massa. Em 25 de julho de 1914 a executiva do partido lançou uma proclamação que concluía:

“Camaradas, nós apelamos a vocês para expressar nas reuniões de massa sem atraso a firme determinação do proletariado alemão de manter a paz…. As classes dominantes que em tempos de paz enganam vocês, desprezam vocês e os exploram, usariam vocês como comida para os canhões. Em todo lugar deve soar nos ouvidos daqueles no poder: ‘Nós não teremos guerra! Abaixo à guerra! Vida longa à irmandade internacional dos povos!’”

– reproduzido por William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)
Ao considerar a traição socialchauvinista da socialdemocracia alemã, Lenin foi levado a perceber que os Bolcheviques não eram simplesmente um equivalente russo do SPD com uma liderança revolucionária principista. A seleção, teste e treinamento dos membros no partido de Lenin eram fundamentalmente diferentes do partido de Bebel e Kautsky. E nessa diferença residia a razão de, em agosto de 1914, os representantes parlamentares do SPD terem apoiado o “seu” Kaiser, enquanto seus equivalentes no Partido Operário Social Democrata Russo (Bolcheviques) foram, ao contrário, trancafiados nas prisões do Czar.
Lenin Rompe com a socialdemocracia
A política básica de Lenin com relação à guerra e ao movimento socialista internacional foi desenvolvida dentro de poucas semanas após o início das hostilidades. Essa política tinha três elementos principais. Um, os socialistas devem lutar pela derrota, acima de tudo, de seus “próprios” Estados burgueses. Dois, a guerra demonstrava que o capitalismo na época imperialista ameaçava destruir a civilização. Os socialistas devem então trabalhar para transformar a guerra imperialista em guerra civil, ou seja, em revolução proletária. E três, a Segunda Internacional tinha sido destruída pelo socialchauvinismo. Uma nova internacional, revolucionária, deveria ser construída através de um completo racha com os oportunistas do movimento socialdemocrata.
Essas políticas, que permaneceram centrais para as atividades de Lenin até o momento da revolução de Outubro, eram claramente expressas em seus primeiros artigos sobre a guerra:
“É dever de cada socialista conduzir propaganda da luta de classes … trabalho dirigido com o objetivo de transformar a guerra de nações em guerra civil é a única atividade socialista na era de um conflito armado imperialista entre todas as nações…. Levantemos bem alto a bandeira da guerra civil! O imperialismo põe em perigo o destino da existência européia: essa guerra será seguida de outras a não ser que haja uma série de revoluções bem-sucedidas….”
“A Segunda Internacional está morta, destruída pelo oportunismo. Abaixo o oportunismo, e longa vida à Terceira Internacional, livre não apenas dos ‘vira-casacas’ …mas dos oportunistas também.”
“A Segunda Internacional fez o seu trabalho útil de preparação na organização preliminar das massas proletárias durante o longo, ‘pacífico’ período da mais brutal escravidão capitalista e mais rápido progresso capitalista no último terço do século dezenove e no começo do século vinte. À Terceira Internacional cabe a tarefa de organizar as forças proletárias para uma sublevação revolucionária contra os governos capitalistas, pela guerra civil contra a burguesia de todos os países, pela captura do poder político, pelo triunfo do socialismo!”
– “A Posição e as Tarefas da Internacional Socialista” (Novembro de 1914)
Enquanto Lenin era otimista sobre ganhar a base de massas dos partidos socialdemocratas oficiais, ele entendia que ele estava reivindicando rachar o movimento dos trabalhadores em dois partidos antagônicos, um revolucionário, o outro reformista. Assim, a demanda de Lenin por uma Terceira Internacional encontrou muito mais oposição entre os socialdemocratas que estavam contra a guerra do que a sua denúncia veemente do socialchauvinismo. De fato, a maioria das polêmicas de Lenin nesse período (1914-16) não estavam direcionadas aos descaradamente socialchauvinistas (Scheidemann, Vandervelde, Plekhanov), mas sim aos centristas que faziam apologia aos socialchauvinistas (Kautsky) ou se recusavam a romper com eles (Martov).
Assim, Lenin foi forçado a se confrontar e rejeitar explicitamente a posição socialdemocrata ortodoxa sobre a questão do partido, o “partido de toda a classe” kautskista:
“A crise criada pela grande guerra tirou todas as máscaras, arrastou embora todas as convenções, expôs um abscesso que há muito chegou à cabeça, e revelou o oportunismo em seu verdadeiro papel de aliado da burguesia. O corte organizativo completo de tais elementos dos partidos operários se tornou imperativo…. A velha teoria de que o oportunismo é um ‘fardo legítimo’ em um partido único que não conhece ‘extremos’ agora se tornou uma tremenda ilusão para os trabalhadores e um tremendo obstáculo para o movimento da classe operária. O oportunismo sem disfarce, que imediatamente repele as massas trabalhadoras, não é tão destrutivo e ameaçador como essa teoria do mal dourado…. Kautsky, o mais célebre representante dessa teoria, e também a autoridade chefe na Segunda Internacional, se mostrou um hipócrita consumado e um velho mestre na arte de prostituir o marxismo.”
– “O Colapso da Segunda Internacional” (maio-junho de 1915)
Ao considerar o crescimento do oportunismo nos partidos socialdemocratas da Europa Ocidental, Lenin naturalmente revisou a história do movimento russo e do bolchevismo. Ele se deu conta de que a organização bolchevique não havia, de fato, sido construída de acordo com a fórmula kautskista. Ela havia se separado organizativamente completamente e de maneira formal dos oportunistas russos, os Mencheviques, dois anos e meio antes do começo da guerra e na prática desde 1912. Lenin agora tomava o Partido Bolchevique como um modelo para uma nova e revolucionária Internacional:
“O Partido Operário Social Democrata Russo há muito saiu da companhia dos seus oportunistas. Além do mais, os oportunistas russos agora se tornaram chauvinistas. Isso apenas fortifica-nos em nossa opinião de que um racha com eles é essencial para os interesses do socialismo…. Nós estamos firmemente convencidos de que, no presente estado das coisas, um racha com os oportunistas e chauvinistas é o dever primário dos revolucionários, assim como um racha com os sindicatos amarelos, anti-semitas, os sindicatos de trabalhadores liberais, foi essencial em ajudar a ganhar velocidade o crescimento de consciência dos trabalhadores atrasados e os lançou nas fileiras do partido socialdemocrata.”
“Em nossa opinião, a Terceira Internacional deveria ser construída sobre esse tipo de base revolucionária. Para nosso partido, a questão da conveniência de um rompimento com os socialchauvinistas não existe, ela foi respondida por uma finalidade. A única questão que existe para o nosso partido é se é possível alcançar isso numa escala internacional num futuro imediato.”
– V.I. Lenin e G. Zinoviev, Socialismo e Guerra (julho-agosto de 1915)
Nós mantivemos ao longo dessa série que o leninismo, como uma extensão qualitativa do marxismo, surgiu em 1914-17, quando Lenin respondeu de uma maneira revolucionária à guerra imperialista e ao colapso da Segunda Internacional em hostis partidos socialchauvinistas. Essa visão foi contestada, por um lado pelos stalinistas que projetaram o culto da clarividência infalível do líder revolucionário desde o início da carreira política de Lenin e, por outro, pelos inúmeros centristas e reformistas de esquerda que querem erradicar ou distorcer a linha que separa o leninismo da socialdemocracia ortodoxa pré-1914 (kautskismo).
Entre os bolcheviques, entretanto, era amplamente reconhecido que o leninismo se originou em 1914 a não antes. Num artigo comemorativo seguido à morte de Lenin, Evgenyi Preobrazhensky, um dos principais intelectuais bolcheviques, escreveu:
“No bolchevismo, ou leninismo, nós devemos fazer uma distinção severa entre dois períodos – o período imediatamente antes da guerra mundial e o período aberto pela guerra mundial. Antes da guerra mundial, o camarada Lenin, apesar de realizar um marxismo revolucionário real, genuíno e sem distorções, não considerava ainda os socialdemocratas como agentes do capital nas fileiras do proletariado. Durante esse período, você encontrará mais de um artigo feito pelo camarada Lenin em que ele defende a socialdemocracia alemã em face das acusações e censuras que ela havia recebido, por exemplo, do campo dos populistas, sindicalistas, etc. de oportunismo contra-revolucionário, de traição do espírito revolucionário do marxismo….”
“Se, para nosso infortúnio, o camarada Lenin tivesse morrido antes da guerra mundial, nunca teria entrado na cabeça de ninguém falar de leninismo, como alguma forma de versão especial de marxismo, como aconteceria posteriormente. Lenin era o mais consistente marxista revolucionário…. Mas não havia nada específico em nosso bolchevismo no reino da teoria … para distinguí-lo de alguma forma do tradicional, ainda que verdadeiramente revolucionário, marxismo….”
“Se o camarada Lenin não tivesse vivido para ver esse período [pós-1914], ele teria entrado para a história como o mais iminente líder da ala esquerda da socialdemocracia russa…. Apenas o ano de 1914 o transformou num líder internacional. Ele foi o primeiro a colocar a questão básica: o que, num sentido amplo, essa guerra significa? Ele respondeu: essa guerra significa o começo da destruição do capitalismo e assim as táticas do movimento dos trabalhadores devem se direcionar a tornar a guerra imperialista uma guerra civil.”
– “Marxismo e Leninismo”, Molodoya Gvardiya, 1924 [nossa tradução]
O Que Significa o Socialchauvinismo?
Dentro de poucas semanas após o início da guerra, Lenin determinou o racha com os socialchauvinistas e que se trabalhasse por uma nova, revolucionária, Internacional. Mas ele não apresentou imediatamente uma explicação teórica (ou seja, histórica e sociológica) de porquê e como os partidos de massa do proletariado da Europa Ocidental tinham sucumbido ao oportunismo.
Aqui pode-se contrastar Marx e Lenin como políticos revolucionários. Marx em geral chegava a generalizações teóricas bem antes das conclusões programáticas, táticas e organizativas imediatas que fluíam das suas premissas sócio-históricas. Assim, no fim de 1848, após nove meses de revolução, Marx concluiu que a burguesia alemã era incapaz de derrubar o absolutismo. Entretanto, foi apenas um ano depois, no exílio, que Marx desenvolveu uma nova estratégia correspondendo à sua visão modificada da sociedade alemã. Em contraste, a confiança revolucionária de Lenin o levou a romper com o oportunismo e políticas falsas bem antes que ele unisse a isso generalizações teóricas correspondentes.
1914-16 foi um período em que a análise teórica de Lenin veio por trás de suas conclusões políticas e ações. Os escritos anteriores de Lenin sobre guerra e a Internacional identificavam o oportunismo socialdemocrata apenas como uma corrente político-ideológica. A única tentativa de relacionar o crescimento do oportunismo com condições históricas objetivas era a de que os partidos socialistas da Europa Ocidental haviam funcionado sob um longo período de legalidade burguesa.
A ausência de uma explicação sociológica e histórica para o oportunismo socialdemocrata era uma séria fraqueza na campanha de Lenin por uma Terceira Internacional. Era preciso demonstrar que 4 de agosto não era um episódio oportunista ou uma política errada reversível, para assim justificar plenamente rachar a socialdemocracia internacional. A luta de Lenin contra os centristas – Kautsky/Haase/Ledebour na Alemanha, Martov/Axelrod na Rússia, a liderança do Partido Socialista Italiano – focava no significado histórico do defensismo nacional na guerra mundial e na profundidade do oportunismo no movimento socialdemocrata. Os centristas mantinham que “defesa da terra natal” era um erro oportunista monumental, mas nada além. A política do defensismo nacional poderia ser revertida, a Segunda Internacional reformada (literalmente assim como figurativamente). Alguns dos extremos chauvinistas provavelmente teriam que ir embora, mas basicamente a “boa e velha Internacional” poderia ser restaurada àquilo que era em julho de 1914. Lenin considerava a Internacional pré-1914 como adoecida com o oportunismo; com a guerra, a doença piorou para o socialchauvinismo e se tornou fatal. Para os centristas, a Internacional pré-guerra era basicamente um corpo saudável. Ela estava agora passando pela doença do socialchauvinismo. A tarefa dos socialistas era curar a doença e salvar o paciente.
O principal porta-voz para a anistiar os socialchauvinistas e minimizar o problema do oportunismo era, é claro, Kautsky. Na Neue Zeit (15 de fevereiro de 1915) ele defendeu uma atitude de tolerância camarada para aqueles que “erraram” em defender o imperialismo alemão:
“É verdade que eu vi desde 4 de agosto que um número de membros do partido estavam continuamente evoluindo mais e mais na direção do imperialismo, mas eu acreditei que essas eram apenas exceções e tomei um ponto de vista otimista. Eu fiz isso para dar confiança aos camaradas e trabalhar contra o pessimismo. E isso foi igualmente importante para clamar os camaradas à tolerância, seguindo o exemplo de [Wilhelm] Liebknecht em 1870.”
– William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)
A suavidade centrista com relação à Segunda Internacional também se expressou dentro do Partido Bolchevique bem cedo na guerra. O cabeça do grupo bolchevique na Suíça, V.A. Karpinsky, objetou à posição de Lenin que a Segunda Internacional havia entrado em colapso e que uma Internacional nova, revolucionária, deveria ser construída. Em uma carta (27 de setembro de 1914) para Lenin, ele escreveu:
“Nós acreditamos que seria um exagero definir tudo o que aconteceu com a Internacional como um ‘colapso político-ideológico’. Nem por volume ou conteúdo essa definição corresponderia aos acontecimentos reais. A Internacional … sofreu um colapso político-ideológico, como queira, mas em uma questão apenas, a questão militar. Considerando o restante, não há razão para crer que a posição político-ideológica da Internacional foi abalada ou, ainda mias, que ela foi completamente destruída. Isso significaria que após perder apenas um reduto, nós estaremos desnecessariamente rendendo todos os fortes.”
– Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)
Para sobrepor tais atitudes centristas, Lenin tinha que demonstrar que 4 de agosto era o ápice de tendências oportunistas profundamente enraizadas nas natureza histórica da socialdemocracia européia.
Imperialismo, Socialchauvinismo e a Burocracia Operária
A análise de Lenin sobre a base social do oportunismo na Segunda Internacional foi primeiramente apresentada numa resolução (“Oportunismo e o Colapso da Segunda Internacional”) para uma conferência bolchevique em Berna, na Suíça em março de 1915:
“Certa camada da classe trabalhadora (a burocracia do movimento operário e a aristocracia operária, que fica com uma fração dos lucros da exploração das colônias e da posição privilegiada de suas ‘terras natais’ no mercado mundial), assim como simpatizantes pequeno-burgueses dentro dos partidos socialistas, proveram o suporte principal dessas tendências [oportunistas], e canais de influência burguesa sobre o proletariado.”
Essa análise simples não foi desenvolvida em nenhuma profundidade teórica ou empírica até o ano seguinte, principalmente no livro de Lenin, Imperialismo: a Fase Superior do Capitalismo (escrito no começo de 1916), e seu artigo, “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916), e no livro de Zinoviev, A Guerra e a Crise do Socialismo (agosto de 1916).
Dado o culto stalinista de Lenin e as interpretações individualistas da historiografia burguesa, não é amplamente reconhecido que Lenin trabalhou como parte de um coletivo. Durante os anos da guerra, ele teve literalmente uma divisão de trabalho com Zinoviev no qual o último se concentrou no movimento alemão. Lendo apenas os escritos de Lenin no período, consegue-se uma figura incompleta da posição bolchevique sobre a guerra imperialista e o movimento socialista internacional. Foi por isso que em 1916 os escritos de guerra de ambos Lenin e Zinoviev foram reunidos num único volume publicado em alemão, intitulado Contra a Corrente. A principal análise leninista do oportunismo na socialdemocracia alemã é oA Guerra e a Crise do Socialismo de Zinoviev, que contém uma longa seção intitulada “As raízes sociais do Oportunismo”. Essa seção chave do importante trabalho de Zinoviev foi reproduzida em inglês pela primeira vez na revista americana da corrente de Max Shachtman, New International (março-junho de 1942).
Marxistas há muito haviam reconhecido a existência de uma burocracia operária pró-burguesa, pró-imperialista na Grã-Bretanha. Engels havia condenado bastante os líderes aburguesados dos sindicatos britânicos, relacionando esse fenômeno à dominação econômica mundial do Império Britânico. Entretanto, marxistas na Segunda Internacional consideravam o movimento operário colaboracionista de classe britânico como uma anomalia histórica, um estágio que a socialdemocracia européia havia rapidamente saltado. Ao começar sua seção sobre a burocracia operária na Alemanha, Zinoviev atesta que os marxistas haviam considerado a socialdemocracia como imune a essa casta social corrupta:
“Quando nós falávamos de burocracia operária antes da guerra, se entendia por isso quase exclusivamente os sindicatos britânicos. Nós tínhamos em mente o trabalho fundamental dos Webbs, o espírito de casta, o papel reacionário da burocracia no velho sindicalismo inglês, e nós dizíamos para nós mesmos: como temos sorte de não termos sido criados por essa imagem, como temos sorte de que este pote de mágoa tenha sido evitado no movimento operário do nosso continente.”
“Mas nós estivemos bebendo por um longo tempo desse pote. No movimento operário daAlemanha – um movimento que servia como um modelo para socialistas de todos os países antes da guerra – surgiu uma casta de burocratas tão numerosa e tão reacionária quanto.” [nossa ênfase]
O triunfo do socialchauvinismo na Segunda Internacional fez Lenin reconsiderar o significado histórico da liderança operária pró-imperialista britânica. Ele chegou à conclusão de que o sindicalismo colaboracionista de classe da Inglaterra vitoriana antecipou tendências que viriam a tona quando outros países, acima de todos a Alemanha, disputassem economicamente com a Grã-bretanha e se tornassem poderes imperialistas competidores.
O crescimento industrial muito rápido da Alemanha, seguindo sua guerra vitoriosa em 1870, simultaneamente criou um poderoso movimento operário socialdemocrata e transformou o país em um agressivo poder mundial imperialista. Os objetivos expansionistas da Alemanha só poderiam ser realizados através de uma grande guerra. E a Alemanha não poderia ganhar uma grande guerra se enfrentasse a oposição ativa de seus poderosos movimentos proletários. Assim, as necessidades objetivas do imperialismo alemão requiriram a cooperação da liderança socialdemocrata. A derrota da revolução democrático-burguesa alemã em 1848 e a estrutura política de classe semi-autocrática resultante, tornaram a reaproximação entre os círculos dominantes e a burocracia operária mais difícil, menos evolucional que na Grã-bretanha. Daí o efeito chocante de 4 de agosto.
Mas Lenin reconhecia que o processo histórico de fundo que levou ao voto por crédito de guerra do SPD em 1914 e às nomeações de ministros de gabinete pelo Partido Operário Inglês era semelhante. EmImperialismo ele escreveu:
“Deve ser observada na Grã-Bretanha a tendência do imperialismo de dividir os trabalhadores, de fortalecer o oportunismo entre eles e causar um decaimento temporário em oportunismo dos interesses gerais e vitais do movimento da classe trabalhadora….”
“O oportunismo não pode ser completamente triunfante no movimento da classe trabalhadora de um país por décadas como foi triunfante na Grã-bretanha na segunda metade do século dezenove; mas em um número de países, ele cresceu maduro, ainda mais maduro e podre, e se tornou completamente mergulhado na política burguesa sob a forma de ‘socialchauvinismo’.” [nossa ênfase]
Imperialismo de Lenin lida com aquelas mudanças no sistema capitalista mundial que fortaleceram forças oportunistas no movimento internacional dos trabalhadores. É o trabalho de Zinoviev de 1916 que analisa concretamente as forças do oportunismo na socialdemocracia alemã.
Zinoviev mostrou que o enorme tesouro do SPD sustentava um vasto número de funcionários que levavam confortáveis vidas pequeno-burguesas bem longe dos trabalhadores que eles supostamente representavam. Em adição a um padrão de vida relativamente alto, a oficialidade socialdemocrata tinha começado a desfrutar de um status social privilegiado. A elite dominante alemã começava a tratar o SPD e líderes sindicais com respeito, diferenciando entre os “moderados” e os radicais, como Karl Liebknecht. O efeito corruptor sobre um ex-tipógrafo e um ex-fabricante de selas, ao serem tratados como personagens importantes pela aristocracia Junker (fidalga) era considerável. Referindo-se às memórias de Scheidemann no período da guerra, Carl Schorske em seu excelente Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955) comenta: “Nenhum leitor de Scheidemann pôde perder o prazer genuíno que ele sentiu ao ser convidado a discutir problemas no mesmo patamar que os ministros de Estado.” A socialdemocracia alemã tinha se tornado uma instituição pela qual jovens trabalhadores capazes e ambiciosos poderiam atingir o topo de uma sociedade de classe – e casta – altamente estratificada.
O grande trabalho de Zinoviev de 1916 corrige a ênfase em revisionismo ideológico como a causa do oportunismo que se encontra nos primeiros escritos de guerra de Lenin. De fato, a doutrina oficial e programa do SPD não refletiram sua crescente prática reformista. Muitos dos líderes socialdemocratas, esmagadoramente de origem trabalhadora, mantiveram um apego sentimental à causa socialista muito depois de terem cessado em acreditar nelas como práticas políticas. Apenas a guerra forçou o SPD a romper abertamente com um princípio socialista.
Zinoviev reconheceu a ideologia socialchauvinista como uma falsa consciência surgindo do verdadeiro papel da oficialidade do SPD na sociedade alemã wilhelminiana:

“Quando nós falamos da ‘traição dos líderes’ nós não dizemos com isso que foi uma conspiração profundamente armada, que foi uma venda conscientemente perpetrada dos interesses dos trabalhadores. Longe disso. Mas a consciência é condicionada pela existência, e não vice-versa. A essência social inteira da casta de burocratas do trabalho levou inevitavelmente, através do ritmo moldado pelo movimento no ‘pacífico’ período pré-guerra, ao completo aburguesamento da sua ‘consciência’. A posição social inteira que essa casta numericamente forte escalou subindo nas costas da classe trabalhadora a tornou um grupo social que objetivamente deve ser considerado como uma agência da burguesia imperialista.” [ênfase no original]

Os anarco-sindicalistas aplaudiram o ataque marxista revolucionário contra a burocracia socialdemocrata e proclamou: nós avisamos. Assim, os Bolcheviques, ao atacarem a socialdemocracia oficial, distinguiram sua posição cautelosamente da dos anarco-sindicalistas. Zinoviev colocou que a existência de uma poderosa burocracia era, em certo sentido, um produto do desenvolvimento e da força do movimento operário de massa. A resposta anarco-sindicalista para o burocratismo apontava para a auto-liquidação do movimento dos trabalhadores como uma força organizada objetivamente capaz de destruir o capitalismo. Se a burocracia reformista suprimia o potencial revolucionário do movimento dos trabalhadores, os anarco-sindicalistas propunham desorganizar tal movimento até a impotência.
Zinoviev manteve que a burocracia não era idêntica a uma ampla organização partidária e a funcionários sindicais. Ao contrário, tais aparatos eram necessários para liderar a classe trabalhadora ao poder. A tarefa decisiva era a subordinação dos líderes e funcionários do movimento trabalhista aos interesses históricos do proletariado internacional:
“No tempo da crise sobre a guerra, a burocracia do trabalho atuou no papel de um fator reacionário. Isso está sem dúvida correto. Mas isso não significa que o movimento operário será capaz de se manter sem um grande aparato organizativo, sem um espectro inteiro de pessoas dedicadas especialmente ao serviço nas organizações proletárias. Nós não queremos voltar ao tempo em que o movimento dos trabalhadores era tão fraco que ele podia continuar sem seus próprios empregados e funcionários, mas ir ainda mais adiante para o tempo em que o movimento operário seja algo diferente, em que o forte movimento do proletariado irá subordinar a camada de funcionários a ele próprio, em que a rotina será destruída, a corrosão burocrática chicoteada; um tempo que trará novos homens à superfície, insuflar neles coragem para lutar, completá-los com um novo espírito.”
Não existe uma solução organizativa mecânica para o burocratismo no movimento dos trabalhadores ou mesmo em seu partido de vanguarda. Combater o burocratismo e o reformismo envolve uma luta políticacontínua contra a influências e pressões de todos os lados que a sociedade burguesa busca lavar ao movimento dos trabalhadores, à suas várias camadas e à sua vanguarda.
A Posição Leninista Sobre a Aristocracia Operária
Os marxistas da Segunda Internacional estavam plenamente cientes que a classe operária como um todo não apoiava o socialismo. Muitos trabalhadores aderiam à ideologias burguesas (por exemplo, religião) e apoiavam partidos capitalistas. Socialdemocratas pré-1914 em geral associavam o atraso político com o atraso social. Em particular eles viam que trabalhadores a pouco tirados do campesinato e outros pequenos proprietários tendiam a reter a visão de mundo de sua antiga classe. Assim, Kautsky escreveu em seu A Estrada para o Poder, de 1909:
“Após um grande termo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade.”
Em outras palavras, a posição socialdemocrata clássica era a de que aqueles trabalhadores que tinham um baixo nível cultural, eram pouco dotados de compreensão, desorganizados, vinham de um passado rural, etc., seriam os mais submissos com relação à autoridade burguesa. No contexto da Alemanha e da França do século XIX, essa generalização político-sociológica era válida.
Entretanto, com o desenvolvimento de um forte movimento sindical, o conservadorismo social e político apareceu no topo da classe trabalhadora e não apenas na base. Trabalhadores dotados de grande poder de entendimento, em sindicatos fortes de ofício, se isolaram a um certo nível do mercado de trabalho e do desemprego cíclico e tenderam a expressar uma visão de mundo estreita e corporativa.
O fenômeno da casta aristocrática operária, como aquele da burocracia do trabalho, se manifestou primeiro na Inglaterra vitoriana. O espírito estreito e corporativo dos sindicatos oficiais britânicos era bem conhecido. Além do mais, a camada superior da classe trabalhadora britânica era quase exclusivamente inglesa e escocesa, enquanto os irlandeses eram uma parte significativa da força de trabalho desqualificada.
A composição da socialdemocracia alemã pré-guerra consistia largamente dos trabalhadores mais bem qualificados. Zinoviev viu nessa composição sociológica uma importante fonte de reformismo:
“… a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata de Berlim é composta de trabalhadores treinados, qualificados. Em outras palavras, a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata consiste da camada mais bem paga do mundo do trabalho – daquela camada na qual surge a grande seção da aristocracia operária. [ênfase no original]
– A Guerra e a Crise do Socialismo
Zinoviev não faz tentativa alguma de demonstrar empiricamente que a aristocracia operária provia a base para a ala direita do SPD; ele meramente afirma isso. Ele pode então ser criticado por transportar mecanicamente a sociologia política da Grã-bretanha vitoriana para o terreno muito diferente da Alemanha wilhelminiana. O sindicalismo de ofício nunca prestou um papel tão importante na Alemanha quanto na Grã-bretanha. Por outro lado, o atraso rural era amplamente presente na vida política da Alemanha imediatamente antes da guerra. A base sólida da ala de direita do SPD eram as organizações provinciais do partido. Burocratas da ala direita tentavam conter os radicais, que eram sempre concentrados nas grandes cidades, desestabilizando os distritos eleitorais do partido em favor das pequenas cidades. O filho de um camponês, trabalhando como um operário sem qualificação tendia mais a apoiar a direita do SPD, representada por Bernstein e Eduard David, do que um mestre mecânico de Berlim.
Entretanto, se Zinoviev foi muito mecanicista ao impor um modelo britânico da base social do oportunismo no SPD, a posição leninista básica sobre a estratificação da classe trabalhadora na época imperialista permanece válida. Em países capitalistas avançados, com um movimento operário grande e bem estabelecido, a camada mais alta da classe trabalhadora tenderá frequentemente em direção ao conservadorismo político e social em relação à massa do proletariado. Além do mais, com certos limites econômicos, a burguesia e a burocracia do trabalho podem esticar a diferença entre a aristocracia operária e a classe como um todo.
Zinoviev está certamente correto quando ele escreve:
“Para fomentar divisões entre as várias camadas da classe trabalhadora, pra promover competição entre eles, para segregar a camada superior do resto do proletariado corrompendo-a e tornando-a uma agência da ‘respeitabilidade’ – ou seja, inteiramente dentro dos interesses da burguesia…. Eles [os socialchauvinistas] dividem a classe trabalhadora dentro de cada país e dessa forma intensificam e agravam a separação entre as classes trabalhadoras de vários países.”
– Zinoviev (Op. cit.)
A camada mais alta da classe trabalhadora não é sempre e em todo lugar politicamente à direita da massa do proletariado. Algumas vezes a maior segurança econômica dos trabalhadores mais bem qualificados produz uma situação onde eles mantém uma atitude política mais radical do que a massa dos trabalhadores organizados, que estão mais preocupados com as suas necessidades materiais do dia-a-dia. Assim, na Alemanha da República de Weimar nos anos 1920, o apoio comunista entre trabalhadores bem treinados era relativamente maior que entre a força de trabalho simples das fábricas, que buscava os socialdemocratas por reformas imediatas. Franz Borkenau escreveu sobre a composição do Partido Comunista Alemão em 1927:
“… trabalhadores qualificados e pessoas que foram trabalhadores qualificados fazem dois quintos dos membros do partido; se suas companheiras se somassem a essa conta, eles formariam provavelmente quase metade…. Se existe tal coisa como uma aristocracia operária, ela está bem aqui.”
– Comunismo no Mundo (1939)
A posição de Lenin sobre a aristocracia operária foi uma importante correção da orientação positiva, tradicional socialdemocrata para esse setor, uma orientação que era em parte uma reação conservadora ao rápido crescimento da força de trabalho com pouca formação vinda de um campesinato politicamente conservador e socialmente atrasado. Enquanto trabalhadores de origem rural podem ser extremamente militantes, eles são muito instáveis e difíceis de organizar numa base estável. Por exemplo, os operários migrantes e grupos semelhantes (como os camisas-pardas, por exemplo) lançados na organização sindical American Industrial Workers of the World, dos Estados Unidos, antes da Primeira Guerra Mundial, demonstraram grande combatividade, mas também uma grande instabilidade organizativa.
Nenhum auto-professado marxista mantém hoje uma orientação tão positiva com relação às seções mais bem qualificadas, mais bem pagas da classe trabalhadora como fazia a socialdemocracia. Ao contrário, durante o período passado o “marxismo” da Nova Esquerda foi a um extremo oposto, desprezando todo o proletariado organizado nos países capitalistas avançados como “aristocracia operária” comprados pelos espólios do imperialismo. Assim como no tempo em que o ataque dos marxistas revolucionários era explorado pelos anarco-sindicalistas, em nosso tempo a análise crítica de Lenin sobre o papel da aristocracia operária é desvirtuado e explorado para servir ao radicalismo anti-proletário, pequeno burguês, particularmente o nacionalismo.
Um líder inspirador intelectual do terceiro mundismo da Nova Esquerda (mais ou menos associado com o maoísmo) foi Paul Sweezy, da Monthly Review. Sua distorção revisionista da análise de Lenin sobre a aristocracia operária é apresentada com angularidade especial num artigo do centenário da publicação do primeiro volume de O Capital, “Marx e o Proletariado” (Monthly Review, dezembro de 1967). Aqui, Sweezy revindica o Imperialismo de Lenin para propor que a principal força social da revolução passou para as massas rurais nos países atrasados:
“A maior contribuição dele [Lenin] foi seu pequeno livro Imperialismo: A Fase Superior do Capitalismo que, tendo sido publicado em 1917, tem exatamente metade da idade que o primeiro volume de O Capital. Lá ele argumenta que ‘o capitalismo se tornou um sistema mundial de opressão colonial e da estrangulação financeira da esmagadora maioria dos povos do mundo por um punhado de “países avançados”’…. Ele também argumenta que os capitalistas dos países imperialistas podem e usam parte do seu ‘saque’ para subornar e trazer para o seu lado uma aristocracia operária. Tão longe quanto é levada em conta a lógica do argumento, ela pode ser estendida a uma maioria ou ainda a todos os trabalhadores dos países industrializados. De qualquer forma está claro que levando em conta o caráter global do sistema capitalista, nos são fornecidas fortes razões adicionais para acreditar que a tendência nesse estágio do desenvolvimento capitalista será gerar um proletariado cada vez menos do que mais revolucionário.” [nossa ênfase]
A Nova Esquerda está bastante errada em simplesmente identificar a aristocracia operária com os setores mais bem pagos do proletariado. Em primeiro lugar, muitos dos trabalhadores relativamente bem pagos (por exemplo, motoristas ou caminhoneiros nos Estados Unidos) são membros dos sindicatos industriais de trabalhadores sem qualificação ou com pouca qualificação, e ganham seus níveis de salário através de luta militante contra os patrões e não com suborno ou cargo de confiança imperialista. Nem podem todos os sindicatos oficiais serem contados entre a aristocracia operária. Os costureiros e os portuários, organizados em linhas oficiais, estão entre os trabalhadores sindicalizados menos bem pagos nos Estados Unidos.
Em Imperialismo e outros escritos relacionados, Lenin enfatiza de novo e de novo que a aristocracia operária representava uma minoria do proletariado. E isso não era uma estimativa empírica, mas uma proposição sociológica básica. Um grupo só pode ocupar uma posição social privilegiada em relação às massas trabalhadoras da sociedade da qual é parte. A noção da Nova Esquerda terceiro-mundista de que o proletariado nos centros imperialistas é uma aristocracia operária em relação às empobrecidas massas coloniais nega que a classe trabalhadora européia e norte-americana é centralmente definida pela exploração pelas mãos da “sua” burguesia. Isso é metodologicamente similar ao argumento dos apologistas do Apartheid na África do Sul de que os trabalhadores negros nesse país estão melhor do que aqueles no resto da África.
Entretanto, o revisionismo de Sweezy não se limita a estender a categoria de aristocracia operária à maioria dos trabalhadores nos países capitalistas avançados. Ele também distorce a atitude de Lenin com relação à aristocracia operária em si, que é uma categoria sociológica e não política. Para a camada mais alta da classe trabalhadora, a defesa dos seus pequenos privilégios em geral domina sua consciência e ação. É portanto um intermédio cultural para a falsa consciência que enxerga os interesses dos trabalhadores como ligados aos da “sua” burguesia (apoio à guerra imperialista, protecionismo, esquemas de “divisão dos lucros”, etc.). Mas a aristocracia operária também faz parte da classe trabalhadora, dividindo interesses comuns de classe com o resto do proletariado, e assim não pode ser considerada como inerentemente e terminalmente pró-imperialista. Sob condições capitalistas normais, a aristocracia operária poderá muito bem buscar vantagens econômicas de curto prazo sob os custos da classe como um todo. Entretanto, sob o impacto de uma profunda depressão econômica, uma guerra devastadora, etc., os interesses de longo prazo dessa camada como um setor do proletariado tenderão a vir à tona.
Leninistas até mesmo buscam ganhar os setores super-explorados da pequeno-burguesia (por exemplo, professores, pequenos agricultores) para a causa do socialismo revolucionário. Portanto, eles não podem entregar pura e simplesmente um setor da classe trabalhadora, apesar de ser um setor relativamente privilegiado, aburguesado, ao campo da contra-revolução burguesa. Grupos da aristocracia operária podem terminar no lado errado da barricada numa situação revolucionária. Na revolução de outubro, os relativamente bem pagos trabalhadores das ferrovias proveram a base para as atividades contra-revolucionárias dos Mencheviques. Entretanto, os petroleiros do México, sendo um grupo proletário de elite num país atrasado, tem há muito estado entre os setores mais avançados no movimento operário desse país. Em um importante artigo escrito pouco depois de Imperialismo, Lenin explicitamente declara que a fração do proletariado que vai no final ficar do lado da burguesia só pode ser determinado através da luta política:
“Nem nós e nem ninguém pode calcular precisamente que porção do proletariado está seguindo e irá seguir os socialchauvinistas e oportunistas. Isso será revelado apenas pela luta, isso irá definitivamente ser decidido apenas pela revolução socialista.”
– “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916)
A atitude leninista com relação à aristocracia operária é significativamente diferente daquela com relação à sua liderança, a burocracia do trabalho. Na época imperialista, a era da decadência capitalista, reformismo bem sucedido é impossível. Assim, quaisquer que sejam seu passado e sua motivação original, a não ser que eles explicitamente adotem um curso revolucionário, os líderes do movimento operário são forçados por seu papel social a subordinar os interesses dos trabalhadores à burguesia. Como Lenin escreveu posteriormente sobre os “capangas operários da burguesia”:
“O imperialismo do tempo presente (século XX) deu a alguns poucos países avançados uma posição excepcionalmente privilegiada, a qual, em toda a parte da Segunda Internacional, produziu um certo tipo de líderes traidores, oportunistas e socialchauvinistas, que defendem os interesses da sua própria oficialidade, do seu próprio setor da aristocracia operária…. O proletariado revolucionário não pode ser vitorioso a não ser que esse mal seja combatido, a não ser que os líderes oportunistas, social-traidores, sejam expostos, desacreditados e expulsos.”
– Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo (1920)
Em contraste, trabalhadores treinados, bem pagos, enquanto mais suscetíveis à ideologia burguesa conservadora, não são “agentes da burguesia no movimento operário” (Idem). Assim como o resto do proletariado, eles devem ser ganhos para longe dos seus falsos líderes traiçoeiros.
O Marxismo Clássico e o Partido Leninista de Vanguarda
Em 1916, Lenin havia desenvolvido ambas as bases programática e teórica para um racha com a socialdemocracia oficial e a criação de um partido de vanguarda internacional tendo como modelo os Bolcheviques. A verdadeira formação da Internacional Comunista em 1919 foi, é claro, decisivamente afetada pela revolução bolchevique e o estabelecimento do Estado Soviético. Entretanto, esta série analisa a evolução da posição de Lenin na questão organizativa se afastando da socialdemocracia revolucionária tradicional. E esse processo foi essencialmente completado antes da revolução russa. Nós assim concluímos com uma discussão sobre a relação do partido leninista de vanguarda com a experiência marxista anterior na questão organizativa.
No que diz respeito ao partido de vanguarda, a história do movimento marxista parece paradoxal. A primeira organização marxista, a Liga Comunista de 1847-52, era um grupo de propaganda de vanguarda que claramente se demarcava de todas as outras tendências no movimento socialista e no movimento operário (ou seja, o blanquismo, o “real” socialismo alemão, o cartismo britânico). Em contraste, a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional), estabelecida uma geração depois, procurava ser um órgão inclusivo, abarcando todas as organizações da classe trabalhadora. Um pilar central da Primeira Internacional era o movimento sindical inglês, que apoiava politicamente os liberais burgueses. A (Segunda) Internacional Socialista, embora sua seção dominante fosse a socialdemocracia marxista alemã, buscava incluir todos os partidos socialistas operários. Em 1908, a Segunda Internacional admitiu até mesmo o recém-formado Partido Operário Britânico, que não se reivindicava socialista. Assim, a Internacional Comunista de 1919 era em certo sentido uma ressurreição da Liga Comunista de 1848 com uma base de massas.
Como se explica a ausência do princípio do partido de vanguarda no marxismo clássico do fim do século XIX?
Escritores stalinistas algumas vezes negam esse fato, distorcendo a história para fazer de Marx/Engels defensores dos princípios de organização leninistas. Por outro lado, seria idealismo anti-histórico criticar Marx e Engels por sua política organizativa e considerar que o equivalente da Internacional Comunista poderia e deveria ter sido estabelecido entre 1860-90.
A formação da Liga Comunista de 1847 se afirmou diante de uma revolução democrático-burguesa iminente. A tarefa de organizar o povo, incluindo o proletariado urbano-artesão, estava sendo realizada pelo amplo movimento democrático revolucionário. A tarefa da Liga Comunista era competir pela liderança de um movimento revolucionário existente contra os democratas burgueses (assim como os socialistas utópicos). A Liga Comunista definia então a si própria como a vanguarda socialista operária do movimento revolucionário democrático-burguês. Com o fim definitivo do período revolucionário de 1848 (assinalado pelo julgamento dos comunistas de Colônia em 1952), a estratégia de Marx e seu componente organizativo se tornaram inviáveis.
Entre as revoluções de 1848 e a revolução russa de 1905, as possibilidades de uma revolução democrático-burguesa bem sucedida tinham sido esgotadas enquanto as bases econômicas para uma revolução proletário-socialista ainda eram imaturas nos principais países da Europa Ocidental (a Grã-bretanha apresentava seus próprios problemas excepcionais nesse respeito. Entretanto, mesmo que a Grã-bretanha fosse muito mais avançada que a França ou a Alemanha nos anos de 1850, o número de servos domésticos ainda era maior que o de trabalhadores industriais). A tarefa dos socialistas era criar as precondições para uma revolução socialista através da organização do proletariado a partir de uma condição minúscula. Além do mais, nas décadas que se seguiram imediatamente à derrota de 1848, organizações estáveis de massa da classe trabalhadora foram impedidas na Alemanha e na França por uma efetiva repressão do Estado.
Um partido de vanguarda de tipo leninista na Alemanha ou na França entre 1860-90 teria existido num vácuo político desrelacionado a qualquer movimento potencialmente revolucionário mais amplo. Assim, no período seguinte à dissolução da Primeira Internacional, Marx se opôs ao restabelecimento de um centro internacional como uma digressão da tarefa de construir um movimento dos trabalhadores realmente capaz de derrubar o capitalismo. Numa carta (22 de fevereiro de 1881) ao anarquista holandês Ferdinand Domela-Nieuwenhuis, ele escreveu:
“É minha convicção que a conjuntura crítica para uma nova Associação Internacional dos Trabalhadores ainda não chegou e por essa razão eu considero todos os congressos dos trabalhadores ou congressos socialistas, até onde eles não estejam relacionados diretamente às condições existentes nessa ou naquela nação, não como meramente inúteis, mas na verdade danosos. Eles sempre irão terminar de maneira inefetiva com intermináveis e repetidas discussões banais.”
– Marx/Engels, Correspondência Selecionada (1975)
Na Europa ocidental, a transição do movimento revolucionário democrático-burguês para partidos socialistas proletários de massa exigiu uma época inteira envolvendo décadas de atividade preparatória.
A situação que enfrentavam os marxistas na Rússia czarista era fundamentalmente diferente. Lá, uma revolução democrático-burguesa aparecia numa previsão de curto prazo. Existia um movimento revolucionário democrático-burguês na forma de populismo radical-socialista com amplo apoio da intelectualidade.
Em aspectos importantes, as condições diante do grupo Emancipação do Trabalho de Plekhanov nos anos de 1880 eram paralelas àquelas da Liga Comunista antes da revolução de 1848. Plekhanov projetava um partido proletário (iniciado pela intelectualidade socialista) que iria agir como vanguarda na revolução democrático-burguesa, enquanto se demarcando de forma clara de todas as correntes pequeno-burguesas radicais. Essa concepção vanguardista é claramente atestada no programa do grupo Emancipação do Trabalho de 1883:
“Uma das consequências mais danosas do estado de atraso da produção era e ainda é o subdesenvolvimento da classe média, que, em nosso país, é incapaz de tomar a iniciativana luta contra o absolutismo.”
“É por isso que a nossa intelligentsia socialista foi obrigada a liderar o movimento de emancipação dos dias de hoje, o qual a tarefa direta deve ser estabelecer instituições políticas livres no nosso país, os socialistas por sua vez estando na obrigação de prover a classe trabalhadora com a possibilidade de desempenhar um papel ativo e frutífero na futura vida política da Rússia.” [ênfase no original]
– G. Plekhanov, Trabalhos Filosóficos Selecionados, Volume 1 (1961)
Na Alemanha bismarckiana e wilhelminiana, todos os partidos burgueses eram hostis à socialdemocracia, que representava ao mesmo tempo a totalidade do movimento dos trabalhadores e de longe a mais significativa força por mudança política democrática. O Partido Católico de Centro, os Nacional-liberais, e os Progressistas eram vistos apenas episodicamente como um desafio para o governo semi-autocrático. Em contraste, os socialdemocratas russos tinham que competir por militantes e por influência popular, inclusive entre o proletariado industrial, com os populistas radicais e às vezes até mesmo com os liberais. Além do mais, uma vez que a Rússia era um Estado multinacional, os socialdemocratas também tinham que competir com os partidos nacionalistas de esquerda como o Partido Radical Democrático da Ucrânia e o Partido Socialista Polonês, e partidos similares na região báltica e no Cáucaso.
Os princípios organizativos da socialdemocracia de Plekhanov tinham assim um duplo caráter. No que diz respeito ao proletariado, os primeiros socialdemocratas russos buscavam se tornar “o partido de toda a classe”, imitando o SPD. Mas eles também buscavam se tornar a vanguarda de todas as diversas forças anti-czaristas no Império Russo.
Da socialdemocracia de Plekhanov, Lenin herdou as concepções vanguardistas ausentes nos partidos socialistas da Europa Ocidental. O significado da luta contra o economicismo, que foi iniciada por Plekhanov e não Lenin, era preservar o papel de vanguarda da socialdemocracia em relação às amplas, heterogêneas forças democrático-burguesas. Por Lenin ter rachado a socialdemocracia russa (1903) antes de ter atingido uma base de massas, ele não reconheceu inteiramente o significado do que tinha feito. Ele considerou o racha com os Mencheviques como uma legítima continuação da luta para separar o socialismo proletário da democracia pequeno-burguesa. Na realidade, ele tinha separado os revolucionários socialistas dos reformistas, ambos buscando uma base na classe trabalhadora.
O significado mundial histórico do bolchevismo pré-1914 foi que ele antecipou os princípios organizativos requeridos para a vitória na época imperialista do capitalismo e na revolução proletária. Como a época da degeneração capitalista se abriu com a Primeira Guerra Mundial, o principal obstáculo para a revolução proletária não era mais o subdesenvolvimento da sociedade burguesa e do movimento dos trabalhadores. Era agora a reacionária burocracia do trabalho, descansando sobre um poderoso movimento operário, que preservava um sistema social obsoleto. A primeira tarefa dos revolucionários socialistas era, dessa forma, derrotar e substituir os reformistas como a liderança do movimento de massa dos trabalhadores, a precondição para liderar tal movimento para a vitória sobre o capitalismo e lançar as bases para uma sociedade socialista. Essa tarefa tem um caráter duplo. O estabelecimento de um partido revolucionário de vanguarda divide o movimento da classe trabalhadora politicamente. Entretanto, um partido de vanguarda busca liderar as massas do proletariado unidas através de organizações econômicas na luta de classes, os sindicatos. Numa situação revolucionária, um partido de vanguarda busca liderar uma classe trabalhadora unida para tomar o poder através de sovietes, a base organizativa de um governo direto dos trabalhadores.

Lenin e o Partido de Vanguarda (6)

O Racha Final com os Mencheviques

Seguindo o golpe de Stolypin em junho de 1907, o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) foi posto na ilegalidade e seus representantes na Duma presos. Restos do partido poderiam continuar a existir em organizações operárias legais ou semi-legais (por exemplo, sindicatos, cooperativas), mas o partido como tal só poderia existir como uma organização clandestina. O programa completo do partido só poderia ser apresentado na imprensa ilegal. No fim de 1907 – começo de 1908, os comitês locais do POSDR teriam que entrar na clandestinidade se quisessem sobreviver como órgãos funcionais.
A necessária transformação em uma organização clandestina iria, por si própria, resultar numa considerável contração no partido. Muitos trabalhadores crus e intelectuais radicalizados ganhos para o partido durante o período revolucionário não se sentiam confortáveis ou se sentiam incapazes de funcionar como uma rede secreta. Além do mais, a onda de desespero que arrastou as massas trabalhadoras com a vitória da reação czarista reforçou o êxodo do POSDR ilegal e perseguido. Em torno de 1908, o POSDR só pôde existir como uma rede relativamente estreita de revolucionários comprometidos. 
Liquidacionismo Menchevique e seus Propósitos
Assim, as condições de 1908 ressuscitaram as diferenças organizativas originais que haviam dividido a socialdemocracia russa entre Bolcheviques e Mencheviques. Como nós vimos, no congresso “de reunificação” de 1906, os Mencheviques aceitaram a definição do critério para ser membro de Lenin porque, sob as condições relativamente abertas que prevaleciam naquele momento, participação e disciplina organizativa formal não era um impedimento para um amplo recrutamento. Mas em 1908 a velha disputa entre um partido estreito e centralizado contra uma organização ampla e amorfa prorrompeu com fúria renovada.
A maior parte dos quadros mencheviques não seguiu os Bolcheviques rumo à clandestinidade. Sob a liderança de A.N. Potresov, o membro de liderança da sua tendência na Rússia, os militantes mencheviques se limitaram às organizações operárias legais e se dedicaram a produzir uma imprensa legal. Esses ativistas socialdemocratas, sujeitos a nenhuma disciplina ou organização partidária, apesar disso se consideravam membros do POSDR e assim eram considerados pela liderança menchevique no estrangeiro. Lenin denunciou essa política menchevique como liquidacionismo, uma dissolução do POSDR na prática, para dar lugar a uma movimento amorfo baseado em políticas trabalhistas-liberais.
O conflito bolchevique-menchevique sobre o liquidacionismo não pode ser analisado simplesmente como uma expressão de princípios organizativos antagônicos. O liquidacionismo menchevique era fortemente condicionado pelo fato de que os Bolcheviques tinham a maioria dos órgãos de liderança do POSDR oficial. O liquidacionismo era uma forma extrema de uma tendência mais geral dos Mencheviques de se dissociarem da liderança leninista do POSDR.
No fim de 1907 a delegação do POSDR na nova Duma, na qual os Mencheviques eram maioria, declarou sua independência do centro do partido no exílio, argumentando que essa era uma proteção legal necessária. Negar publicamente a subordinação dos delegados na Duma à liderança do partido no exílio poderia ter sido uma medida de segurança legítima. Mas os parlamentares mencheviques deram a essa proteção legal um conteúdo político real. As ações oportunistas dos parlamentares mencheviques reforçaram os ultra-esquerdistas bolcheviques, que desejavam boicotar a Duma de uma vez. É bom lembrar que nesse momento os ultra-esquerdistas eram uma tendência dentro dos Bolcheviques, como explicamos no capítulo cinco dessa série.
No começo de 1908, a liderança dos Mencheviques no exílio (Martov, Dan, Axelrod, Plekhanov) restabeleceu o seu órgão fracional, o Golos Sotsial-Demokrata (Voz do Socialdemocrata). Em meados de 1908 o membro do Comitê Central residente na Rússia, M.I. Broido, se retirou ostensivamente em protesto contra as expropriações armadas dos Bolcheviques. Por volta do mesmo período, os dois membros mencheviques do Comitê Central no exterior, B.I. Goldmann e Martynov, fizeram circular um memorando declarando que, em vista do estado desorganizado do movimento na Rússia, a liderança oficial do partido não iria mais emitir instruções, mas ao invés disso se limitar a passivamente monitorar a atividade socialdemocrata.
Se estivesse Martov, ao invés de Lenin, no comando do POSDR oficial, os Mencheviques teriam sem dúvida sido absolutamente leais à organização partidária estabelecida (e mais, teriam usado impiedosamente as regras do partido como uma espada para cortar os Bolcheviques em pedaços). Entretanto, como eram contra os leninistas, os Mencheviques se opuseram por princípio a definir o partido socialdemocrata como uma organização clandestina. A posição de Martov com relação a uma organização clandestina e o partido é precisamente explicada na edição de agosto-setembro de 1909 doGolos Sotsial-Demokrata:
“… uma organização mais ou menos definida e até um certo ponto conspirativa agora faz sentido (e grande sentido) apenas até onde ela toma parte na construção de um partido socialdemocrata, que por necessidade é menos definido e tem seus pontos de apoio nas organizações abertas dos trabalhadores.” [ênfase no original]
– citado em Israel Getzler, Martov (1967)
Essa posição por limitar o significado da clandestinidade representava ao mesmo tempo um desejo por respeitabilidade liberal-burguesa e uma tendência para identificar o partido com as organizações operárias amplas, inclusivas.
Os Mencheviques estavam prontos para se engajar numa atividade ilegal, clandestina para dar prosseguimento ao seu próprio programa e forma de organização, enquanto se opunham a um partido clandestino como tal. Começando em 1911, os Mencheviques liquidacionistas criaram a sua própria rede clandestina, embora ela não fosse tão efetiva quanto à dos Bolcheviques e nem tivesse a sua influência de massa.
O liquidacionismo menchevique de 1908-12 foi uma expressão extrema do oportunismo socialdemocrata resultante dos fatores principais a seguir: 1) um desejo por respeitabilidade liberal-burguesa; 2) uma tendência geral para identificar o partido com as organizações operárias amplas, inclusivas; 3) o fato de que tais organizações eram legais, enquanto o partido não poderia ser; 4) A liderança de Lenin no POSDR oficial; e 5) a fraqueza organizativa dos Mencheviques.
A Batalha se Desenvolve
A batalha sobre o liquidacionismo foi primeiramente desenvolvida de maneira formal na conferência do POSDR ocorrida em Paris em dezembro de 1908.
Nessa conferência os Bolcheviques tinham cinco delegados (três deles ultra-esquerdistas) e seus aliados, os socialdemocratas poloneses de Luxemburgo e Jogiches, tinham cinco; já os Mencheviques tinham três delegados e seu aliado, o Bund Judaico, tinha três.
Todos os participantes dessa conferência (com exceção dos bolcheviques ultra-esquerdistas) reconheceram que a situação revolucionária havia definitivamente acabado, e que um período indefinido de reação esperava à frente. As tarefas e perspectivas do partido deveriam mudar de acordo. Nesse contexto Lenin apontou a necessidade de primazia por uma organização ilegal do partido. A resolução de Lenin nessa questão foi aprovada, com os Mencheviques votando contra e os membros do Bund se dividindo:
“… as condições políticas mudadas fazem com que seja crescentemente impossível realizar a atividade socialdemocrata dentro do quadro das organizações operárias legais e semi-legais….”
“O partido deve devotar particular atenção à utilização e reforço das organizações ilegais, semi-legais e legais, onde possível, que já existem – e à criação de novas delas – que possam servir como fortes pontos para trabalho de propaganda, agitação e organização prática entre as massas…. Esse trabalho será possível e dará frutos apenas se existir em cada empresa industrial um comitê de trabalhadores, consistindo somente de membros do partido, ainda que sejam poucos em número, que estarão intimamente ligados às massas, e se todo o trabalho das organizações legais for conduzido sob a liderança de uma organização partidária ilegal.” [nossa ênfase]
– Robert H. McNeal, ed., Resoluções e Decisões do Partido Comunista da União Soviética(1974)
Lenin usou sua maioria na conferência de 1908 do POSDR para condenar o liquidacionismo por esse nome, apresentando-o como uma expressão da instabilidade e do carreirismo da intelectualidade radical:
“Notando que em muitos lugares uma seção da intelligentsia do partido está tentando liquidar a organização existente do POSDR e substituí-la por uma amalgamação disforme dentro do quadro da legalidade, não importa o quanto isto custe – até mesmo o preço da rejeição aberta ao programa, tarefas e tradições do partido – a conferência considera essencial conduzir a mais resoluta luta ideológica e organizativa contra esses esforços liquidacionistas….” – Idem.
Como já foi discutido (no capítulo um), Lenin considerava o menchevismo uma expressão dos interesses e atitudes da intelectualidade radical, ao invés de uma corrente oportunista interna ao movimento dos trabalhadores. Aqui Lenin seguiu a metodologia de Kautsky, que localizava as bases sociológicas do revisionismo em companheiros de viagem pequeno-burgueses da socialdemocracia.
Os Mencheviques de forma semelhante acusavam os Bolcheviques de Lenin de representar um desvio pequeno-burguês … anarquismo. Por exemplo, no começo de 1908 Plekhanov descreveu o lançamento do órgão menchevique, Golos Sotsial-Demokrata, como um primeiro passo em direção ao “triunfo dos princípios socialdemocratas sobre o bakuninismo bolchevique” (citado em Leonard Shapiro, O Partido Comunista da União Soviética [1960]). Os Mencheviques explicaram o apoio dos Bolcheviques no seio da classe operária argumentando que os leninistas demagogicamente exploravam o primitivismo do proletariado russo, um proletariado ainda ligado fortemente ao campesinato.
Assim, ambos os lados acusavam o outro de não serem verdadeiros socialdemocratas (ou seja, socialistas orientados para a classe operária). Os Bolcheviques viam os Mencheviques como democratas pequeno-burgueses, a ala esquerda do liberalismo, os filhotes radicalizados dos Cadetes. Os Mencheviques condenavam os Bolcheviques como anarquistas pequeno-burgueses, radicais populistas disfarçados de socialdemocratas. Essas acusações mútuas não eram demagogia ou exageros polêmicos; eles genuinamente expressavam a forma com a qual os Bolcheviques viam os Mencheviques e vice-versa. Uma vez que ambos os partidos aderiam aos princípio de um partido unitário de todos os socialdemocratas, os Bolcheviques e os Mencheviques só poderiam justificar seu racha declarando que o outro grupo não era realmente parte do movimento proletário socialista.
Mencheviques Pró-partido e Conciliadores Bolcheviques
No fim de 1908 a campanha de Lenin contra os liquidacionistas ganhou apoio da fonte mais inesperada possível … Plekhanov. O grande velho homem do marxismo russo rompeu de forma aguda com a liderança menchevique, estabeleceu seu próprio jornal, Dnevnik Sotsial-Demokrata (Diário do Socialdemocrata), e atacou o abandono das organizações partidárias estabelecidas em palavras e tom similares aos de Lenin.
O comportamento político de Plekhanov entre 1909-11 é de cara algo intrigante, já que ele tinha até então estado na ala extrema direita dos Mencheviques em quase todas as questões, incluindo uma defesa voraz de um racha com Lenin. Considerações subjetivas podem ter desempenhado certo papel. Plekhanov era extremamente orgulhoso e pode muito bem ter se ressentido ao ser eclipsado pelos jovens líderes mencheviques (por exemplo Martov, Potresov). Ele pode ter considerado que uma estância de “menchevique pró-partido” lhe permitiria se restabelecer como a autoridade líder da socialdemocracia russa.
Entretanto, a posição anti-liquidacionista de Plekhanov não está em tamanha variância com sua visão política geral como possa parecer de primeira. Plekhanov sempre acreditou na necessidade de uma liderança marxista (ou seja socialista científica) sobre a espontaneidade da classe trabalhadora. Foi essa crença que o impeliu na luta intransigente contra o economicismo em 1900. Paradoxalmente, a posição de Plekhanov na ala direita durante a revolução de 1905 reforçou a sua descrença na espontaneidade das massas. Para Plekhanov, um forte partido socialdemocrata era necessário parareprimir o que ele acreditava fossem os impulsos anarquistas, primitivistas do proletariado russo. No conflito entre Plekhanov e os liquidacionistas russos, nós vemos a diferença entre um marxista ortodoxo pré-1914, comprometido com uma revolução democrático-burguesa na Rússia, e um grupo de reformistas do movimento operário primeiramente preocupados em defender os interesses econômicos imediatos dos trabalhadores russos.
Os mencheviques “pró-partido” de Plekhanov eram pequenos em número e apenas alguns deles no final se uniram aos Bolcheviques. O próprio Plekhanov se opôs a Lenin quando, na conferência de Praga em janeiro de 1912, o último declarou que os Bolcheviques eram o POSDR, criando assim um Partido Bolchevique em separado. Entretanto, o impacto dos mencheviques “pró-partido” de Plekhanov na luta entre as tendências era amplamente desproporcional aos seus pequenos números. Plekhanov retinha grande autoridade no movimento socialdemocrata internacional e na Rússia. Suas estridentes acusações de que os principais órgãos mencheviques estavam liquidando o partido socialdemocrata reforçou enormemente a credibilidade da posição de Lenin, uma vez que Plekhanov não poderia ser facilmente acusado de distorção tendenciosa ou exagero. Os poucos mencheviques “pró-partido” que se juntaram aos Bolcheviques em 1912 adicionaram muita legitimidade à reivindicação de Lenin de representar o POSDR oficial.
Por volta de 1909, os Bolcheviques e Mencheviques na Rússia haviam se separado em dois grupos distintos competindo por influência de massa. Numa conferência da liderança Bolchevique em meados de 1909, Lenin argumenta que a tendência Bolchevique havia na prática se tornado o POSDR:
“… uma coisa deve ser posta de maneira firme em mente: a responsabilidade de ‘preservar e consolidar’ o POSDR, da qual a resolução trata, agora repousa primariamente, se não completamente, na tendência Bolchevique. Todo, ou praticamente todo, o trabalho do partido em progresso, particularmente nos municípios, agora está sendo levado nos ombros dos Bolcheviques.” [nossa ênfase] – “Relatório sobre a Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (julho de 1909)
Ao mesmo tempo ele sublinhou a importância de unidade com os mencheviques “pró-partido” de Plekhanov:

“Quais são afinal as tarefas dos Bolcheviques em relação a esta até então pequena seção dos Mencheviques que estão lutando contra o liquidacionismo? Os Bolcheviques devem sem dúvida buscar reaproximação com essa seção, com aqueles que são marxistas e desejosos de um partido.” [ênfase no original] – Op. cit.

A posição de Lenin de que os Bolcheviques (esperançosamente em aliança com os seguidores de Plekhanov) deveriam construir o partido sem e contra a maioria dos Mencheviques recebeu significativa resistência entre a liderança e também a base dos Bolcheviques. Uma forte tendência de conciliadores emergiu, liderada por Dobruvinsky (um antigo deputado na Duma), Rykov, Nogin e Lozovsky, que desejavam um compromisso político com os Mencheviques para poder restaurar um POSDR unificado.
De certa forma as forças de conciliação eram mais fortes em Berlim do que em São Petersburgo ou Moscou. A liderança do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) permaneceu sempre desejosa da unidade partidária na Rússia. Num clima particularmente sentimental, Kautsky expressou sua atitude sobre as tendências antagônicas na Rússia numa carta (5 de maio de 1911) para Plekhanov:
“… nesses dias eu recebi visitas de bolcheviques … mencheviques, otzovistas [ultra-esquerdistas], e liquidacionistas. Eles são todos pessoas amáveis e ao conversar com eles não se percebe grandes diferenças de opinião.” – citado em Getzler, Op. cit.
A liderança do SPD abriu sua imprensa para o mais importante dos conciliadores russos – Trotsky. Os artigos de Trotsky na influente imprensa do SPD tornaram a opinião socialdemocrata internacional fortemente em favor da unidade do partido russo e contra os extremistas em ambos os lados, Lenin pelos Bolcheviques e Potresov pelos Mencheviques.
Lenin Luta por um Partido Bolchevique
Diante de um forte grupo pró-unidade em sua própria base e sob pressão dos mencheviques “pró-partido” de Plekhanov e a liderança do SPD, Lenin relutantemente concordou com uma nova tentativa de unidade. Essa foi a plenária de janeiro de 1910 ocorrida em Paris. A representação na plenária replicou uma formação próxima do último congresso do partido em 1907. Os Bolcheviques tinham quatro delegados (três deles conciliadores), assim como os Mencheviques. O Bund Judaico pró-menchevique tinha dois delegados assim como o Social Democracia dos Reinos da Polônia e Lituânia (SDRPeL) pró-bolchevique de Luxemburgo/Jogiches. Os nominalmente pró-bolcheviques socialdemocratas da Letônia e o grupo ultra-esquerdista do Vperyod tinham um delegado cada.
Na plenária, os elementos conciliatórios impuseram uma série de compromissos sobre a liderança das duas tendência principais. A composição fracional dos órgãos de liderança do partido (o Conselho Editorial do Órgão Central, o Escritório Estrangeiro e o Conselho Russo do Comitê Central) estabelecida no congresso de 1907 foi mantida. Paridade entre Bolcheviques e Mencheviques foi mantida em todos os órgãos do partido, posicionando assim a balança do poder nas mãos dos partidos socialdemocratas regionais.
Sobre a questão chave da clandestinidade, uma resolução de compromisso foi trabalhada. Se opor ou depreciar a organização clandestina foi condenado, mas o termo “liquidacionismo” foi evitado por causa de sua conotação anti-menchevique. Por outro lado, os Mencheviques tiveram a satisfação moral de condenar as expropriações armadas dos Bolcheviques como uma violação da disciplina do partido.
A artificialidade do acordo de “unidade” de 1910 foi indicada pela recusa dos Mencheviques em permitir que Lenin administrasse os fundos do partido. O tesouro do partido foi então depositado nas mãos de três membros de confiança alemães – Kautsky, Klara Zetkin e Franz Mehring. (Kautsky, que não era sentimental quando se tratava de dinheiro, posteriormente ficou com o tesouro do partido russo sob argumento de que ele não teria um corpo representativo de liderança legítimo). A atitude crítica e desconfiada de Lenin com relação aos resultados da plenária do Comitê Central de Paris foi expressa numa carta (11 de abril de 1910) para Maxim Gorky:
“Na plenária do C.C. (a ‘longa plenária’ – três semanas de agonia, todos os nervos estavam à flor da pele, por mil demônios!) … havia um clima de ‘conciliação em geral’ (sem nenhuma idéia clara de com quem, pelo que, ou como); ódio contra o centro bolchevique por sua luta ideológica implacável; disputas na parte dos Mencheviques, que estavam pagando para brigar, e como resultado – nasceu uma monstruosidade de unidade, como um bebê coberto de pústulas.”
“E nós também tivemos que sofrer. Ou – para melhor – nós cortamos as pústulas, deixamos sair o pus e curamos e erguemos o bebê.”
“Ou para pior – o bebê morre. Então nós devemos ficar sem bebê por um tempo (isto é, nós devemos restabelecer a tendência Bolchevique) e então dar a luz a um bebê mais saudável.”
A desconfiança de Lenin nos Mencheviques foi rapidamente confirmada. Os mencheviques liquidacionistas na Rússia, liderados por P.A. Garvi, se recusaram terminantemente a entrar no conselho do Comitê Central russo como a plenária de Paris havia concordado. Assim, Lenin pôde pôr a culpa pelo racha nos Mencheviques e colocar os conciliadores bolcheviques na defensiva. Anos depois, Martov ainda ralhava com Garvi por seu erro tático, que muito ajudou Lenin.
No fim de 1910, Lenin declarou que os Mencheviques haviam quebrado os acordos feitos na plenária de Paris e que assim os Bolcheviques não estariam mais vinculados a eles. Em maio de 1911, Lenin chamou uma reunião de emergência da liderança bolchevique e seu aliados poloneses, que estabeleceram corpos paralelos para substituir os órgãos oficiais do POSDR, estabelecidos na plenária de Paris. Por exemplo, um Comitê Técnico foi formado para substituir o Escritório Estrangeiro do Comitê Central como o mais alto órgão administrativo do partido. Para Lenin esse foi um passo decisivo para construir um partido sem e contra os Mencheviques.
A essa altura os planos de Lenin foram impedidos pelo surgimento de um novo e temporariamente poderoso conciliador – Leo Jogiches, líder do SDRPeL. Jogiches era um formidável antagonista. Junto com os conciliadores bolcheviques (por exemplo, Rykov) ele tinha a maioria dos órgãos de liderança do partido, tais como o Comitê Técnico. Através de Rosa Luxemburgo ele influenciou os membros de confiança alemães que detinham as finanças do POSDR.
A luta de 1911 entre Jogiches e Lenin é geralmente considerada, particularmente por historiadores burgueses, como uma luta pessoal por poder. Entretanto, por trás da cisma entre o SDRPeL e os Bolcheviques de 1911-14 estava a diferença entre uma posição ortodoxa socialdemocrata sobre a questão do partido e o leninismo nascente. Luxemburgo/Jogiches estavam prontos para apoiar atendência Bolchevique dentro de um partido socialdemocrata unitário. Porém, eles não apoiariam a transformação do grupo bolchevique em um partido reivindicando ser o único representante legítimo da socialdemocracia. E Jogiches entendia que isso era o que Lenin estava de fato fazendo. Em uma carta para Kautsky (30 de junho de 1911) a respeito de finanças, ele escreveu que Lenin “quer se usar do caos no partido para conseguir o dinheiro para sua própria tendência e aplicar um golpe fatal contra o partido como um todo….” (citado em J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo [1961]).
A atitude de Lenin com Jogiches e os outros conciliadores é claramente expressa no rascunho do artigo, “O Estado de Coisas no Partido” (julho de 1911):
“Os ‘conciliadores’ não entenderam os caminhos ideológicos que nos mantém longe dos liquidacionistas, e dessa forma lhes deixaram uma série de lacunas e tem sido frequentemente (e involuntariamente) brinquedinhos nas mãos dos liquidacionistas….”
“Desde a revolução, os Bolcheviques, como uma tendência, atravessaram dois erros – (1) otzovismo-Vperyodismo e (2) conciliacionismo (oscilando na direção dos liquidacionistas). É tempo de nos livrarmos de ambos.”
“Nós Bolcheviques decidimos sob hipótese alguma repetir o (e não permitir uma repetição do) erro do conciliacionismo hoje. Isso significaria desacelerar a reconstrução do P.O.S.D.R., e entravá-lo num novo joguinho com as pessoas do Golos (ou seus lacaios, como Trotsky), os Vperyodistas e por aí a fora.” [ênfase no original]
No fim de 1911, Lenin rompeu com Jogiches e os conciliadores bolcheviques. Ele mandou um agente, Ordzhonikidze, para a Rússia, onde o último montou o Comitê Organizativo Russo (COR) que reivindicou ser o Comitê Central interino do POSDR. O COR chamou uma “conferência de toda a Rússia do POSDR”, que se reuniu em Praga em janeiro de 1912. Catorze delegados compareceram, doze bolcheviques e dois mencheviques pró-partido, um dos quais expressou a oposição de Plekhanov à conferência como um ato anti-unidade de partido.
A conferência decidiu que os liquidacionistas mencheviques deviam ficar de fora do POSDR. Ela também acabou com a estrutura nacional federada estabelecida no congresso de “reunificação” de 1906, de fato excluindo o Bund, o SDRPeL e os socialdemocratas da Letônia do partido russo. A conferência elegeu um novo Comitê Central, consistindo de seis Bolcheviques “rígidos” (anti-conciliadores) e um menchevique “pró-partido” para efeito simbólico. A conferência de Praga marcou um racha organizativo definitivo entre os socialdemocratas revolucionários de Lenin e os mencheviques oportunistas. Nesse importante sentido, Praga/1912 foi a conferência de fundação do Partido Bolchevique.
Lenin Buscou Unidade com os Mencheviques?
Antes mesmo de 1912, Lenin era comumente considerado um divisionista fanático, como a grande causa dos cismas na socialdemocracia russa. O significado histórico-mundial do racha bolchevique-menchevique é hoje universalmente reconhecido, e não menos por anti-leninistas. É portanto espantoso que alguém, particularmente um grupo que se reivindica leninista, possa manter que o líder bolchevique foi um fortíssimo defensor da unidade socialdemocrata, enquanto os mencheviques eram agressivos divisionistas.
No entanto essa é a posição levada adiante pelo revisionista “trotskista” Grupo Marxista Internacional, seção britânica do Secretariado Unificado de Ernest Mandel. Como justificativa teórica para uma grande manobra de reagrupamento, o GMI revisou a história dos Bolcheviques para fazer de Lenin um conciliador que prezava pela unidade acima de tudo. Se referindo ao período pós-1905, o GMI escreve:
“Longe de Lenin ser um divisionista, longe de propor meramente a ‘unidade formal’, os Bolcheviques eram os principais batalhadores da unidade do partido …. Eram os Mencheviques nesse período que eram os divisionistas e não Lenin.” – “A Tendência Bolchevique e a Luta por um Partido”, Red Weekly, 11 de novembro de 1976
A completa falsidade dessa posição é demonstrada por uma série de incríveis omissões. Esse artigo não menciona os verdadeiros conciliadores bolcheviques, como Rykov, e a luta de Lenin contra eles. Ele não menciona a plenária de “unidade” de Paris em 1910 e a oposição de Lenin aos compromissos lá firmados. Ele não menciona que os aliados de Lenin de outrora, Plekhanov e Jogiches/Luxemburgo, se opuseram à conferência de Praga em nome da unidade do partido e consequentemente denunciaram Lenin como um divisionista.
Essa é a análise do GMI sobre a conferência de Praga:
“A tarefa dos Bolcheviques e dos mencheviques pró-partido de reconsolidar o POSDR clandestino havia sido concluída no fim de 1911 – embora a esta altura o próprio Plekhanov tivesse desertado para o lado dos liquidadores. Essa reconsolidação foi finalizada no sexto congresso do partido ocorrido em Praga em janeiro de 1912. Nesse congresso não houveum racha com o menchevismo como tal – ao contrário … Lenin trabalhou para que fosse um congresso com uma seção dos Mencheviques. O racha não foi com aqueles que defendiam as políticas mencheviques, mas com os liquidacionistas que se recusavam a aceitar um partido.” [ênfase no original] – Op. cit.
Foram precisamente as políticas mencheviques sobre a questão organizativa que geraram o liquidacionismo. Do racha original de 1903 até a Primeira Guerra, os Mencheviques definiram que “o partido” deveria incluir trabalhadores simpatizantes da socialdemocracia, mas que não estavam sujeitos à organização formal e à disciplina como membros. Foi sobre essa base que os Mencheviques continuaram a rejeitar e desconsiderar a maioria formal e consequente liderança partidária de Lenin.
A declaração de que Plekhanov se juntou aos liquidacionistas em 1911 é falsa. E nessa falta de nitidez histórica o GMI demonstra sua falta de compreensão fundamental das relações entre os Bolcheviques e os mencheviques “pró-partido”. Plekhanov não se juntou ao corpo principal dos Mencheviques. Assim como Trotsky e Luxemburgo, ele adotou uma estância independente entre 1912-14, buscando a reunificação de Bolcheviques e Mencheviques.
O GMI não sabe explicar porquê Plekhanov, que lutou contra os liquidacionistas por três anos, se recusou então a romper com eles e se unir aos leninistas. Quando Plekhanov, que era notoriamente arrogante, começou sua campanha anti-liquidacionista no fim de 1908, ele sem dúvida acreditava que iria ganhar a maioria dos Mencheviques e possivelmente se tornar a figura de liderança de um POSDR unificado. Mesmo enquanto fazia um bloco com Plekhanov, Lenin teve a oportunidade de desfazer as ilusões para consumo próprio do dissidente menchevique:
“O menchevique Osip [Plekhanov] provou ser uma figura solitária, que se retirou tanto do conselho editorial menchevique oficial quanto do conselho editorial coletivo do mais importante trabalho menchevique, um manifestante isolado contra o ‘oportunismo pequeno-burguês’ e o liquidacionismo….” – “Os Liquidacionistas Expostos” (setembro de 1909)
Por volta de 1911, estava claro que os seguidores de Plekhanov eram uma pequena minoria entre os Mencheviques. Se Plekhanov tivesse se juntado aos Bolcheviques na conferência de Praga, ele teria constituído uma minoria pequena e politicamente isolada. Ele nunca poderia esperar ganhar os Bolcheviques para sua estratégia pró-burguesia liberal. Ele teria sido simplesmente um figura decorativa num partido de facto Bolchevique. Sendo um político astuto, Lenin tentou “capturar” Plekhanov dessa forma. Ao se recusar a participar da conferência de Praga, Plekhanov escreveu: “A composição de sua conferência é tão unilateral que seria melhor, ou seja, melhor para os interesses da unidade do partido, que eu ficasse de fora” (citado em Bertran D. Wolfe, Três que Fizeram uma Revolução [1948]).
Mesmo antes de 1912, os Bolcheviques eram essencialmente um partido, mais do que uma tendência, porque Lenin se recusaria a agir como uma minoria disciplinada sob uma liderança menchevique. Os líderes mencheviques, incluindo Plekhanov, eram recíprocos nessa atitude. Unidade com os Mencheviques “pró-partido” numericamente inferiores não desafiava a liderança de Lenin no partido como ele o reconstruiu na conferência de Praga. Se os seguidores de Plekhanov fossem maiores que os Bolcheviques, então Lenin teria lutado por um outro arranjamento organizacional que permitiria a seus apoiadores agir como socialdemocratas revolucionários desimpedidos por oportunistas.
Tentativas de Unidade Depois de Praga
Depois da conferência de Praga, os Bolcheviques foram bombardeados com contínuas campanhas por unidade envolvendo a maioria das principais figuras no movimento russo e também da liderança da Segunda Internacional. Essa campanhas culminaram numa resolução pró-unidade do Bureau Socialista Internacional (BSI) em dezembro de 1913, que levou a uma conferência de “unidade” em Bruxelas em julho de 1914. Menos de um mês depois a maioria dos ‘buscadores de unidade’ da Segunda Internacional estavam apoiando suas próprias classes dominantes na matança de trabalhadores de países “inimigos”.
A primeira tentativa de reverter a ação de Lenin na conferência de Praga foi levada adiante por Trotsky. Ele pressionou o Comitê Organizativo menchevique para chamar uma conferência de todos os socialdemocratas russos. Os Bolcheviques naturalmente se recusaram a participar como fizeram seus antigos aliados, os seguidores de Plekhanov e o SDRPeL de Luxemburgo/Jogiches. A conferência se reuniu em Viena em agosto de 1912. Além do pequeno grupo de Trotsky, ela foi composta pelos Mencheviques em peso, o Bund Judaico e os ultra-esquerdistas do grupo Vperyod. O “bloco de agosto” combinava assim as alas de extrema direita e extrema esquerda da socialdemocracia russa. Naturalmente os participantes não poderiam concordar em nada exceto sua hostilidade aos leninistas por se declararem o POSDR oficial. De fato, os Vperyodistas saíram no meio da conferência, fazendo dela um fórum menchevique.
O bloco de agosto de Trotsky era um clássico e fugaz bloco centrista – uma coalizão podre dos mais heterogêneos elementos que eram contra uma tendência revolucionária rígida. Depois de ser ganho para o leninismo em 1917, Trotsky considerou o “bloco de agosto” como o seu maior erro político. Polemizando contra um outro bloco centrista de coalizão na seção americana da Quarta Internacional em 1940, Trotsky voltou no tempo até o “bloco de agosto” em 1912:
“Eu tenho em mente o assim chamado bloco de agosto de 1912. Eu participei ativamente desse bloco. De certa forma eu o criei. Politicamente eu era diferente dos Mencheviques em todas as questões fundamentais. Eu também me diferenciava dos Bolcheviques de ultra-esquerda, os Vperyodistas. Em questões de política geral, eu estava muito mais próximo dos Bolcheviques. Mas eu era contra o ‘regime’ leninista porque eu ainda não tinha compreendido que para conseguir o objetivo de realizar uma revolução, um partido centralizado e firmemente formado é necessário. E então eu formei esse bloco episódico consistindo de elementos heterogêneos que foi dirigido contra a ala proletária do partido….”
“Lenin submeteu o bloco de agosto a críticas sem piedade e os mais duros golpes caíram sobre mim. Lenin provou que uma vez que eu não concordava politicamente nem com os Mencheviques nem com o Vperyodistas, minha política foi aventureirismo. Isso foi severo mas era verdade.”
– Em Defesa do Marxismo (1940)
A consolidação de um partido bolchevique em separado na conferência de Praga coincidiu com o começo de uma nova linha ascendente da luta da classe proletária na Rússia. Nos dois anos e meio seguintes os Bolcheviques se transformaram novamente num partido proletário de massas. Em 1913, Lenin afirmava possuírem entre 30.000 e 50.000 membros. Nas eleições para a Duma no fim de 1912 os Bolcheviques elegeram seis de nove delegados na curia (seção de votação) dos trabalhadores. Em 1914, Lenin afirmava ter 2.800 núcleos operários contra 600 dos Mencheviques. O órgão legal dos Bolcheviques, o Pravda, tinha uma circulação de 40.000 exemplares, comparada com 16.000 do jornal menchevique Luch.
Privadamente os Mencheviques admitiam a predominância bolchevique no movimento operário, assim como sua própria fragilidade. Numa carta (15 de setembro de 1913) para Potresov, Martov escreveu “… os Mencheviques parecem incapazes de se afastar do centro morto no sentido organizativo e permanecem, apesar do jornal e de todos os esforços feitos nos últimos dois anos, um fraco círculo” (citado em Getzler, Op. cit.).
Enquanto a transformação dos Bolcheviques em um partido de massa nesse momento era de enorme significado para a causa revolucionária, em um sentido pode-se dizer que ela impediu o desenvolvimentoteórico do leninismo. Os desenvolvimentos entre 1912-14 pareciam confirmar a crença de Lenin de que os Mencheviques eram simplesmente carreiristas pequeno-burgueses na Rússia e literatos emigrados permanecendo de fora do movimento real dos trabalhadores. A reivindicação dos Bolcheviques de seremo Partido Operário Social Democrata Russo pareceu demonstrar a sua comprovação empírica. E assim Lenin acreditava que ele não havia realmente dividido o partido socialdemocrata.
A conferência de Praga em janeiro de 1912 representou o racha definitivo entre Bolcheviques e Mencheviques, mas a divisão não foi compreensível. Os seis deputados bolcheviques eleitos para a Quarta Duma no fim de 1912 mantiveram uma frente comum com os sete deputados mencheviques numa bancada socialdemocrata unitária. Entre os trabalhadores menos avançados, um sentimento por unidade ainda era forte e isso criou resistência entre os Bolcheviques para desfazer a bancada na Duma através de um ato público, um ato público. Lenin orientou para que a bancada na Duma fosse desfeita, mas fez isso com considerável precaução tática. Apenas perto do fim de 1913 os deputados bolcheviques racharam abertamente e criaram sua própria bancada na Duma.
O racha na bancada da Duma causou um impacto muito maior do que a conferência de Praga na socialdemocracia internacional, uma vez que ele tornou a divisão no movimento russo totalmente pública. Por iniciativa de Rosa Luxemburgo, o BSI interviu para restaurar a unidade no aparentemente incorrigível e fracional movimento socialdemocrata russo. A política pró-unidade do BSI era necessariamente prejudicial, se não claramente hostil, aos Bolcheviques. Os motivos de Luxemburgo eram claramente hostis a Lenin. Ao exigir a intervenção da Internacional, ela denunciou “o esquemático incitamento pelo grupo de Lenin do racha entre a base de outras organizações socialdemocratas” (citado em H.H. Fischer e Olga Hess Gankin, eds., Os Bolcheviques e a Guerra Mundial [1940]).
Em dezembro de 1913, o BSI adotou uma resolução chamando a reunificação da socialdemocracia russa. Essa resolução foi co-patrocinada por três líderes alemães, Kautsky, Ebert e Molkenbuhr:
“… o Bureau Internacional considera dever urgente de todos os grupos socialdemocratas na Rússia fazer séria e leal tentativa de concordar com a restauração de uma organização partidária única a pôr um fim ao atual nocivo e desencorajador estado de desunião.”
– Idem.
O BSI marcou então uma conferência de “unidade” em Bruxelas em julho de 1914. A autoridade da Internacional liderada pela Alemanha era tal que todos os socialdemocratas russos, incluindo os Bolcheviques, se sentiram obrigados a comparecer a essa reunião. Além dos Bolcheviques e Mencheviques, a conferência de Bruxelas foi composta por Vperyodistas, pelo grupo de Trotsky, pelo grupo de Plekhanov, os socialdemocratas da Letônia e três grupos poloneses.
Não é preciso dizer, Lenin foi hostil ao propósito da conferência de Bruxelas. Enquanto ele escrevia um longo relatório para ela, ela, mostrou seu desdém ao não comparecer pessoalmente. O cabeça da delegação bolchevique foi Inessa Armand. Lenin rascunhou “condições de unidade” que ele sabia que os Mencheviques iriam recusar de primeira. Essas envolviam a completa subordinação organizativa dos Mencheviques à maioria bolchevique, incluindo a proibição de uma imprensa menchevique separada e uma total abolição de críticas públicas ao partido clandestino. Quando Armand apresentou as “condições de unidade” de Lenin, os Mencheviques ficaram furiosos. Plekhanov rotulou as condições como “artigos de um novo código penal”. Kautsky, o presidente da conferência, teve dificuldade em manter a ordem. Apesar disso tudo, o respeitado líder alemão cumpriu seu dever ao apresentar uma moção atestando que não havia diferenças de princípio que barrassem a unidade. Essa resolução prosseguiu com os Bolcheviques (e também os socialdemocratas da Letônia) se recusando a votar.
A Justificativa de Lenin para o Racha
O relatório para a conferência de Bruxelas em julho de 1914 foi a mais elucidativa justificativa de Lenin para o racha e a criação de um Partido Bolchevique em separado. Ele procurou apresentar o caso bolchevique da forma mais favorável possível diante da opinião socialdemocrata da Europa Ocidental. Assim, o relatório provavelmente não expressa completamente as visões de Lenin sobre as relações bolchevique-menchevique.
O relatório apresenta dois argumentos básicos, um político e o outro empírico. O argumento político básico de Lenin é que a maioria dos Mencheviques, ao rejeitar a organização clandestina como opartido, se colocava qualitativamente à direita dos oportunistas (por exemplo, Bernstein) nas socialdemocracias da Europa Ocidental:
“Nós vemos o quão enganada é a opinião de que nossas diferenças com os liquidacionistas não são mais profundas e de que são menos importantes que aquelas entre os assim chamados radicais e os moderados na Europa Ocidental. Não há sequer um único – literalmente nenhum – partido europeu que tenha estado na ocasião de ter de adotar uma decisão geral contra pessoas que desejavam dissolver o partido e substituí-lopor um outro!”
“Em nenhum lugar da Europa Ocidental houve alguma vez, ou poderia ter havido, uma discussão sobre se é permissível carregar o título de membro do partido e ao mesmo tempo reivindicar a dissolução de tal partido, argumentar que o partido é inútil e desnecessário, e que outro partido o substituísse. Em lugar nenhum lugar da Europa Ocidental se coloca a questão sobre a preocupação com a própria existência do partido como entre nós….”
“Isso não é um desacordo sobre uma questão organizativa, de como o partido deveria ser construído, mas um desacordo que diz respeito à própria existência do partido. Aqui, conciliação, concordância e compromisso estão completamente fora de questão.” [ênfase no original] – “Relatório do CC do POSDR para a delegação da Conferência de Bruxelas” (junho de 1914)
Essa visão do liquidacionismo menchevique é superficial, focando na forma específica, mais do que no conteúdo político, do oportunismo socialdemocrata. A crença de Lenin de que os mencheviques russos estavam à direita de Bernstein, Jaures, etc. acabou se mostrando falsa. A guerra gerou o pequeno grupo Internacionalistas, seguidor de Martov, que serviu de contraponto aos Mencheviques se posicionando não apenas à esquerda dos socialpatriotas alemães Ebert/Noske, mas também à esquerda dos centristas do SPD Kautsky/Haase. A raiz causal do liquidacionismo organizativo dos Mencheviques em 1908-12 não era que Martov/Potresov estavam qualitativamente à direita de Bernstein e Noske, mas na verdade que Lenin, o líder formal do POSDR, estava à esquerda de Bebel/Kautsky.
A maior parte do relatório para a conferência de Bruxelas busca demonstrar empiricamente que “uma maioria de quatro quintos dos trabalhadores com consciência de classe da Rússia se mantiveram juntos a decisões e corpos criados pela conferência de janeiro [em Praga] de 1912”. É importante enfatizar que isso não era um argumento apenas para consumo público. Para Lenin, uma dos critérios decisivos de um partido realmente socialdemocrata era a extensão de seu reconhecimento operário. Em suas notasprivadas para Inessa Armand, ele escreveu:
“Na Rússia, aproximadamente todo grupo ou ‘tendência’ … acusa o outro de não ser um grupo de trabalhadores. Nós consideramos essa acusação ou ainda argumento, essa referência à significância social de um grupo em particular, extremamente importante em princípio. Mas precisamente porque nós a consideramos extremamente importante, nós julgamos nosso dever não fazer declarações vazias sobre a significância social de outros grupos, mas pautar nossas declarações com fatos objetivos. E esses fatos objetivos provam absolutamente e de maneira irrefutável que o pravdismo [bolchevismo] sozinho é uma corrente dos trabalhadores na Rússia, onde liquidacionismo e socialismo-revolucionário são de fato correntes intelectualistas burguesas.” [ênfase no original]
– Idem.
Como pode ser visto da citação acima, caso os Mencheviques tivessem nesse período adquirido uma significativa base operária, Lenin teria que ou adotar uma atitude mais conciliatória com relação a eles ou justificar o racha em princípios mais gerais.
A visão de Lenin dos Mencheviques como uma corrente intelectualista pequeno-burguesa externa ao movimento dos trabalhadores era impressionista. A onda de patriotismo e defensismo nacional que arrastou as massas russas nos primeiros anos da guerra beneficiou os Mencheviques oportunistas às custas dos leninistas, que eram derrotistas intransigentes. Quando a revolução russa ocorreu em fevereiro de 1917, os Mencheviques eram muito mais fortes em relação aos Bolcheviques do que eles tinham sido até 1914.
Entre 1912-14, as inumeráveis polêmicas de Lenin contra a unidade com os Mencheviques apresentaram uma série de diferentes argumentos. Alguns desses argumentos eram estreitos ou empíricos, como os do relatório para a conferência de Bruxelas. Entretanto, em outros escritos, Leninantecipou o racha em princípios com os oportunistas no movimento operário, que define o partido comunista moderno. Assim, em uma polêmica em abril de 1914 contra Trotsky, intitulada “Unidade”, Lenin escreve:
“Não pode haver unidade, federativa ou qualquer outra, com políticos liberal-trabalhistas, com desviantes do movimento da classe operária, com aqueles que desafiam a vontade da maioria. Pode e deve haver unidade entre todos os marxistas consistentes, entre todos aqueles que permanecem junto a todos os ensinamentos do marxismo e os slogans sem seguidismo, independente de todos os liquidacionistas e separados deles.”
“Unidade é uma grande coisa e uma grande palavra de ordem. Mas o que a causa dos trabalhadores precisa é da unidade dos marxistas, não da unidade entre marxistas e oponentes e desvirtuadores do marxismo.” [ênfase no original]
Entretanto, não foi até 4 de agosto de 1914, quando a bancada parlamentar da socialdemocracia alemã votou por créditos de guerra, que Lenin foi levado a entender o significado épico da passagem acima, para o seu racha com os Mencheviques russos. Só então Lenin buscou que os marxistas consistentes, ou seja revolucionários, rompessem com todos os políticos liberal-trabalhistas e todos os oponentes e desvirtuadores do marxismo. Ao fazer isso, ele criou no comunismo uma doutrina e um movimento histórico mundial revolucionário, o marxismo da época da agonia mortal do capitalismo.

Lenin e o Partido de Vanguarda (5)

A Luta Contra os Boicotadores

 
O quinto congresso do POSDR, ocorrido em Londres em maio de 1907 foi quase igualmente dividido entre os Bolcheviques com 89 delegados os Mencheviques com 88. No quarto congresso um ano antes, três partidos associados – a Liga (Bund) Judaica, os socialdemocratas da Letônia e a socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo/Jogiches – haviam sido incorporados ao POSDR numa base semi-federativa. No quinto congresso o Bund tinha 54 delegados, os socialdemocratas da Letônia 26 e o SDRPeL 45.
No decurso de um ano de luta fracional afiada contra o seguidismo liberal dos Mencheviques e a política dos Democratas pró-Constitucionais (Cadetes), os Bolcheviques haviam deixado para trás a sua posição de minoria dentro do movimento socialdemocrata russo. Entretanto, agora a tendência que lideraria o POSDR dependia de três partidos socialdemocratas “regionais”. O Bund apoiava categoricamente os Mencheviques. Os socialdemocratas letões geralmente apoiavam os Bolcheviques, mas ocasionalmente faziam a vez de mediadores entre os dois grupos hostis da Rússia. Foi pelo apoio do SDRPeL de Rosa Luxemburgo que Lenin conseguiu a maioria do quinto congresso e nos órgãos de liderança do POSDR pelos cinco anos seguintes. O bloco Lenin-Luxemburgo de 1906-11 é significativo não apenas em seu efeito histórico, mas também porque ele revela a relação entre o leninismo em desenvolvimento e aquela que era a mais consistente e importante representante da socialdemocracia revolucionária antes de 1914.
O assunto decisivo no quinto congresso foi a atitude com relação ao liberalismo burguês, e especificamente o apoio eleitoral ao Partido Cadete. Com o apoio dos letões e poloneses (e também do grupo de Trotsky/Parvus da ala esquerda dos Mencheviques), a linha Bolchevique venceu; o congresso condenou os Cadetes:
“Os partidos da burguesia liberal-monarquista, chefiados pelo Partido Constitucional Democrático [Cadetes], agora se votlaram definitivamente contra a revolução para se esforçarem impedí-la através de um acordo com a contra-revolução.”
– Robert H. McNeal, ed, Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética(1974)
Outra resolução instruiu a fração do POSDR na Duma (Parlamento) a se opor à “política traiçoeira do liberalismo burguês que, sob a palavra de ordem de ‘Proteja a Duma!’, na verdade sacrifica os interesses populares da imensa massa de trabalhadores” (idem.). Poucos meses após o congresso, uma conferência do partido decidiu apresentar candidatos independentes do POSDR nas futuras eleições da Duma e não apoiar nenhum outro partido.
Enquanto os socialdemocratas da Letônia e da Polônia/Lituânia apoiavam a linha geral dos Bolcheviques no quinto congresso, também moderavam a luta de Lenin contra os Mencheviques. Eles votaram contra a moção de Lenin para condenar a maioria menchevique que estava saindo do Comitê Central. A falta de apoio dos socialdemocratas da Letônia e do SDRPeL também foi a causa da única derrota séria de Lenin no congresso de 1907 do POSDR. O congresso votou em esmagadora maioria se opor às “operações de luta” dos Bolcheviques para “apreender fundos” do governo czarista.
Durante esse período o ataque menchevique sobre os leninistas foi centrado nessas expropriações armadas. Sua reação semi-histérica às expropriações dos Bolcheviques surgiu a partir do impacto chocante sobre a respeitabilidade liberal-burguesa. A expropriações também davam aos Bolcheviques superioridade financeira sobre os Mencheviques. Ao condenar as expropriações dos Bolcheviques sobre os fundos do governo, os Mencheviques estavam convencidos de que tinham a impecável ortodoxia socialdemocrata ao seu lado.
Os Bolcheviques, entretanto, não encaravam a situação normal em que tais roubos iriam imediatamente ativar o aparato de repressão de um Estado extremamente poderoso e centralizado. Muito menos arriscavam serem discriminados pelos trabalhadores que poderiam pensar que eles eram meros criminosos com roupagem política. Os Bolcheviques não mantinham essas expropriações como uma “estratégia” para ser levada a diante por um longo período, com o resultado provável de se degenerarem em um grupo lúmpen de atividade criminal.
Lenin acreditava que havia uma contínua situação revolucionária, na qual a massa de trabalhadores e camponeses estavam ativamente hostis à legalidade czarista. As expropriações dos Bolcheviques eram concentradas no Cáucaso, onde o campesinato armado e bandos nacionalistas regularmente desafiavam as autoridades czaristas. Lenin considerava as expropriações como uma das muitas táticas de guerrilha no curso de uma guerra civil revolucionária. A disputa bolchevique-menchevique a respeito das expropriações armadas era então intrinsecamente ligada à sua diferença fundamental sobre o papel de vanguarda política e militar do partido proletário na revolução para derrubar a autocracia.
A posição de Lenin sobre as expropriações armadas foi apresentada numa resolução ao quarto congresso em abril de 1906. Ele continuou defendendo essa posição ao longo de 1907:
“Considerando que (1) quase em lugar nenhum da Rússia desde o levante de dezembro houve um completo cessar das hostilidades, na qual os povos revolucionários estão agora conduzindo-a na forma ataques de guerrilha esporádicos contra o inimigo…. Nós somos da opinião e propomos que o congresso concorde…. (4) que operações de luta também sejam permitidas para o propósito de captar recursos pertencentes ao inimigo, ou seja, o governo autocrático, para satisfazer às necessidades da insurreição, com cuidado particular sendo tomado para que os interesses dos povos sejam infringidos o mínimo possível.” – “Uma Plataforma Tática para o Congresso de Unificação do POSDR” (março de 1906)
Reação czarista e os Bolcheviques Ultra-esquerdistas
Pouco após o quinto congresso do POSDR em junho de 1907, o ministro czarista Stolypin executou um golpe contra a Duma. A Duma foi dissolvida e uma nova (Terceira) Duma proclamou as bases de um novo sistema eleitoral muito menos democrático. Em acréscimo, os deputados socialdemocratas foram presos e acusados de fomentar rebelião nas forças armadas.
O golpe de Stolypin marcou o final definitivo do período revolucionário de 1905. A vitória da reação czarista abriu uma fase nova, e de certa maneira terminal, no conflito bolchevique-menchevique, sobre a necessidade de restabelecer a clandestinidade como estrutura organizativa básica do partido. O início da reação também produziu uma afiada divisão no campo bolchevique entre leninismo e ultra-esquerdismo, uma luta fracional que deveria ser resolvida antes que o conflito histórico significativamente maior contra o menchevismo travasse o seu combate final.
O conflito entre Lenin e os bolcheviques ultra-esquerdistas foi centrado na questão da participação no reacionário órgão parlamentar czarista. Por trás dessa diferença paira o reconhecimento de Lenin de que um período reacionário havia se estabelecido, requerendo contenção tática por parte do partido revolucionário. A primeira batalha ocorreu na conferência de julho de 1907 do POSDR para determinar a política nas próximas eleições da Duma. Lenin ainda acreditava que a Rússia estava passando por um período geral de reação e considerava boicotar as eleições taticamente injustificável:
“Considerando que (1) boicote ativo, como mostrou a experiência da revolução russa, é a tática correta por parte dos socialdemocratas apenas sob condições de um avassalador, global e rápido levante da revolução, já transformando-se em levante armado, e apenas em conexão com os objetivos ideológicos da luta contra as ilusões constitucionais decorrentes da convocação da primeira assembléia constituinte do antigo regime; (2) na ausência dessas condições a tática correta por parte do partido dos socialdemocratas revolucionários é chamar pela participação nas eleições, como foi o caso com a segunda Duma, até mesmo caso todas as condições de um período revolucionário ainda estejam presentes.” – “Rascunho de Resolução sobre a Participação nas Eleições para a Terceira Duma” (julho de 1907)
Ao apresentar essa resolução Lenin se encontrou em minoria entre os nove delegados bolcheviques na conferência. A resolução foi aprovada com os votos dos Mencheviques, membros do Bund, e socialdemocratas da Letônia e da Polônia; todos os bolcheviques, com a exceção de Lenin votaram contra.
Os boicotadores bolcheviques eram, com certeza, representados numa proporção exagerada nessa reunião do partido em particular. Lenin tinha apoio significativo para sua posição entre os quadros e na base dos Bolcheviques e foi rapidamente capaz de ganhar ainda mais. Entretanto, a tendência de ultra-esquerda de 1907-09 foi o mais significativo desafio à liderança de Lenin na organização bolchevique que ele já havia enfrentado. Os líderes ultra-esquerdistas – Bogdanov (que havia sido o principal seguidor de Lenin), Lunacharsky, Lyadov, Alexinsky, Krasin – eram bolcheviques muito proeminentes. Como nunca antes, a maioria dos militantes no campo bolchevique apoiou boicotar a Duma czarista nesse período. Apenas a enorme autoridade pessoal de Lenin preveniu o desenvolvimento de uma tendência de ultra-esquerda forte o suficiente para derrubá-lo e aos seus apoiadores no centro oficial bolchevique ou engendrar um racha majoritário.
Lenin foi ajudado nessa luta pelo caráter heterogêneo da tendência ultra-esquerdista. Uma questão tática pouco importante dividia os bolcheviques ultra-esquerdistas em dois grupos distintos, os otzovistas (“reconvocadores”) e os ultimatistas. Os otzovistas exigiam a imediata e incondicional reconvocação (retirada) da fração do POSDR na Duma. Os ultimatistas exigiam que a fração na Duma fizesse discursos inflamatórios, que levariam a autoridade czarista a expulsá-los ou pior. Na prática, ambas as políticas teriam o mesmo efeito e Lenin negou que havia uma divisão significativa entre os oponentes ultra-esquerdistas.
A posição de Lenin sobre a tendência de ultra-esquerda foi apresentada na forma de resolução numa conferência em junho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary, na verdade uma plenária da liderança central bolchevique. Nessa conferência, Bogdanov foi expulso da organização bolchevique. As passagens chave da declaração atestam:
“A luta revolucionária direta das amplas massas se seguiu de um severo período de contra-revolução. Se tornou essencial aos socialdemocratas adaptarem suas táticas revolucionárias à essa nova situação, e em conexão com isso, uma das tarefas mais excepcionalmente importantes se torna o uso da Duma como uma plataforma aberta para o propósito de ajudar a agitação socialdemocrata.”
“Neste rápido curso de acontecimentos, entretanto, uma seção dos trabalhadores que haviam participado da luta revolucionária direta foi incapaz de realizar um salto para aplicar táticas socialdemocratas revolucionárias nas novas condições da contra-revolução, e continua simplesmente a repetir os slogans que haviam sido revolucionários no período da guerra civil aberta, mas que agora, se meramente repetidos, poderão retardar o processo de fechar as fileiras do proletariado nas novas condições de luta.” [ênfase no original]
– “Sobre Otzovismo e Ultimatismo”
A resposta de Bogdanov a Lenin é resumida em sua “Carta a Todos os Camaradas”, de 1910, um documento fundacional de seu próprio grupo independente:
“Algumas pessoas entre seus representantes no comitê executivo – o centro bolchevique – que vivem no exterior, chegaram à conclusão de que nós devemos mudar radicalmente a nossa avaliação bolchevique do presente momento histórico e manter uma linha não em direção a uma onda revolucionária, mas em direção a um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico. Isso os leva para perto da ala direita do nosso partido, os camaradas Mencheviques que sempre, independente de qualquer avaliação da situação política, lançavam formas de ativismo legal e constitucional, em direção a um “trabalho orgânico” e um “desenvolvimento orgânico.” – Robert V. Daniels, ed., A História Documental do Comunismo (1960)
A frase de Bogdanov sobre “um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico” é ambígua, talvez de forma deliberada. Contra muitos mencheviques, Lenin não considera uma nova revolução como fora da agenda por uma época histórica inteira, ou seja, por muitas décadas. Em torno de 1908 ele concluiu que antes de outro levante revolucionário (como o de 1905) haveria um longo período em termos das perspectivas de trabalho do partido e relativas às experiências e expectativas passadas dos Bolcheviques. 1908 não era 1903. E essa realidade era precisamente o que os otzovistas/ultimatistas negavam.
Filosofia e Política
Otzovismo/ultimatismo estava associado com o dualismo idealista neo-kantiano representado pelo físico e filósofo austríaco Ernst Mach, uma doutrina filosófica então muito em voga nos círculos intelectuais da Europa central. O livro de Bogdanov Empiriomonismo (1905-06) foi uma tentativa ambiciosa de reconciliar o marxismo com o neo-kantianismo. Em 1908 o companheiro de tendência de Bogdanov, Lunacharsky, aprofundou este idealismo em espiritualismo definitivo, posicionando a necessidade de uma religião socialista. A “construção de deus” de Lunacharsky foi, nem é preciso dizer, uma grande vergonha para os Bolcheviques como um todo, e até mesmo para a tendência otzovista/ultimatista.
A simpatia de Bogdanov pela doutrina filosófica neo-kantiana era não só bem conhecida como também de longa data. Até quando Bogdanov foi o representante de Lenin, e não representava em si mesmo uma tendência política distinta, seu neo-kantianismo era considerado uma particularidade pessoal entre ambos Mencheviques e Bolcheviques. Mas uma vez que Bogdanov tinha se tornado o líder de uma tendência distinta e por um tempo significativa na socialdemocracia russa, suas visões filosóficas se tornaram foco de uma controvérsia política geral. Plekhanov, em particular, explorou a doutrina de Bogdanov para atacar o programa bolchevique como o produto de um flagrante idealismo subjetivo. Lenin gastou assim a maior parte de 1908 estudando para uma polêmica maior com o neo-kantianismo de Bogdanov, Materialismo e Empiriocriticismo, para livrar o bolchevismo da mancha do idealismo filosófico.
A colaboração política próxima de Lenin com Bogdanov, apesar do posterior neo-kantianismo por um lado, e sua polêmica massiva contra as visões filosóficas de Bogdanov, por outro, foram usadas para justificar desvios simétricos nessas questões por marxistas pseudo-revolucionários. Que o neo-kantiano Bogdanov foi um importante líder bolchevique é algumas vezes citado para argumentar por uma atitude de indiferença diante do materialismo dialético, uma crença de que a mais geral e abstrata expressão da visão de mundo marxiana não tem implicação na política prática e relação organizativa associada. Quando rompeu com o trotskismo em 1940, o revisionista norte-americano Max Shachtman justificou um bloco com o anti-dialético e empiricista James Burnham citando o “precedente” de Lenin e Bogdanov.
Por outro lado, a polêmica principal de Lenin contra um desvio idealista adversário do marxismo encorajou a tendência a “aprofundar” cada luta fracional trazendo questões filosóficas – reduzindo todas as diferenças políticas à questão única do materialismo dialético. Essa mistura de pomposidade e idealismo racional se tornou uma marca do grupo britânico de Healy. (O grupo de Gerry Healy/Michael Banda se tornou tão bizarro que ele não pode mais ser levado a sério, muito menos nas suas mistificações filosóficas).
Os membros do grupo de Healy justificaram seu racha de 1972 com os antes parceiros de bloco, os neo-kautskistas franceses da Organização Comunista Internacionalista (OCI), colocando a primazia da “filosofia”. Eles apelaram para a polêmica de 1908 de Lenin contra Bogdanov como um precedente ortodoxo:
“Lenin estudou incansavelmente as idéias do novos idealistas, os neo-kantianos, na filosofia, até mesmo durante a mais árdua luta prática para estabelecer o partido revolucionário na Rússia. Quando essas idéias, na forma de “empiriocriticismo” foram reivindicadas por uma seção dos próprios Bolcheviques, Lenin fez um estudo especializado e lhes escreveu um longo trabalho, Materialismo e Empiriocriticismo.
“Lenin entendeu muito bem que os anos da extrema dificuldade e isolamento após a derrota da revolução de 1905 expuseram o movimento revolucionário à maior pressão do inimigo de classe. Ele sabia que a tarefa mais fundamental de todas era a defesa e o desenvolvimento da teoria marxista no nível mais básico, aquele da filosofia.” [nossa ênfase]
– Comitê Internacional, Em Defesa do Trotskismo (1973)
Essa passagem é uma completa falsificação em diversos níveis. Para começar, a luta política de Lenin mais historicamente importante no período de reação não foi contra os bolcheviques de ultra-esquerda de Bogdanov, mas contra os mencheviques liquidacionistas. Nessa luta posterior, questões filosóficas não desempenharam nenhum papel particular.
Os membros do grupo de Healy também falsificam a relação de Lenin com Bogdanov. Quando Bogdanov se tornou parte da liderança Bolchevique em 1904, ele já era bem conhecido como neo-kantiano (machiano). Lenin e Bogdanov concordavam que a tendência Bolchevique como tal não tomaria posição em controversas questões filosóficas, Lenin explica isso numa carta para Maxim Gorky, (25 de fevereiro de 1908) na qual ele defende seu relacionamento passado com Bogdanov, apesar de seu desvio filosófico posterior:
“No verão e outono de 1904, Bogdanov e eu atingimos uma completa concordância, comobolcheviques, e formamos um bloco tácito, que de forma tácita tratava filosofia como um campo neutro, que existiu ao longo da revolução e nos permitiu na revolução levantar juntos as táticas da socialdemocracia revolucionária (bolchevismo), as quais, eu estou profundamente convencido, eram as únicas táticas corretas.” [ênfase no original]
Foi o menchevique de direita Plekhanov quem trouxe a questão de materialismo dialético versus neo-kantianismo para o topo da pilha com o objetivo de descreditar e rachar a liderança bolchevique revolucionária. Ao defender os Bolcheviques contra Plekhanov, Lenin foi tão longe a ponto de negar que a questão do revisionismo neo-kantiano fosse em todo relevante para o movimento revolucionário na Rússia. No congresso só composto pelos Bolcheviques em abril de 1905, Lenin declarou:
“Plekhanov puxa Mach e Avenarius pelas orelhas. Ele não consegue entender nem para salvar a vida de alguém o que esses escritores, pelos quais eu não tenho a mais estreita simpatia, tem a ver com a questão da revolução social. Eles escreveram sobre experiência de organização individual e social, ou tema semelhante, mas eles nunca realmente pensaram em nada a respeito da ditadura democrática.” – “Relatório sobe a Questão da Participação dos socialdemocratas num Governo Provisório Revolucionário” (abril de 1905)
Em parte como resultado de sua luta posterior contra Bogdanov, Lenin modificou sua posição de 1905, que desenhava uma linha muito arbitrária entre diferenças políticas e filosóficas. Ele constatou que diferenças fundamentais entre marxistas sobre materialismo dialético vão provavelmente produzir divergências políticas. Entretanto, para Lenin o programa permanecia primário para a definição de políticas revolucionárias e associado à questão organizativa. Lenin nunca repudiou sua colaboração próxima com Bogdanov em 1904-07. E ele estava absolutamente certo em se aliar com o Bogdanov socialdemocrata revolucionário, apesar de neo-kantiano, contra o o Plekhanov socialdemocrata pró-liberal, apesar de materialista dialético. Apenas quando as concepções neo-kantianas de Bogdanov se tornaram associadas com um programa político contrário e anti-marxista, foi que Lenin fez a defesa do materialismo dialético contra o idealismo filosófico uma tarefa política central.
Contra a Mistificação da Dialética
O programa marxista como a expressão científica dos interesses da classe trabalhadora e do progresso social não é derivado simplesmente de um desejo subjetivo por um futuro socialista. O programa marxista necessariamente inclui um entendimento correto da realidade, da qual a mais geral ou abstrata expressão é o materialismo dialético. Entretanto, o próprio Marx escreveu em 1877 no jornal populista russo, Otechestvenniye Zapiski, que ele não oferece uma “teoria histórico-filosófica geral, a virtude suprema a qual consiste em ser supra-histórico” (Marx e Engels, Correspondência Selecionada [1975]). O materialismo dialético é um quadro conceitual que permite, mas não garante, um entendimento científico da sociedade em seu desenvolvimento histórico concreto. Em outras palavras, um entendimento da natureza dialética da realidade social guia um complexo de generalizações históricas (por exemplo, que o aparato estatal sob o capitalismo não pode ser reformado em um órgão de administração socialista, que em nossa época um sistema econômico coletivizado representa a dominação social do proletariado) que dão base aos princípios programáticos marxistas.
A mistificação do grupo de Healy da atitude marxista com relação á filosofia é um produto de sua degeneração em um bizarro culto ao mestre. No começo de 1960, a Liga Trabalhista Socialista (SLL) de Healy entendia que materialismo dialético não era nada mais do que uma expressão generalizada de uma visão de mundo unitária, e não um esquema abstrato ou método existente independente da realidade empírica. Os artigos de 1962-63 de Cliff Slaughter sobre os estudos de Lenin sobre Hegel em 1914-15, reimpressos em 1971 como um livro, Lenin sobre Dialética, contém um ataque mordaz conta a idealização da dialética:
“Lenin dá grande ênfase à insistência de Hegel de que a dialética não é uma chave-mestra, um tipo de estojo de números mágicos pelos quais todos os segredos são revelados. É errado pensar na lógica dialética como alguma coisa completa em si mesma e então ‘aplicada’ a exemplos particulares. Ela não é um modelo de interpretação para ser aprendido, e então enquadrado na realidade a partir de fora; a tarefa é mais descobrir a lei de desenvolvimento da realidade em si própria…”.
“A ciência da sociedade fundada por Marx não tem espaço na filosofia como tal, na idéia de pensamento independente em movimento, com um desenvolvimento subjetivo-material próprio, independente da realidade mas às vezes descendo para se aplicar nela.”
Slaughter cita então o julgamento de Marx sobre o conceito de filosofia na Ideologia Alemã: “Quando a realidade é representada, a filosofia, como um ramo independente de atividade perde o seu meio de existência.”
Mas no fim da década de 1960, o grupo de Healy havia “redescoberto” um meio de existência para a filosofia como uma teoria independente. O materialismo dialético foi apresentado com muita pomposidade como a “teoria do conhecimento do marxismo”, como uma expressão da categoria filosófica conhecida como epistemologia. Assim, em uma coleção de documentos sobre o racha com a OCI (Romper com o Centrismo! [1973]), nós podemos ler:
“O que foi mais essencial na preparação das seções foi desenvolver o materialismo dialético numa luta para entender e transformar a consciência da classe operária para a mudança da condições objetivas. Isso significa entender e desenvolver o materialismo dialético como a teoria do conhecimento do marxismo….”
“Nós podemos certamente dizer que o materialismo dialético é a teoria do conhecimento do marxismo, no caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade – não verdade “final”, mas avanços contínuos através da luta contraditória para chegar ao verdadeiro conhecimento do mundo objetivo.”
Essa noção do grupo de Healy sobre materialismo dialético é ao mesmo tempo enormemente restritiva e uma idealização do conhecimento. Não existe uma teoria do conhecimento válida em separado. No nível da cognição individual, uma teoria do conhecimento é derivada de investigação científica biológica e psicológica. No nível da consciência social, uma teoria do conhecimento é parte constituinte de um entendimento de relações sociais historicamente específicas. Assim, é central para o entendimento marxista de conhecimento o conceito de falsa consciência, a distorção necessária da realidade associada a vários papéis sociais.
A categoria filosófica tradicional da epistemologia (em ambas suas formas empiricista e racionalista), ao separar o sujeito consciente da natureza e da sociedade, é em si própria uma expressão ideológica de uma falsa consciência. O materialismo dialético critica os vários conceitos tradicionais de epistemologia assim como outros conceitos e categorias filosóficas. Mas o marxismo não critica a filosofia tradicional se colocando como uma filosofia nova, alternativa, que de forma semelhante existe independentemente de um entendimento cientifico (ou seja, empiricamente verificável) da natureza e da sociedade.
A mistificação do grupo de Healy sobre o materialismo dialético – “o caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade” – é primariamente uma justificativa para a infalibilidade do culto ao mestre. O programa, análise, táticas e projeções da liderança de Healy são postas como isentos de verificação empírica. Por exemplo, até hoje o grupo de Healy considera que Cuba é capitalista! Dizem aos críticos e opositores que estes não entendem a realidade; sendo essa capacidade monopolizada pela liderança, que sozinha dominou o método dialético. Essa similaridade entre a visão do grupo de Healy sobre dialética e o misticismo religioso não é uma coincidência.
Para resumir, a rejeição sistemática do materialismo dialético (por exemplo, Bogdanov, Burnham) levará cedo ou tarde a um rompimento com o programa marxista científico. Mas acreditar, como Healy, que toda diferença política séria dentro de um partido revolucionário pode ou deve ser reduzida a conceitos filosóficos antagônicos é uma espécie de idealismo racional. Tal reducionismo filosófico nega que diferenças políticas normalmente surgem de diversas pressões e influências sociais que atingem a vanguarda revolucionária e seus componentes, e também diferenças ao avaliar as condições e possibilidades empíricas.
Significado da Luta Contra Otzovismo/Ultimatismo
O fim da luta fracional entre os leninistas e os otzovistas/ultimatistas ocorreu na previamente mencionada conferência de julho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary. A conferência decidiu que bolchevismo “não tem nada em comum com otzovismo ou ultimatismo, e que a ala bolchevique do partido deve o mais resolutamente combater estes desvios do marxismo revolucionário”. Quando Bogdanov se recusou a aceitar essa resolução, ele foi expulso da tendência Bolchevique.
Como nós apontamos no primeiro capítulo desta série, ao justificar a expulsão de Bogdanov Lenin claramente reafirmou sua aderência à doutrina kautskista de que o partido deveria incluir todos os socialdemocratas (ou seja, socialistas orientados para a classe operária). Ele fazia uma distinção afiada entre o “partido” kautskista e uma tendência, sendo que a última requeria um programa político e perspectivas homogêneos:
“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência Bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein. Não é esse o caso com uma tendência. Uma tendência ou seção de um partido é um grupo de pessoas com pensamento próximoformada com o propósito primário de influenciar o partido para uma determinada direção, com o objetivo de assegurar a aceitação dos seus princípios na forma mais pura possível. Para fazer isso, unanimidade real de opinião é necessária. Os diferentes níveis que são colocados para unidade de partido e unidade de tendência devem ser analisados por todos que desejam saber como as questões de discordância interna na tendência Bolchevique realmente ocorrem.” [ênfase no original] – “Relatório sobre a Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909)
Depois da expulsão de Bogdanov, ele e seus aliados estabeleceram seu próprio grupo ao redor do jornalVperyod, deliberadamente escolhendo o nome do primeiro órgão bolchevique (de 1905). Os Vperyodistas reivindicavam aos membros dos Bolcheviques serem o verdadeiro bolchevismo. Embora muitos trabalhadores bolcheviques tenham apoiado a posição otzovista/ultimatista sobre participação na Duma, eles não desejavam romper com a organização de Lenin por causa desta questão. Assim, Lenin teve que combater atitudes ultra-esquerdistas difusas nas colunas bolcheviques durante alguns anos seguintes até que as tendências otzovistas/ultimatistas tivessem se dissipado por completo.
A reivindicação otzovista/ultimatista de representar a verdadeira tradição bolchevique, e de que Lenin havia se tornado um conciliador menchevique, não poderiam ter sido desconsideradas de primeira como ridículas. Bogdanov, Lyadov, Krasin e Alexinsky tinham estado entre os principais seguidores de Lenin, o antigo núcleo do centro bolchevique. Lunacharsky tinha sido um proeminente propagador e orador bolchevique. Assim, os Mencheviques atacaram Lenin sob o aspecto da deserção de seus mais conhecidos e talentosos colaboradores. Através da luta fracional de 1907-09 contra otzovismo/ultimatismo, uma nova liderança leninista foi cristalizada a partir de quadros bolcheviques mais jovens – Zinoviev, Kamenev, Rykov, Tomsky e um pouco depois Stalin. Esse seria o núcleo central da liderança bolchevique no primeiro período do regime soviético.
Como se explica o fato de que a maior parte da primeira geração de líderes bolcheviques desertaram para o ultra-esquerdismo, dando lugar a uma segunda geração que assimilou o leninismo em seu desenvolvimento maduro? Os bolcheviques se originaram não apenas como a ala revolucionária da socialdemocracia russa, mas também como empiricamente otimistas sobre as perspectivas da luta revolucionária. E esse otimismo autoconfiante foi corroborado pelo acontecimentos. O período de 1903 a 1907 foi em geral um período numa linha crescente de luta revolucionária que permitiu que os Bolcheviques se tornassem um partido de massas. É fácil entender então, que um setor dos Bolcheviques não ficaria desejoso de encarar o fato de uma vitória reacionária que iria exigir um amplo recolhimento organizativo. Esses bolcheviques reagiram a uma realidade desfavorável com um radicalismo dogmático, estéril, que em última análise tomava a forma de espiritualismo socialista. É uma marca de Lenin como grande político revolucionário o fato de ele ter reconhecido por completo a vitória da reação e ter adaptado as perspectivas da vanguarda revolucionária de acordo, apesar de isso ter significado romper com alguns dos seus colaboradores mais próximos até então.

Lenin e o Partido de Vanguarda (4)

Partido, Tendência e “Liberdade de criticar”

 
A explosão das diferenças com os Mencheviques sobre o papel do liberalismo burguês na revolução enfraqueceu, mas não eliminou, as forças dos conciliadores no campo bolchevique. No terceiro congresso (composto apenas por bolcheviques) do POSDR, em abril de 1905, Lenin se encontrou em minoria diante da questão sobre como lidar com os Mencheviques. Ele desejava expulsar os Mencheviques, que haviam boicotado o congresso, de dentro do POSDR. A maioria dos delegados não estavam desejosos a dar um passo tão extremo. O congresso adotou uma moção para que os Mencheviques fossem permitidos permanecer num POSDR unitário sob a condição de que reconhecessem a liderança da maioria bolchevique e aderissem à disciplina do partido. É desnecessário dizer, os Mencheviques rejeitaram tais condições de unidade de primeira.
Enquanto o começo da revolução de 1905 aprofundou o racha entre bolchevismo e menchevismo, o seu desenvolvimento posterior produziu pressões fortíssimas pela reunificação da socialdemocracia russa. Um número de fatores, cada um reforçando o anterior, criou um tremendo sentimento de unidade entre os membros de ambas as tendências. A luta militar comum contra o Estado czarista produziu uma forte noção de solidariedade entre os trabalhadores avançados da Rússia, os militantes e os apoiadores do movimento socialdemocrata.
Na altura do verão de 1905, uma ampla maioria de ambas as tendências consistia de recrutas novos que não haviam passado pela experiência da luta do Iskraismo contra os economicistas ou pelo racha bolchevique-menchevique que se seguiu. Assim, para a maioria dos trabalhadores socialdemocratas, a divisão organizativa era incompreensível e pareceu se basear em “fatos antigos.” A crença geral de que as diferenças na socialdemocracia russa eram insignificantes foi reforçada pelo desarranjo entre os líderes mencheviques. O mais proeminente menchevique em 1905 era Trotsky, líder do soviete de São Petersburgo, que estava à esquerda de Lenin nos objetivos e perspectivas para a revolução. Assim, as atitudes políticas de muitos que se juntaram aos Bolcheviques e Mencheviques em 1905 não correspondiam aos programas de suas respectivas lideranças. Na sua biografia de Stalin em 1940, Trotsky observou que em 1905 a coluna menchevique estava muito mais próxima da posição de Lenin sobre o papel da socialdemocracia na revolução do que da de Plekhanov.
O sentimento por unidade era tão forte que inúmeros comitês bolcheviques locais simplesmente se fundiram com seus equivalentes mencheviques apesar da oposição da liderança. Em suas memórias escritas nos anos 1920, o velho bolchevique Osip Piatnitsky descreve a situação do movimento socialdemocrata em Odessa no fim de 1905:
“Era óbvio para o comitê [da liderança bolchevique] que a proposta de união seria aprovada por ampla maioria nas conferências de partido tanto dos Bolcheviques quanto dos Mencheviques, pois onde quer que fosse levantada a questão da unidade ela era apoiada quase unanimemente. Dessa forma, o comitê bolchevique foi forçado a discutir os termos da união a qual eles próprios eram contra. Foi importante fazer isso, por que de outra forma a unidade teria ocorrido sem condição nenhuma de qualquer maneira.”
– Memórias de um Bolchevique (1973)
Na sua História dos Bolcheviques de 1923, Gregory Zinoviev resume a reunificação de 1906 assim:
“Como consequência das batalhas revolucionárias do fim de 1905 e sob a influência das massas, os quadros dos Bolcheviques e Mencheviques foram forçados a se reunir. De fato, as massas forçaram os Bolcheviques a se reconciliar com os Mencheviques em inúmeras questões.”
– História do Partido Bolchevique: Um Esboço Popular (1973)
A declaração de Zinoviev talvez seja muito simplista. É improvável que Lenin tenha simplesmente capitulado à pressão de baixo. O esmagador sentimento por unidade significava que as divisões organizativas não mais correspondiam à consciência política dos respectivos membros. Alguns dos jovens recrutas bolcheviques eram realmente mais próximos à esquerda dos Mencheviques, e vice-versa. Um período de disputa interna era necessário para separar os elementos revolucionários que haviam aderido ao movimento socialdemocrata em 1905 dos elementos oportunistas.
Reunificação
No outono de 1905, o comitê central bolchevique e o comitê organizativo menchevique começaram negociações conjuntas. O comitê central bolchevique na Rússia aprovou as fusões em nível local como meio de reunificar o POSDR como um todo. Lenin, que ainda estava no exílio na Suíça, interviu fortemente para parar essa unificação orgânica partindo de baixo. Ele insistiu que a reunificação fosse discutida pelas direções, num novo congresso de partido, com delegados eleitos numa plataforma fracional. Numa carta (3 de Outubro de 1905) para o comitê central, ele escreveu:
“Nós não deveríamos confundir a política de unir dois partidos com misturar ambos os partidos. Nós concordamos em unir as duas partes, mas nós nunca iremos concordar em misturá-las. Nós devemos exigir dos comitês uma divisão clara, e então dois congressos e um entrelaçamento.” [ênfase no original].
Em dezembro de 1905, um Centro Unitário foi formado consistindo de um número igual de bolcheviques e mencheviques. Ao mesmo tempo, os órgãos centrais das tendências rivais, o Iskra menchevique e o Proletary bolchevique, foram interrompidos e substituídos por uma publicação única, Partinye Izvestaii(Notícias do Partido).
Significativamente, os Mencheviques concordaram em aceitar a definição de Lenin sobre o critério para ser membro em 1903, incluindo a exigência da participação organizativa formal. Isso foi parte das concessões aos leninistas, mas em muito refletia o fato de que nas condições relativamente abertas de 1905-6, participação organizativa formal não era um impedimento para um recrutamento amplo. A reviravolta dos Mencheviques refuta completamente a noção generalizada de que a insistência de Lenin de que membros deviam se sujeitar à disciplina organizativa era uma peculiaridade do trabalho clandestino. Ao contrário, foram os Mencheviques que consideraram que a ilegalidade requeria uma definição mais frouxa de participação para poder atrair trabalhadores e intelectuais socialdemocratas sem desejo de enfrentar o rigor e perigo da clandestinidade.
O quarto congresso (de “reunificação”), ocorrido em Estocolmo em abril de 1906, foi dividido entre 62 mencheviques e 46 bolcheviques. Também estavam representados o Bund Judaico, os socialdemocratas da Letônia e os socialdemocratas da Polônia e Lituânia, liderados por Luxemburgo e Jogiches. Ninguém contestou que a representação das tendências no quarto congresso correspondia à sua respectiva força na base entre os trabalhadores socialdemocratas na Rússia. (no começo de 1906, os Mencheviques tinham cerca de 18.000 membros, os Bolcheviques cerca de 12.000).
O que contribuiu para que os Mencheviques tivessem maioria entre os socialdemocratas russos no começo de 1906? Primeiro, a atitude conservadora dos bolcheviques membros dos comitês com relação ao recrutamento no começo de 1905 também se manifestou em uma atitude sectária diante das novas organizações de massa lançadas pela revolução – os sindicatos e, acima de tudo, os sovietes. Assim os Mencheviques foram capazes de estar um passo a frente na disputa pela liderança das organizações gerais da classe trabalhadora. Embora Trotsky não fosse da tendência Menchevique, seu papel como cabeça do soviete de São Petersburgo fortaleceu a autoridade da ala anti-leninista da socialdemocracia russa. Em segundo lugar, o chamado dos Mencheviques por fusão orgânica imediata os permitiu apelar à ingenuidade política e ao desejo de unidade dos jovens recrutas.
Com a derrota da insurreição liderada pelos Bolcheviques em Moscou em dezembro de 1905, a maré ficou a favor da reação czarista. Enquanto os Bolcheviques consideraram as vitórias czaristas um revés temporário durante uma situação revolucionária contínua, os Mencheviques concluíram que a revolução havia acabado. A posição menchevique correspondeu ao crescente sentimento de derrotismo entre as massas nos primeiros meses de 1906.
Ao longo do período do quarto congresso, Lenin diversas vezes afirmou sua lealdade a um POSDR unitário. Por exemplo, numa breve declaração de tendência na conclusão do congresso, ele escreveu:
“Nós devemos e iremos lutar ideologicamente contra as decisões do congresso que consideramos erradas. Mas ao mesmo tempo nós declaramos a todo o partido que nos opomos a um racha de qualquer tipo. Nós permanecemos submetidos às decisões do congresso…. Estamos profundamente convencidos de que as organizações operárias socialdemocratas devem estar unidas, mas nessas organizações unitárias deve haver um amplo e livre debate crítico das questões do partido, livre criticismo entre camaradas e avaliação dos eventos na vida do partido.”
– “Um Apelo ao Partido pelos Delegados do Congresso de Unificação que pertenciam ao Antigo Grupo ‘Bolchevique’” (abril de 1906)
Para Lenin, a reunificação representava ao mesmo tempo a continuação da aderência à doutrina kautskista de “partido de toda a classe” e uma manobra tática para ganhar a massa de trabalhadores jovens, inexperientes que haviam se unido ao movimento socialdemocrata durante a revolução de 1905. Nós não temos meios de avaliar que peso Lenin deu a essas duas consideração diferentes. Nem sabemos como Lenin via em 1906 o curso futuro das relações bolcheviques-mencheviques.
É improvável que Lenin estivesse ansioso ou projetasse um racha definitivo e a criação de um Partido Bolchevique. Entre outros fatores, Lenin sabia que os Bolcheviques não seriam reconhecidos como únicos representantes da socialdemocracia russa pela Segunda Internacional. E quando em 1912 os Bolcheviques racharam completamente com os Mencheviques e reivindicaram ser POSDR, a liderança da Internacional não reconheceu essa reivindicação.
Lenin provavelmente gostaria de poder reduzir os Mencheviques a uma minoria impotente sujeita à disciplina de uma liderança revolucionária (leia-se bolchevique) no POSDR. Era assim que ele via a relação dos revisionistas seguidores de Bernstein em relação à liderança Bebel/Kautsky do SPD. Entretanto, ele sabia que as colunas mencheviques não desejariam e talvez fossem incapazes de agir como uma minoria comportada num partido revolucionário. Ele posteriormente reconheceu que não tinha a autoridade de um Bebel para fazer uma tendência oportunista se submeter à sua liderança organizativa.
Em busca da liderança do movimento operário russo, Lenin não se limitou em ganhar membros nas colunas mencheviques, a puramente à luta de tendência interna do POSDR. Ele esperava recrutar trabalhadores sem partido e radicais pequeno-burgueses diretamente para a tendência Bolchevique. Com esse objetivo, a “tendência” Bolchevique do POSDR agiu muito como um partido independente com sua própria imprensa, liderança e estrutura de disciplina, finanças, atividades públicas e comitês locais. De que nesse período entre 1906-12 os Bolcheviques, enquanto formalmente uma tendência unitária do POSDR, tinham a maioria das características de um partido independente foi o julgamento de figuras políticas tão diversas quanto Trotsky, Zinoviev e o líder menchevique Theodore Dan.
No curso de uma polêmica contra a tendência americana de Shachtman (no SWP), Trotsky caracterizou os Bolcheviques nesses período como “tendência” que “mostrava todos os traços de um partido” (Em Defesa do Marxismo [1940]).
História do Partido Bolchevique de Zinoviev descreve a situação seguinte ao quarto congresso:
“Os Bolcheviques tinham armado durante o congresso seu próprio Comitê Central, interno e ilegal para o restante do partido. Esse período na história do nosso partido, quando nós estávamos na minoria tanto no Comitê Central quanto no Comitê de São Petersburgo e tínhamos que esconder nossa atividade revolucionária em separado foi muito árdua e insatisfatória para nós…. Era uma situação onde dois partidos estavam aparentemente operando na estrutura de um.” [nossa ênfase]
O trabalho de Dan de 1945, As Origens do Bolchevismo (1970), apresenta uma análise similar das relações bolcheviques-mencheviques:
“Não era uma divergência organizativa, mas política, que rapidamente fez rachar a socialdemocracia russa em duas frações, que ora se aproximavam e logo depois se digladiavam, mas que basicamente permaneceram partidos independentes que continuaram lutando um com o outro até mesmo no tempo em que elas estavam nominalmente dentro do espectro de um partido unitário.”
Centralismo Democrático e “Liberdade de Criticar”
Do quarto congresso em abril de 1906 até o quinto congresso em maio de 1907, os Bolcheviques foram uma tendência minoritária do POSDR. Ao lutar pela liderança do partido os Bolcheviques não se orientaram primariamente para ganhar uma seção dos quadros mencheviques. Com poucas exceções individuais, Lenin considerava os temperados quadros mencheviques como duros oportunistas, pelo menos por um período próximo. Paradoxalmente, a reunificação demonstrou a espessura da linha separando Bolcheviques e Mencheviques; poucos veteranos de ambos os grupos mudaram de lado.
Um dos motivos de Lenin para concordar com a unidade foi que o racha continuado repeliu muitos trabalhadores socialdemocratas de se unir a qualquer um dos grupos. Uma vez que recrutar elementos sem partido era a chave para lutar contra a liderança menchevique do POSDR, Lenin naturalmente queria que fosse permitido atacar publicamente tal liderança. Foi nesse contexto histórico que Lenin definiu centralismo democrático como “liberdade de criticar, unidade na ação”. No período de 1906-07, Lenin reivindicou em numerosas ocasiões o direito das minorias de se opor publicamente às posições, mas não nas ações, da liderança do partido.
Previsivelmente, vários revisionistas de direita “redescobriram” a reivindicação de 1906 de Lenin por “liberdade de criticar” como o produto de uma aderência contínua a um conceito socialdemocrata clássico de partido e não uma manobra tática contra os Mencheviques – e proclamaram essa a verdadeira forma do centralismo democrático leninista. Certos grupos centristas de esquerda que romperam com o falso-trotskista Secretariado Unificado no começo dos anos de 1970 fizeram de “liberdade de criticar” uma parte chave do seu programa. O mais significativo desses grupos foi oInternationale Kommunisten Deutschlands (IKD) da Alemanha Ocidental, o qual fracamente ainda existe hoje. A Fração Leninista (FL) no SWP americano, que gerou a breve Liga Luta de Classes (LLC), da mesma forma defendeu a “liberdade de criticar”. Um líder central da FL/LLC, Barbara G., escreveu um longo documento intitulado “Centralismo Democrático” (agosto de 1972) sobre o assunto. A conclusão central é:
“Lenin sentia que a discussão das diferenças políticas na imprensa do partido era importante porque o partido e a imprensa eram da classe trabalhadora. Se os trabalhadores deveriam ver o partido como seu partido, eles devem ver as questões do partido como suas questões, lutas do partido como suas lutas. O trabalhador que se aproxima do partido deve entender que ele tem a possibilidade de ajudar a construir o partido, não apenas através da repetição da linha da maioria, mas (sob as guias do partido) colocando suas críticas e idéias.” [ênfase no original]
Barbara G. cita com aprovação o artigo de Lenin de maio de 1906, “Liberdade para Criticar e Unidade de ação”:
“Criticas dentro dos limites dos princípios do programa do partido devem ser bastante livres … não apenas nos encontros do partido, mas também em encontros públicos. Tal criticismo, ou tal ‘agitação’ (já que criticismo é inseparável de agitação) não pode ser proibido.”
O “partido” a qual Lenin se refere aqui não é o Partido Bolchevique que liderou a revolução de Outubro. É o partido inclusivo de todos os socialdemocratas russos liderado pela tendência Menchevique, ou seja, por demonstrados oportunistas. Igualar o POSDR de 1906 com a vanguarda revolucionária é jogar nas trevas a distinção entre bolchevismo e menchevismo.
Sem fazer um racha permanente, Lenin fez tudo para prevenir a liderança menchevique do POSDR de dificultar a agitação e ações revolucionárias dos Bolcheviques. Nós já citamos Zinoviev para os efeitos de que os Bolcheviques estabeleceram uma estrutura da liderança formal em violação às regras do partido. Eles também tinham finanças independentes. Por volta de agosto de 1906, os Bolcheviques haviam restabelecido seu orgão de tendência, o Proletary, sob aprovação do Comitê de São Petersburgo onde haviam acabado de ganhar a maioria.
Que os Bolcheviques e Mencheviques não poderiam coexistir num partido unitário de acordo com a fórmula de “liberdade de criticar, unidade de ação” se demonstrou pela campanha eleitoral de São Petersburgo no começo de 1907. Durante esse período o conflito principal entre os grupos foi focado na questão sobre o apoio eleitoral ao partido liberal monarquista, os Cadetes. Numa conferência do partido em novembro de 1906, a maioria menchevique adotou o compromisso pelo qual os comitês locais determinassem sua própria política eleitoral. Para minar o reduto bolchevique de São Petersburgo, o Comitê Central ordenou então que o comitê se dividisse em dois. Denunciando isso corretamente como puramente uma manobra de tendência, os Bolcheviques se recusaram a dividir o comitê. Numa conferência em São Petersburgo para decidir sobre a política eleitoral, os Mencheviques racharam, protestando que a conferência era ilegítima. Eles então apoiaram os Cadetes contra a campanha Bolchevique pelo POSDR.
Quando Lenin denunciou esse ato de traição de classe num livro, As Eleições de São Petersburgo e a Hipocrisia dos Trinta e Um Mencheviques, o Comitê Central colocou-o sob as acusações de fazer declarações “inadmissíveis para um membro do partido”. As ações de julgamento do Comitê Central contra Lenin foram adiadas até o quinto congresso, onde foram tornadas inócuas pela maioria ganha pelos Bolcheviques.
O espírito com o qual Lenin reivindicou “liberdade de criticar” pode ser visto em sua “defesa” contra a acusação dos Mencheviques de que ele “lançava suspeitas sobre a integridade política dos membros do partido”:
“Por meus afiados e descorteses ataques sobre os Mencheviques na ocasião das eleições de São Petersburgo, eles na verdade foram bem sucedidos em fazer com que uma parte do proletariado que confia e segue os Mencheviques vacilasse. Esse era meu objetivo. Esse era meu dever como membro da organização socialdemocrata de São Petersburgo que estava conduzindo uma campanha por um bloco de esquerda; porque, depois do racha, isso foi necessário … derrotar os Mencheviques que estavam liderando o proletariado para seguir as pegadas dos Cadetes; foi necessário levar confusão até as suas colunas; foi necessário fazer surgir ódio, aversão e desprezo entre as massas por aquelas pessoas que haviam deixado de ser membros de um partido unitário, tinham se tornado inimigos políticos…. Contra tais inimigos políticos eu conduzi então – e caso haja uma repetição ou desenvolvimento de uma divisão vou sempre conduzir – uma luta deextermínio.” [ênfase no original]
– “Relatório ao Quinto Congresso do POSDR sobre o Racha de São Petersburgo…” (abril de 1907)
A reivindicação de Lenin de “liberdade de criticar” no POSDR liderado pelos Mencheviques em 1906 foi análoga à posição dos trotskistas sobre centralismo democrático quando eles fizeram um entrismo nos partidos socialdemocratas modernos em meados dos anos 1930. Os trotskistas se opuseram ao centralismo democrático para esses partidos para maximizar seu impacto tanto ente os membros da socialdemocracia quanto para fora do partido. Reciprocamente, elementos da liderança socialdemocrata defenderam a adoção de normas de centralismo democrático para suprimir os trotskistas. Referindo-se à experiência dos trotskistas no Partido Socialista americano de Norman Thomas, James P. Cannon expressa muito bem a aplicação única do centralismo democrático à vanguarda revolucionária:
“Centralismo democrático não tem nenhuma virtude especial por si só. É um princípio específico de um partido de combate, formado pela defesa de um único programa, que tem o objetivo de liderar a revolução. Socialdemocratas não tem necessidade de tal sistema de organização pela simples razão de que não tem interesse em liderar uma revolução. Sua democracia e centralismo não são unidos por um hífen [em inglês] mas mantidos em compartimentos separados para propósitos separados. A democracia é para os socialpatriotas e o centralismo é para os revolucionários. A tentativa da tendência ‘Clarificação’, de Zam e Tyler no Partido Socialista, de introduzir um rígido sistema de organização de ‘centralismo democrático’ no heterogêneo Partido Socialista (1936-37) foi uma caricatura barulhenta; mais propriamente, um aborto da natureza. A única coisa para que essas pessoas precisavam de centralização e disciplina era para suprimir os direitos da ala esquerda e então expulsá-la.”
– Carta para Duncan Conway (3 de abril de 1953), em Discursos ao Partido (1973)
Em seguida ao racha definitivo com os Mencheviques e à criação do Partido Bolchevique em 1912, Lenin abandonou sua posição de 1906 sobre a “liberdade de criticar”. Em julho de 1914, o escritório da Internacional Socialista marcou uma conferência para reunificar os socialdemocratas russos. Entre as numerosas condições de Lenin para unidade estava uma clara rejeição da “liberdade de criticar”:
“A existência de duas imprensas rivais na mesma cidade ou localidade deve ser absolutamente proibida. A minoria terá o direito de discutir diante de todo o partido, desacordos com o programa, táticas e organização em um material de discussão publicado especialmente para esse propósito, mas não deverá ter o direito de publicar num jornal rival, pronunciamentos disruptivos das ações e decisões da maioria.” [nossa ênfase]
– “Relatório ao Comitê Central do POSDR da Conferência de Bruxelas” (junho de 1914)
Lenin posteriormente ainda estipulou que agitação pública contra o partido sobre a clandestinidade ou sobre a “autonomia nacional” era absolutamente proibido.
Barbara G., em seu texto “Centralismo Democrático”, reconhece que por volta de 1914 Lenin havia mudado de posição:
“Por volta de 1914, então, Lenin definitivamente mudou seu pensamento sobre a seguinte questão: No que ele costumava achar que era permissível haver jornais de tendências dentro do POSDR, ele agora pensava ser inadmissível porque confundiria e dividiria a classe trabalhadora.”
Barbara G. minimiza a rejeição de Lenin a “liberdade de criticar”. Ele não apenas rejeitou órgãos públicos de tendências rivais, mas o direito das minorias de criticar publicamente a posição da maioria sob qualquer forma. Ele posteriormente especificou que em duas diferenças-chave – a clandestinidade e a “autonomia nacional” – a posição da minoria não poderia ser reivindicada publicamente jamais e de maneira alguma. É característica de centristas, como Barbara G., preferir o Lenin de 1906, que aceitava unidade com os Mencheviques, do que o Lenin de 1914, que havia definitivamente rachado com os Mencheviques e então desafiava a doutrina kautskista de que revolucionários e reformistas trabalhistas deveriam coexistir num partido unitário.
O conjunto dos membros e particularmente os quadros de liderança de uma vanguarda revolucionária tem um nível de consciência de classe política qualitativamente mais alto que todos os elementos sem partido. Uma liderança revolucionária pode cometer erros, até mesmo sérios, sobre assuntos onde as massas de trabalhadores estão corretos. Tais ocorrências serão muito raras. Se elas não forem raras, então é o caráter revolucionário da organização que está colocado em questão, não as normas de centralismo democrático.

Uma minoria numa organização revolucionária busca ganhar seus quadros de liderança, não apelar para elementos mais atrasados contra os quadros. A resolução de diferenças dentro da vanguarda deve ser o mais livre possível da intervenção de elementos atrasados, fonte primária da pressão ideológica burguesa. “Liberdade de criticar” maximiza a influência de trabalhadores atrasados, sem falar de inimigos políticos conscientes, sobre a vanguarda revolucionária. Assim, “liberdade de criticar” traz perigo à coesão interna e à autoridade externa da vanguarda proletária.

Lenin e o Partido de Vanguarda (3)

A Revolução de 1905   

 
Durante 1904, a derrota russa na guerra com o Japão provoca um ascenso da oposição liberal burguesa contra a autocracia czarista. Essa mudança significativa no cenário político russo aprofundou as diferenças entre menchevismo e bolchevismo. Atribuindo aos liberais o papel de liderança na revolução anti-czarista que viria, os mencheviques buscavam encorajar a oposição liberal diminuindo o criticismo sobre eles. A atitude conciliatória dos Mencheviques em relação aos liberais marcou uma regressão a um nível ainda mais baixo do que o dos economicistas, restringindo o partido socialdemocrata à defesa de interesses setoriais do proletariado russo.
Lenin atacou de forma afiada essa política liberal-conciliatória em seu artigo de novembro de 1904, “A Campanha do Zemstvo e o Plano do Iskra”, que abriu uma fase mais profunda no conflito bolchevique-menchevique. (Os Zemstvos eram os corpos governamentais locais através dos quais os liberais esperavam reformar o czarismo). O eixo central da polêmica de Lenin é esse:    
“Democratas burgueses são por sua própria natureza incapazes de satisfazer essas demandas [democráticas revolucionárias], e estão portanto condenados à indecisão e a morrer no meio do caminho. Criticando essa indecisão, os socialdemocratas continuam incentivando os liberais ao mesmo tempo em que ganham mais e mais proletários e semi-proletários, e parcialmente a pequeno-burguesia também, da democracia liberal para a democracia da classe trabalhadora….”
“A oposição burguesa é meramente burguesa e meramente uma oposição porque ela não luta por si própria, porque ela não tem um programa próprio que defenda incondicionalmente, porque ela permanece entre dois combatentes de verdade (o governo e o proletariado revolucionário, cheio de apoiadores na intelectualidade) e tem a esperança de tirar vantagem do desfecho dessa luta.”
Essa diferença sobre o papel da burguesia liberal na revolução anti-czarista era a questão principal dos rivais Mencheviques e Bolcheviques nos encontros em abril de 1905. Partindo da sua premissa de que o partido liberal burguês deveria chegar ao poder com a destruição do absolutismo, os Mencheviques chegavam ao posicionamento de que o partido socialdemocrata, não importasse o quão forte, não deveria derrotar militarmente o governo czarista. Essa política de espera passiva e de segurar no rabo dos liberais foi adotada na forma de resolução na conferência menchevique de abril:
“Sob essas condições, a socialdemocracia deve se esforçar em reter para si mesma, ao longo de toda a revolução, uma posição que vai lhe garantir uma melhor oportunidade de aprofundar a revolução, a qual não a mantivesse numa luta contra as políticas inconsistentes e egoístas dos partidos burgueses, e a qual prevenisse que a revolução perdesse a sua identidade na democracia burguesa.”
“Portanto, a socialdemocracia não deveria colocar para si própria o objetivo de exercer ou dividir o poder no governo provisório, mas deve permanecer um partido de extrema oposição revolucionária.”
– Robert H. McNeal, Ed., Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética (1974)
Lenin contrapôs à concepção menchevique a idéia de “ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato”, um conceito mais extensivamente estabelecido em seu livro de julho de 1905, Duas Táticas da socialdemocracia na Revolução Democrática. Lenin parte da premissa de que a burguesia russa era incapaz de levar adiante as tarefas históricas da revolução democrático-burguesa. Entretanto, ele acreditava que um movimento radical populista de base camponesa poderia e iria desenvolver um partido democrático-revolucionário de massas. (Significativamente, Lenin nãoconsiderava os Socialistas Revolucionários tal partido. Ele considerava que eles eram um agrupamento “intelectualista” e ainda viciados em terrorismo). A aliança entre o partido democrático-revolucionário de base camponesa e o partido proletário socialdemocrata, incluindo uma coalizão do “governo provisório revolucionário”, iria derrubar o absolutismo e levar em frente o programa radical democrático – o programa “mínimo” do Partido Operário socialdemocrata Russo (POSDR). O núcleo operacional da estratégia de Lenin foi adotada no terceiro congresso do POSDR só composto por bolcheviques:
“Dependendo do alinhamento de forças e outros fatores que não podem ser precisamente definidos de antemão, representantes do nosso partido podem ser autorizados a tomar parte do governo provisório revolucionário para conduzir uma implacável luta contra todas as tentativas contra-revolucionárias e para defender os interesses independentes da classe trabalhadora.”
– Idem.
Ao desenvolver o conceito de “ditadura revolucionária democrática”, Lenin estava primeiramente preocupado em motivar a socialdemocracia russa para um papel político e militar ativo na revolução. Quanto ao futuro destino da “ditadura revolucionária democrática”, Lenin é deliberadamente vago; está claro que ele não a considerava uma forma estável de dominação de classe. Em Duas Táticas, ele afirma:
“A ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato é inquestionavelmente apenas um objetivo socialista transiente, temporário, mas ignorar esse objetivo no período da revolução democrática seria claramente reacionário.”
A futura evolução da sociedade russa a partir da “ditadura revolucionária democrática” seria determinada pelo equilíbrio de força de classe não apenas na Rússia mas por toda a Europa. A formulação de Lenin é portanto uma concepção algébrica. Em seu desfecho mais revolucionário, ela tomaria a forma da “revolução permanente” de Trotsky: uma revolução democrática radical na Rússia acende uma faísca para a revolução proletária européia, que permite a revolução socialista imediata na Rússia. Numa face reacionária triunfante, a “ditadura revolucionária democrática” se torna um episódio revolucionário tal qual a ditadura jacobina de 1793 ou a comuna de Paris de 1871, que torna possível a estabilização de uma dominação democrático-burguesa normal.
No início de 1905, a questão da dinâmica política da revolução havia superado a estreita questão organizativa como o conflito central entre bolchevismo e menchevismo. De fato, o criticismo aos Mencheviques adotado no congresso Bolchevique de abril de 1905 nem sequer menciona o ponto que causou o racha originalmente. Ao invés disso, condenava os Mencheviques por economicismo e seguidismo liberal:
“… uma tendência geral de diminuir o significado da consciência, a qual eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária…. Em problemas táticos [os Mencheviques] manifestam um desejo de estreitar a visão de trabalho do partido; falam contra a posse pelo partido de táticas completamente independentes em relação ao partidos liberais burgueses, contra a possibilidade e o caráter desejável de que nosso partido tome um papel organizacional no levante popular, e contra a participação do partido sob quaisquer condições num governo provisório democrático revolucionário.”
Como é bem conhecido, nem todos os líderes mencheviques de 1903 tornaram-se seguidistas dos liberais em 1905. Durante 1904, o jovem Trotsky desenvolveu a teoria da “revolução permanente” como aplicável à Rússia. Devido ao desenvolvimento desigual da Rússia, nenhuma força democrático-burguesa revolucionária, incluindo um partido populista radical de base camponesa, iria emergir para derrubar o absolutismo. Ao levar em frente a revolução anti-absolutista, o partido proletário seria forçado a tomar o poder de Estado e também a introduzir o início da socialização. A não ser que a revolução proletária russa se estendesse para a avançada Europa capitalista, o Estado operário atrasado seria inevitavelmente destruído pela reação imperialista. A “revolução permanente” de Trotsky o posicionou à esquerda dos leninistas na questão da estratégia revolucionária, mas, com exceção de um momento histórico em 1905, ele permaneceu uma figura isolada no movimento socialdemocrata da Rússia pré-guerra.  
Revolução e Recrutamento em Massa
As diferenças com os Mencheviques sobre a natureza da revolução russa enfraqueceram, mas não eliminaram, os conciliadores bolcheviques, que queriam uma reunificação do POSDR. Entretanto, o ascenso revolucionário produziu uma nova divisão no campo bolchevique, e desta vez Lenin se encontrou tomando uma posição que não lhe era familiar na questão organizativa.
A radicalização de massa, particularmente após o Domingo Sangrento, 9 de janeiro de 1905, produziu dezenas de milhares de jovens trabalhadores militantes que desejavam se unir a um partido revolucionário socialista, a se juntar aos Bolcheviques. Entretanto, habituados a uma pequena rede secreta, muitos “homens dos comitês” Bolcheviques (os quadros que tinham construído núcleos socialdemocratas fortes nas difíceis condições da clandestinidade) resistiram à mudança radical na natureza de sua organização e no seu funcionamento. Eles se opuseram a uma política de recrutamento de massa e insistiram em manter um longo período de acompanhamento como um critério prévio para ser considerado membro.
Lenin se opôs inflexivelmente a esse conservadorismo do aparato e buscou transformar os Bolcheviques de uma organização com trabalho de agitação para um partido proletário de massa. Desde cedo, em fevereiro de 1905, num artigo chamado “Novas Forças e Novas Tarefas”, Lenin expressou preocupação com que a radicalização das massas estivesse muito além do crescimento da organização bolchevique:
“… nós devemos aumentar consideravelmente a admissão de membros em todo o partido e em órgãos a ele conectados para sermos capazes de manter, em alguma medida, extensão com o fluxo de energia popular revolucionária que foi multiplicado por cem. Isso, nem é preciso dizer, não significa que treinamento consistente e instrução sistemática nos conceitos marxistas devem ser deixados de lado. Nós devemos, entretanto, lembrar que no presente momento um significado muito maior no que diz respeito a treinamento e educação está atribuído às operações militares, que ensinam aos inexperientes precisamente e inteiramente nosso sentido de compromisso. Nós devemos lembrar que a nossa crença “doutrinária” no marxismo está agora sendo reforçada pela marcha dos eventos revolucionários, que está por toda a parte fornecendo lições objetivas às massase que todas essas lições confirmam precisamente o nosso dogma….”
“Jovens lutadores devem ser recrutados de forma mais ousada, ampla e rapidamente para todas as colunas de todas e de todo o tipo de nossos órgãos. Centenas de novos órgãos devem ser montados para este propósito sem um minuto de atraso. Sim, centenas; isso não é uma hipérbole, e que não venha ninguém me dizer que agora é ‘tarde demais’ para realizar tamanha tarefa organizativa. Não, nunca é tarde demais para organizar. Nós devemos usar a liberdade que nós estamos conseguindo pela lei e a liberdade que nós estamos tendo apesar da lei para reforçar e multiplicar todas as variedades de órgãos do partido.” [ênfase no original]
O conflito entre a política de recrutamento de massa de Lenin e os conservadores “homens dos comitês” foi uma das questões mais quentes do congresso bolchevique de abril de 1905. A moção de Lenin sobre o assunto ganhou por uma apertada maioria. Essa moção chama os Bolcheviques a
“… fazer todo esforço para reforçar os laços entre o partido e as massas da classe trabalhadora, elevando setores ainda mais amplos dos proletários para a completa consciência socialdemocrata, desenvolvendo sua atividade revolucionária socialdemocrata, fazendo assim com que o maior número possível de trabalhadores capazes de liderar o movimento e os órgãos do partido seja elevado a partir da massa da classe trabalhadora para membros dos centros locais e do meio partidário através da criação de um número máximo de organizações da classe operária ligadas ao nosso partido….”
– “Rascunho das Resoluções Entre Trabalhadores e Intelectuais nos Órgãos socialdemocratas”, abril de 1905
Em oposição à política de recrutamento de massa, os conservadores homens dos comitês bolcheviques citaram O Que Fazer? com sua linha de “quanto mais exigente, melhor”. Lenin replicou que a polêmica de 1902 buscava guiar a formação de um grupamento oposicionista dentro de um movimento politicamente heterogêneo de círculos de propaganda secretos. As tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905 eram, para dizer o mínimo, diferentes.
Lenin estava absolutamente certo ao se opor à atitude conservadora com relação ao recrutamento de massa durante a revolução de 1905. Se as dezenas de milhares de jovens trabalhadores subjetivamente revolucionários, mas politicamente crus, que vieram a tona não fossem recrutados pelos Bolcheviques, eles iriam naturalmente se juntar aos oportunistas Mencheviques, aos radicais populistas Socialistas Revolucionários ou aos anarquistas. O partido revolucionário teria sido privado de uma grande e importante geração proletária. Sem o recrutamento de massa o Partido Bolchevique teria sido esterilizado durante a revolução e daí em diante.
Outro aspecto do conservadorismo do aparato dos “homens dos comitês” bolcheviques era uma atitude sectária com relação às organizações de massa lançadas pela revolução – os sindicatos e, acima de tudo, os sovietes. O fundamental Soviete [Conselho] de São Petersburgo de Deputados dos Operários se originou em outubro de 1905 como um comitê geral centralizado de greves. Enquanto os Mencheviques mergulharam nos sindicatos e nos sovietes precisamente porque estes eram programaticamente frouxos, de uma natureza política heterogênea, uma seção da liderança dos Bolcheviques descreditava tais organizações como adversárias do partido.
Assim, em outubro de 1905, o comitê central Bolchevique na Rússia (Lenin ainda estava no exílio) endereçou uma “Carta a Todos os Órgãos do Partido” que declarava:
“Todas as organizações representam um certo estágio no desenvolvimento político do proletariado, mas se elas se localizam fora da socialdemocracia, elas estão, objetivamente, em perigo de manter o proletariado num nível político primitivo e assim subjugado aos partidos burgueses”.
– Citado em Tony Cliff, Lenin – Volume I: Construindo o Partido (1975)
A atitude inicial sectária dos Bolcheviques com relação aos sovietes permitiu aos Mencheviques desempenhar neles um papel de liderança ao preencher um vácuo político. Dessa forma Trotsky, como presidente do Soviete de São Petersburgo, emergiu como o mais proeminente revolucionário socialista em 1905.
Assim como havia lutado por uma política de recrutamento de massa, Lenin interviu para corrigir uma atitude sectária abstencionista com ralação aos sovietes. Numa carta para a imprensa bolchevique chamada “Nossas Tarefas e o Soviete de Deputados dos Operários” (novembro de 1905) ele escreveu:
“… o Soviete de Deputados de Operários ou o partido? Acho que seria errado pôr a pergunta desta forma e que a decisão deve certamente ser: ambos o Soviete de Deputados de Operários e o partido. A única questão – e uma altamente importante – é como dividir, e como combinar, as tarefas do Soviete e aquelas do Partido Operário Social Democrata Russo.”
“Eu creio que não seria aconselhável ao Soviete aderir inteiramente a um único partido qualquer.” [enfase no original]
Assim como Trotsky, Lenin considerava os sovietes a base organizativa para um governo revolucionário:
“Na minha cabeça, o Soviete de Deputados dos Operários, como um centro revolucionário provendo liderança política, não é uma organização ampla demais, mas ao contrário, muito restrita. O Soviete deve declarar a si mesmo o governo provisório revolucionário, ou formar tal governo, e por todos os meios recorrer para este fim a participação de novos deputados, não apenas de trabalhadores, mas antes de tudo, de marinheiros e soldados…; em segundo lugar, do campesinato revolucionário, e em terceiro, da intelligentsia burguesa revolucionária. O Soviete deve selecionar um forte núcleo para o governo provisório revolucionário e reforçá-lo com representantes de todos os partidos democratas revolucionários (mas, é claro, apenas revolucionários, e não liberais).”
– Idem.
A orientação positiva de Lenin com relação aos sindicatos e sovietes em 1905 não representa uma mudança em sua posição prévia sobre um partido de vanguarda. Ao contrário, o conceito de um partido de vanguarda pressupõe e de fato requer organizações muito amplas através das quais o partido possa liderar as massas de trabalhadores de consciência mais atrasada. O Que Fazer? declara muito claramente a relação entre o partido e os sindicatos:
“As organizações dos trabalhadores para luta econômica devem ser as organizações sindicais. Todo trabalhador socialdemocrata deveria tão quanto possível ajudar e efetivamente construir essas organizações. Mas, enquanto isso é verdade, certamente não é do nosso interesse exigir que apenas socialdemocratas sejam eleitos como membros nos sindicatos, uma vez que isso apenas iria estreitar o escopo de nosa influência nas massas. Deixemos cada trabalhador que entenda a necessidade de união para lutar contra os patrões e o governo se juntar aos sindicatos. O objetivo exato dos sindicatos seria impossível de ser atingido, se eles não reunissem todos aqueles que adquiriram pelo menos o mais elementar nível de compreensão, se eles não fossem organização muitoamplas. Quanto mais amplas essas organizações, mais amplo vai ser o nosso nível de influência sobre elas.” [ênfase no original]
Lenin Renunciou a O Que Fazer?
Quase todo revisionista de direita se apoiou na luta de Lenin por uma política de recrutamento de massa e contra o conservadorismo do aparato do partido para afirmar que o fundador do comunismo moderno abandonou os princípios de O Que Fazer? nessa ocasião e daí por diante. O movimentista-reformista britânico Tony Cliff conclui que em 1905:
“Sobre a idéia de que consciência socialista só poderia ser trazida de “fora”, e de que a classe podia alcançar espontaneamente apenas uma consciência sindical, Lenin agora formulava sua conclusão em termos que eram o oposto absoluto daqueles de O Que Fazer? Num artigo chamado ‘A Reorganização do Partido’, escrito em novembro de 1905, ele diz sem rodeios: ‘A classe trabalhadora é instintivamente, espontaneamente socialdemocrata’.”
– Op. cit.
Jean-Jacques Marie, líder da neo-kautskista Organização Comunista Internacionalista francesa, diz praticamente a mesma coisa:
“Lenin abandonou a rigidez na definição que ele tinha dado da relação entre ‘consciência’ e ‘espontaneidade’. Após o segundo congresso (agosto de 1903) ele indicou que tinha ‘pego pesado’ ou ‘arrancado o bastão quebrado pelos economicistas e o quebrado pro outro lado’. A revolução de 1905 só poderia forçá-lo a restringir a função histórica de O Que Fazer? a um momento particular.”
– Introdução a O Que Fazer? (1966)
Porque todos os tipos de reformistas e centristas exploram a luta de Lenin em 1905 contra o conservadorismo do aparato por propósitos anti-leninistas, é extremamente importante definir precisamente as questões de tal disputa. Que aspecto ou aspectos de O Que Fazer? Lenin considerava ainda relevantes em 1905?
Lenin não mudou sua posição com relação à consciência e espontaneidade. Em 1905 e até a sua morte, ele manteve que o partido de vanguarda revolucionária era inequivocamente a expressão consciente dos interesses históricos do proletariado. Como nós apontamos, o congresso bolchevique de abril de 1905, onde Lenin lutou por uma campanha de recrutamento de massa, condenou os Mencheviques por uma “tendência geral de menosprezar o significado da consciência, que eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária”. Lenin não considerava que os “jovens lutadores” e futuros recrutas em 1905 fossem mais politicamente avançados que os homens dos comitês bolcheviques. Ao contrário, ele insistiu que os notáveis e empenhados homens dos comitês podiam e deveriam elevar os subjetivamente revolucionários “jovens lutadores” ao seu próprio nível.
Lenin não jogou descarga abaixo o programa revolucionário do partido para atrair trabalhadores de consciência rebaixada; ele não caiu em demagogia. Isso fica óbvio da passagem citada em “Novas Forças e Novas Tarefas”. Ele também não acreditava que recrutamento amplo requeria uma queda de nível na responsabilidade e disciplina dos membros. O congresso bolchevique de abril substituiu a definição frouxa de Martov de 1903 sobre a condição de membro com a posição de Lenin quanto a participação formal na organização. Nem mesmo Lenin achava que a transformação dos Bolcheviques num partido operário de massas deveria levar a um significativo relaxamento no centralismo organizativo. Através desse período ele reafirmou sua crença de que centralismo era um princípio organizativo fundamental da socialdemocracia revolucionária. Por exemplo, no artigo “O Congresso de Jena do Partido Socialdemocrata Alemão” (setembro de 1905), ele escreveu:
“É importante que a mais marcante característica desta revisão [das regras do SPD] deveria ser sublinhada, ou seja, a tendência em direção a maior, mais abrangente e mais rigorosa aplicação do princípio do centralismo, o estabelecimento de uma organização mais forte….”
“No todo, isso obviamente mostra que o crescimento do movimento socialdemocrata e de seu espírito revolucionário necessariamente e inevitavelmente leva ao estabelecimento consistente do centralismo.”
Construindo nas Bases de O Que fazer?
Em que sentido então Lenin considerava O Que Fazer? como inaplicável para as tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905? Em 1905 Lenin defendia uma redução do até então nível normal de experiência política e conhecimento requerido para recrutamento e também para responsabilidades de liderança. E essa mudança não estava tanto no conceito de Lenin de um partido de vanguarda como na consciência do proletariado russo. Nas condições clandestinas de 1902-3, apenas um pequeno número de trabalhadores avançados iria aderir ao programa socialdemocrata revolucionário, arriscando-se à prisão e ao exílio, e aceitariam a disciplina da recém-formada tendência do POSDR. Após o Domingo Sangrento dezenas de milhares de jovens militantes trabalhadores e também pequeno-burgueses radicais queriam se tornar revolucionários socialdemocratas, até onde eles entendiam o que isso significava. Recrutamento amplo em 1902-3 teria sufocado os elementos revolucionários do POSDR numa massa de trabalhadores russos atrasados, ortodoxos e liberal-czaristas. Em 1905, a sólida organização dos quadros Bolcheviques foi capaz de assimilar um grande número de trabalhadores radicalizados, apesar de politicamente crus.
O recrutamento de massa de Lenin em 1905 não foi nem um repúdio e nem uma correção dos princípios expressos em O Que Fazer? mas se baseou em sua bem-sucedida implementação. Uma condiçãoprévia para um recrutamento amplo durante uma crise revolucionária é uma homogênea organização de quadros. E Lenin explicitamente declara isso nessa passagem, que o próprio Cliff cita, mas se recusa ou é incapaz de entender:
“Há perigo em se acomodar diante de um repentino influxo de um grande número de militantes não-socialdemocratas no partido. Se isso ocorresse, o partido se dissolveria entre as massas, ele deixaria de ser a vanguarda consciente da classe, seu papel seria reduzido ao de um rabo atrás das massas. Isso iria significar um período bastante deplorável de fato. E esse perigo poderia, sem dúvida alguma se tornar muito sério se nós mostrássemos alguma inclinação em direção à demagogia, se nos faltassem princípios partidários (programa, regras táticas, experiência organizativa), ou se esses princípios fossem fracos e instáveis. Mas o fato é que não existe ‘se’…. Nós exigimos consciência de classe daqueles que se unem ao partido, nós insistimos na tremenda importância da continuidade no desenvolvimento do partido, nós pregamos disciplina e exigimos que cada um dos membros do partido seja treinado em alguma das organizações partidárias. Nós estabelecemos firmemente o programa partidário que oficialmente reconhecido por todos os socialdemocratas e as propostas fundamentais que não geraram nenhum criticismo…. Nós temos resoluções sobre táticas que funcionaram consistentemente no segundo e terceiro congressos e no curso de muitos anos de trabalho da imprensa socialdemocrata. Nós também temos alguma experiência organizativa e uma organização de verdade, que desempenhou um papel educativo e sem dúvida trouxe frutos.” [ênfase no original]
– “A Reorganização do Partido” (novembro de 1905)
Um fraco grupo de propaganda ou partido pequeno, heterogêneo que abre as suas portas durante um levante revolucionário será mergulhado num pântano de imaturidade e impressionismo, elementos voláteis que levarão esse partido ao desastre. Isso é precisamente o que aconteceu à Liga Spartacus alemã de Luxemburgo e Liebknecht entre 1918-19. Os bolcheviques de Lenin em 1905 foram capazes de evitar o destino trágico de Liga Spartacus porque eles haviam construído uma organização de acordo com os princípios de O Que Fazer? nos cinco anos anteriores.
Diferente dos Bolcheviques, os Mencheviques foram de certa forma envolvidos pela sua massa de recrutas radicalizados. Sob o impacto do aprofundamento da revolução, a liderança Menchevique de fato rachou. O principal seguidor de Martov, Theodore Dan, e Martynov (dentre todos) apoiaram a campanha de Trotsky por um “governo dos trabalhadores”. O próprio Martov e Plekhanov aderiram à posição menchevique oficial de se abster da luta pelo poder governamental. Assim a revolução de 1905 fez com que as duas maiores figuras de autoridade do menchevismo ficassem isoladas na ala direita de sua própria tendência.
É duvidoso que Lenin acreditasse que a ampla maioria daqueles que foram recrutados em 1905 permanecessem bolcheviques a longo prazo, particularmente se a revolução falhasse (como falhou) e um período de reação se estabelecesse. Mas entre os primeiros atraídos para a luta revolucionária em 1905, era difícil distinguir os elementos genuinamente avançados dos politicamente atrasados ou com desvios, os revolucionários de mente séria daqueles simplesmente pegos no calor do momento. Apenas tempo e disputa interna iriam poder separar os futuros bolcheviques recrutados durante a revolução dos acréscimos acidentais. Durante a revolução de 1905 o verdadeiro Partido Bolchevique continuou sendo os homens dos comitês do tempo do Iskra: os novos recrutas eram militantes aspirantes.
Sob condições normais uma organização revolucionária seleciona, educa e treina seus membros em grande parte antes de eles entrarem. Esse processo preparatório frequentemente ocorre através de uma organização intermediária (por exemplo, comitê de mulheres, colateral sindical, coletivo estudantil). Mas durante o levante revolucionário, tal longo período de pré-recrutamento pode privar o partido de vanguarda de alguns dos melhores jovens lutadores que querem se prestar a um papel político maior através da participação no partido. Havendo um núcleo de quadros suficientemente grande e sólido, o partido de vanguarda pode buscar recrutar todos os elementos aparentemente saudáveis que concordarem com o programa marxista revolucionário tão bem quanto o entenderem. O processo de seleção e educação ocorre então internamente.

Recrutamento de massa durante uma revolução representa, de forma extrema, uma característica geral do crescimento e desenvolvimento do partido. A transição de um círculo de propaganda para um partido operário de massas não é um processo uniforme, linear. Períodos de rápido crescimento e expansão em novos meios são tipicamente seguidos por um período de consolidação, marcado por um certo giro para dentro, em direção à cristalização de uma nova camada de quadros.

Em junho de 1907, Lenin trouxe a tona uma coleção dos seus principais escritos intitulada Doze Anos.A essa altura os Bolcheviques eram ainda um partido de massas na legalidade com um tamanho aproximado de 45.000 membros. A vitória da reação czarista ainda não havia reduzido os Bolcheviques a uma rede clandestina relativamente pequena. A condição dos Bolcheviques no começo de 1907 e a situação que eles enfrentaram era então muito diferente do período do Iskra entre 1902-1903.
Lenin então teve que explicar e enfatizar o contexto histórico e propósito fracional de O Que Fazer? Em seu prefácio para Doze Anos, Lenin observa que
“Os economicistas tinham ido a um extremo. O Que Fazer?, como eu disse, corrige o que tinha sido distorcido pelos economicistas….”
“O significado dessas palavras é suficientemente claro: O Que Fazer? é uma correção controversa das distorções dos economicistas e seria errado considerar o livro sob qualquer outro ângulo.”
Todo revisionista de direita (por exemplo, Tony Cliff, J.J. Marie) se apoiou nessas duas frases como se elas fossem um vale para o paraíso, para poder considerar o que Lenin disse em O Que Fazer? como uma declaração política historicamente obsoleta e exagerada. Isso é uma distorção fundamental da intenção de Lenin. O Que Fazer? pareceria unilateral em 1907 porque tratava da cristalização de um partido agitativo composto por revolucionários profissionais a partir de um frouxo movimento de círculos de propaganda. A polêmica de 1902 não lidava com a transformação de tal organização agitativa em um partido operário de massas, nem com os problemas e tarefas de um partido revolucionário de massas.
No mesmo prefácio para Doze Anos, Lenin observa que construir uma organização de revolucionários profissionais é um estágio necessário em criar um partido proletário revolucionário, do qual aqueles serão o núcleo vital. Ele aponta que os homens de comitê do período do Iskra formaram as bases de todas as organizações bolcheviques subsequentes:
“Surge a questão sobre quem realizou, quem trouxe até essa etapa superior de unidade, solidariedade e estabilidade o nosso partido. Isso foi realizado pela organização de revolucionários profissionais, construção à qual o Iskra fez a maior contribuição. Qualquer um que conheça bem a história do partido, qualquer um que tenha dado uma mão na construção do partido, só tem que olhar a lista de delegados de qualquer dos grupos, digamos, no Congresso de Londres [de 1907] para ser convencido e perceber de uma só vez que é uma lista dos velhos membros, o núcleo central que trabalhou mais do que todos para construir o partido e fazer dele o que é hoje.”

Lenin e o Partido de Vanguarda (2)

Bolchevismo vs. Menchevismo: o Racha de 1903   

 
 
O segundo congresso do POSDR, realizado em Bruxelas e posteriormente em Londres em Julho e Agosto de 1903, deveria ser a culminância do projeto do grupo do Iskra para criar um partido centralizado baseado num programa compreensível. (Em parte por causa da repressão, o congresso formal de fundação do POSDR em 1898 não modificou a natureza da socialdemocracia russa de ser um movimento de círculos de debate locais). Os economicistas não foram excluídos do congresso, mas ele foi arranjado de tal forma que o grupo do Iskra seria uma maioria decisiva. O grupo do Iskra contava com cerca de dois terços dos 46 delegados do segundo congresso. Do terço restante, cerca de metade eram anti-iskraistas. Esses consistiam de uns poucos economicistas proeminentes (Martynov, Akimov) e a Liga (Bund) Judaica seminacionalista, que reivindicava ser o único representante do proletariado judeu e exigia um partido federativo.
 
Na primeira fase do congresso, uma maioria iskraista sólida aprovou sua linha. O grupo do Iskra, incluindo futuros mencheviques, votou unanimemente por um programa que incluía elementos posteriormente muito característicos do leninismo. Por exemplo, a seção “Sobre a Luta Sindical” contém a seguinte passagem:
“Até onde essa luta se desenvolva isolada da luta política do proletariado levada pelo partido socialdemocrata, ela leva à fragmentação das forças proletárias e à subordinação do movimento dos trabalhadores aos interesses das classes proprietárias.”
– Robert H. McNeal, Ed., Resoluções e Documentos do Partido Comunista da União Soviética (1974)
Entretanto, por baixo da aparentemente sólida frente do grupo do Iskra, haviam consideráveis tensões. Uma potencial polaridade era entre Lenin e Martov, que era consistentemente mais conciliatório com os elementos não iskraistas e anti-iskraistas da socialdemocracia russa. Até mesmo antes do congresso, Martov era amplamente conhecido como um iskraista “leve” e Lenin como um “rígido”. Consequentemente, aqueles apoiadores do Iskra que eram a favor de um papel maior para os não-iskraistas num partido unitário tinham Martov como seu líder natural; aqueles desejosos de que os iskaistas mantivessem um controle mais apertado do partido tinham Lenin.
As tensões entre os “rígidos” liderados por Lenin e os “leves” liderados por Martov se manifestou através de uma série de disputas menores desde o começo do congresso. Como é bem conhecido, essa tensão explodiu sobre o primeiro parágrafo das regras que definiam a admissão de membros. O rascunho de Martov definia um membro como quem “presta assistência pessoal ao partido em uma das organizações da qual faça parte”. O critério de admissão de Lenin era “por participação pessoal em uma das organizações do partido”.
A definição mais seleta de Lenin sobre a qualidade de membro foi motivada tanto por um desejo geral de excluir oportunistas (que eram menos passíveis de aceitar os rigores e perigos de uma participação organizativa integral) quanto por um desejo de afastar os diletantes que tinham sido atraídos para a socialdemocracia russa precisamente por causa da sua natureza frouxa de círculos de debate. Interessantemente, foi Plekhanov que ressaltou o aspecto anti-oportunista de um partido mais seleto, enquanto Lenin deu maior ênfase a aspectos de consideração mais prática e conjuntural. Aqui está o centro do argumento de Plekhanov:
“A maior parte da intelligentsia vai ter medo de entrar, contaminados como estão com o individualismo burguês, mas isso fará bem, já que esses indivíduos burgueses geralmente consistem em representantes de todos os tipos de oportunismo. Os oponentes do oportunismo deveriam votar então pelo projeto de Lenin, que fecha a porta da sua entrada para dentro do partido.”
– citado em Leopold H. Haimson, Os Marxistas Russos e as origens do bolchevismo(1955)
Lenin interviu sobre algo em nível diferente:
“A raiz do erro cometido por aqueles que defendem a formulação de Martov é que eles não somente ignoram um dos maiores males da vida do nosso partido, como também o santificam. O mal é que, em um tempo em que o descontentamento político é quase universal, quando as condições requerem que nosso trabalho seja realizado em completo sigilo, e quando a maioria de nossas atividades tem de ser confinadas a círculos secretos ou até mesmo a reuniões privadas, é extremamente difícil, quase impossível, na verdade, para nós distinguir aqueles que apenas falam daqueles que cumprem suas tarefas.Dificilmente há outro país no mundo onde a confusão entre essas duas categorias é tão comum e tão produtora de tais problemas sem limites como na Rússia…. Seria melhor se dez daqueles que cumprem suas tarefas ficassem fora do partido … do que se um daqueles que apenas falam tivesse o direito e a oportunidade de ser membro do partido. Esse é um principio que me parece indiscutível, e que me obriga a lutar contra Martov” [nossa ênfase]
– “Segundo Discurso na Discussão sobre as Regras do Partido” (15 de Agosto de 1903)
Com o apoio dos economicistas, membros do Bund e centristas, a formulação de Martov foi aprovada. Entretanto, os economicistas e membros do Bund judaico logo em seguida deixaram o congresso quando este se recusou a aceitar os seus respectivos apelos organizacionais. Isso deu aos “rígidos” de Lenin uma maioria apertada. O racha decisivo ocorreu a respeito da eleição do corpo editorial do Iskra. O antigo conselho editorial continha quatro apoiadores “leves” de Martov e mais Lenin e Plekhanov. Lenin propôs que o corpo editorial fosse reduzido para três membros com ele e Plekhanov formando uma maioria “rígida”. Essa proposta causou um problema altamente emocional já que os veteranos, Axelrod e Zasulich, eram queridinhos sentimentais no partido. Quando a proposta de Lenin foi aprovada, os seguidores de Martov se recusaram a trabalhar tanto no quadro editorial quanto no comitê central.
Um debate muito polêmico é centrado na questão de que Lenin teria informado a Martov seu plano para reduzir o conselho editorial antes do congresso, e Martov teria concordado, etc. A pré-história da luta sobre o conselho editorial é incerta porque aconteceu em discussões privadas. O que é claro é que a falta de disposição de Lenin a se comprometer na questão dependia do resultado sobre o critério para ser militante. Foi definitivamente Lenin que iniciou a luta entre as tendências. Ele se recusou a considerar as diferenças sobre as questão da admissão de membros uma disputa casual, mas insistiu que ela formasse a base de uma representação de maioria-minoria nos órgãos de lideranças do partido.
O período entre o segundo congresso e o começo da revolução de 1905 foi marcado pela erosão da maioria “rígida” de Lenin. Ao longo desse período a maior parte da energia política de Lenin foi dirigida contra aqueles que apoiavam a maioria e que queriam restaurar a unidade, capitulando aos Mencheviques, revertendo as decisões do segundo congresso e liquidando a Tendência Bolchevique.
Os Mencheviques contra-atacaram primeiro num congresso da Liga Estrangeira da Socialdemocracia Russa em outubro de 1903, onde eles conseguiram uma maioria apertada. Quando a Liga se recusou a reconhecer a autoridade dos órgãos de liderança eleitos no segundo congresso, os Bolcheviques se retiraram. Isso finalizou o racha.
Enquanto Plekhanov apoiava a Tendência Bolchevique, ele se privou de um racha definitivo sobre o que parecia ser uma questão puramente organizacional ao invés de uma questão de princípios. Na reunião de uma colateral bolchevique em novembro, ele deixou escapar: “Eu não posso atirar em meus próprios camaradas. É melhor dar um tiro na cabeça do que rachar” (citado em Samuel H. Baron, Plekhanov, Pai do Marxismo Russo [1963]). Daí em diante ele usou sua autoridade para cooptar para o conselho editorial do Iskra os quatro apoiadores de Martov do conselho antigo; Lenin se retirou em protesto.
Durante 1904, um comitê central composto apenas por bolcheviques, ao qual Lenin se juntou após sair do Iskra, tomaria o rumo oposto de Plekhanov. Lenin, acreditando que seus apoiadores eram mais fortes entre os membros do comitê central na Rússia do que entre o meio mais intelectual no exílio, chamou um novo congresso do partido para restabelecer sua maioria e recapturar o agora órgão de informação menchevique, o Iskra. O comitê central se opôs a um novo congresso, cooptou três mencheviques e efetivamente expulsou Lenin daquele órgão.
No fim de 1904, Lenin rompeu completamente com os órgãos centrais oficiais do partido e estabeleceu um comitê central realmente bolchevique chamado Escritório dos Comitês da Maioria. No começo de 1905, os Bolcheviques criaram seu próprio órgão, o Vperyod.
A lógica da disputa de tendências levou os Mencheviques à direita; gradualmente, eles repetiram as políticas dos derrotados economicistas. Martov e Plekhanov escreveram artigos de autocrítica sobre o velho Iskra, declarando que tinham sido unilaterais (em outras palavras, leninistas) nos seus ataques aos economicistas. A fusão orgânica dos Mencheviques e economicistas foi assinalada pela cooptação de A.S. Martynov para o conselho editorial do novo Iskra.
Os leninistas viram sua luta contra os mencheviques tanto prática quanto organizativamente, como uma repetição da luta dos iskraistas contra os economicistas. Um dos braços direitos de Lenin, Lyadov, instruiu um apoiador dos Bolcheviques no fim de 1904 a refazer a campanha contra os economicistas.
“Nós não estamos aqui para deixar o partido, mas para lutar por tudo que vale a pena…. Nós devemos conquistar toda a Rússia [leia-se os comitês] apesar das instituições centrais, e nós devemos fazer isso do mesmo modo como o Iskra fez uma vez. Nós temos que repetir o trabalho do Iskra e completá-lo.”
– citado em J. L. H. Keep, O Nascimento da socialdemocracia na Rússia (1963)
No começo de 1905, Lenin estava convencido de que a liderança dos Mencheviques era incorrigível e que eram organizativamente oportunistas sem princípios, e declarou um racha completo. Em contraste com a política quanto aos economicistas, Lenin opôs a permissão para que os líderes mencheviques participassem de um novo congresso do partido, no qual ele tinha a intenção de fundar um Partido Bolchevique:
“Os centros [mencheviques] podem e devem ser convidados, mas lhes garantir direito de voto é, eu repito, loucura. Os centros, é claro, não virão ao nosso congresso de forma alguma; mas porque lhes dar uma nova chance de cuspir na nossa cara? Por que essa hipocrisia, esse jogo de esconde-esconde? Nós falamos do racha de forma aberta, nós chamamos os seguidores do Vperyod para um congresso, nós queremos organizar um partido do Vperyod, e nós queremos romper imediatamente com quaisquer e com todasas conexões com os desorganizadores e ainda assim, temos a lealdade perturbando nossos ouvidos, nos chamando a agir como se um congresso de reconciliação do Iskra com o Vperyod fosse possível.” [ênfase no original]
– “Carta para A.A. Bogdanov e S.I. Gusev”, 11 de fevereiro de 1905
Como Lenin projetou, os Mencheviques boicotaram o terceiro congresso (todo composto por Bolcheviques) ocorrido em Londres em abril de 1905 e deram brecha ao agrupamento de seus próprios rivais.
O que leninismo significava em 1904? Acima de tudo representava um firme comprometimento com a socialdemocracia revolucionária, particularmente com o papel de liderança de um partido proletário na luta contra o czarismo absolutista. Além disso, representava uma atitude intransigente com relação aos oportunistas declarados, como os líderes economicistas, e uma atitude de remover esperanças na sua possível conversão para as políticas revolucionárias. Lenin estava comprometido com um partido centralizado, disciplinado e por consequência intransigentemente hostil com a característica de círculos de debate amplos do movimento socialdemocrata russo. A não ser no critério de aceitação de membros, essas diferenças entre os Bolcheviques de 1904 e os Mencheviques eram difíceis de serem expressas como princípios contrários. Elas se manifestaram ao redor de problemas organizativos concretos e pareceram para a maioria dos que estavam de fora (como Kautsky) representar diferenças de grau muito mais do que diferenças de princípio.  
A Polêmica Menchevique de Trotsky
Entre as numerosas críticas anti-Lenin em 1903-04, o texto de Trotsky “Nossas Tarefas Políticas” foi muito menos significante que aqueles de Axelrod, Plekhanov e Luxemburgo. Entretanto, por causa da autoridade que Trotsky viria a ter como um grande revolucionário, vários reformistas e centristas dão vida nova à sua polêmica de 1904. Tony Cliff, líder de longa data do Socialistas Internacionais britânicos (agora Partido Socialista dos Trabalhadores), devotou um ensaio inteiro à “profecia” de Trotsky de que as concepções organizativas de Lenin levariam o partido a “substituir por si próprio as classes trabalhadoras” (“Trotsky sobre substituísmo”, International Socialism, Outono de 1960; reimpresso na coleção do Socialistas Internacionais, Partido e Classe [Londres]). Em particular, esses socialdemocratas de esquerda, alegando que Trotsky previu que o leninismo leva ao stalinismo, invariavelmente citam a passagem a seguir:
“Na política interna do partido, esses métodos [leninistas], como nós veremos, levam os organizadores do partido a substituir o partido em si próprio, o comitê central [a substituir] os organizadores do partido e finalmente um ditador [a substituir] o comitê central.”
– De “Nossas Tarefas Políticas”, na seção Leon Trotsky, Escritos sobre a Organização Revolucionária (Hamburgo, 1970)
Por outro lado, os stalinistas exploraram o “Nossas Tarefas Políticas” para argumentar que a hostilidade de Trotsky à burocracia soviética não era nada além do que a expressão de um menchevismo regenerado.
Além de uma grande dose de hostilidade subjetiva em direção a Lenin motivada por um apego sentimental aos pioneiros do marxismo russo, a polêmica de Trotsky, como a de Luxemburgo, é baseada numa concepção ultra-kautskista sobre a questão do partido. Ele vê as tarefas do partido como a de elevar toda a classe a uma consciência socialdemocrata através de um processo longo e pedagógico:
“Um método consiste em tomar o livre pensamento do proletariado, como umasubstituição política do proletariado; o outro consiste de educação política do proletariado, sua mobilização política, para exercer certa pressão sobre a vontade de todos os grupos e partidos políticos….”
“O partido é baseado no dado nível de consciência política do proletariado, e intervêm em cada grande evento político com o objetivo de transferir a linha de desenvolvimento na direção dos interesses do proletariado; e, ainda mais importante, com o objetivo de elevar o nível de consciência, para então se basear num nível de consciência aumentado e novamente usa-lo para alcançar seu duplo objetivo.” [ênfase no original]
Trotsky aqui é altamente influenciado por Axelrod, frequentemente citado na polêmica, que nesse momento decidiu chamar por um inclusivo, não-partidário “congresso dos trabalhadores”. Isso teria como efeito a liquidação do frágil e iniciante POSDR.
Adiar a luta revolucionária pelo poder até que a classe trabalhadora por inteiro tenha alcançado uma consciência socialista é relegá-la ao “dia em que os porcos criarem asas”; no capitalismo, a classe trabalhadora em sua esmagadora maioria não pode transcender completamente a influência ideológica da burguesia. O partido revolucionário de vanguarda deve liderar as massas dos trabalhadores ativos na luta, mas entre esses trabalhadores há muitos nos quais as convicções socialistas serão parciais, inconsistentes e episódicas.
Na sua grandiosa polêmica anti-menchevique desse período “Um Passo para Frente, Dois Passos para Trás” (maio de 1904), Lenin responde sucintamente à posição de Trotsky/Axelrod:
“O partido, como a vanguarda da classe trabalhadora, não deve ser confundido, então, com a classe como um todo. E o camarada Axelrod é culpado apenas desta confusão (que é característica do nosso economicismo em geral)….”
“Nós somos o partido de uma classe, e dessa forma quase toda a classe (e em tempos de guerra, em período de guerra civil, a classe inteira) deveria agir sob a liderança do nosso partido, deveria se aproximar do partido o máximo possível. Mas seria “seguidismo” achar que a classe inteira, ou quase a classe inteira, pode algum dia elevar-se, ainda no capitalismo, ao nível de consciência e atividade da sua vanguarda, do seu partido socialdemocrata.” [ênfase no original]
Deve ser notado que a formulação de Lenin das relações classe-partido ainda não romperam completamente com o “partido de toda a classe” kautskista, uma vez que ele obviamente pressupõe um único partido baseado no proletariado.
Não é substituísmo um partido revolucionário liderar – através de sindicatos, comitês de fábrica, conselhos operários, etc – as massas de trabalhadores que não são conscientemente socialistas. Isso é precisamente a tarefa da vanguarda revolucionária. Substituísmo é quando a vanguarda se envolve em ações militares contra a burguesia sem o apoio das massas não-partidárias. Substituísmo se manifesta em golpismo, terrorismo, guerrilheirismo, dualismo sindical ou ações isoladas durante uma greve geral (como a ação alemã do março de 1921). Apesar de repetidas acusações mencheviques de blanquismo, os Bolcheviques de Lenin não engajaram em tais aventureirismos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial os Bolcheviques tinham se tornado o partido de massa do proletariado industrial russo, superando de longe os mal-organizados Mencheviques díspares.
De qualquer forma, aqueles que usam a polêmica antiga de Trotsky com o leninismo devem acertar as contas com a própria renuncia posterior de Trotsky e crítica a suas posições mencheviques e conciliatórias naqueles anos. Em Minha Vida (1929) ele escreveu sobre o congresso de 1903 do POSDR:
“Meu rompimento com Lenin ocorreu no que pode ser considerado um terreno ‘moral’ ou até mesmo pessoal. Mas isso era meramente na superfície. No fundo, a separação era de natureza política e meramente se expressou no campo dos métodos organizativos. Eu me considero um centralista. Mas não há dúvida de que naquele tempo eu não compreendia completamente que o partido revolucionário necessitaria de um centralismo intenso e imperioso para liderar milhões de pessoas numa guerra contra a antiga ordem.”
Trotsky nunca autorizou uma reimpressão de “Nossas Tarefas Políticas”, e ela foi explicitamente excluída da edição russa de seus trabalhos publicada antes da usurpação stalinista.  
Por Trás da Polêmica Anti-leninista de Luxemburgo
O texto de Rosa Luxemburgo “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, publicado no jornal teórico do SPD, Neue Zeit, e no Iskra menchevique, é provavelmente a mais intrinsecamente significativa das polêmicas anti-Lenin seguidas ao racha de 1903. Ela se afasta das questões imediatas e das recriminações pessoais do racha, e ela não cai num clima de unitarismo superficial. As diferenças de Luxemburgo com Lenin existiam tanto no nível dos problemas, tarefas e perspectivas do movimento russo quanto no da natureza da socialdemocracia em geral. Tanto no caso russo quanto no geral, essas diferenças se concentraram na natureza do oportunismo e como combatê-lo.
Suas diferenças sobre o oportunismo socialdemocrata na Rússia podem ser brevemente expressas no que se segue. Antes da revolução de 1905, Lenin via o maior perigo oportunista na adaptação ao czarismo absolutista; Luxemburgo via na subordinação do proletariado russo à democracia burguesa revolucionária fora do poder. Para Lenin, um oportunista socialdemocrata era um diletante pronto a fazer as pazes pessoalmente com a sociedade czarista, e talvez um aspirante a oficial sindical. Para Luxemburgo, um oportunista socialdemocrata era um demagogo radical burguês lutando na verdade por poder governamental, uma versão russa do líder francês radical Georges Clemenceau, um ex-blanquista.
Para Lenin entre 1901 e 1904, e para a tendência do Iskra como um todo, a maior expressão do oportunismo socialdemocrata russo era o economicismo, um amálgama de agitação sindical mínima, passiva adaptação ao czarismo liberal, regionalismo organizativo e funcionamento individualista. Luxemburgo não era menos oposta ao puro e simples sindicalismo do que Lenin, mas evidentemente não considerava o economicismo como uma corrente oportunista séria na Rússia, como um sério concorrente pela influência sobre a classe operária. Assim como Lenin tomou o espírito de círculos de debate e o individualismo anarquizante como seus maiores inimigos no nível organizativo, Luxemburgo parecia considerar esses traços um custo indireto inevitável de um determinado estágio do movimento socialdemocrata na Rússia. Quando o proletariado socialista é pequeno, acreditava Luxemburgo, um movimento frouxo de propaganda de círculos de debate locais é o normal e, de certo modo, uma expressão organizativa saudável da socialdemocracia:
“Como realizar uma transição a partir do tipo de organização característica de um estágiopreparatório do movimento socialista – geralmente simbolizado por grupos locais e clubes desconexos – para a unidade de um corpo nacional grande, adequado para ações políticas organizadas sobre todo o vasto território regido pelo Estado russo? Esse é o problema específico com o qual a socialdemocracia russa tem se atrapalhado a algum tempo.”
“Autonomia e isolamento são as características mais pronunciadas da velha forma organizacional. É, dessa forma, compreensível o porquê de o slogan daqueles que querem ver uma organização inclusiva a nível nacional ser ‘Centralismo!’…”
“As condições indispensáveis para a realização do centralismo socialdemocrata são: 1. A existência de um grande contingente de trabalhadores educados na luta política. 2. A possibilidade para os trabalhadores de desenvolver sua própria atividade política através de influência direta na vida pública, numa imprensa do partido, em congressos públicos, etc.”
“Essas condições ainda não estão completamente formadas na Rússia. A primeira – uma vanguarda proletária consciente de seus interesses de classe e capaz de dirigir a si própria em atividade política – está apenas agora emergindo na Rússia. Todos os esforços da agitação socialista e da organização deveriam ter o objetivo de acelerar a formação de tal vanguarda. A segunda condição pode ser alcançada somente sob um regime de liberdade política” [ênfase nossa]
– Luxemburgo, “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”
A crença de Luxemburgo numa transição gradual de um movimento de círculos locais até um partido unitário e centralizado não era apenas contraposta ao leninismo, mas logicamente a posicionava fora e à direita do grupo do Iskra em geral antes do racha.
A visão expressa acima está em certo desacordo com a verdadeira prática organizativa de Luxemburgo na parte polonesa do império russo. O Socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo e Jogiches era uma organização de propaganda muito pequena, porém altamente centralizada. E, ao contrário dos Bolcheviques de Lenin, o SDRPeL de Luxemburgo cometeu sérios erros sectários e ultra-esquerdistas (veja “Lenin vs. Luxemburgo Sobre a Questão Nacional”, Workers Vanguard Num.150, 25 de março de 1977).
A menção ao SDRPeL é um lembrete de que não se pode simplesmente tomar “Problemas Organizativos da socialdemocracia Russa” como uma prova dos fatos. Embora por motivações muito diferentes, a socialdemocracia polonesa de Luxemburgo era tão protetora de sua autonomia organizativa quanto era o Bund. O SDRPeL mandou dois observadores ao segundo congresso do POSDR, onde eles negociaram uma autonomia larga dentro de um partido unitário russo. A defesa por Lenin de um partido centralizado de todos o socialdemocratas no império russo desafiava, ao menos em princípio, as prerrogativas organizativas altamente valorizadas de Luxemburgo no SDRPeL.
Luxemburgo procurava o oportunismo da socialdemocracia russa no sentido completamente oposto ao que procurava Lenin. Luxemburgo temia que a intelligentsia da socialdemocracia russa desse nascimento a um parido burguês radical usando retórica socialista, e então suprimisse o desenvolvimento de consciência política de classe entre o proletariado russo. Com esse prognóstico, Luxemburgo viu no centralismo de Lenin, mais do que no menchevismo a mais provável fonte de oportunismo (leia-se adaptação à burguesia). A insistência de Lenin sobre o papel de liderança da socialdemocracia na luta contra o absolutismo e sobre o papel de liderança de revolucionários profissionais no partido pareceu a Luxemburgo (e não apenas a ela) como a característica de um partido radical burguês.
De fato, era comum em círculos mencheviques nesse período acusar os leninistas de serem radicais burgueses em mantos socialdemocratas. Os líderes mencheviques, Potresov, por exemplo, associaram os Bolcheviques aos radicais de Clemenceau. Luxemburgo viu no “jacobinismo” de Lenin o desejo inconsciente de intelectuais radicais burgueses de suprimir a sua base na classe trabalhadora após derrubar o czarismo e chegar ao poder. Ela defendeu um movimento socialdemocrata amplo e frouxo como um freio contra os demagogos burgueses radicais como o ex-blanquista Clemenceau:
“Se nós assumirmos o ponto de vista reivindicado como seu próprio por Lenin e nós temermos a influência de intelectuais no movimento proletário, nós não podemos conceber perigo maior ao partido russo do que o plano organizativo de Lenin. Nada irá com maior certeza escravizar um jovem movimento operário à fome de poder de uma elite intelectual do que esse casaco burocrático apertado….”
“Não vamos nos esquecer de que a revolução que se aproxima de ocorrer na Rússia será uma revolução burguesa e não proletária. Isso modifica radicalmente todas as condições da luta proletária. Os intelectuais russos, também, irão rapidamente ficar impregnados com a ideologia burguesa. A socialdemocracia é no presente momento o único guia do proletariado russo. Mas no dia seguinte ao da revolução, nós veremos a burguesia, e acima de tudo os intelectuais burgueses, buscarem usar as massas como um degrau para sua dominação.
“O jogo dos demagogos burgueses será facilitado se, no presente estágio, a ação espontânea, iniciativa e noção política das seções avançadas da classe trabalhadora for prejudicada em seu desenvolvimento por um protetorado restritivo e um comitê central autoritário.” [ênfase nossa]
– Idem.
Uma premissa central da polêmica anti-leninista de 1904 de Luxemburgo era que o absolutismo czarista seria logo substituído por uma democracia burguesa (“a revolução que logo acontecerá na Rússia será burguesa”). Foi por isso que ela antecipou que demagogia parlamentarista radical seria a a principal expressão do oportunismo socialdemocrata. A revolução de 1905 provou que o prognóstico de Luxemburgo estava errado. A revolução demonstrou que o liberalismo burguês era totalmente covarde e impotente. Ela também demonstrou que a socialdemocracia era a única força revolucionária-democrática no império russo.
Durante a revolução, Luxemburgo condenou os Mencheviques por seguirem os monarquistas constitucionais (Cadetes) e se moveu para perto dos Bolcheviques. Concordando com Lenin sobre o papel de liderança do partido proletário na revolução anti-czarista, o SDRPeL de Luxemburgo e Jogiches formou uma aliança com os Bolcheviques em 1906, uma aliança que durou até 1912 e deu a Lenin a liderança do formalmente unitário POSDR. No quinto congresso do POSDR em 1907, Luxemburgo defendeu a estreiteza e intransigência dos Bolcheviques, embora com algumas reservas “macias”.
“Vocês camaradas da ala direita reclamam amargamente sobre a estreiteza, a intolerância, a tendência em direção a uma concepção mecanicista nas atitudes dos Bolcheviques. E nós concordamos com vocês…. Mas vocês sabem o que causa essas tendências desconfortáveis? Para qualquer um que esteja familiar com as condições partidárias de outros países, essas tendências são muito bem conhecidas: é a típica atitude de uma seção socialista que é obrigada a defender o interesse independente de classe do proletariado contra outra seção igualmente forte. Rigidez é a forma adotada pela socialdemocracia para alcançar seu fim quando os demais meios tendem a transformá-la numa geléia amorfa, incapaz de manter uma linha consistente sob a pressão dos acontecimentos.”
– citado em J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo (1966)
Liberais e atuais socialdemocratas suprimiram sistematicamente referências à aliança próxima de Luxemburgo com o bolchevismo da revolução de 1905 até 1912 e novamente do princípio da Primeira Guerra Mundial até o seu assassinato durante o levante de Spartacus em 1919. Eles, entretanto, exploraram completamente a sua polêmica de 1904 a serviço de um anti-comunismo. Assim, a amplamente difundida coleção Ann Arbor Paperbacks para estudo do comunismo e do marxismo fez uma reimpressão de “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” sob o título calunioso de “Leninismo ou Marxismo?”.
Não menos perniciosos têm sido os esforços de muitos reformistas de esquerda e centristas para apresentar o partido leninista de vanguarda com centralismo democrático como válido apenas para países atrasados, enquanto solidarizam com a posição anti-bolchevique de Luxemburgo em 1904 para países capitalistas avançados. Nós já dissemos que esta foi exatamente a posição do movimentista-reformista Tony Cliff, antes de o leninismo “linha dura” entrar na moda entre a juventude radical no fim dos anos 1960.
É de se esperar que um revisionista de marca maior como Cliff solidarize com Luxemburgo contra Lenin. O que não é de se esperar é que uma organização trotskista (ou seja, leninista) ostensivamente ortodoxa adote a linha “luxemburguista” como válida para países avançados. Ainda assim isso é exatamente o que faz a Organização Comunista Internacionalista francesa (OCI). Em uma introdução para uma edição francesa popular de O Que Fazer?, o líder da OCI Jean-Jacques Marie rejeita a defesa de Lenin de uma vanguarda democraticamente centralizada como peculiar para a Rússia no começo do século XX, e afirma que a posição de 1904 de Luxemburgo é apropriada para um país avançado com um movimento operário altamente desenvolvido.
“A rigidez centralista de O Que Fazer? faz sentido nas características particulares do proletariado russo; quer dizer, de um proletariado nascente que havia acabado de sair do interior impregnado com os costumes da Idade Média, falta de estudo, esmagado por condições de existência similares àquelas do proletariado francês ou inglês no começo do século XIX….”
“O papel da intelligentsia revolucionária como um fator de organização e consciência, da forma com que Lenin retrata, é proporcional ao nível relativo de atraso de um proletariado legalmente privado de qualquer forma que seja de sindicalismo ou organização política.”
“Assim, o conflito entre Lenin e Rosa Luxemburgo, por exemplo, aparece – se deixados de lado seus aspectos pessoais – como a expressão da enorme diferença que separava um dos mais deseducados proletariados da Europa e o proletariado alemão, naquele tempo o mais poderoso e politicamente mais vigoroso e maduro do mundo….”
“Se a luta pela revolução socialista é internacional por essência, suas formas imediatas e também os meios de chegar a ela dependem de inúmeros fatores, entre eles as condições nacionais em que cada partido se desenvolve.”
– introdução ao O Que Fazer? (Paris, 1966)
O ponto de vista que J.J. Marie atribui aqui a Luxemburgo é tão diametralmente oposto à sua posição real que é difícil acreditar que ele tenha alguma vez lido “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”. Como pudemos ver, a oposição de Luxemburgo ao centralismo leninista para a Rússia era precisamente por causa do pouco desenvolvimento do movimento proletário. Em 1904, Luxemburgo era uma centralizadora e disciplinadora no partido alemão porque a direita revisionista era formalmente uma minoria. E isso é explicitamente declarado em “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”:
“A socialdemocracia deve acabar com o tumulto dos protestadores não-proletários contra a sociedade existente dentro dos limites da ação revolucionária do proletariado….”
“Isso só é possível se a socialdemocracia já tiver um núcleo proletário forte, politicamente educado, com suficiente consciência de classe a ponto de ser capaz, como agora na Alemanha, de puxar junto de si, em seu reboque, os elementos saídos de sua classe e pequeno-burgueses que se juntarem ao partido. Nesse caso, maior severidade na aplicação do princípio de centralização e disciplina mais severa, especificamente formulada no estatuto do partido, poderá ser uma efetiva precaução contra o perigo oportunista. É assim que o movimento socialista revolucionário na França se defendeu contra a confusão de Jaures. A modificação da constituição da socialdemocracia alemã nessa direção seria uma medida extremamente oportuna.” [ênfase nossa]
A pressão de Luxemburgo por uma centralização maior no SPD foi bem-sucedida no congresso de Jena dominado pelos radicais em 1905, que adotou uma estrutura organizativa genuinamente centralista. Pela primeira vez os oficiais de cada unidade partidária básica eram chamados à responsabilidade pela executiva nacional. Mais tarde, é claro, o famoso aparato centralizado do SPD foi usado para suprimir a ala esquerda revolucionária liderada por Rosa Luxemburgo.
O ponto central das divergências entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e daí em diante não eram quanto ao nível de centralização, mas quanto à natureza do oportunismo e como combatê-lo. A questão do centralismo e da disciplina deriva seu significado apenas em tal contexto.
A polêmica anti-leninista de Luxemburgo em 1904 foi fortemente condicionada pela frustração por sua vitória essencialmente vazia sobre o revisionismo bernisteiniano. O revisionismo foi formalmente rejeitado pelo SPD, os oportunistas mudaram de rumo e as atividades políticas do partido se mantiveram praticamente as mesmas de antes, num espírito de expectativa passiva. Não muito depois de escrever “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo expressou sua desilusão com a luta interna entre frações em geral numa carta (14 de dezembro de 1904) para o socialista de esquerda holandês Henriett Roland-Holst:
“O oportunismo é em todo caso uma planta de pântano, que cresce rapidamente e de forma diversificada nas águas paradas do movimento; num rápido fluxo de água corrente ele morreria por si próprio. Aqui na Alemanha um movimento para a frente é uma necessidade urgente, imediata! E muitos poucos percebem isso. Alguns desperdiçam suas energias em disputas pequenas com os oportunistas, outros acreditam que o automático, mecânico aumento dos números (nas eleições e nas organizações) é um progresso em si mesmo!”
– citado em Carl E. Schorske, Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955).
A crença de Luxemburgo de que um ascenso de luta de classes iria naturalmente dispersar as forças oportunistas no SPD se provou muito errada. Em 1905, e novamente em 1910, uma linha crescente de agitação de massa contra o sufrágio restrito foi efetivamente suprimida por iniciativa da burocracia sindical. Em 1910 a Neue Zeit, sob a direção de Kautsky, chegou a se recusar a publicar o artigo de Luxemburgo defendendo uma greve geral.
Ao concluir “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa”, Luxemburgo desenvolve uma teoria sobre a inevitabilidade do oportunismo e mesmo de fases oportunistas num partido socialdemocrata. Tentativas de preservar completamente o partido contra o oportunismo através de meios organizativosinternos só irá, afirma ela, reduzir o partido a uma seita. Aqui jaz a diferença fundamental entre Luxemburgo e Lenin em 1904 e em diante:
“Daqui segue que este movimento pode avançar melhor se posicionando entre os dois perigos pelos quais é constantemente ameaçado. Um é a perda de seu caráter de massa; o outro, o abandono de seu objetivo. Um é o perigo de se reduzir de volta à condição de uma seita; o outro, o perigo de se tornar um movimento de reforma social.”
“É por isso que é ilusório, e contrário à experiência histórica, esperar consertar, de uma vez por todas, a direção da luta socialista revolucionária com a adição de meios formais, dos quais se espera que assegurem o movimento operário contra todas as possibilidades de digressão oportunista.”
“A teoria marxista nos oferece um confiável instrumento que nos permite reconhecer e combater típicas manifestações de oportunismo. Mas o movimento socialista é um movimento de massa. Seus perigos não são as insidiosas maquinações de indivíduos ou grupos. Eles surgem a partir de inevitáveis condições sociais. Nós não podemos assegurar a nós próprios de ante-véspera contra todas as possibilidades de desvio oportunista. Tais perigos podem ser superados apenas pelo próprio movimento – certamente com a ajuda da teoria marxista, mas apenas após os perigos em questão terem adquirido forma prática tangível.”
“Visto desse ângulo, o oportunismo aparece sendo um produto e uma fase inevitável do desenvolvimento histórico do movimento operário.”
Devido a tentativas de elementos semi-sindicalistas e comunistas de ultra-esquerda (por exemplo, “comunistas de conselho”) de reivindicar Rosa Luxemburgo, é frequentemente ignorado que sua polêmica contra Lenin sobre a questão organizativa foi travada em conceitos socialdemocratas ortodoxos. A passagem citada acima é ultra-kautskista ao identificar o partido social democrata com todo o movimento operário. Partindo da premissa do “partido de toda a classe” de Kautsky, a lógica de Luxemburgo é inatacável. Não apenas haverá uma ala oportunista de um partido socialdemocrata, mas deverá haver períodos nos quais a influência dessa ala vai se expandir.
Do ponto de vista alemão, Luxemburgo via que formar um partido leninista significava romper com tendências significativas da classe trabalhadora que estivessem sob liderança e influência oportunista. Essa conclusão anti-socialdemocrata era bloqueada da visão de Lenin pelo estado desorganizado do partido Russo. Ao contrário de Luxemburgo, Lenin não fora confrontado com tendências socialdemocratas oportunistas que tivessem uma base social de massas. Ele acreditava que os Mencheviques fossem uma tendência intelectualista incapaz de construir um movimento de trabalhadores de massa.  
Kautsky e Bebel Intervêm para Restaurar a Unidade
Enquanto a polêmica anti-leninista de Luxemburgo é hoje muito mais conhecida, naquele tempo a ativa intervenção pró-unidade da liderança central do SPD, Kautsky e Bebel, foi mais significativa. É importante considerar a intervenção de Kautsky/Bebel para compreender que Lenin construiu um partido revolucionário programaticamente homogêneo na Rússia face a oposição das autoridades líderes da Internacional Socialista.
No começo de 1904, um dos seguidores mais próximos de Lenin, Lydin-Mandelstamm, escreveu um artigo sobre o racha para ser publicado no Neue Zeit de Kautsky. Kautsky se recusou a publicá-lo, e sua resposta a Lydin no meio de março de 1904 é a sua mais antiga declaração escrita sobre o racha. Ele considera o racha completamente injustificável e profundamente irresponsável. Ele também foi astuto o suficiente para reconhecer que foi a intransigência de Lenin quanto à questão organizacional que perpetuou o racha:
“Uma grande irresponsabilidade paira sobre a socialdemocracia russa. Se ela não pode se unir, então ela irá ficar para a história e para o proletariado internacional como um grupo de políticos que, fora as suas dificuldades pessoais e organizacionais de uma natureza muito pequena se comparada à sua grande tarefa histórica … deixou escapar a oportunidade de dar uma golpe no absolutismo russo. Mas Lenin carregaria a responsabilidade por ter iniciado essa discórdia destrutiva.” [nossa tradução]
– citado em Dietrich Geyer, “O Racha partidário russo em comparação à socialdemocracia Alemã 1903-1905”, no International Review of Social History (1958)
Na substantiva questão organizativa que levou ao racha, Kautsky viu “nem uma oposição de princípios entre as necessidades do proletariado e dos intelectuais nem entre democracia e ditadura, mas simplesmente uma questão de adequação”.
Kautsky mandou uma cópia de sua resposta a Lydin à liderança menchevique, que considerou-a imediatamente um apoio ao seu lado. Com a permissão do autor, ela foi publicada no novo Iskra. Numa carta (4 de junho de 1904) para Axelrod, Kautsky aprofundou sua posição pró-menchevique ao ponto de lhes dar conselhos sobre como lidar com Lenin:
“Mas em grande medida as diferenças entre vocês e o outro lado parecem se basear entre mal-entendidos. Não entre vocês e Lenin, que eu considero fora de questão, mas entre vocês e os apoiadores de Lenin na Rússia. Eu tive ao menos a oportunidade de conversar com vários apoiadores de Lenin que vieram da Rússia e não encontrei entre eles pontos de vista que tornariam a cooperação … impossível. Os preconceitos deles contra vocês parecem residir simplesmente em informação mal dada. Se for assim, então uma unificação deverá ser possível, por cima e sobre a cabeça de Lenin, se esses elementos forem tratados de forma cuidadosa”.
– Idem.
E, de fato, os Mencheviques procuraram, com algum sucesso, ganhar os bolcheviques mais conciliatórios.
Uma indicação mais pública da posição anti-Lenin de Kautsky foi que a Neue Zeit publicou o “Questões Organizativas da socialdemocracia Russa” de Luxemburgo sem dissociar a revista das visões nele expressas. Quando Lenin escreveu uma resposta, Kautsky recusou-se a publicá-la sob o argumento de que a Neue Zeit não era a arena apropriada para a luta dos rachas do POSDR. Numa carta (27 de outubro de 1904) para Lenin, ele justificou a publicação do artigo de Luxemburgo argumentando que:
“Eu não publiquei o artigo de Rosa Luxemburgo porque ele tratava das disputas russas mas, por razão contrária a essa. Eu o publiquei porque ele tratava da questão organizativa de forma teórica, e essa questão também é assunto de discussão nossa na Alemanha. As disputas russas são tocadas nele de uma forma que não chamarão atenção ao leitor desinformado.” [ênfase no original]
– Idem.
Essa última afirmação de Kautsky não é ingênua.
Kautsky aconselhou Lenin a reformular sua resposta em termos mais teóricos caso ele quisesse que ela fosse publicada no órgão alemão. Até onde nós sabemos, Lenin não respondeu. Presume-se que Lenin considerava como decisivas as especificidades do racha do POSDR e não queria mergulhar numa discussão abstrata sobre os princípios de organização.
Em outubro de 1904, August Bebel, venerado presidente do SPD, propôs à liderança menchevique que eles chamassem uma conferência de unidade de todos os grupos presentes no segundo congresso do POSDR. Pouco depois, a liderança alemã pediu por uma conferência bem mais ampla, incluindo os populistas pequeno-burgueses Socialistas Revolucionários e o nacional-libertador Partido Socialista Polonês. Assim, em 1904 a liderança socialdemocrata alemã buscou um bloco, senão um partido, abarcando todas as forças oposicionista ao império czarista à esquerda dos liberais burgueses. Os Mencheviques rejeitaram tal unidade ampla como oportunista. Essa era uma indicação prematura de que os seguidores de Martov não estavam, como Lenin erradamente acreditava, à direita da liderança central do SPD.
Kautsky acreditava que os Mencheviques fossem desejosos de restaurar a unidade, como ele era. Mas o posicionamento pró-unidade dos Mencheviques era em parte uma pose para consumo estrangeiro. Na teoria compromissada com um partido amplo, inclusivo, a liderança menchevique não queria estar na mesma organização que os “rígidos” de Lenin. Em resposta à proposição de Bebel, eles concordaram em chamar uma conferência de “unidade” convidando o Bund, o SDRPeL de Luxemburgo/Jogiches e alguns pequenos grupos socialdemocratas. Mas eles recusaram-se a convidar os leninistas! Nesse tempo, Lenin tinham perdido a liderança formal do POSDR e tinha criado o Escritório dos Comitês da Maioria.
Kautsky agora criticava os líderes mencheviques como divisionistas irresponsáveis. Numa carta (10 de janeiro de 1905) para Axelrod, ele escreveu:
“Eu não entendo porque não convidaram Lenin. Isso pode ser bem justificado em termos formais, mas não se pode ver o problema de maneira tão formal. De um ponto de vista político, a exclusão [de Lenin] do convite me parece um erro. Mesmo que ele não represente formalmente a sua organização em particular. Ele ainda tem um grande apoio, a tarefa de vocês é ganhá-lo junto com seus apoiadores ou então separar esses apoiadores dele…. Na situação atual, que exige uma união de todas as forças revolucionárias, minha visão é de que sua tarefa é lavar ao máximo a conciliação. Se a unidade se demonstrar impossível, então Lenin vai ter se posicionado muito mal, e então vocês poderão prosseguir contra ele com muito mais força e sucesso do que no atual momento, onde o seu conflito parece ser quase somente um simples conflito de autoridade”. [ênfase no original]
– Idem.
Em seguida ao massacre do Domingo Sangrento em janeiro de 1905, a liderança do SPD mais uma vez tentou reunificar o movimento socialdemocrata russo. Bebel publicamente se ofereceu para ser árbitro entre as diferenças. A oferta de Bebel foi concluída com uma reprimenda paternalista à socialdemocracia russa:
“As notícias sobre esse racha despertaram grande confusão e definitivo descontentamento na socialdemocracia internacional e todos esperam que, após uma discussão livre, ambos os lados achem uma base comum para lutar contra o inimigo comum”.
– citado em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)
Sabendo que Bebel era politicamente próximo deles, o Mencheviques prontamente aceitaram sua proposta. Lenin de fato rejeitou a proposta de unidade. Numa resposta (7 de fevereiro de 1905) ao presidente do partido alemão, ele declarou que não tinha autoridade para aceitar a oferta do árbitro, que teria que ser colocada num novo congresso do partido. Ele então adicionou que tendo em vista a intervenção unilateral de Kautsky, “não vai me surpreender se a intervenção da parte dos representantes da socialdemocracia alemã encontrar dificuldades entre as nossas colunas”.
O terceiro congresso realizado em abril e todo composto por bolcheviques em abril não definiu nenhuma posição sobre a proposta de Bebel, na prática a rejeitando. O espírito autoconfiante dos Bolcheviques e sua relutância em aceitar a tutela alemã é bem expressa pelo delegado Barsov em seu discurso sobre a oferta de Bebel:
“Nossos camaradas alemães são uma força, eles amadureceram através de inexorável e crítica luta interna contra todas as formas de oportunismo nos congressos do partido e outros encontros – e nós devemos amadurecer da mesma forma para desempenhar nosso grande papel, forjando independentemente nossas próprias organizações num partido, não meramente ideologicamente mas na realidade…. Nós devemos nos tornar líderes ativos de toda a classe proletária da Rússia, unindo e organizando a nós próprios imediatamente para a luta contra a autocracia para o glorioso futuro do reino do socialismo”.
– Idem.  

Lenin e o Partido de Vanguarda (1)

Kautskismo e as Origens da Socialdemocracia Russa 

 
Recentemente o Grupo Marxista Internacional britânico (GMI) e os Socialistas Internacionais (hoje Partido Socialista dos Trabalhadores – SWP/IST), dois dos maiores grupos da “extrema esquerda” britânica, decidiram revisar a história dos Bolcheviques. Esses grupos tentam negar ou ofuscar o princípio de um partido de vanguarda com centralismo democrático apontando elementos da socialdemocracia clássica mantidos pelos Bolcheviques antes de 1914 e também manobras táticas contra os Mencheviques.
 
O GMI, seção britânica do pseudo-trotskista Secretariado Unificado, realizou a memorável façanha de tornar Lenin um conciliador que preza pela unidade acima de tudo, baseando-se no fato de que, até 1912, os Bolcheviques e Mencheviques eram formalmente tendências dentro de um Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) unitário. O alvo particular desse revisionismo é justificar uma grande manobra de unidade na esquerda britânica. Sua linha é de que “as diferenças políticas que Lenin e Trotsky consideraram que poderiam ser contidas em uma organização única eram muito maiores do que aquelas de dividem a esquerda revolucionária na Grã-bretanha hoje” (Red Weekly, 11 de Novembro de 1976). Para um entendimento maior do revisionismo do GMI e seu propósito tático batido, leia “GMI Transforma Lenin em um Menchevique”, em Workers Vanguard Número 164, 1 de Julho de 1977.
 
A mais ambiciosa releitura da história dos Bolcheviques é a de Tony Cliff, líder de longa data do movimentista e reformista SWP/IS. A corrente de Cliff carrega hoje um manto de “esquerda”; algumas vezes eles até aparecem em protestos com retratos de Lenin e Trotsky. Mas esse grupo se perdeu há muito tempo quando, em 1950, sob a tensão de intensa opinião pública anti-comunista, se recusou a defender a Coréia do Norte contra o imperialismo dos EUA e rompeu com o movimento trotskista em cima desta questão. E ainda assim, esta completamente descarada “CIA socialista” agora se propõe a reinterpretar o que Lenin realmente quis dizer em O Que Fazer? 
 
No passado, Cliff foi um proeminente e explícito defensor anti-leninista do menchevismo. O seu livro de 1959, Rosa Luxemburgo, atesta: “Para marxistas nos países industriais avançados, a posição original de Lenin serve muito menos como um guia do que a de Rosa Luxemburgo”. Esta declaração ousada foi retirada da segunda edição (1968), mas a posição substantiva de Cliff se manteve a mesma.
 
Apesar disso, os seguidores de Cliff não fazem nada além de seguir a última moda. E em contraste com os anos de 1950 e 60, o bolchevismo “rígido” está agora “na moda” entre jovens de esquerda. Então Cliff escreveu recentemente uma aparentemente simpática biografia de Lenin, da qual dois dos três volumes planejados já foram publicados. Aqui Cliff apresenta Lenin à sua própria imagem, como um movimentista eclético e nacionalmente limitado. A mensagem central de Cliff é de que não existem princípios e nem mesmo normas sobre a questão organizativa:
 
“A atitude de Lenin com relação a formas organizacionais sempre foi concreta, por isso a sua força. Ele nunca foi enganado por esquemas abstratos, dogmáticos de organização, mas esteve sempre pronto a mudar a estrutura organizativa do partido para refletir o desenvolvimento da luta de classes.
“A organização é subordinada à política. Isso não significa que não tenha influênciaindependente na política. Mas ela é, como deve ser, subordinada às necessidades concretas de cada dia. A verdade sempre é concreta, como Lenin reiterou diversas vezes. E isso também se aplica às formas organizativas necessárias para realizar tarefas concretas.” [ênfase no original]
 
Em outras palavras, o que quer que funcione num determinado período, faça. 
 
Leninistas verdadeiros reconhecem a prevalência dos princípios encarnados nos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista acima da prática bolchevique anterior a 1914. Além do mais, Trotsky sistematizou e aprofundou os conceitos leninistas desenvolvidos ao longo do turbilhão revolucionário entre 1917-23 ao construir a Quarta Internacional. Negar a evolução do bolchevismo de 1903 até 1917 é apagar a oposição principista do leninismo contra o kautskismo. Apelar à prática bolchevique pré-1914 contra o centralismo democrático da Quarta Internacional de Trotsky é equivalente a citar a “ditadura democrática do proletariado e do campesinato” de Lenin contra a “revolução permanente” de Trotsky.  
 
O Partido Kautskista de Toda a Classe 
 
O primeiro volume da biografia de Cliff, cujo subtítulo é “Construindo o Partido”, termina em 1914. Esse trabalho menciona Kautsky exatamente duas vezes e a Segunda Internacional nenhuma! Essa inacreditável omissão já valeria para desacreditar o livro de Cliff como um estudo sério da posição de Lenin sobre a questão do partido.
 
Da oferta de August Bebel em 1905 para mediar o racha bolchevique-menchevique até a “conferência de unificação” marcada pelo escritório da Internacional Socialista na véspera da Primeira Guerra Mundial, a liderança da Internacional prestou um papel significativo na vida interna do POSDR. Os elementos pró-unidade em particular, acima de todos Luxemburgo e Trotsky, foram chamados a conseguir pela Internacional centrada na Alemanha o que não tinham conseguido no movimento russo.
 
Lenin era um revolucionário socialdemocrata e, como o próprio Cliff nota no segundo volume, Kautsky “era o único líder socialista vivo que Lenin respeitava profundamente”. (Isso na verdade é um exagero: em 1905, quando Kautsky apoiou os Mencheviques, Lenin o criticou duramente). Um entendimento da posição de Lenin sobre a questão do partido deve, então, começar com a posição ortodoxa de Kautsky; essa era a doutrina do “partido de toda a classe” ou “uma classe – um partido”. O conceito de Kautsky de um “partido de toda a classe” não significava o recrutamento de toda a população proletária para o partido. Ele reconhecia que os ativistas políticos na classe trabalhadora seriam uma pequena minoria. Nenhum socialdemocrata negava que o critério para ser membro envolvia certo nível de consciência socialista, ativismo e disciplina. O que a doutrina de Kautsky significava era que todas as correntes que se reivindicavam socialistas deveriam estar em um partido unitário. Kautsky replicava que socialdemocratas revolucionários poderiam se unir e mesmo ter uma colaboração com reformistas não-marxistas. Assim, a liderança do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) por vários períodos colaborou de forma próxima com o declaradamente reformista, eclético socialista francês Jean Jaures.
 
A liderança do SPD era imensamente orgulhosa de sua unidade disciplinada pelo partido, que eles reconheciam ser a sua maior fonte de força. Bebel/Kautsky desempenharam um papel decisivo na reunificação dos socialistas franceses em 1905, superando o racha entre o Partido Socialista Marxista da França, liderado por Jules Guesde, e o reformista Partido Socialista Francês de Jaures.
 
Durante a campanha para reunir os franceses, a Internacional adotou a doutrina de “uma classe – um partido” em conformidade com a resolução de seu Congresso de Amsterdã:
 
“Para que a classe trabalhadora possa estender toda a sua força na luta contra o capitalismo é necessário que em cada país onde existirem partidos burgueses de diversos tipos, haja apenas um partido socialista, como existe apenas um proletariado. Dessa forma, é o dever imperativo de todos os camaradas e organizações socialistas fazer o esforço para construir essa unidade baseada nos princípios estabelecidos nos congressos internacionais, uma unidade necessária aos interesses do proletariado, antes dos quais são esses camaradas responsáveis, assim como pelas consequências fatais de uma violação continuada”. [ênfase no original] 
– reproduzido em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial(1940) 
 
Antes da Primeira Guerra Mundial, Lenin nunca desafiou o princípio acima e o afirmou numa ocasião. Quando, em 1909, os Bolcheviques expulsaram a ultra-esquerda Otzovita (os “Ultimatistas”) dos seus quadros, Lenin justificou isso contrastando a exclusividade de uma tendência com a inclusividade de um partido socialdemocrata:
 
“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein.” [ênfase no original]
– “Relatório da Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909) 
 
Em prática na Rússia, Lenin trabalhou para criar uma vanguarda disciplinada, programaticamente homogênea e revolucionária. Até a Primeira Guerra Mundial, entretanto, ele não rompeu em princípio com a doutrina kautskista de “partido de toda a classe”. O resolvimento dessa contradição dialética foi um dos mais importantes elementos criadores do leninismo como uma doutrina histórica mundial, como o marxismo da nossa época.  
 
Análise de Kautsky sobre o Oportunismo 
 
A doutrina kautskista do partido inclusivo foi construída sobre uma teoria histórico-sociológica particular do oportunismo. Correntes oportunistas, como foi colocado, seriam uma sobrevivência da democracia pequeno-burguesa representada majoritariamente pela intelligentsia (intelectualidade) e condicionada pela imaturidade econômica e ideológica das massas trabalhadoras. O crescimento do proletariado e de sua organização acabaria por reforçar a socialdemocracia revolucionária. Assim, Kautsky podia tolerar uma corrente como a de Jaures como uma forma de transição inevitável da democracia radical para o marxismo revolucionário.
 
A identificação de Kautsky do oportunismo com correntes pré-marxistas derivava da história da esquerda européia nas décadas seguintes às revoluções de 1848. As principais correntes opostas ao marxismo (por exemplo, as de Proudhon, Lassale e Bakunin) expressavam todas o desejo de uma classe artesã de prevenir sua queda no proletariado industrial. Marx e Engels entendiam que o socialismo utópico artesão não poderia ser vencido simplesmente por propaganda e agitação, mas requeriam um verdadeiro desenvolvimento da sociedade capitalista. Foi reconhecido na Segunda Internacional que o marxismo iria superar essas correntes primitivistas, como o lassaleanismo na Alemanha e o proudhonismo na França, principalmente pela transformação da classe dos artesãos urbanos em proletariado moderno. O processo pelo qual o marxismo superou o lassaleanismo, o proudhonismo, bakuninismo, etc. se tornou para Kautsky o paradigma da luta contra o oportunismo em geral.
 
A visão do reformismo como um atraso histórico ou regressão se mostra nos objetivos limitados de Kautsky na controvérsia “revisionista” com Bernstein. Ele desenhou uma linha reta entre os ingênuos reformistas pré-marxistas, como Jaures, e os conscientes revisores do marxismo. Numa carta de 23 de Maio de 1902 para Victor Adler, Kautsky defendeu a liderança socialista belga da acusação de revisionismo com o fundamento de que eles nunca tinham sido marxistas, para começar, e nem fingiam ser:
 
“Eu mantenho uma atitude inteiramente sem preconceitos em relação a eles; o palavreado sobre o seu revisionismo não me exalta. Eles não tem nada para revisar, porque eles não têm teoria. O socialismo eclético e vulgar para o qual os revisionistas gostariam de reduzir o marxismo é algo além do que eles [os socialistas belgas] sequer começaram a desenvolver. Proudhon, Schaffle, Marx – são todos um para eles, sempre foi assim, eles não retrocederam na teoria e eu não tenho motivo para censurá-los.”
– citado em George Lichtheim, Marxismo (1961) 
 
O objetivo de Kautsky na controvérsia “revisionista” não ela limpar a Segunda Internacional de tendências, ou mesmo de práticas reformistas, mas preservar a integridade doutrinal do campo marxista. Se isso fosse atingido, acreditava Kautsky, o desenvolvimento da luta de classes acabaria por garantir o triunfo da socialdemocracia revolucionária.
 
Kautsky localizava a fraqueza da socialdemocracia revolucionária no atraso do proletariado, que refletia tanto uma contínua identificação com a pequeno-burguesia quanto uma falta de confiança no movimento dos trabalhadores:
 
“Mesmo após um grande tempo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade… Outros, novamente, foram mais além e reconheceram a necessidade de lutar contra os capitalistas que permanecem em antagonismo em relação a eles, mas não se sentem seguros o suficiente para declarar guerra contra todo o sistema capitalista. Estes buscam alívio nos partidos capitalistas e governos.”
– A Estrada Para o Poder (1909) 
 
Para Kautsky, o crescimento do proletariado, dos sindicatos, etc. fortalecia objetivamente as forças revolucionárias na sociedade. O que era necessário à socialdemocracia era uma paciente e pedagógica atitude com relação aos trabalhadores atrasados, embora Kautsky também reconhecesse que a consciência de classe poderia saltar durante uma crise revolucionária.
 
Com a exceção parcial de Luxemburgo, nenhum socialdemocrata no pré-guerra localizou a fonte principal do reformismo no conservadorismo da burocracia socialmente privilegiada criada pelo crescimento e força do movimento dos trabalhadores, dos partidos socialdemocratas e seus sindicatos afiliados.  
 
A Análise Sociológica de Lenin sobre o Menchevismo 
 
Lenin, seguindo a metodologia de Kautsky, considerou o menchevismo uma extensão do radicalismo pequeno-burguês do século XIX dentro do movimento dos trabalhadores. Porque considerava os Mencheviques uma tendência “intelectualista”, de certa forma estando de fora do movimento dos trabalhadores, ele podia romper com eles sem postular a existência de dois partidos socialdemocratas competidores, um revolucionário, o outro reformista. Lenin estava convencido de que o crescimento da organização socialdemocrata entre o proletariado russo iria garantir o triunfo do bolchevismo.
 
Lenin considerava o grupo de Martov de 1903 como uma expressão das atitudes e valores da velha, defensora de liberdades e individualista intelectualidade revolucionária, como uma rebelião do espírito dos círculos de debate contra a construção de um partido real de trabalhadores:
 
“Nós consideramos, entretanto, que a doença que afeta o partido é um problema de dores crescentes. Nós consideramos que a causa por trás dessa crise é a transição da forma de círculos de debate para a forma de partido, a forma de vida da socialdemocracia; a essência de sua luta interna é o conflito entre o espírito de círculos de debate e o espírito de partido. E, consequentemente, só nos livrando dessa doença, o nosso partido pode se tornar um partido verdadeiro….”
“Finalmente, os quadros da oposição tem em geral sido desenhados principalmente por aqueles elementos em nosso partido que consistem em intelectuais. A intelectualidade é sempre mais individualista que o proletariado, devido às suas próprias condições de vida e trabalho, que não envolvem diretamente uma combinação de esforços em larga escala, não a educam diretamente através do trabalho coletivo organizado. Os elementos intelectuais, então, acham difícil se adaptar à disciplina da vida de partido, e aqueles que não são iguais a eles naturalmente levantam a bandeira da revolta contra as necessárias limitações organizativas.” [ênfase no original]
– “Ao Partido” (Agosto de 1904) 
 
Lenin da mesma forma analisou o liquidacionismo menchevique durante o período entre 1908-12 (oposição ao partido clandestino) em termos de intelectuais lutando contra o proletariado:
 
“Os primeiros a fugir da clandestinidade foram os intelectuais burgueses que sucumbiram à pressão contra-revolucionária, aqueles ‘companheiros de viagem’ do movimento da classe trabalhadora socialdemocrata que, como aqueles na Europa, tinham sido atraídos pelo papel libertador desempenhado pelo proletariado … na revolução burguesa. É fato bem conhecido que uma massa de marxistas deixou a clandestinidade após 1905 e encontrou lugar para si própria em todos os tipos de cantos aconchegantes legais para intelectuais.”
– Como Vera Zasulich Desenvolve o Liquidacionismo (Setembro de 1913) 
 
A análise sociológica de Lenin do menchevismo era válida até onde foi. O grupo de Martov em 1903 representava em parte os hábitos da velha intelectualidade revolucionária; leve-se em conta Vera Zasulich nessa consideração. O liquidacionismo menchevique representava em parte a fuga de intelectuais do POSDR em direção à respeitabilidade burguesa durante o período de reação. Mas o menchevismo não era primariamente uma tendência externa ao movimento operário. Os mencheviques russos anteciparam o reformismo operário da Segunda Internacional como um todo, incluindo particularmente seus partidos de massa. Foi somente durante a Primeira Guerra Mundial, em estudos que levaram a Imperialismo, que Lenin localizou a fonte do oportunismo socialdemocrata dentro do movimento dos trabalhadores – numa burocracia operária descansando no estrato mais alto da classe trabalhadora.  
 
Iskraismo 
 
O marxismo russo organizado se originou em 1883 quando Plekhanov rompeu com a corrente populista dominante para formar o pequeno grupo Emancipação do Trabalho no exílio. Durante o fim dos anos de 1880 e começo dos 90, o marxismo na Rússia consistia de círculos de propaganda locais projetados para educar uma fina camada de trabalhadores avançados. No meio dos anos de 1890, os círculos de propaganda se viraram em direção à agitação de massa intervindo em uma grande onda de greves. Essa virada foi em parte inspirada pela Liga Judaica. Solidariedade étnica permitiu à intelectualidade judaica marxista alcançar e organizar trabalhadores judeus na frente da socialdemocracia russa como um todo.
 
Em parte por causa da prisão dos mais experientes líderes marxistas (por exemplo, Lenin, Martov), a virada em direção à agitação de massa rapidamente degenerou-se em reformismo. Esta tendência, apelidada de “economicismo” por um hostil Plekhanov, limitou sua agitação a demandas sindicais simples, enquanto passivamente apoiava os esforços da burguesia liberal para reformar o absolutismo czarista. Em termos de socialdemocracia internacional, os economicistas eram hostis ao marxismo ortodoxo e consequentemente eram frouxamente associados com Bernstein na Alemanha e opossibilismo na França. No fim dos anos de 1890, o economicismo era a tendência dominante entre os socialdemocratas russos.
 
Em 1900, a segunda geração de marxistas russos (Lenin, Martov) fez uma coalizão com os fundadores (Plekhanov, Axelrod, Zasulich) para retornar a socialdemocracia russa para as suas tradições revolucionárias como encorpadas no programa do Emancipação do Trabalho. A tendência marxista revolucionária foi organizada através de jornal Iskra. Lenin era o organizador do grupo do Iskra. Ele enviou agentes pela Rússia cuja tarefa era ganhar os comitês socialdemocratas locais, ou rachá-los, caso fosse necessário. O Iskra forneceu, pela primeira vez, um centro organizador para um partido socialdemocrata russo.
 
Polemizando contra as táticas divisionistas bem-sucedidas de Lenin, os economicistas apontaram que a seção alemã não tinha procurado excluir os seguidores de Bernstein. Lenin não brigou e, de certa forma não poderia brigar pela exclusão dos oportunistas do parido socialdemocrata como um princípio. No lugar, ele justificou suas táticas de divisão por uma série de argumentos baseados na particularidade da situação do partido russo. Até a primeira Guerra Mundial, Lenin iria apelar para um ou outro aspecto particular da Rússia para justificar a construção de um partido de vanguarda programaticamente homogêneo.
 
Qual eram os argumentos de Lenin para construir o POSDR sem e contra os economicistas? O partido alemão tinha fortes tradições revolucionárias e uma liderança de autoridade. O partido russo era embrionário e poderia facilmente cair no oportunismo. A liderança alemã, Bebel/Kautsky, era revolucionária, enquanto os bernisteinianos eram uma pequena minoria; em contraste, os economicistas eram temporariamente a tendência dominante na socialdemocracia russa. Os “revisionistas” alemães aceitaram a disciplina do partido, os economicistas russos eram incapazes de aceitar a disciplina do partido. E, de qualquer forma, o POSDR não era uma organização centralizada. Esses argumentos estão expressos em O Que Fazer? (1902):
 
“O importante é notar que a atitude oportunista em relação aos socialdemocratas na Rússia é o oposto àquela na Alemanha. Na Alemanha … os socialdemocratas revolucionários estão a favor de preservar o que são: eles permanecem a favor do velho programa e das táticas que são universalmente conhecidas…. Os “críticos” desejam introduzir mudanças e, como esses críticos representam uma insignificante minoria, e como são muito tímidos e hesitantes em seus esforços revisionistas, é fácil entender os motivos da maioria em limitar-se à seca rejeição de tal “inovação”. Na Rússia, entretanto, são os críticos e os economicistas que querem expressar o que são; os “críticos” desejam que continuemos a nos considerar marxistas e que lhes seja garantida a “liberdade de criticar”, a qual eles se aproveitam ao máximo (porque, na verdade, eles nunca reconheceram nenhuma forma de laços partidários e, além disso, nunca tivemos um órgão do partido com reconhecimento geral que pudesse “restringir” a liberdade de criticar até mesmo através de aconselhamento.” [ênfase no original]
 
Como é reconhecido de forma geral, O Que Fazer? de Lenin (1902) era a declaração de autoridade do Iskraismo. Apesar de sua suposta simpatia quanto a Lenin, Cliff é por demais um movimentista e menchevique para aceitar O Que Fazer?. De fato, uma proposta central da sua biografia é discutir que a polêmica de 1902 é uma declaração exagerada, unilateral que Lenin repudiou, no seu conteúdo, posteriormente.
 
Primeiramente, Cliff vulgariza a posição de Lenin e então polemiza contra sua própria invenção fantoche:
 
“Em geral a dicotomia entre luta econômica e política é estranha a Marx. Uma demanda econômica, se é setorial, é definida como ‘econômica’ nos termos de Marx. Mas se a mesma demanda é feita contra o estado de coisas ela é ‘política’ …. Em muitos casos lutas econômicas (setoriais) não dão origem a lutas políticas (com conteúdo de classe), mas não há uma muralha da China entre as duas, e muitas lutas econômicas se tornamlutas políticas.” [ênfase no original]
 
Lenin não ataca os economicistas por serem indiferentes à política governamental. Os economicistas russos agitavam por reformas econômicas iniciadas pelo Estado e apoiavam direitos democráticos, particularmente o direito à organização. Nesse sentido eles apoiavam passivamente os liberais. Em O Que Fazer? Lenin ataca o programa político dos economicistas como encapsulado no slogan “dar à luta econômica em si mesma um caráter político”:
 
“Dar ‘à luta econômica em si mesma um caráter político’ significa, então, se esforçar para assegurar a satisfação por estas demandas econômicas, a melhoria de condições de trabalho em cada ramo separado por meio de ‘medidas legislativas e administrativas’ …. Isso é exatamente o que os sindicatos fazem e sempre fizeram….”
“Assim, a pomposa palavra de ordem ‘dar à luta econômica em si mesma um caráter político’ que soa ‘incrivelmente’ profunda e revolucionária, serve como uma venda para esconder o que é, de fato, o esforço tradicional para degradar as políticas socialdemocratas ao nível das políticas sindicais!” [ênfase no original]
 
Para Lenin, consciência de classe política, ou consciência socialista, era o reconhecimento pelo proletariado da necessidade de se tornar a classe dominante e reconstruir a sociedade sobre bases socialistas. Qualquer coisa a menos era consciência sindical.
 
Como todas as outras correntes movimentistas e socialdemocratas atuais, Cliff deve atacar a famosa declaração de Lenin de que consciência socialista é levada aos trabalhadores de fora por intelectuais revolucionários, que consciência de classe não surge simplesmente através das lutas operárias para melhorar suas condições. Aqui estão as observações factuais de Cliff sobre essa questão:
 
“Não há dúvida de que essa formulação enfatizou exageradamente as diferenças entre espontaneidade e consciência. Por que, de fato, a completa separação de espontaneidade da consciência é mecânica e não-dialética. Lenin, como nós veremos depois, admitiu isso. Pura espontaneidade não existe na vida….”
“A lógica da justaposição mecânica de espontaneidade e consciência era a completa separação entre o partido e os verdadeiros membros da liderança da classe trabalhadora que já haviam se elevado na luta. Ela assumia que o partido tinha respostas a todas as perguntas que a luta espontânea pudesse trazer a tona. A cegueira dos muitos envolvidos na batalha é o trapézio invertido da omnisciência dos poucos.” [ênfase no original]
 
É importante citar a declaração de Lenin inteira para entender o que ela significa e não significa:
 
“Nós dissemos que pode não haver ainda consciência socialdemocrata entre os trabalhadores. Esta consciência só pode ser levada a eles de fora. A história de todos os países mostra que a classe trabalhadora, exclusivamente por seu próprio esforço, é capaz de desenvolver apenas consciência sindical, por exemplo, ela pode perceber por si própria a necessidade de participar de sindicatos, de lutar contra os empregadores e de se esforçar para fazer o governo aprovar legislação trabalhista suficiente, etc. A teoria do socialismo, entretanto, cresceu a partir das teorias filosóficas, históricas e econômicas que foram elaboradas pelos representantes cultos das classes possuidoras, os intelectuais. De acordo com seu status social, os fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenceram à intelectualidade burguesa (intelligentsia). Similarmente na Rússia, a doutrina teórica da socialdemocracia surgiu de forma bem independente do crescimento espontâneo do movimento trabalhista; ela surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento de idéias entre a intelligentsia socialista revolucionária.” [ênfase no original]
– O Que Fazer? 
 
Esta não é uma declaração programática, mas antes uma análise histórica com implicações na questão organizativa. O movimento socialista precedeu o desenvolvimento das organizações econômicas de massa do proletariado industrial. O movimento socialista surgiu de dentro das correntes democrático-burguesas revolucionárias (a tradição babouvista representada pelo blanquismo na França e pela Liga dos Justos na Alemanha). Com exceção da Grã-bretanha, os primeiros sindicatos surgiram pela transformação do velho sistemas artesanal baseado em guildas.
 
Por exemplo, na revolução alemã de 1848 o movimento de sindicatos de massa de Stephan Born, a Irmandade dos Trabalhadores, era largamente baseada na tradicional estrutura de guilda. Os líderes dos sindicatos embrionários eram geralmente figuras tradicionais de autoridade da comunidade plebéia. Ministros metodistas, como o radical tory J. R. Stephens, desempenharam importante papel de liderança no movimento dos trabalhadores Britânicos no começo do século XIX. Padres católicos tiveram um papel semelhante nos primeiros sindicatos franceses, como por exemplo entre os revoltos trabalhadores têxteis de Lyon. Na maioria dos países o crescimento do movimento de trabalhadores socialistas resultou da vitória política da intelligentsia revolucionária contra os líderes tradicionalistas das primeiras organizações operárias. Quando Lenin escreveu O Que Fazer?, as organizações econômicas de massa da classe trabalhadora russa eram os sindicatos liderados pela polícia (zubatovitas), cujo mais proeminente líder era o padre Gapon.
 
Lenin era um dialético que entendia que a consciência e liderança da classe trabalhadora passava historicamente por mudanças qualitativas. Com a importante exceção dos Estados Unidos, o economicismo sindical (associado com ilusões burguesas liberais e obscurantismo religioso) não é mais a ideologia dominante do proletariado mundial. Nos países capitalistas avançados, é socialista reformista, levada a diante pelos atuais socialdemocratas e burocracias trabalhistas stalinistas, que grudam a classe trabalhadora à ordem burguesa. Em países atrasados, nacionalismo populista com coloração socialista (por exemplo, Perón, Násser) é a forma característica da dominação ideológica burguesa sobre as massas trabalhadoras.
 
Na Rússia de 1902, uma pequena e homogênea vanguarda marxista, composta por intelectuais saídos de sua classe, com uma fina camada de trabalhadores avançados, foi capaz de fazer a massa dos trabalhadores romper com o sindicalismo policial e com a Igreja Ortodoxa. Hoje é necessária uma vanguarda trotskista internacional, necessariamente composta em seus primeiros estágios por intelectuais saídos de sua classe, com relativamente poucos trabalhadores avançados, para fazer a classe trabalhadora do mundo romper com a dominação do reformismo socialdemocrata e stalinista e com o nacionalismo populista.
 
Em sentido exatamente oposto ao de Cliff, O Que Fazer? não pode ser considerado como o posicionamento leninista definitivo sobre a questão do partido. Apesar da angularidade dessas formulações, a polêmica obra de 1902 não vai além dos limites da socialdemocracia ortodoxa anterior a 1914. Se esse trabalho tivesse significado uma quebra radical com a socialdemocracia, Plekhanov, Martov, etc., nunca o teriam aprovado. Foi apenas depois do racha em 1903 que Martov, Axelrod e outros líderes mencheviques descobriram em O Que Fazer? alegadas concepções substituístas e blanquistas. Foi a atitude intransigente de Lenin na prática contra o oportunismo, espírito de círculo de debate e todos os outros obstáculos para construir um POSDR revolucionário que causou o racha menchevique, não particularmente as ideias presentes em O Que Fazer?. Se Cliff acha O Que Fazer?leninista demais para o seu gosto, é porque sua hostilidade ao bolchevismo é tão forte que ele rejeita Lenin mesmo quando o último era ainda um revolucionário socialdemocrata. Na realidade a obra de 1902 é uma antecipação, não uma exposição completamente acabada do comunismo pós-1917.
 
É comum na esquerda considerar O Que Fazer? como uma declaração leninista definitiva sobre a questão do partido. Por exemplo, o americano da corrente de Schatman, Bruce Landau, em uma revisão crítica da biografia de Cliff (Revolutionary Marxist Papers Num. 8), concentra-se no período do Iskra. Ele justifica seu foco estreito citando Trotsky a respeito da elaboração de Lenin:
 
“Foi precisamente durante este curto tempo que Lenin se tornou o Lenin que seria para sempre. Isso não significa que ele não evoluiu posteriormente. Ao contrário. Ele cresceu em tamanho … até Outubro e mais além; mas as condições desse crescimento já estavam realmente dadas.”
– Sobre Lenin: Anotações para uma Biografia (1924) 
 
Trotsky aqui se refere ao desenvolvimento da personalidade política de Lenin, não de suas idéias e suas expressões programáticas. O período decisivo para o desenvolvimento da doutrina comunista leninista foi entre 1914 e 1917, não 1900-1903.

Polêmica com o PSTU e com a LER-QI sobre a Líbia

PSTU, Fração Trotskista e a Defesa da Líbia Contra o Imperialismo
De que Lado da Trincheira?                

Por Rodolfo Kaleb
Novembro de 2011

Nenhuma corrente da esquerda brasileira tem influência política ou seção na Líbia. No entanto, a análise do processo de guerra civil e depois de intervenção imperialista que se abateu sobre o país é muito mais do que um exercício de teoria. As posições práticas das diversas organizações da esquerda indicam o quanto elas estão próximas ou distantes de uma aplicação revolucionária do marxismo, ou seja, quão estão preparadas para lutar pela revolução nos países onde estão presentes. Assim, mesmo com a guerra tendo chegado ao fim com uma vitória das forças apoiadas pelos imperialismos sobre os exércitos do ditador Kadafi, um dos eventos mais dramáticos da luta de classes deste ano exige um estudo profundo e um balanço da esquerda que se posicionou sobre esses eventos [1].

O maior partido que reivindica o trotskismo no Brasil, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), teve uma posição de apoio aos rebeldes que tomaram Bengasi como sua capital e depois receberam apoio militar OTAN em sua luta contra Kadafi. Em todo o momento, o partido fez questão de classificar os rebeldes como um movimento “revolucionário” e não se abateram nem mesmo quando a “revolução” passou a se coordenar com os imperialismos francês, norte-americano e britânico para derrubar o regime decrépito de 42 anos do ditador líbio.

Já a Fração Trotskista, representada no Brasil pela Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI) não apoiou a vitória dos rebeldes aliados com a OTAN no fim da guerra, mas nutriu muitas ilusões com esse movimento nos seus períodos iniciais e mesmo após o início da sua colaboração com a OTAN. Isso a levou a não tomar a posição política consistente de defesa da Líbia, ou seja, o mesmo lado militar das forças leais a Muammar Kadafi mantendo contra ele o combate político. Essa posição estranha à tradição trotskista, que orientou os trabalhadores a uma aparente necessidade de combater com armas os dois lados do conflito, acaba igualando um regime autoritário numa nação oprimida com a opressão incomparavelmente maior das potências capitalistas, interessadas na exploração do trabalho e das riquezas naturais de uma semicolônia moderna.

Primavera Árabe”

Os movimentos que emergiram em alguns países no norte da África e no Oriente Médio, tendo como maiores exemplos até o momento a Tunísia e o Egito, tiveram características gerais similares. Eles são movimentos de revolta popular, que realizam protestos, atos de rua e outras ações radicalizadas contra a exploração e a repressão política de ditaduras burguesas de longa data. Tais revoltas também são sintomas da crise capitalista sobre as nações desta região pobre do globo, onde os governos vinham realizando “ajustes econômicos” (ataques à classe trabalhadora) como forma de sustentar as dívidas estatais e capitalistas. A base social desses movimentos é policlassista, com um componente destacado de juventude, contando com alguns setores proletários que não tiveram um papel de liderança até o momento. Em geral, os movimentos como o da Praça da Libertação (Tahrir) no Egito, não se utilizaram dos métodos históricos de luta dos trabalhadores. Quando o componente de apoio proletário se fez minimamente presente, ficou evidente, inclusive, o peso social da classe trabalhadora [2].

Entretanto, os movimentos sociais não se definem somente pela composição da sua base. Também é necessário analisar quem dirige politicamente essa base, qual é o seu programa político e qual é a dinâmica entre a base e a liderança para determinar a intervenção prática dos marxistas. Nesses países, devido à ausência de um partido revolucionário capaz de disputar as bases desses movimentos, a liderança que se colocou à frente das massas foi burguesa, personificada em antigos opositores democráticos. Essas lideranças burguesas, que prometiam “democracia”, buscaram evitar que qualquer liderança da classe trabalhadora pudesse tomar o seu lugar. Afinal, tinham o objetivo de garantir uma transição pacífica e tranquila para uma democracia onde só seriam concedidos os direitos democráticos que coubessem na ordem capitalista que lhes interessa, uma democracia da burguesia.

Ficou claro que essas lideranças oposicionistas tinham uma diferença de nuance com as ditaduras e podiam conviver muito bem com elas. Já a base do movimento tinha objetivos variados de liberdades democráticas e melhorias sociais. Mas enquanto essa base confiar que o caminho para seus objetivos (eles próprios postos de maneira vaga) se dará através do projeto da oposição burguesa, eles tendem a fracassar. Não foi à toa que todos os líderes oposicionistas no Egito e na Tunísia adotaram um discurso de “retorno aos lares e ao trabalho” assim que se viram ameaçados pela radicalização crescente do movimento.

É importante notar que isso aconteceu mesmo onde o máximo conseguido foi o afastamento pessoal do ditador e a manutenção de todo o aparato de governo (e de repressão) com a promessa de eleições futuras. Em outras palavras, não apenas a covarde liderança burguesa tem objetivos extremamente limitados, como não tem convicção suficiente nem nos próprios objetivos – teve mais medo do próprio movimento de massas que liderava do que das ditaduras, e preferiram chegar a acordos com estas do que arriscar abrir espaço para “radicais” advindos da massa. Esse foi o caso, por exemplo, do movimento de El-Baradei no Egito.

Nesse cenário de um movimento de luta por direitos democráticos (uma luta absolutamente justa e do interesse dos proletários) os comunistas devem intervir para desmascarar as lideranças burguesas e mostrar que os marxistas são os mais competentes para arrancar conquistas democráticas. Além disso, devem elevar a consciência de classe dos trabalhadores, mostrando que o seu objetivo não deve ser um “capitalismo mais humano” ou a democracia da burguesia, e sim o poder direto dos trabalhadores. Estes não devem dar o menor apoio a líderes do movimento que eventualmente componham um governo burguês.

É essencial o papel de vanguarda da classe proletária (sobretudo o seu componente industrial) dentre as massas. Rechaçamos qualquer ilusão sobre a necessidade (ou possibilidade) de uma etapa burguesa “democrática” na luta pelo socialismo. Qualquer suposta etapa democrática “necessária” se trata de um engodo para manter os proletários sob domínio burguês por tempo indeterminado. Da mesma forma, combatemos aqueles que, mesmo dizendo formalmente que lutam pelo socialismo, apostam ou tem uma postura ambígua diante das oposições burguesas, ou dão prioridade às demandas democrático-burguesas comuns entre todos os setores do movimento e não àquelas que preparam a moral e a consciência dos trabalhadores para a sua tarefa principal.

O método do marxismo na Líbia

O caso líbio foi, na maioria dos aspectos, muito diferente dos demais países da região. É inegável que houve um princípio de ações de protesto no leste do país, em janeiro e nos primeiros dias de fevereiro, com alguns setores populares lutando por direitos democráticos. Os trabalhadores petroleiros, inclusive, estavam presentes nesses primeiros protestos. Muitos apologistas de Kadafi tentam fazer crer que todos que contra ele lutam são “agentes do imperialismo”. Mas não havia nenhuma disputa econômica específica entre os imperialismos e o regime kadafista naquele momento (nem mesmo as querelas passadas envolvendo as nacionalizações da década de 1970) que justificasse a predisposição dos imperialistas para tal.

A diferença inicial no processo líbio se deu pelo fato de que a liderança das primeiras movimentações no país possuía um programa e uma estratégia diferente daquele dos outros movimentos da região. A liderança da oposição líbia, que veio depois a ser o núcleo formador do CNT, não adotou a estratégia de uma transição segura, em colaboração com o governo. O leste do país era o centro de várias tribos donas de propriedades que mantinham uma convivência pouco diplomática com o regime kadafista (que derrubou a monarquia líbia em 1969).

Esses líderes tribais pensavam na monarquia pré-Kadafi com nostalgia e perceberam na onda de protestos que aconteciam nos países vizinhos uma oportunidade para se alçar ao poder e acabar com a desgastada “república do Livro Verde”. Assim como as lideranças burguesas no Egito e na Tunísia, as tribos representavam interesses econômicos de certas alas da burguesia, ao buscar retirar do poder regimes que não mantinham mais a ordem econômica e social do seu interesse. Entretanto, pela sua história e desenvolvimento, a oposição líbia estava muito mais organizada e disposta a ações insurrecionais.

Os acontecimentos de 17 de fevereiro em Bengasi não são claros devido à ausência de informações. No entanto, é bastante improvável que os setores populares tenham espontaneamente obtido armas e organizado milícias que derrubaram o governo da cidade. Sem dúvida é muito mais crível que setores submetidos aos líderes tribais tenham organizado os destacamentos que tiraram Bengasi (assim como outras cidades menores) do controle do aparato kadafista. De qualquer forma, a tomada de Bengasi se colocou em menos de dois dias sob o comando do embrião do CNT, que logo receberia apoio de ministros do alto escalão do governo de Kadafi, incluindo o proeminente ex-ministro da justiça Mustafá Abdul Jalil (que se tornaria presidente do Conselho). Com a tomada de Bengasi, já não havia mais na Líbia um movimento popular, e sim um governo burguês instalado nas cidades a leste, que passou a disputar com Kadafi o comando do país. Também ocorre nesse momento um racha no exército líbio e se conformam todas as características de uma guerra civil encabeçada por duas frações da burguesia.

Não é impossível que tenha havido destacamentos rebeldes relativamente independentes da liderança reacionária durante um período curto. No entanto é evidente que todas as forças rebeldes foram rapidamente unificadas sob o comando do CNT. Não havia “povo armado” de forma independente, e sim combatentes (profissionais e não-profissionais) comandados pelo CNT. Por isso, para nós não havia no exército do CNT nenhuma investida “revolucionária”, como formularam correntes oportunistas. Dizer que é “revolucionário” um processo sem o protagonismo da classe trabalhadora e onde as massas são lideradas e tem amplas ilusões com um setor reacionário da burguesia é subestimar o fator essencial de consciência necessário para uma revolução. Não existe movimento “objetivamente revolucionário” que acontece mesmo que os seus agentes estejam presos à consciência burguesa, como discutiremos melhor mais à frente.

Nesse primeiro momento de guerra civil, não havia nenhum interesse objetivo para o proletariado em tomar qualquer uma das duas trincheiras. Tanto a ditadura kadafista quanto um regime das tribos buscariam oprimir e explorar a classe trabalhadora em colaboração com o imperialismo. A defesa da classe trabalhadora não estava associada a nenhum dos campos militares (como ficou evidente com a repressão desencadeada pelos rebeldes contra os trabalhadores negros). Tratava-se, pelo contrário, de uma disputa de interesses entre a burguesia líbia onde os trabalhadores só poderiam ter seus interesses objetivos realizados com a derrota de ambos os lados. Nesse momento, a tarefa dos revolucionários era lutar pela independência do proletariado nesse conflito, a luta de classes contra ambos os lados e a sua preparação revolucionária para o futuro.

Parece evidente agora que desde aquele momento os líderes tribais do CNT buscavam formar alianças, através da oferta de garantias econômicas, com as nações imperialistas. A possibilidade de uma intervenção imperialista foi amplamente anunciada, apesar de durante algum tempo líderes do CNT negarem que estivessem buscando por isso. Diante da boa vontade e de relativos sucessos do CNT no combate contra Kadafi, os imperialismos foram bastante rápidos em lhe dar apoio diplomático e reconhecimento. A diplomacia imperialista somente leva em conta os seus interesses econômicos e políticos. Obviamente não havia em nenhum dos líderes imperialistas qualquer interesse “humanitário” em derrubar Kadafi. Até porque os “amantes da paz” da Casa Branca e de Bengasi teriam muito que explicar sobre suas ações pouco “humanitárias” na própria Líbia e em outros países do Oriente Médio. Isso indicou a possibilidade (ainda não concreta nesse momento) de uma mudança no contexto da guerra.

Há relatos de que Kadafi bombardeou protestos de rua da oposição rebelde, matando civis desarmados [3]. Se não havia lado para os trabalhadores no conflito armado entre o CNT e o ditador, isso não significa que não havia interesses democráticos básicos a serem defendidos. Nós nos oporíamos com todos os meios disponíveis a atentados armados contra protestos de rua. Tais ataques, inclusive, impediriam a tarefa de intervenção dos comunistas nos setores de trabalhadores que pudessem romper com os líderes tribais. Mas isso não significaria nenhum apoio militar à luta do CNT pelo poder de Estado. A posição dos comunistas diante do governo de Bengasi era de oposição irreconciliável, um princípio que foi absolutamente traído pela maioria dos que se reivindicam trotskistas.

Ao mesmo tempo, desde o início da guerra civil, a oposição rebelde teve uma postura racista com relação aos emigrados negros de países do sul da África, que compõem uma parcela significativa da classe trabalhadora da Líbia. Milhares de negros, acusados de emigrar para compor exércitos de mercenários para Kadafi, foram revistados, presos e mesmo mortos sem nenhuma prova de que fossem “mercenários contratados” [4]. Os revolucionários deveriam se opor a tais ações pelo mesmo princípio. Nem precisamos dizer que os carniceiros imperialistas como Obama, que são responsáveis pelas mortes de milhares de trabalhadores e oprimidos todos os anos nas suas guerras no Iraque e Afeganistão, não têm a menor autoridade para justificar mais um atentado sob a desculpa de buscar a “paz e a liberdade” do povo líbio sob o cano do fuzil e a explosão das bombas.

Nesse momento, em plena guerra civil, o PSTU já classificava como “revolução” o que acontecia na Líbia. Ignorava que faltava à classe trabalhadora a mínima independência de classe, a orientação de um partido marxista revolucionário, órgãos (ou ao menos embriões) de duplo poder. Em outras palavras, faltavam os meios práticos e subjetivos para lutar pelo poder como classe. Mas os morenistas (apelido em razão de a corrente do PSTU ter sido fundada por Nahuel Moreno), já consideram há muito que pode haver uma etapa de “revolução socialista” sob comando da burguesia ou pequeno-burguesia enquanto ante-sala da luta revolucionária [5]. Foi com essa perspectiva que proclamaram:

“Neste processo, acontece uma unidade de ação muito ampla contra a ditadura, da qual participam trabalhadores, setores populares e, inclusive, com a adesão de setores burgueses, mais oficiais e tropas desertoras das forças armadas, e agora se agregam, também, altos funcionários do regime. Está claro que é necessária a mais ampla unidade de ação com todos os setores, inclusive os burgueses descolados do regime, para acabar com esta ditadura genocida e entrincheirada.”
Líbia a sangue e fogo, 24 de fevereiro de 2011.

“Acabar com uma ditadura genocida e entrincheirada” aliando-se à empreitada militar de líderes tribais reacionários e ex-membros do alto escalão de Kadafi que desejam tomar para si o poder só pode ter o efeito de criar outra ditadura da burguesia. A estratégia revolucionária de Lenin e Trotsky era o oposto dessa posição criminosa da liderança do PSTU. Colocavam a todo o tempo a necessidade de lutar pela independência da classe trabalhadora diante da burguesia. Essa foi a postura dos bolcheviques na revolução de Outubro desde que prevaleceu a posição das Teses de Abril, em que o grupo ao redor de Lenin corrigiu a linha vacilante do partido. Também foi a metodologia adotada pela Quarta Internacional em oposição aos blocos políticos do stalinismo e da socialdemocracia com a burguesia.

“A acusação capital que a IV Internacional lança contra as organizações tradicionais do proletariado é a de que elas não querem separar-se do semicadáver da burguesia.”
“De todos os partidos e organizações que se apóiam nos operários e nos camponeses falando em seu nome, nós exigimos que rompam politicamente com a burguesia e entrem no caminho da luta pelo governo operário e camponês.”
Programa de Transição, setembro de 1938.

            Com sua posição, o PSTU preparou a capitulação vergonhosa quando a “revolução com a burguesia” recebeu também apoio dos imperialismos através da OTAN. Como discutiremos mais à frente, a OTAN foi essencial para garantir a vitória militar dos rebeldes, que consistiu em uma derrota para os povos oprimidos de todo o mundo.

A OTAN e os “revolucionários” de Bengasi

            A intervenção da OTAN, iniciada em 20 de março, marcou uma mudança qualitativa na tendência do imperialismo de preferir o Conselho Nacional de Transição ao impopular e decadente regime kadafista. Ela significou que havia interesses econômicos tão sérios em jogo para o imperialismo, que valia a pena subsidiar mais uma incursão quando os gastos econômicos de muitos dos países envolvidos com duas guerras (Iraque e Afeganistão) já são imensos. Esses interesses econômicos, sobretudo o petróleo líbio, ficam evidentes agora quando, mal terminado o conflito, já começa a divisão dos direitos de exploração do país pelas burguesias imperialistas, havendo uma redistribuição em favor das nações que participaram dos bombardeios [6].

            Dias antes de a OTAN iniciar os ataques, a guerra civil parecia estar pendendo para Kadafi. Foi fundamental que se iniciassem os bombardeios contra alvos do governo e do exército leais a Trípoli e o treinamento com armas pesadas que o recém-reunido exército do CNT recebeu das nações imperialistas. Diante desses eventos, a posição dos revolucionários mudou. Não se tratava mais de uma guerra entre dois setores da burguesia líbia e sim o confronto entre um setor da burguesia líbia contra um bloco de outro setor dessa mesma burguesia com várias nações imperialistas. Nessa guerra, a classe trabalhadora definitivamente tinha um lado.

            A vitória do bloco CNT/OTAN significa a imposição de mais exploração e opressão sobre a população, mais barreiras ao desenvolvimento de uma nação independente, mais laços com o imperialismo. Obviamente Kadafi havia construído muitos desses laços. Sua colaboração com o imperialismo e seu regime ditatorial foram o que manteve a classe trabalhadora desmobilizada, sem partidos, sem sindicatos. Sem dúvida o tirano é o maior responsável pela prostração do país perante o imperialismo. Mas existe uma diferença qualitativa entre dois blocos da burguesia quando um deles é apoiado pelo maior inimigo dos povos. Nenhuma revolução autêntica (em oposição ao que são os rebeldes) pode triunfar enquanto não for derrotado o imperialismo, que é um opressor muito maior que Kadafi e cuja derrota é mais importante.

“A pressão do imperialismo sobre os paises atrasados não muda, na verdade, seu caráter social fundamental, já que o sujeito e o objeto da pressão não representam mais do que níveis diferentes do desenvolvimento de uma só e mesma sociedade burguesa. No entanto, a diferença entre Inglaterra e Índia, o Japão e a China, os EUA e o México, é tão grande, que estabelecemos uma rigorosa distinção entre os países burgueses opressores e oprimidos e consideramos nosso dever defender os segundos contra os primeiros. A burguesia dos países coloniais e semi-coloniais representa uma classe semi-dirigente e semi-oprimida.”
Um Estado não-operário e não-burguês
Leon Trotsky, novembro de 1937.

            Nessa guerra, a classe trabalhadora deveria defender incondicionalmente a nação oprimida da Líbia. Isso não significa apoiar as ações do regime Kadafi que fossem contra a classe trabalhadora, mas sim que a sua vitória militar contra um inimigo maior seria uma vitória para o povo líbio e vantajosa para o proletariado. Obviamente uma independência real da semicolônia somente será conseguida quando a classe trabalhadora tomar o poder e romper com o imperialismo. Mas ainda que limitada, uma vitória do ditador líbio contra o imperialismo seria um passo adiante nesse caminho, pois ao menos derrotaria um enorme obstáculo para a emancipação da classe trabalhadora. Como nós discutiremos melhor posteriormente, a tarefa dos revolucionários era defender o combate armado contra o Conselho Nacional de Transição e seus aliados imperialistas sem deixar de denunciar Kadafi, usando os métodos da classe operária e buscando a sua organização independente.

O que nos disseram as lideranças do PSTU? Obviamente a intervenção imperialista pegou esses senhores sem as calças. O que poderiam dizer aos seus próprios militantes e aos trabalhadores quando a sua “revolução” começou a receber apoio dos imperialismos através da OTAN, com bombardeios coordenados e treinamento militar? É demais sustentar que uma “revolução”, além de ser liderada pela burguesia, está sendo também apoiada pelo imperialismo. Em razão disso, foi necessário falsificar inteiramente a realidade.

Os líderes do PSTU aceitam formalmente que o apoio imperialista é uma contradição, mas não desenvolvem uma política coerente, não reconhecem que a intervenção imperialista mudou o caráter (que eles já enxergavam de maneira incorreta) dos rebeldes. Completamente confuso, o PSTU escreveu:

“A contradição é que, no terreno militar, existiu uma unidade de ação entre o imperialismo e as massas para derrubar Kadafi, mas com objetivos totalmente opostos: as massas querem libertar o país da opressão, mas o imperialismo quer deter a revolução para prosseguir o saque das riquezas líbias e do Oriente Médio.”

“Aqueles [nós] que dizemos ‘Otan não, fora Kadafi’, longe de neutralismo, deixamos clara nossa posição: estamos contra a intervenção imperialista e a favor de que a insurreição derrote Kadafi. Deixamos claro que estamos contra a intervenção imperialista, mas não somos neutros na guerra civil aberta, queremos que os rebeldes líbios não deixem nem rastro do regime pró-imperialista e tirano de Kadafi.”
Opinião Socialista 421, abril de 2011.

Não se pode simplesmente enumerar os combatentes e dizer “somos contra a OTAN, mas apoiamos os rebeldes” ignorando a relação que existe entre eles. Os marxistas não tomam posições diante de uma análise superficial da realidade. A OTAN não estava agindo de maneira concorrente, nem mesmo separada das tropas de CNT. Não havia uma disputa para ver quem derrubava Kadafi primeiro. Houve uma completa coordenação. Da mesma forma a guerra civil não seguiu em paralelo, como se a intervenção da OTAN fosse independente dos lados em luta. Ficou claro que a OTAN estava em profundo arranjo com o CNT.

“A mira da OTAN ficou mais precisa, disse um diplomata sênior, conforme os Estados Unidos estabeleceram uma vigilância a toda hora sobre as áreas decrescentes que as forças militares líbias ainda controlavam, usando drones [aviões não tripulados] Predator para detectar, rastrear e ocasionalmente atirar nessas forças. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha, França e outras nações implantaram forças especiais no solo dentro da Líbia para ajudar a treinar e armar os rebeldes, o diplomata e outro oficial disseram.”
Surveillance and Coordination With NATO Aided Rebels
The New York Times, 21 de agosto de 2011.

Os bombardeios da OTAN ocorreram para preparar o terreno das investidas terrestres do CNT. A OTAN apoiou e se coordenou com o Conselho para levá-lo à vitória sobre Trípoli e o restante do país. Através da sua direção pró-imperialista, os rebeldes passaram a ser nada mais do que a força armada na Líbia sob comando dos imperialismos. Dizer que está contra os bombardeios da OTAN dando apoio às suas tropas na superfície é uma contradição incrível. Se estivesse na Líbia, o PSTU seria uma ala esquerda do exército do CNT, que se oporia formalmente à OTAN, mas cumpriria um papel submetido aos interesses dos países imperialistas na prática.

A forma desenvolvida pela liderança do PSTU para justificar essa posição foi aprofundar as suas concepções sobre movimentos “objetivamente revolucionários” com lideranças reacionárias. Em um de seus artigos, o PSTU comparou a situação na Líbia às revoltas populares no Egito e na Tunísia para afirmar que “Definir a natureza de um movimento por sua direção é tão comum entre alguns setores da esquerda como alheio ao marxismo” [7]. Em outras palavras, que é “anti-marxista” levar em conta o fator da direção política de um movimento.

Para nós não se trata de negar que há setores populares (e mesmo alguns proletários) na base dos rebeldes. Nem mesmo de reconhecer que há pouco em comum entre a base dos rebeldes e os líderes do CNT. Mas sim que, no caso do Egito e da Tunísia, as lideranças burguesas manobraram as massas (com algum sucesso) em protestos de rua e ocupações de praça. Já na Líbia, a liderança se usou da base para tomar em suas mãos o poder no país junto com o apoio militar das nações imperialistas. Sem dúvida julgar um movimento apenas pela sua direção é anti-marxista, sem considerar quem são os indivíduos que compõem a base, quais são seus anseios e objetivos, ideologias, etc. Fazer isso impediria uma intervenção prática dos marxistas em qualquer processo. Mas da mesma forma é anti-marxista julgar um movimento apenas pelos anseios da base, sem considerar que existe no movimento uma ligação orgânica entre os membros e a liderança, nesse caso burguesa, que tomou o rumo dos acontecimentos e usou as bases para chegar ao poder.

Há uma diferença marcante entre intervir num movimento popular por demandas democráticas e melhorias sociais que tem ilusões numa liderança burguesa e “apoiar as massas” quando elas estão organizadas numa força armada lutando para colocar uma liderança burguesa no poder. Os trotskistas deveriam alertar aos trabalhadores para não lutarem sob comando de um Conselho que invariavelmente trairia as suas aspirações, que iria desarmar e assassinar a todos que forem contra os seus interesses. Colocar o CNT e a OTAN no poder era o único resultado possível de dar apoio a uma força armada que luta sob o comando deles.

Se amanhã a liderança egípcia de El-Baradei reunisse uma milícia, um racha do exército, e tomasse o poder da junta militar com apoio suficiente das massas, o PSTU iria enfaticamente apoiar esse movimento. Nós também nutrimos ódio à junta militar egípcia, mas achamos que ela deve ser substituída pela democracia proletária, não por outro governo burguês. Buscaríamos romper os trabalhadores de qualquer ilusão com El-Baradei e por isso não apoiaríamos esse movimento que o colocasse no poder, nem nenhum governo burguês que daí emergisse.

Não existe tomada do poder independente de (ou sem) liderança. Ao entrar em uma guerra civil, os lados em luta refletem sempre interesses de classe, ou posições diferentes dentro da mesma classe. Os rebeldes líbios não são um contingente de vanguarda proletária e nem a sua liderança burguesa pode levá-los a realizar uma revolução socialista. No caso líbio, a base não tem uma independência “revolucionária” contra a sua própria liderança burguesa reacionária. Os laços que unem a base à sua direção são moldados pela ideologia, e não uma mera formalidade.

Ao estarem iludidos pelo CNT, os setores populares dos rebeldes (sem esquecer que os rebeldes também incluem combatentes profissionais) agem segundo os interesses dessa liderança. Somente poderia ser diferente se houvesse uma transformação de consciência nesses setores, o que exige a presença (inexistente nesse caso) de um movimento operário forte liderado por um partido revolucionário. Por isso, é fundamental um chamado que se faz ausente nas publicações do PSTU: pela construção de um partido revolucionário de trabalhadores líbios!

Diferente do PSTU, um partido revolucionário na Líbia não confiaria numa suposta “objetividade revolucionária” de setores populares liderados pelo imperialismo e sim lutaria por consciência comunista no seio da classe trabalhadora. A necessidade de uma liderança revolucionária é o centro da afirmação trotskista de que a “crise de liderança proletária é a principal causa da miséria da humanidade”. Mas essa é uma lição que o morenismo e PSTU nunca aprenderam.

Ao “apoiar a base apesar da sua direção”, o PSTU está inventando uma manobra para justificar o seu método, que leva diretamente a apoiar uma liderança reacionária bancada pelo imperialismo. Uma coisa é intervir num movimento para tentar quebrar as ilusões dos setores proletários e populares, mas isso não significa apoiar as demandas incorretas das massas, inclusive quando elas apóiam um governo burguês. O PSTU tentou através de inúmeras insinuações dar a entender que o governo apoiado pelos rebeldes é um governo “popular”, que a sua força armada é “o povo em armas”. Isso obscurece o fato de que o governo sediado em Bengasi é um governo burguês apoiado pelo imperialismo. Não existe “povo em armas” num sentido de duplo poder operário. O “povo” nesse caso está sob controle de uma força burguesa. O PSTU ignora isso para surfar na onda de popularidade dos rebeldes.

Os movimentos não devem ser analisados pelas ilusões (ainda que sejam aspirações justas) da sua base. Se grande parte da população líbia, iludida pelo CNT, acha que o caminho está em apoiar esse Conselho, é tarefa dos marxistas quebrar as suas ilusões com tal liderança reacionária e mostrar a necessidade de um partido revolucionário e da luta independente da classe trabalhadora. Ignorando que a base armada é nesse caso uma ferramenta nas mãos da burguesia reacionária aliada aos imperialistas, os líderes do PSTU puseram na cabeça que se trata de uma “revolução” e nada pode convencê-los do contrário. Assim, são levados a apoiar o lado errado da guerra. O PSTU chegou a proclamar a vitória da OTAN com o CNT em Trípoli como uma “grande vitória do povo líbio”.

Assim, as lideranças do PSTU abandonam completamente o método marxista de análise das forças de classe em luta, sua trajetória e sua transformação dialética, suas lideranças, etc. em troca de um apoio incondicional à “revolução”… apoiada pela OTAN. Ao fazerem isso, demonstram com clareza que preferem seguir cegamente um fenômeno reacionário que tem popularidade, ao invés de buscarem se posicionar corretamente para atrair os trabalhadores para uma perspectiva socialista. Fazendo isso, afastam a vanguarda trotskista de uma compreensão correta da sua tarefa. Ao invés de defenderem a nação oprimida e combaterem a investida do CNT/OTAN, os dirigentes oportunistas do PSTU levam os membros do seu partido a se considerarem parte da investida dos rebeldes, pintada como uma “revolução” inexistente nesse momento. Já as insinuações segundo as quais a intervenção imperialista foi para “desmobilizar os rebeldes”, não passam de cinismo barato, em completo desacordo com a realidade.

Como defender a Líbia sem capitular a Kadafi 

            A Fração Trotskista/LER-QI reconheceu muitas das contradições na posição do PSTU quando ocorreu a vitória do CNT/OTAN no fim de setembro. Em inúmeras polêmicas recentes, ela explicitou que o cerne da questão – a saber, o fato de que liderados pelo CNT, os rebeldes eram uma força armada que cumpriu objetivos reacionários junto ao imperialismo – era ignorado pelo PSTU. Da mesma forma ela apontou que os rebeldes haviam, pela dinâmica dos eventos, se tornado, na prática, a força terrestre da OTAN:

“Entretanto, em fins de fevereiro se constitui em Bengasi o Conselho Nacional de Transição, que reúne quarenta integrantes, dentre os quais muitos ex-membros do próprio governo de Kadafi (…) Isso marca um ponto de inflexão crucial para o desenvolvimento e a mudança do caráter do processo líbio. A partir de então, a direção burguesa do CNT passaria paulatinamente a tornar os rebeldes reféns de sua política, reprimindo a formação de brigadas independentes, levando a mobilização ao beco sem saída do chamado à OTAN para intervir no país.”

“Novamente aqui vemos a operação lógica que a LIT [organização internacional liderada pelo PSTU] está acostumada a fazer: o reconhecimento meramente formal das contradições existentes, e a ruptura da dialética como fundamento de uma apreciação marxista. A dialética existente na Líbia é que apesar de haver caído uma ditadura sangrenta, isso não se transformou em uma vitória para as massas, posto que está sendo capitalizado pelos imperialismo e pelo CNT. Esta conclusão é a derivação do fato de que não se pode separar a queda da ditadura da maneira como ela se deu. E não aconteceu a partir da ação independente das massas, mas sob o apoio da OTAN. A derrubada de uma ditadura não pode ser considerada em si um ‘tremendo triunfo para as massas’, se quem se beneficia são os imperialismos.”

“A preponderância da ação imperialista não foi um ‘detalhe’, como quer fazer parecer a LIT: ela negou a possibilidade de uma atuação independente das massas, fazendo com que os ‘rebeldes’ atuassem enquanto ‘tropa terrestre’ da intervenção aérea das potências, seguindo seus planos (…)”

            Mas apesar disso, a posição da Fração Trotskista no conflito, que passou a ter um caráter imperialista com a intervenção militar da OTAN em 20 de março (um mês após o início da guerra civil), foi combater militarmente os dois lados. A FT não priorizou o combate ao bloco do CNT com a OTAN e está ausente das suas declarações e artigos qualquer perspectiva de estar do mesmo lado militar que Kadafi. A primeira declaração da FT após o início da intervenção imperialista afirmou:

“Os marxistas revolucionários (sic) colocamos claramente que o imperialismo não intervém para que triunfe o levantamento popular contra Kadafi, senão para tratar de impor um governo títere a serviço dos seus interesses, como fez trás a invasão no Afeganistão e no Iraque. Tão pouco a saída é, como colocou Chávez e outros ‘progressistas’, se subordinar a Kadafi, que não só se transformou em um ditador pró-imperialista, senão que está em uma guerra contrarrevolucionária para esmagar o levantamento popular que colocou em questão seu domínio, como  parte dos levantamentos da região. A única saída progressista para o povo líbio é lutar energicamente tanto contra a intervenção imperialista como para derrotar a reacionária ditadura de Kadafi.”
23 de março de 2011

Ao fim, essa declaração resume a sua perspectiva com a consigna “Abaixo a intervenção militar imperialista na Líbia! Abaixo Kadafi!”. Na hora de determinar o lado correto no conflito, parece que a Fração Trotskista resolveu adotar a tese segundo a qual os rebeldes são um “levantamento popular” e parte dos “outros processos da região”. A crítica a Chávez só faria sentido se fosse direcionada ao fato de o Bonaparte venezuelano sair por aí aos namoricos com Kadafi dizendo que “para a Líbia, Kadafi é o que Bolívar é para nós”. Mas isso não significa que os trotskistas não tenham um lado a tomar no conflito. Num confronto, como a LER-QI reconheceu se tratar, entre nações imperialistas e um país oprimido (onde os rebeldes são a “tropa terrestre” do imperialismo), a posição da Quarta Internacional não era nem de se subordinar à burguesia nacional e nem igualar os dois lados em luta:

“Ao mesmo tempo em que sustenta um país colonial ou a URSS na guerra, o proletariado não deve solidarizar-se no que quer que seja com o governo burguês do país colonial nem com a burocracia Termidoriana da URSS. Ao contrário, deve manter sua completa independência política em relação a ambos. Ajudando uma guerra justa e progressiva, o proletariado revolucionário conquista as simpatias dos trabalhadores das colônias e da URSS e, deste modo, torna mais firme a autoridade e a influência da IV Internacional, podendo colaborar melhor na derrubada do governo burguês do país colonial, da burocracia reacionária da URSS.”
Programa de Transição, setembro de 1938.

            De forma alguma os revolucionários poderiam colocar no mesmo patamar combater Kadafi e os imperialismos. Se, como Trotsky colocou (e a LER-QI cita frequentemente) a guerra é a continuação da política por outros meios, então isso levaria a crer que, para a LER-QI, o imperialismo e a burguesia da Líbia são inimigos do mesmo calibre. Isso é alheio ao trotskismo. Como a LER-QI reconhece, a intervenção da OTAN atenta contra uma nação subjugada. Portanto, diferente da posição da Fração Trotskista, essa nação deve ser defendida pelos revolucionários apesar do seu regime ditatorial brutal, pois é interesse dos trabalhadores livrarem a Líbia do CNT/OTAN. Numa situação assim, os revolucionários devem se colocar do mesmo lado da barricada que o regime do ditador líbio (que pelos seus próprios interesses burgueses se vê combatendo o imperialismo) sem lhe dar a menor confiança, e lutar através dos métodos históricos da classe proletária: greves, ocupações de fábrica, destacamentos proletários independentes.

            “Mas isso não significa capitular a Kadafi?” podem questionar. Capitular a Kadafi seria assumir compromissos com o seu regime decrépito. Seria se abster das formas proletárias de luta e se unir ao seu exército burguês, seria elogiar o seu papel, sua política ou deixar de denunciá-lo como o maior culpado pela intervenção da OTAN e pelo seu regime ditatorial burguês. Não é isso que estamos colocando. Os revolucionários fariam todo o possível para polarizar a classe trabalhadora, com o objetivo de levá-la a conclusões revolucionárias, levantando demandas transitórias e democráticas contra seu governo. Os métodos de agitação e propaganda buscariam mostrar a necessidade não apenas de vencer o CNT/OTAN, mas de forjar uma democracia proletária contra Kadafi. No entanto, no campo militar, o combate se daria lado a lado com as tropas kadafistas, buscando vencer o inimigo principal imperialista. Uma forma de resumir essa perspectiva é “Defender a Líbia! Derrotar o CNT/OTAN! Nenhuma confiança no ditador Kadafi!” Uma vitória contra a OTAN seria um grande impulso para os povos oprimidos do mundo. De imediato, levantaria rebeliões nos países imperialistas que realizam a intervenção na Líbia. Os trabalhadores franceses, por exemplo, que desde 2010 vem travando lutas encarniçadas contra os ataques de Sarkozy, veriam na humilhação militar das tropas francesas a oportunidade perfeita de avançar contra este governo que ataca os trabalhadores dentro e fora das suas fronteiras.

No momento da intervenção, a única força social combatendo o imperialismo na Líbia era o governo de Kadafi. Numa situação como essa, não era possível realizar uma frente única no sentido clássico de “bater juntos” contra o imperialismo e “marchar separados” para objetivos diferentes. Os revolucionários devem formar uma frente única (mesmo com setores burgueses) sempre que for do interesse da classe trabalhadora, como era esse caso. Mas a ausência de uma organização proletária de peso, por culpa das décadas de repressão ao movimento operário pelo próprio Kadafi, impediu essa possibilidade. De qualquer forma, ainda somos pela vitória militar das forças de Kadafi contra o CNT/OTAN, mas dizemos em alto e bom som que a principal tarefa para o proletariado líbio na guerra contra o CNT/OTAN era armar-se em destacamentos politicamente independentes de Kadafi e lutar pela expropriação das empresas estrangeiras e nacionais sob controle dos trabalhadores, sem indenização. Poderia ocorrer até mesmo uma colaboração tática com os exércitos do ditador, mas sem nenhuma subordinação política, buscando sempre os interesses dos trabalhadores, jamais os da burguesia líbia. Ao mesmo tempo levantaríamos contra Kadafi demandas pelas liberdades democráticas suprimidas pelo ditador, como a liberdade de imprensa, organização política e uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal.

Não importa o quão assassino e corrupto é um governo burguês numa nação oprimida, os revolucionários estão do mesmo lado militar que eles se estes se confrontam com o imperialismo, sem lhes dar um milímetro de confiança ou de respaldo político. Para nós não se trata de discutir qual governo é mais tirano, se o governo de Kadafi ou Obama, Cameron e Sarkozy e sim que a vitória da Líbia é do interesse dos trabalhadores e nações oprimidas do mundo, já que o papel dos Estados imperialistas é infinitamente mais perverso (e um obstáculo muito maior ao socialismo). Nós tomamos o lado militar de todos os setores (mesmo os mais reacionários da burguesia) que estejam lutando contra o imperialismo, não importa o quão sejam tiranos ou impopulares. Certa vez em uma entrevista, Trotsky disse:

“Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’ contra a Inglaterra ‘democrática’. Por que? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse ela colocaria um outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês.”
Entrevista de Leon Trotsky a Mateo Fossa, setembro de 1938.

Obviamente a intervenção imperialista se somou a uma situação de guerra civil precedente. A desculpa colocada pela Fração Trotskista é que Kadafi estava agindo de maneira contra-revolucionária, suprimindo um “levante popular”. Em primeiro lugar, isso é uma influência da política incorreta do PSTU e de outros na esquerda, como o influente Partido Obrero argentino (o maior partido reivindicando o trotskismo nesse país, onde está localizada a principal seção da FT) com relação aos rebeldes. Ela revela o quão a política da FT andava gravitando em torno de concepções oportunistas. A corrente tomou o lado dos levantes contra Kadafi desde a tomada de Bengasi, embora reconhecendo hoje que com o domínio do CNT, os rebeldes mudaram de natureza, embora não haja clareza sob quando essa transformação tenha se dado qualitativamente.

Num artigo publicado em 28 de março, uma semana após o início da intervenção da OTAN, a FT mostra que ainda não tinha clareza se os rebeldes eram um movimento popular independente da burguesia ou a força armada do CNT/OTAN e dizem que ambos os caminhos eram possíveis, elogiando o papel inicial dos rebeldes.

“Se for pela via da OTAN e da direção burguesa do CNT, a heróica ofensiva das massas e dos trabalhadores líbios será usurpada (…). Se for pela atuação independente da classe trabalhadora e do povo, seria um avanço importantíssimo para todos os processos parte da primavera árabe, e para os trabalhadores e povos de todo o mundo.”
“Viemos desde o início do conflito defendendo que a única saída de fundo capaz de responder aos anseios das massas e trabalhadores líbios, que heroicamente se levantaram contra a ditadura de Gadafi, é confiar em suas próprias forças, e atuar de maneira independente de quaisquer direções burguesas da CNT.”

No entanto, em setembro, a LER-QI parecia não ter dúvidas de que desde antes da intervenção imperialista os rebeldes já não eram uma força progressiva, nem um movimento “em disputa” que pudesse ser preenchido com qualquer conteúdo, levando em conta inclusive a opressão exercida pelos rebeldes contra os negros da Líbia.

“Havia uma possibilidade de que o levante popular iniciado em Bengasi se estendesse e derrubasse a ditadura de Kadafi por uma ação independente do movimento de massas, que nos primeiros dias passou a se armar espontaneamente. Mas essa possibilidade foi abortada. Rapidamente, o CNT, sob o qual passaram a ter crescente peso setores burgueses, lideranças das tribos opositoras, ministros e chefes militares que rompiam com Kadafi, tratou de conter a espontaneidade dos primeiros dias de levante e centralizar milícias sob sua completa e rigorosa direção. (…) O caráter reacionário rapidamente assumido pelo CNT, contraposto pelo vértice a qualquer ação emancipatória genuína das massas líbias, se demonstra não só em sua política de completa subordinação aos ditames do imperialismo, mas também em sua nefasta política em relação aos 2 milhões de negros imigrantes que compunham a classe trabalhadora no país.”

Discordamos da certeza com que a LER-QI afirma que os primeiros dias os movimento dos rebeldes foi “espontâneo”, devido à pouca quantidade de informações disponíveis. Mas de qualquer forma, isso demonstra que a LER-QI hoje concorda que, no mínimo “rapidamente” após a tomada de Bengasi, não havia nenhum movimento independente na Líbia, ao não ser que possamos falar de um “levante popular” submetido ao CNT e que desde então perseguia os imigrantes negros.

Sem decidir se o que ocorria no país era um levante popular (até mesmo “processo revolucionário” como descreveu em algumas declarações) ou uma guerra civil dominada por setores da burguesia, quando se tornou necessário combater o imperialismo que tomava um dos lados, a FT estava a voltas com um “levante popular” que era uma força armada do CNT. Assim, não levou em conta as consequências de um posicionamento correto com relação a Kadafi e continuou levantando a “derrubada revolucionária” do tirano. Mas quem faria isso naquele momento? Os rebeldes?

Somos contra a palavra de ordem “Abaixo Kadafi” em face da intervenção imperialista, precisamente porque naquele momento a única força existente buscando derrotar Kadafi era o CNT/OTAN. Obviamente a derrubada revolucionária de Kadafi era uma perspectiva estratégica para a classe trabalhadora, que deveria ser preparada para essa tarefa mesmo enquanto combatia o imperialismo. Mas usar essa consigna quando o ditador era atacado pelos rebeldes dirigidos pela OTAN só pode gerar confusão. Nesse caso, mostra que a Fração Trotskista ainda não tinha assimilado com precisão o que eram os rebeldes e, apesar de não ter apoiado a vitória do CNT/OTAN quando ela se deu, foi incompetente para defender a Líbia contra o imperialismo quando se deu a intervenção e não tomou lado nenhum na barricada.

Se a Fração Trotskista/LER-QI concorda que os rebeldes eram um movimento “capitalizado pelo CNT”, “tropa terrestre” das potências e que quem se “beneficia da sua vitória são os imperialismos”, então porque não estavam do outro lado da barricada, ainda que hegemonizada pela ditadura de Kadafi, defendendo a Líbia ao mesmo tempo em que denunciavam o regime do tirano? Em razão dessa vacilação, a Fração Trotskista não defendeu na prática o princípio bolchevique de defesa dos povos oprimidos contra os países opressores, temendo assim ir contra um “levante popular” inexistente.

Os motivos da Fração Trotskista


Nesse momento, muitos dos dirigentes da FT podem se fazer de desentendidos sobre qualquer possibilidade de estar do mesmo lado militar que Kadafi sem capitular a ele. Mas quando os Estados Unidos ocuparam o Iraque em 2003, a LER-QI foi bastante capaz de explicar essa perspectiva. A situação na Líbia hoje não é idêntica ao Iraque de 2003 (quando se tratou de uma ocupação terrestre), mas estava colocado o mesmo paradigma: defender a derrota dos EUA sem ter ilusões em Saddam Hussein e manter o combate político contra ele, preparando a consciência e a moral da classe para tomar o poder uma vez que o imperialismo fosse vencido.

“Por isso, o ponto de partida do programa revolucionário é definir que a guerra do Iraque é uma clara guerra de agressão imperialista contra uma nação oprimida. (…) Toda guerra de defesa e libertação nacional de uma nação oprimida é, para os revolucionários, uma guerra justa e legítima, como foi – por exemplo – a luta pela libertação nacional da Argélia contra os colonialistas franceses ou a guerra do Vietnã. Neste tipo de guerras, os revolucionários nos localizamos no campo militar dos países semicoloniais, independentemente do caráter do regime que os governe porque o triunfo do país imperialista significará duplas correntes para o povo da nação semicolonial, e padecimentos piores ainda do que com sua ditadura doméstica. No caso do Iraque nos localizávamos pela derrota militar do imperialismo norte-americano e de sua coalizão, apesar do caráter reacionário e ditatorial de Saddam Hussein.”

Essa posição da Fração Trotskista na Líbia, deliberadamente vaga e incoerente, é o reflexo da aproximação centrista que a corrente tem com partidos ditos trotskistas maiores: o PSTU no Brasil e o Partido Obrero na Argentina (locais em que estão suas duas maiores seções, o PTS e a LER-QI). O PO e o PSTU foram os campeões em saudar os rebeldes de Bengasi como “revolucionários” [8]. Obviamente a busca incessante que a Fração Trotskista realiza para formar blocos e estar politicamente próxima dos dois partidos tem efeitos na consciência dos seus membros e liderança. As posições do PO e do PSTU, ainda que recebam críticas, tem uma enorme influência na sua formulação, que nem sempre, como este caso demonstra, passa pelo filtro de uma visão crítica.

Nas últimas eleições burguesas argentinas, por exemplo, o Partido de los Trabajadores por el Socialismo (PTS) formou um bloco eleitoral com o Partido Obrero e outras organizações de esquerda (inclusive o PSTU argentino) – a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT). Essa foi a realização de uma política que o PTS vinha buscando há muitos anos, mas que só nas últimas eleições o PO aceitou [9]. Em um dos artigos de seu jornal, a LER-QI, comentando sobre o bloco formado pelos seus camaradas argentinos fez a seguinte caracterização:

“A FIT se coloca também como uma alternativa de esquerda classista e revolucionária em nível internacional. Entre as outras experiências da esquerda, como o NPA francês, o Respect inglês, a Frente de Esquerda em Portugal, ou mesmo a Frente de Esquerda (que se formou no Brasil em 2006 e 2008) a FIT argentina é a única que não mistura os interesses dos trabalhadores com nenhuma variante burguesa ou reformista. Que coloca seu centro na organização dos trabalhadores, em aliança com a juventude e os intelectuais de esquerda, que proclama abertamente sua posição revolucionária.”

            Está claro que a FIT argentina esteve muito à esquerda de formações eleitorais de colaboração de classes: ela era composta somente por partidos da classe trabalhadora. Também se posicionou melhor que formações dominantemente reformistas ao não defender políticas econômicas presas aos limites do capitalismo. Porém, existem posições localizadas entre o reformismo e uma consistente perspectiva revolucionária. Como explicar o fato de que o PO, o maior partido em um bloco “revolucionário” que “não capitula a nenhuma variante burguesa” tenha apoiado o lado do imperialismo nas trincheiras líbias, além de outras posições centristas ao longo de sua história, como ter apoiado a frente popular burguesa de Evo Morales (posições essas que a própria FT critica)?

Ainda mais importante: porque a Fração Trotskista deve seguir fazendo os seus numerosos esforços de construção internacional, recrutar militantes, ter publicações periódicas próprias, etc. se um bloco com o Partido Obrero é “revolucionário”? Não faria sentido simplesmente fundir com ele e dar origem a bloco permanente, um partido “revolucionário” maior?

Da mesma forma, a LER-QI no Brasil busca blocos eleitorais com o PSTU, faz chamados para que o partido cumpra um papel classista ou assuma a liderança em processos de mobilização. Por exemplo, no texto citado acima, fez um chamado ao PSTU para que “aprendesse” com seus camaradas argentinos – ou seja, propôs um bloco eleitoral com o PSTU nas próximas eleições burguesas no Brasil. Tais ações, que a liderança da LER-QI rotula como “táticas” estão submetidas não a uma estratégia revolucionária independente do centrismo, mas uma estratégia de quem deseja ser um flanco esquerdo do PSTU e isso acaba levando (ainda que esta não seja uma intenção premeditada) a uma adaptação política a esse partido.

Qual seria, por exemplo, a posição desse bloco da LER-QI com o PSTU sobre questões chave da luta de classes como as “greves” policiais, o Estado cubano ou a própria guerra imperialista sobre a Líbia, onde possuem posições divergentes? A liderança da Fração Trotskista, perseguindo uma unidade política com outras organizações que já rasgaram com muito mais vigor os princípios bolcheviques, é incapaz de uma perspectiva revolucionária. Os militantes críticos da Fração Trotskista (LER-QI) devem analisar de maneira séria a política da sua organização. As posições traiçoeiras, se não combatidas, certamente abrirão precedentes. Nesse caso, a posição do grupo em uma questão tão básica pode gerar efeitos imprevisíveis no futuro. Contra essa adaptação, levantamos o princípio imortal de Lenin e Trotsky de defesa incondicional dos povos oprimidos contra o imperialismo.

Notas

[1] Para críticas a outras posições da esquerda frente aos eventos aqui analisados, conferir Sobre a Vitória do Bloco CNT/OTAN na Líbia e o Centrismo do Coletivo Lenin, de setembro de 2011 (sobre apoiar ou não o CNT antes da investida imperialista) e Um Tirano Sem Aspas (sobre a capitulação política a Kadafi), de novembro de 2011.

[2] Em 8 de fevereiro de 2011, após mais de um mês da ocupação da Praça da Libertação, entraram em greve 6 mil trabalhadores do canal de Suez, em diferentes companhias e várias cidades. Nos dias que se seguiram, outras centenas de fábricas e plantas por todo o país cruzaram os braços, totalizando milhares de grevistas por todo o Egito. Os trabalhadores de praticamente todas as categorias, usando o método da greve geral, deram o golpe fatal e foram a principal força social na derrubada do ditador egípcio Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro. Apesar disso, os proletários não assumiram um papel de liderança política no movimento, o que levou a manutenção de muitos aparatos da ditadura e mesmo do capitalismo.
  
[3] Um apanhado dos relatos divulgados por diferentes jornais pode ser encontrado na página Firedoglake(em inglês).


[5] Central na teoria de Nahuel Moreno, uma “revolução de fevereiro” seria caracterizada enquanto uma “revolução socialista” onde as massas trabalhadoras não são lideradas por partidos revolucionários (nesse caso são lideradas até mesmo pela burguesia) e não possuiriam consciência marxista. Para os morenistas, a sua principal tarefa é empurrar os partidos oportunistas para cumprirem tal função, ao invés de lutarem para desmascarar os líderes traidores das massas e ganhar os trabalhadores para uma perspectiva de oposição revolucionária (conferir MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX. 1984). Isso leva os morenistas a uma série de adaptações às lideranças existentes no movimento e a enxergarem transformações “revolucionárias” onde elas não existiram. Frequentemente a “revolução de fevereiro” é identificada como uma revolução democrática que pode ser liderada por partidos burgueses, aos quais os morenistas estão prontos para apoiar.

[6] Conferir Líbia: França já assegurou um terço do petróleo futuro – Expresso, de 22 de agosto de 2011.

[7] Citado de Todo apoio ao povo líbio contra Kadafi, mas não à intervenção da Otan em Opinião Socialista 421, de abril de 2011.

[8] O Partido Obrero encerrou um artigo de 23 de março dizendo: “Nossa consigna é: fora Otan; armas para os revolucionários líbios; pela extensão e aprofundamento da revolução árabe. Desejamos que o Oriente Médio se converta na tumba do imperialismo mundial”.

[9] Nas duas eleições burguesas anteriores, o PTS havia conformado uma frente com a Esquerda Socialista (IS), corrente ligada à CST/PSOL brasileira e vinha fazendo chamados ao PO, que recusou. Nas eleições de 2010, foi posta em prática uma legislação eleitoral que proibiu a participação de chapas com menos que 1,5% de apoio nas primárias na disputa para a presidência. Isso acabou levando o PO a conformar a FIT para poder participar do processo eleitoral. Apesar de combatermos essa legislação reacionária, direcionada claramente aos partidos de esquerda, ela por si só não justifica a busca do PTS pela formação do bloco com o Partido Obrero.

Polêmica com a LBI sobre a questão Líbia

Tabu da LBI sobre o Caráter Ditatorial de Kadafi
Um Tirano sem Aspas

Por Rodolfo Kaleb
Novembro de 2011

Recentemente a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI) apresentou em uma enorme coletânea de artigos, publicados sob o título de “Teses trotskistas acerca da guerra imperialista contra a Líbia”, uma perspectiva formalmente correta sobre o conflito entre as tropas leais a Muammar Kadafi e os rebeldes líbios liderados pelo Conselho Nacional de Transição, com apoio armado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (principal aliança bélica das burguesias imperialistas). Nesses artigos, o grupo também combateu corretamente aqueles que tomam o lado do movimento liderado pelo CNT e apoiado pela OTAN, mostrando que tais correntes deixam de lado a tarefa de defender a nação oprimida da Líbia contra os imperialismos, chegando até mesmo ao ponto de chamar a vitória dos rebeldes de “revolução” (para um debate com essas posições, leia nosso artigo De que Lado da Trincheira?). Em uma seção intitulada “Pela vitória militar de Kadafi sobre a corja imperialista da ONU e da OTAN”, a LBI escreveu:

Em resposta a esses renegados revisionistas [as correntes que apóiam os rebeldes], os marxistas revolucionários sabem nadar contra a maré pró-imperialista que varre a esquerda e convocam publicamente a formação de uma frente única militar com Kadaffi contra a intervenção imperialista, sem depositar nenhuma confiança e com total independência em relação ao governo nacionalista burguês líbio.”

Essa é a afirmação formalmente correta de que a tarefa imediata na Líbia sob a intervenção da OTAN é combater o bloco dos imperialistas com o CNT sem capitular politicamente ao regime burguês de Kadafi. Manter-se independente de Kadafi e de seus aliados em termos político-organizativos não é um mero detalhe para os revolucionários. Nossa principal perspectiva é a de utilizar um programa anticapitalista como forma de apontar a necessidade dos trabalhadores tomarem o poder em suas mãos e construírem uma sociedade radicalmente diferente – o que seria impossível fazer se capitulássemos politicamente à burguesia e àqueles que se adaptam ao capitalismo de uma forma ou de outra.

Assim, a defesa da Líbia contra os imperialismos é uma tarefa política importante, mas que de forma alguma deve obscurecer uma campanha implacável de denúncias contra o regime de Kadafi e o nacionalismo burguês, mostrando à classe trabalhadora que ela tem interesses absolutamente distintos daqueles de Kadafi ou de quaisquer outros setores burgueses.

De um ponto de vista estratégico, demarcar a linha de classe é tão essencial para a vitória do proletariado quanto estar do lado certo de uma guerra contra o imperialismo. Quantos não foram aqueles (dentre os quais Hugo Chávez e diversos outros apologistas de Kadafi) que estiveram do lado certo da barricada na guerra da Líbia pelos seus próprios interesses burgueses? Ao terem semeado confiança em Kadafi, eles foram, para propósitos revolucionários, tão inúteis quanto aqueles que estiveram do lado errado, semeando ilusões em um movimento liderado pela burguesia tribal reacionária e apoiado pela OTAN. 


Nesse sentido, durante a intervenção da OTAN, a perspectiva da LBI com relação às demandas democráticas a serem levantadas pelo proletariado em uma ditadura burguesa como a da Líbia foram completamente diferentes daquelas tarefas estabelecidas pela Quarta Internacional liderada por Trotsky. Enquanto criticava corretamente os líderes tribais do CNT e os imperialistas, a LBI escreveu:

Os chacais imperiais como Obama, Sarkozy e Cameron já salivam o sangue assassino e exigem que o ‘ditador’ deixe o poder imediatamente, enquanto prosseguem os maiores bombardeios aéreos que a humanidade já presenciou em toda sua história.”
Resistência Líbia, site da LBI, 22 de Agosto.

Na Líbia, logo os apoiadores do antigo monarca Idris, apeado do governo pelos coronéis em 69, foram a ponta de lança inicial para fazer eclodir o suposto movimento de massas contra o ‘tirano sanguinário’ Muammar Kadaffi (…) Não demorou muito, os ‘rebelados’ contra o caudilho nacionalista já dispunham de sofisticadas armas pesadas que passaram a apontar contra o próprio povo líbio que insistia em permanecer ao lado da ‘ditadura sanguinária’ de Kadaffi.”

Em primeiro lugar, não existe “o povo líbio”, como algo monolítico, apoiando Kadafi. Obviamente Kadafi tinha apoiadores entre as classes populares. Mas também claramente o tinham os rebeldes, cuja base (diferente da liderança burguesa reacionária) é policlassista e possui mesmo alguns setores proletários. Em segundo lugar, as aspas colocadas pela LBI nesse trecho são absolutamente desnecessárias. Acaso Kadafi não era um ditador sanguinário? Parece que não para a LBI. A corrente é incapaz de afirmar o caráter ditatorial de Kadafi em qualquer parte desse ou dos outros textos publicados sobre a Líbia. Em um outro artigo da sua coletânea, a LBI diz que a acusação de “ditador” contra Kadafi não passa de “cantilena” (tática de propaganda) da oposição imperialista, “a mesma usada contra Chávez hoje”.

Obviamente não pautamos nossa posição na guerra imperialista com base no caráter do regime kadafista, e sim pelo fato de que este estava defendendo (por seus próprios interesses) um país semicolonial contra vários países imperialistas. Por mais sanguinário que tenha sido, sua opressão não pode ser comparada com a dos imperialistas. Como explicou Trotsky, a vitória dos imperialismos significa a imposição de duplas correntes aprisionando o povo líbio. Também não conferimos a menor autoridade ao discurso “democrático” dos imperialistas Obama, Sarkozy, Cameron e companhia, responsáveis pelas mortes de dezenas de milhares de líbios desde que se iniciaram os bombardeios.

Mas isso não nos impede de denunciar o caráter tirano de Kadafi e de seu regime. De fato, ele é o maior culpado pelo fato de o movimento dos trabalhadores na Líbia ser inexpressivo, senão inexistente:

Todos os outros partidos políticos foram banidos. Sindicatos foram incorporados à União Socialista Árabe [partido de Kadafi] e as greves proibidas. A imprensa, já submetida à censura, foi oficialmente alistada em 1972 como um agente da revolução [dos coronéis de 1969] [sic].”
Helen Chapin Metz. Libya: A Country Study. Washington: GPO for the Library of Congress, 1987.

As proibições à liberdade de imprensa e de organização sindical e de partidos políticos da classe trabalhadora, aplicadas por Kadafi por quase 40 anos, desprepararam o proletariado para qualquer forma de resistência. Também a ausência de qualquer experiência democrática na Líbia (desde antes de Kadafi e que ele manteve durante todo o seu governo), contribuiu para que ganhasse influência entre a população a propaganda do CNT/OTAN sobre a democracia burguesa para justificar o seu massacre.

Enquanto na Venezuela de Chávez essas liberdades democráticas existem e o “Bonaparte do século XXI” tem repetidamente recebido aprovação eleitoral para manter seu governo, na Líbia as acusações de ditadura são mais do que “cantilena”. Diante disso, as demandas democráticas cumpririam um papel importante em preparar politicamente os trabalhadores contra o ditador (sem aspas) líbio. No documento de fundação da Quarta Internacional há uma seção sobre o importante papel suplementar das demandas democráticas nos países capitalistas atrasados, que diz:

É impossível rejeitar pura e simplesmente o programa democrático: é necessário que as próprias massas ultrapassem este programa na luta. A palavra de ordem de Assembléia Nacional (ou Constituinte) conserva todo seu valor em países como a China ou a Índia. (…) É necessário, antes de tudo, armar os operários com esse programa democrático. Somente eles poderão levantar e reunir os camponeses. Baseado no programa democrático e revolucionário é necessário opor os operários à burguesia ‘nacional’.”
Programa de Transição, setembro de 1938.

Ao mesmo tempo em que combatesse o bloco CNT/OTAN com destacamentos de trabalhadores, um partido revolucionário na Líbia levantaria contra Kadafi a demanda de Expropriação sob controle operário das empresas imperialistas e nacionais, sem indenização para desmascarar o conteúdo burguês do governo de Trípoli. Também seria essencial para mobilizar os trabalhadores, usar as palavras de ordem democráticas de Liberdade de imprensa, de organização sindical e partidária! Assembléia Constituinte eleita por sufrágio universal!

A LBI fez várias críticas ao caráter burguês e de colaboração com o imperialismo de Kadafi, mas ignorou estas importantes demandas contra o seu caráter ditatorial. Essa omissão fica ainda mais evidente quando percebemos que não é levantada sequer uma demanda democrática contra Kadafi nas 80 páginas do seu livreto! Assim, a LBI mostrou que por trás da sua linha formal, nutria ilusões com o regime líbio. Em igual proporção, falharia na preparação dos trabalhadores para romper politicamente com esta ditadura burguesa. Outro efeito colateral seria lançar parte dos trabalhadores que se opusessem a Kadafi nos braços da reação tribal, que reconhece o caráter ditatorial de Kadafi ao mesmo tempo em que demagogicamente defende uma “democracia” burguesa inspirada pela lei islâmica e sob os escombros de milhares de corpos humanos dizimados pelo imperialismo.

Quebrar as ilusões com o regime burguês da Líbia e buscar conquistas democráticas e sociais com a perspectiva de levar os trabalhadores ao poder deveria permanecer sendo o objetivo dos revolucionários mesmo enquanto combatiam o maior inimigo dos povos, o imperialismo. Nisso consistia a “total independência política” com relação ao decrépito regime de Kadafi, que a LBI deixou de lado.

Mudança de Data do Ato Contra a Agressão Imperialista à Líbia

Há alguns dias atrás divulgamos em nosso blog o Ato Nacional Contra a Agressão Imperialista à Líbia, um ato nacional em solidariedade ao povo líbio, que vem sofrendo constantes agressões militares por parte do bloco CNT/OTAN, que busca recolonizar o país e melhor explorar seu proletariado em benefício das potências imperialistas. Encaramos como tarefa dos revolucionários a denúncia desses ataques e a defesa da soberania do povo líbio, o que passa pela defesa militar do país contra as agressões imperialistas.
Para nós, essa defesa inclui não só uma aliança militar com a resistência líbia, defensora do antigo regime de Kadafi, como também a denúncia política desse regime ditatorial que, ao reprimir a classe trabalhadora por décadas, fez com que esta não pudesse responder a altura à agressão imperialista devido à inexistência de um forte e organizado movimento operário.

Avisamos aos leitores e simpatizantes que a data do protesto foi alterada para o dia 17 de novembro. As organizações envolvidas avaliaram ser melhor alterar a data devido à convocação, por parte dos governos municipais e estaduais, de uma manifestação para o mesmo dia, relacionada à divisão dos royalties do petróleo.

Data: 17 de Novembro
Horário:  16 horas
Local: Em frente ao Consulado da França (principal potência por trás da empreitada da OTAN). Avenida Presidente Antônio Carlos, 58 – Centro do Rio de Janeiro. 

Para saber mais sobre a posição do Reagrupamento Revolucionário sobre a questão líbia, confira Sobre a Vitória do Bloco CNT/OTAN na Líbia e o Centrismo do Coletivo Lenin.

Liga Bolchevique Internacionalista Sugarcoats Qaddafi

A Tyrant Without the Quotation Marks

Liga Bolchevique Internacionalista Sugarcoats Qaddafi

By Rodolfo Kaleb, November 2011

A rather thick collection of documents has recently been published in Brazil by the Liga Bolchevique Internacionalista titled “Trotskyist Theses on the Imperialist War on Libya”. The collection is of interest as, at first glance, the LBI takes a formally correct position on the key issue in the war which many others on the left simply failed, which side to take. The collection includes many polemics with groups and currents who betrayed the principle of defending oppressed countries against imperialism, including many who went so far as to praise the National Transitional Council/NATO takeover of Libya as a genuine “revolution.”

“Unlike revisionist traitors, the revolutionary Marxists swim against the pro-imperialist tide which the left has been swept up in, militarily blocking with Qaddafi against imperialist intervention, while at the same time remaining totally independent of and giving no confidence to his bourgeois nationalist government.”

“É possível ser anti-imperialista apoiando os “rebelados” pró-OTAN?” (March 2011)

While for socialists the primary immediate task during NATO’s intervention was to repel the imperialists and their domestic agents, remaining politically and organizationally independent of Qaddafi’s bourgeois forces, even while being in a military bloc, was not simply some minor detail.

The goal of revolutionaries is to mobilize the working class to overthrow capitalism and take power into their own hands. Political adaptation to any section of the bourgeoisie would make accomplishing that goal impossible. Our class reasons for being on the same side of the barricades with Qaddafi’s forces against the imperialists were different than his myriad apologists, which internationally included bourgeois populist figures such as Hugo Chavez. From the criterion of the capacity of leading the struggle for socialist revolution, groups which gave Qaddafi any confidence would be just as useless as those who took the wrong side in the war.

In that regard it should be noted that Leon Trotsky’s Fourth International had a highly different attitude towards the working class fighting for democratic demands in bourgeois dictatorships such as Qaddafi’s than the one advanced by the LBI in Libya.

The LBI writes;

“Imperialist wolves like Obama, Sarkozy and Cameron, mouths dripping with blood and saliva, demand the ‘dictator’ leave power immediately, while pursuing the largest air strikes mankind has witnessed in history.”

Libyan Resistance, LBI’s website, August 22

“Monarchist supporters of Libya’s former king, deposed by the colonels in 1969, were the initiators behind the supposed mass movement against the ‘bloodthirsty tyrant’ Muammar Qaddafi….   Soon those rebelling against the nationalist caudillo began receiving sophisticated heavy weaponry that they used instead against the Libyan people themselves who remained determined to stay loyal to Qaddafi’s ‘bloody dictatorship’”.

Resistência Líbia, LBI site August 22

To begin, there is the clearly false assertion that “the Libyan people” were solidly backing Qaddafi. It is obvious that Qaddafi had many supporters in Libya. But it is also obvious that so did the rebels, whose base, unlike the reactionary bourgeois leadership, also included supporters amongst all classes, including some sectors of the Libyan proletariat. Next there is the decision to constantly use the quotation marks. But wasn’t Qaddafi in reality actually a tyrant and bloody dictator? It seems the LBI did not think he was. The LBI seemed unable to acknowledge the Qaddafi regime’s dictatorial character in these or any of their other articles on Libya. In other articles the LBI argues that the description of “dictator” was nothing more than “cantilena” (blabber), a propaganda tactic used by his pro-imperialist opponents, “the same being used against Chavez today.”

Obviously we did not derive our position on the war from the undemocratic character of Qaddafi’s regime. We were defending a semi-colonial country against the imperialist powers. Objectively, in seeking to defend its own separate [bourgeois] interests, so was the ruling government. However oppressive and bloody, any regime installed by imperialism would be qualitatively worse. As Leon Trotsky noted [1], the victory of the imperialists would signify the imposition of “double chains” imprisoning the Libyan people.

Not the slightest credence should be given to the “democratic” claims of imperialists like Obama, Sarkozy, Cameron and company who are responsible for the deaths of tens of thousands of Libyans since the bombardments began. But that should not prevent us from denouncing Qaddafi and pointing to the tyrannical character of his government. It is due to his policies that the workers movement in Libya is almost non-existent.

“All other political parties were proscribed. Trade unions were incorporated into the ASU [Arab Socialist Union, Gaddafi’s party] and strikes forbidden. The press, already subject to censorship, was officially conscripted in 1972 as an agent of the [1969] revolution [of the colonels, sic].”

Helen Chapin Metz. Libya: A Country Study. Washington: GPO for the Library of Congress, 1987.

With a ban on all independent press, trade union and political activity for nearly 40 years, the working class was left unprepared for any form of independent resistance. Likewise the absence of democratic rights (which predated Qaddafi coming to power but whose continued existence he ensured) helped contribute to pushing many Libyans into accepting NTC/NATO propaganda about fighting for bourgeois democracy which was used to justify the slaughter.

While in Chavez’s Venezuela these democratic freedoms exist and the “Bonaparte of the twenty-first century” has repeatedly received voter approval to remain in power, the accusations of dictatorship in Libya are more than “cantilena”. Thus democratic demands would have played an important role in politically preparing workers against Libya’s dictator (without any quotation marks). In the 1938 founding document of the Fourth International authored by Leon Trotsky, there is an entire section devoted to explaining the important supplementary role played by democratic demands in backward [or dictatorial] capitalist countries.

“It is impossible merely to reject the democratic program; it is imperative that in the struggle the masses outgrow it. The slogan for a National (or Constituent) Assembly preserves its full force for such countries as China or India. (…)

“As a primary step, the workers must be armed with this democratic program. Only they will be able to summon and unite the farmers. On the basis of the revolutionary democratic program, it is necessary to oppose the workers to the ‘national’ bourgeoisie.”

The Transitional Program, September 1938.

While organizing workers in military detachments to help repel the NTC/NATO bloc, a revolutionary party in Qaddafi’s Libya would also raise the call for expropriation with no compensation and workers control of all imperialist and national industries to help highlight the ruling governments’ true class character. It would also be essential to mobilize the workers using democratic demands such as freedom of press, trade union and political organization and calling for a Constituent Assembly elected by universal suffrage.

  

The LBI has indeed pointed to the bourgeois character of Qaddafi and criticized his [economic] collaboration with imperialism, but has carefully avoided acknowledging issues and raising demands related to his regimes dictatorial character. This omission is underlined by the fact that not even one democratic demand is raised against Qaddafi in the LBI’s 80-page pamphlet! Reading between the lines it is clear the LBI nurtured some serious illusions about the Libyan strongman. Along with spreading those illusions to others, the LBI’s policy would assist in pushing many workers who opposed Qaddafi’s tyranny into the arms of the tribal reactionaries, who falsely presented themselves as fighting for the bourgeois democratic rights which clearly did not exist under Qaddafi. In the end, the bourgeois “democracy” they will have actually received will be in accordance with Islamic law and brought into being under the rubble of imperialist murder and destruction

The necessity of defeating the imperialists did not change the strategic goal of revolutionaries, leading the working class to power in their own name. This could not be done by glossing over key aspects of Qaddafi’s rule but only fully exposing him on all fronts. But by treating the issue of democratic rights in Libya as a taboo subject, an 800 pound elephant in the room whose presence they would pretend not to notice, the LBI in practice abandoned its “total political independence” from Qaddafi.

Note

(1) In an interview published in Novermber 1938, Trotsky explained

“In Brazil there now reigns a semifascist regime that every revolutionary can only view with hatred. Let us assume, however, that on the morrow England enters into a military conflict with Brazil. I ask you on whose side of the conflict will the working class be? I will answer for myself personally—in this case I will be on the side of “fascist” Brazil against “democratic” Great Britain. Why? Because in the conflict between them it will not be a question of democracy or fascism. If England should be victorious, she will put another fascist in Rio de Janeiro and will place double chains on Brazil. If Brazil on the contrary should be victorious, it will give a mighty impulse to national and democratic consciousness of the country and will lead to the overthrow of the Vargas dictatorship. The defeat of England will at the same time deliver a blow to British imperialism and will give an impulse to the revolutionary movement of the British proletariat. Truly, one must have an empty head to reduce world antagonisms and military conflicts to the struggle between fascism and democracy. Under all masks one must know how to distinguish exploiters”

http://www.marxists.org/archive/trotsky/1938/09/liberation.htm

Pelo Trotskismo!

Pelo Trotskismo!
Este documento é uma tradução da revista 1917, n° 3 (Março de 1987). Ele foi adotado originalmente como a base para a fusão, em 1986, entre a Tendência Bolchevique e a Tendência de Esquerda Trotskista, na América do Norte, e permanece como uma importante codificação das diferenças essenciais entre o centrismo e a política revolucionária. 

1. Partido e programa
Os interesses da classe (operária) não podem ser formulados de outra maneira que não seja em forma de programa; o programa não pode ser defendido de outra maneira que não seja criando um partido. 
A classe, tomada em si mesma, é somente material para a exploração. O proletariado assume um papel independente somente no momento em que passa a ser, de uma classe em si, uma classe para si. Isto não pode acontecer a não ser através da existência de um partido. O partido é aquele órgão histórico por meio do qual a classe toma consciência sobre a classe.” 
 —L. D. Trotsky, “E agora?” 1932 
A classe operária é a única classe completamente revolucionária na sociedade moderna, a única classe com a capacidade de terminar com a demência do regime capitalista internacional. A tarefa fundamental da vanguarda comunista é inculcar na classe (sobretudo em seu componente mais importante, o proletariado industrial) a consciência de seu papel histórico. Nós rechaçamos explicitamente todo estratagema que seja apresentado por centristas, reformistas e setorialistas, que vêem, em uma ou outra seção da população não proletária, um veículo mais viável para o progresso social. 
A libertação do proletariado e, com isso, a eliminação da base material de todas as formas de opressão social, depende da sua direção. O inventário das direções “socialistas” em potencial pode se reduzir, em última análise, a dois programas: reforma ou revolução. Pretendendo oferecer uma estratégia “prática” para a melhora gradual das injustiças das classes sociais, o reformismo trata de conciliar a classe operária com os requisitos do capital. Em contraste, o marxismo revolucionário está baseado no antagonismo entre capital e trabalho, e na conseqüente necessidade da expropriação da burguesia, por parte do proletariado, como pré-condição de qualquer progresso social importante. 

A hegemonia da ideologia burguesa, em suas várias formas, no proletariado, representa o baluarte mais poderoso do regime capitalista. Como escreveu James P. Cannon, o líder histórico do trotskismo americano, em seu livro Os primeiros dez anos do Comunismo Americano:

A força do capitalismo não se encontra nele mesmo e em suas instituições; ele sobrevive porque tem bases de apoio em organizações de trabalhadores. Como nós o vemos agora, à luz do que aprendemos com a Revolução Russa e seus efeitos, noventa por cento da luta pelo socialismo é a luta contra a influência da burguesia nas organizações dos trabalhadores, incluindo o partido.” 

A distinção chave entre uma organização revolucionária e uma centrista ou reformista não está tanto em declarações abstratas sobre metas finais e objetivos, mas sim nas posições que cada uma avança nas situações concretas postas pela luta de classes. Os reformistas e centristas costuram a sua resposta programática a cada novo acontecimento de acordo com as ilusões e preconceitos da sua audiência. Mas o papel de um revolucionário é dizer aos trabalhadores e oprimidos o que eles ainda não sabem.

O programa deve expressar as tarefas objetivas da classe trabalhadora, em vez do atraso dos trabalhadores. Deve refletir a sociedade como é e não o atraso da classe trabalhadora. É um instrumento para superar e vencer o atraso. Nós não podemos acelerar, não podemos modificar as condições objetivas, que não dependem de nós. Não podemos garantir que as massas resolverão a crise, mas devemos expressar como a situação é, e isso é a tarefa do programa.” 
Trotsky, “O Atraso Político dos Trabalhadores Americanos”, 1938

Procuramos enraizar o programa comunista na classe trabalhadora através da construção de colaterais programáticas nos sindicatos. Tais formações devem participar ativamente de todas as lutas por reformas parciais e melhoras na situação dos trabalhadores. Elas também devem ser os melhores defensores das tradições militantes de solidariedade de classes, por exemplo, dizendo que ”Os Piquetes Querem dizer Não Cruze’! Ao mesmo tempo, elas devem procurar recrutar os trabalhadores politicamente mais conscientes para uma perspectiva mundial, que transcenda a militância local na base, e ponha as questões políticas mais urgentes, de forma a apontar para a necessidade de eliminar a anarquia da produção voltada para o lucro, substituindo-a pela produção planificada racionalmente, para atender às necessidades humanas.

Nossa intervenção nas organizações de massa do proletariado é baseada no Programa de Transição, adotado pela Conferência de Fundação da Quarta Internacional, em 1938. Num certo sentido, não pode haver, para um marxista, algo como um “programa acabado” É necessário levar em conta os desenvolvimentos históricos nas cinco décadas passadas, e a necessidade de dar resposta a problemas postos por lutas específicas de setores oprimidos e/ou da classe, com que o esboço de 1938 não lida. Não obstante, em seu essencial, o programa sobre o qual a Quarta Internacional foi fundada mantém toda a sua relevância, porque propõe soluções socialistas aos problemas objetivos enfrentados pela classe trabalhadora hoje, no contexto da necessidade imutável do poder proletário. 

2. A Revolução permanente

Nos últimos quinhentos anos, o capitalismo criou uma única ordem econômica mundial, com uma divisão internacional do trabalho. Vivemos na época do imperialismo—a época do declínio capitalista. A experiência deste este século demonstrou que as burguesias nacionais do mundo neocolonial são incapazes de completar as tarefas históricas da revolução democrático-burguesa. Não há, em geral, nenhum caminho aberto para o desenvolvimento capitalista independente a estes países.

Nos países neocoloniais, as realizações das revoluções burguesas clássicas só podem ser conquistadas através do esmagamento das relações capitalistas de propriedade, separando-os dos tentáculos do mercado mundial imperialista, e estabelecendo a propriedade da classe trabalhadora (ou seja, coletivizada). Só uma revolução socialista—uma revolução realizada contra a burguesia nacional e os latifundiários—pode levar a uma expansão qualitativa das forças produtivas.

Rejeitamos a estratégia etapista menchevique-stalinista, de subordinação do proletariado aos supostos “setores progressistas” da burguesia. Defendemos a independência política completa e incondicional do proletariado em cada país. Sem exceção, as burguesias nacionais do “Terceiro Mundo” são agentes da dominação imperialista, e seus interesses são, num sentido histórico, muito mais próximos dos dos banqueiros e industriais da metrópole do que dos seus povos explorados.

Os trotskistas oferecem apoio militar, mas não político, a movimentos nacionalistas pequeno-burgueses (e inclusive a regimes burgueses) que entrem em conflito com o imperialismo, em defesa da soberania nacional. Em 1935, por exemplo, os trotskistas defenderam a vitória militar dos etíopes sobre os invasores italianos. No entanto, os leninistas não podem determinar automaticamente a sua posição numa guerra entre dois regimes burgueses a partir de seu nível relativo de desenvolvimento (ou subdesenvolvimento). Na sórdida guerra das Malvinas, de 1982, em que a defesa da soberania da Argentina nunca esteve em jogo, os leninistas defenderam que tanto os argentinos como os ingleses “apontassem as suas armas para seus governos”, ou seja, o derrotismo revolucionário de ambos os lados. 

3. Guerrilheirismo

A nossa estratégia para a revolução é a insurreição proletária de massas. Rejeitamos o guerrilheirismo como orientação estratégica (embora reconhecendo que, às vezes, as guerrilhas podem ter valor tático suplementar), porque relega politicamente a classe operária organizada e consciente ao papel de espectadora passiva. Um movimento guerrilheiro baseado no campesinato e dirigido por intelectuais de esquerda pequeno-burgueses não pode estabelecer o poder político da classe trabalhadora, independente da intenção subjetiva de sua direção.

Em várias ocasiões, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foi demonstrado que, em determinadas circunstâncias objetivas favoráveis, tais movimentos podem ter êxito em expropriar a propriedade capitalista. Mas, como eles não são baseados na mobilização da classe trabalhadora organizada, estas lutas, no máximo conseguem estabelecer regimes burocráticos nacionalistas qualitativamente idênticos ao produto da degeneração stalinista da Revolução Russa (como a Iugoslávia, a Albânia, a China, o Vietnã e Cuba). Tais Estados Operários Deformados exigem revoluções políticas proletárias suplementares para abrir o caminho ao desenvolvimento socialista. 

4. Opressões específicas: A Questão Negra, a Questão da Mulher

A classe trabalhadora hoje é profundamente dividida em torno de linhas raciais, sexuais, nacionais etc. Mas o racismo, o chauvinismo e o machismo são comportamentos programados social, e não geneticamente. Não importa qual seja o seu nível de consciência atual, os trabalhadores do mundo têm uma coisa crucial em comum: eles não podem melhorar, fundamentalmente, a sua situação como classe, sem destruírem a base social de toda a opressão e exploração, de uma vez por todas. Esta é a base material para a afirmação marxista de que o proletariado tem como sua missão histórica a eliminação da sociedade de classes e a erradicação de todas as formas de opressão “específicas”.

Nos Estados Unidos, a luta pelo poder dos trabalhadores está inextricavelmente ligada à luta pela libertação negra. A divisão racial entre trabalhadores negros e brancos, historicamente, foi o maior obstáculo para a consciência de classe. Os americanos negros não são uma nação, e sim uma casta de cor, segregada nos setores mais inferiores da sociedade, e se concentram, sobretudo, na classe operária, particularmente nos setores estratégicos do proletariado industrial. Brutalizada, sofrendo abusos e sendo sistematicamente discriminada na “terra da liberdade”, a população negra tem sido, historicamente, relativamente imune ao patriotismo racista imperial, que envenenou muito do proletariado branco. Os trabalhadores negros provaram ser, em geral, o setor mais militante e combativo da classe. A luta pela libertação negra – contra a brutalidade racista da vida cotidiana na América capitalista—é central para a construção de uma vanguarda revolucionária no continente norte-americano. A luta contra as opressões especiais das minorias nacionais, lingüísticas e raciais, particularmente da crescente população latina, é uma questão que também será chave na revolução norte-americana.

A opressão das mulheres é enraizada materialmente na existência da família nuclear, a unidade básica e indispensável da organização social burguesa. A luta pela igualdade social completa para as mulheres é de importância estratégica em todos os países do globo. Uma forma de opressão especial relacionada é a que é experimentada pelos homossexuais, que são perseguidos por não conseguirem se adaptar aos papéis sexuais ditados pelo ”estado normal” da família nuclear. A questão gay não é estratégica como a da mulher, mas a vanguarda comunista deve defender os direitos democráticos do(a)s homossexuais e opor-se a todas e quaisquer medidas discriminatórias contra ele(a)s.

Nos sindicatos, os comunistas devem defender o acesso igual a todos os empregos; programas, organizados pelos sindicatos, para recrutar e melhorar a situação das mulheres e minorias em campos “não-tradicionais”, salário igual para trabalho igual e trabalho para todos. Ao mesmo tempo, nós defendemos o sistema de previdência como uma conquista histórica do movimento sindical, e nos opomos a esquemas anti-sindicais e de divisão de “dispensas preferenciais”. É responsabilidade histórica da vanguarda comunista lutar para unir a classe trabalhadora pelos seus interesses comuns de classe, atravessando as divisões artificiais promovidas pela sociedade capitalista. Fazer isto significa avançar os interesses do mais explorados e oprimidos, e lutar constantemente contra toda manifestação de discriminação e injustiça.

Os setores oprimidos da população não podem se libertar sem a revolução proletária, numa estrutura social que originou e perpetua a sua opressão. Como Lênin apontou em O Estado e a Revolução

Só o proletariado—em virtude do papel econômico que joga na produção em larga escala—é capaz de ser o líder de todas as massas trabalhadoras que a burguesia explora, oprime e esmaga, freqüentemente não menos que ele, mas que são incapazes de empreender uma luta independente pela sua emancipação”. 

Vivemos numa sociedade de classes, e o programa de cada movimento social deve, em última análise, representar os interesses de uma das duas classes com o potencial governar a sociedade: o proletariado ou a burguesia. Nos sindicatos, a ideologia burguesa toma a forma do economicismo estreito; nos movimentos dos oprimidos, manifesta-se como setorialismo. O que o nacionalismo negro, o feminismo e outras formas de ideologia setorialista têm em comum é que localizam a raiz da opressão em algo que não é o sistema capitalista e a propriedade privada.

A orientação estratégica da vanguarda marxista em relação às organizações setorialistas “independentes” (ou seja, policlassistas) dos oprimidos deve ser a de ajudar na sua diferenciação interna em torno de seus componentes de classe. Isto implica uma luta para ganhar tantos indivíduos quanto for possível para a perspectiva da revolução proletária e a conseqüente necessidade de um partido de vanguarda integrado. 

5. A Questão Nacional e os “Povos Interpenetrados”

O marxismo não pode ser reconciliado com o nacionalismo, nem mesmo na sua forma ‘mais pura’, ‘mais justa’ e ‘mais refinada’ e ‘civilizada’. Em lugar de todas as formas de nacionalismo, o marxismo avança o internacionalismo”. 
V. I. Lênin, “Comentários Críticos sobre a Questão Nacional.”

O marxismo e o nacionalismo são duas visões de mundo fundamentalmente contrapostas. Sustentamos o princípio da igualdade entre as nações, e nos opomos a quaisquer privilégios para qualquer nação. Ao mesmo tempo, os marxistas rejeitam todas as formas de ideologia nacionalista e, nas palavras de Lênin, aceitam ”todo o tipo de assimilação entre as nações, exceto os fundados na força e no privilégio”. O programa leninista sobre a questão nacional é principalmente negativo, feito para tirar a questão nacional da agenda, cortando o apelo dos nacionalistas pequeno-burgueses, para poder colocar melhor a questão de classe.

Em casos “clássicos” de opressão nacional (por exemplo, o Québec), nós defendemos o direito à autodeterminação, sem necessariamente advogar o seu exercício. Nos casos mais complexos, de povos interpenetrados num mesmo território geográfico (Chipre, Irlanda do Norte, Palestina/Israel) o direito abstrato de cada um à autodeterminação não pode ser exercido eqüitativamente dentro da estrutura de relações de propriedade capitalistas. Ainda assim, em nenhum destes casos, os povos opressores podem ser comparados com os brancos na África do Sul ou os colonos franceses na Argélia; ou seja, uma casta colonizadora privilegiada/aristocracia operária, baseada na super-exploração do trabalho nativo para manter um padrão de vida qualitativamente mais alto do que o da população oprimida.

Tanto a população protestante irlandesa como os israelenses de fala hebraica são povos com diferenciações de classe. Cada um tem uma burguesia, uma pequena burguesia e uma classe trabalhadora. Diferente dos moralistas burgueses com sentimento de culpa, os leninistas não apóiam simplesmente o nacionalismo dos oprimidos (nem as formações políticas pequeno-burguesas que o apóiam). Fazer isso, ao mesmo tempo, impede as possibilidades de explorar as contradições de classe reais nas fileiras dos povos opressores, e assegura a hegemonia do nacionalismo sobre os oprimidos. Os proletários dos povos ascendentes não podem ser ganhos por uma perspectiva nacionalista de simplesmente inverter a atual relação desigual. Uma seção significativa deles pode ser ganha para uma perspectiva de classe contra classe, não sectária, porque ela está de acordo com os seus interesses objetivos.

A lógica de capitulação ao nacionalismo pequeno-burguês levou grande parte da esquerda a apoiar os governantes árabes (a encarnação da assim chamada “Revolução Árabe”) contra os israelenses nas guerras do Oriente Médio em 1948, 1967 e 1973. Em essência, estas foram guerras inter-capitalistas, em que os trabalhadores e oprimidos da região não tinham nada a ganhar com a vitória de qualquer um dos lados. A posição leninista era, portanto, o derrotismo de ambos os lados. Tanto para os trabalhadores árabes como para os hebreus, o inimigo principal estava em casa. A guerra de 1956 foi uma questão diferente, naquele conflito, a classe trabalhadora tinha um lado: com Nasser, contra as tentativas dos imperialismos francês e britânico (ajudado pelos israelenses) de se reapropriarem do Canal de Suez, recentemente nacionalizado.

Embora se oponham ao nacionalismo por uma questão de princípio, os leninistas não são neutros nos conflitos entre os povos oprimidos e o aparato estatal opressor. Na Irlanda do Norte, nós exigimos a retirada imediata e incondicional das tropas britânicas, e defendemos os ataques feitos pelo Exército Republicano Irlandês (IRA) contra tais alvos imperialistas, como a Força Policial Real de Ulster, o Exército Britânico ou o hotel cheio de ministros Conservadores em Brighton. Do mesmo modo, nós apoiamos militarmente a Organização pela Libertação da Palestina contra as forças do Estado de Israel. Em nenhum caso defendemos atos terroristas dirigidos contra as populações civis. Isto, apesar do fato de que o terrorismo criminoso do Estado Sionista contra os palestinos, assim como o do exército britânico e seus aliados protestantes contra os católicos da Irlanda do Norte, é muitas vezes maior que os atos de terror dos oprimidos. 

6. Imigração/emigração

Os leninistas apóiam o direito democrático básico de qualquer indivíduo emigrar para qualquer país no mundo. Como no caso de outros direitos democráticos, isto não é nenhum tipo de imperativo categórico. Nós não defenderíamos, por exemplo, a emigração de qualquer indivíduo que significasse uma ameaça à segurança militar dos Estados Operários degenerados ou deformados. O direito de imigração individual, se exercido numa escala suficientemente larga, pode entrar em conflito com o direito à autodeterminação de uma nação pequena. Portanto, os trotskistas não levantam a bandeira de “Abrir as Fronteiras” como uma exigência programática geral. Na Palestina, por exemplo, durante as décadas de 1930 e 1940, o imenso influxo de imigração sionista criou a base para a expulsão forçada do povo palestino de sua própria terra. Nós não reconhecemos o “direito” de migração ilimitada dos Han ao Tibete, nem de cidadãos franceses à Nova Caledônia.

A exigência de “fronteiras abertas” geralmente é advogada por liberais ou radicais confusos e bem-intencionados, significando um desejo utópico de corrigir as desigualdades hediondas produzidas pela ordem mundial imperialista. Mas revolução socialista mundial—e não a imigração em massa—é a solução marxista para a miséria e a indigência da maioria da humanidade sob o capitalismo.

Nos EUA, nós defendemos os trabalhadores mexicanos presos pela Migra. Nos opomos a todas as cotas de imigração, todas as prisões e todas as deportações de trabalhadores imigrantes. Nos sindicatos, nós lutamos pela concessão imediata e incondicional de plenos direitos de cidadania a todos trabalhadores nascidos no estrangeiro. 

7. Centralismo democrático

Uma organização revolucionária deve ser estritamente centralizada, com os organismos superiores tendo plena autoridade para dirigir o trabalho dos organismos e membros inferiores. A organização deve ter o monopólio político sobre a atividade política pública de seus membros. A militância deve ter o direito garantido à plena democracia fracional (ou seja, o direito de conduzir luta política interna para mudar a linha e/ou substituir a direção atual). A democracia interna não é um enfeite decorativo—nem meramente uma válvula de segurança de uma panela de pressão, para a base —é uma necessidade crítica e indispensável para a vanguarda revolucionária, se esta quer lidar com os desenvolvimentos complexos da luta de classes. É também o meio principal pelo qual os quadros revolucionários são criados. O direito à democracia fracional interna, ou seja, o direito de lutar contra o revisionismo dentro da vanguarda, é a única ”garantia” contra a degeneração política de uma organização revolucionária.

As tentativas encobrir diferenças importantes e apagar linhas de demarcação políticas internamente só podem enfraquecer e desorientar um partido revolucionário. Uma organização coesionada por diplomacia, consenso no máximo denominador comum e a conseqüente ambigüidade programática (em vez de acordo programático e de princípios, e luta pela clareza política) apenas está esperando a primeira prova séria posta pela luta de classes para rachar. Por outro lado, as organizações em que a expressão de diferenças é proscrita—seja formal ou informalmente—são destinadas a se fossilizarem em seitas rígidas, hierárquicas e sem vida, crescentemente divorciadas do movimento real dos trabalhadores, e incapazes de reproduzir os quadros necessários para executar as tarefas de uma vanguarda revolucionária. 

8. Frentes populares

A questão das questões atualmente é a Frente Popular. O centristas de esquerda procuram apresentar esta questão como tática ou mesmo como uma manobra técnica, a fim de poder vender as suas mercadorias na sombra da Frente Popular. Na realidade, a Frente Popular é a questão principal da estratégia da classe operária nesta esta época. Também oferece o melhor critério para diferenciar o bolchevismo do menchevismo.
Trotsky, ”O POUM e a Frente Popular,” 1936

O frente-populismo (ou seja, um bloco programático, normalmente pelo poder governamental, entre organizações de trabalhadores e representantes da burguesia) é traição de classe. Os revolucionários não podem dar nenhum apoio, nem mesmo “crítico”, a participantes de frentes populares.

A tática de apoio eleitoral crítico a partidos operários reformistas é baseada na contradição, inerente em tais partidos, entre seu programa burguês (reformista) e sua base operária. Quando um partido social-democrata ou stalinista entra numa coalizão ou bloco eleitoral com formações burguesas ou pequeno-burguesas, esta contradição é efetivamente suprimida durante a duração da coalizão. Um membro de um partido operário reformista que concorre às eleições na chapa de uma coalizão de colaboração de classes (ou frente popular) é, de fato, o representante de uma formação política burguesa. Assim, a possibilidade de aplicação da tática de apoio crítico é excluída, porque a contradição que se procura explorar é suspensa. Em vez disso, os revolucionários devem ter como condição para o apoio eleitoral a ruptura da coalizão: “Abaixo os Ministros Capitalistas!”. 

9. Frentes Únicas e “Frentes Únicas Estratégicas”

A frente única é uma tática com que revolucionários procuram se aproximar de formações reformistas ou centristas para “jogar a base contra a direção”, quando há uma necessidade sentida e urgente de ação unida por parte das bases. É possível entrar em acordos de frente única com formações pequeno-burguesas ou burguesas, onde há um acordo episódico sobre um assunto particular, e onde é do interesse da classe trabalhadora (por exemplo, os bolcheviques fizeram frente única com Kerensky contra Kornilov). A frente única é uma tática que não só é projetada para realizar o objetivo comum, mas também demonstrar, na prática, a superioridade do programa revolucionário, e assim ganhar mais influência e aderentes para a organização de vanguarda.

Os revolucionários nunca empenham a sua responsabilidade como direção revolucionária a uma aliança de longo prazo (nem “frente única estratégica”) com forças centristas ou reformistas. Os trotskistas nunca fazem propaganda comum—declarações conjuntas de perspectiva política geral—com os revisionistas. Tal prática é tanto desonesta (porque inevitavelmente envolve calar sobre as diferenças políticas que separam as organizações) quanto liquidacionista. A “frente única estratégica” é uma manobra favorita dos oportunistas que, desesperados com a sua própria pequena influência, procuram compensá-la pela sua dissolução num bloco mais amplo, com um programa de maior denominador comum. Em “O Centrismo e a Quarta Internacional”, Trotsky explicou que uma organização revolucionária se distingue de uma centrista pelo seu “interesse ativo pela pureza de princípios, clareza de posição, consistência política e integralidade organizacional”. É justamente isto que a “frente única estratégica” é feita para apagar.

10. Democracia Operária e Linha de Classe

Os marxistas revolucionários, que se distinguem pelo fato de que contam a verdade aos trabalhadores, só podem beneficiar-se com o confronto político aberto entre as várias correntes que competem na esquerda. Não é assim com os reformistas e centristas. Os stalinistas, social-democratas, burocratas sindicais e outras direções traidoras da classe trabalhadora atacam a crítica revolucionária e procuram impedir a discussão e o debate políticos com gangsterismo e exclusões.

Somos contra a violência e o exclusionismo dentro da esquerda e do movimento operário, ao mesmo tempo em que defendemos o direito de todos à autodefesa. Também somos contra a violência “suave” – ou seja, as calúnias, que anda junta com (ou prepara o caminho para) os ataques físicos. A calúnia e a violência dentro do movimento operário são completamente estranhas às tradições do marxismo revolucionário, porque são usados, principalmente, para destruir a consciência, a condição prévia para a libertação do proletariado. 

11. O Estado e a Revolução

A questão do Estado ocupa um lugar central na teoria revolucionária. O marxismo ensina que o Estado capitalista (em última análise, “os corpos especiais de homens armados comprometidos com a defesa da propriedade burguesa”) não pode ser assumido e usado para servir aos interesses da classe trabalhadora. O poder da classe trabalhadora só pode ser estabelecido pela destruição da maquinaria burguesa de Estado atual, e sua substituição por instituições comprometidas com a defesa da propriedade proletária.

Nós somos terminantemente contra a intervenção do Estado burguês, em qualquer de suas formas, nos assuntos do movimento operário. Os marxistas são contra quaisquer “reformadores” sindicais que procurem corrigir a corrupção burocrática através das cortes capitalistas. Os trabalhadores devem limpar a própria casa! Nós também defendemos a expulsão, do movimento sindical, de todos os policiais e guardas de prisão.

O dever dos revolucionários é ensinar à classe trabalhadora que o Estado não é um árbitro imparcial entre interesses sociais conflitantes, e sim uma arma usada contra ela pelos capitalistas. Assim, os marxistas são contra as exigências reformistas/utópicas de que o Estado burguês ”proíba” os fascistas. Tais leis, invariavelmente, serão usadas muito mais agressivamente contra o movimento operário e a esquerda do que contra a escória fascista, que constitui as tropas de choque da reação capitalista. A estratégia trotskista de luta contra o fascismo não é fazer apelos ao estado burguês, e sim mobilizar o poder da classe trabalhadora e dos oprimidos, pela ação direta, para esmagar os movimentos fascistas em seu nascedouro, antes que possam crescer. Como Trotsky observou no Programa de Transição, “A luta contra o fascismo não começa na edição de jornais liberais, e sim na fábrica—e termina na rua”.

Os leninistas rejeitam totalmente a idéia de que tropas imperialistas possam ter um papel progressivo em qualquer lugar: seja “protegendo” alunos negros no Sul dos EUA, “protegendo” a população católica na Irlanda do Norte ou “mantendo a ordem” no Oriente Médio. Nem tentamos pressionar os imperialistas para agirem “moralmente” por embargos ou impondo sanções à África do Sul. Argumentamos, em vez disso, que os poderes do “Mundo Livre” estão fundamentalmente unidos com o regime racista do apartheid, em defesa do “direito” a super-explorar os trabalhadores negros. A nossa resposta é mobilizar o poder operário internacional, em ações eficientes de solidariedade classista aos trabalhadores negros da África do Sul.

12. A Questão Russa 

O que é a Stalinofobia? É ódio ao stalinismo, o temor desta ‘sífilis do movimento operário’ e a recusa irreconciliável de tolerar qualquer manifestação dele no partido? De jeito nenhum… 
É a opinião de que o stalinismo não é o líder da revolução internacional, e sim o seu inimigo mortal? Não, isso não é Stalinofobia; isso é o que Trotsky nos ensinou, o que nós aprendemos outra vez com a nossa experiência com o stalinismo, e o que nós sentimos na pele… 
O sentimento de ódio e temor ao stalinismo, com o seu estado policial e seus campos de trabalho escravo, suas emboscadas e seus assassinatos da oposição operária, é saudável, natural, normal, e progressivo. Este sentimento só vai mal quando leva à reconciliação com o imperialismo americano, e à designação da luta contra estalinismo a esse mesmo imperialismo. Na linguagem trotskista, isso é nada mais que isso é Stalinofobia”. 
James P. Cannon, “Conciliacionismo com o stalinismo e Stalinofobia”, 1953

Nos colocamos na defesa incondicional das economias coletivizadas do Estado Operário degenerado soviético e dos Estados Operários Deformados da Europa Oriental, Vietnã, Laos, Camboja, China, Coréia Norte e Cuba, contra a restauração capitalista. Mas nós não perdemos de vista nem um momento o fato de que somente revoluções políticas proletárias, que derrotem os burocratas anti-operários traidores que governam estes Estados, podem defender as conquistas existentes e abrir o caminho para o socialismo.

A vitória da fração stalinista na União Soviética, nos 1920, sob a bandeira do “Socialismo num só País”, foi consolidada com o extermínio físico dos principais quadros do partido de Lênin uma década mais tarde. Os usurpadores stalinistas subvertem decisivamente tanto a defesa da União Soviética quanto a revolução mundial. A perspectiva de uma insurreição proletária para restabelecer o domínio político direto da classe trabalhadora, portanto, não é contraposta, e sim indissoluvelmente ligada à defesa das economias coletivizadas.

A questão russa foi posta mais agudamente, em anos recentes, em dois acontecimentos: a supressão do Solidariedade polonês e a intervenção do exército soviético no Afeganistão. Nos emblocamos militarmente com os stalinistas contra ambos, o Solidariedade capitalista-restauracionista e a luta feudalista Islâmica para conservar a escravidão feminina no Afeganistão. Isto não implica que os burocratas stalinistas tenham qualquer papel histórico progressivo a desempenhar. Ao contrário. Não obstante, defendemos essas ações (como a supressão do Solidariedade em dezembro de 1981) porque eles são forçados a defender as formas de propriedade operárias. 

13. Pelo Renascimento da Quarta Internacional!

O trotskismo não é um novo movimento, uma nova doutrina, e sim a restauração, o renascimento, do genuíno marxismo, como foi exposto e praticado na Revolução Russa e nos primeiros dias da Internacional Comunista”. 
James P. Cannon, A História do Trotskismo Americano 

O trotskismo é o marxismo revolucionário do nosso tempo – a teoria política derivada da experiência destilada de mais de um século e meio de luta da classe operária pelo comunismo. Foi comprovado pela positiva durante a Revolução de Outubro de 1917, o acontecimento mais importante da história contemporânea e, desde então, pela negativa.

Depois do estrangulamento burocrático do partido bolchevique e da Internacional Comunista pelos stalinistas, a tradição do leninismo, a prática e o programa da revolução russa, foi levada adiante somente pela Oposição de Esquerda.

O movimento trotskista nasceu na luta pelo internacionalismo revolucionário, contra o conceito reacionário/utópico do “Socialismo num só país”. A necessidade de uma organização revolucionária em nível internacional é derivada da própria organização da produção capitalista. Os revolucionários em cada terreno nacional devem ser guiados por uma estratégia de dimensão internacional – e que seja elaborada através da construção de uma direção internacional da classe trabalhadora. Ao patriotismo da burguesia e de seus lacaios, social-democratas e stalinistas, o trotskistas opõem a palavra de ordem imortal de Karl Liebknecht: “O pior inimigo está em casa”. Nós nos baseamos nas posições programáticas básicas adotadas pela conferência de fundação da Quarta Internacional, em 1938, e nas tradições revolucionárias de Marx, Engels, Lênin, Luxemburgo y Trotsky.

Os dirigentes da Quarta Internacional fora da América do Norte foram, na sua maioria, aniquilados e dispersos durante a Segunda Guerra Mundial. A internacional foi definitivamente destruída politicamente pelo revisionismo pablista nos anos 50. Nós não somos neutros em relação à divisão que ocorreu em 1951-53 – estamos do lado do Comitê Internacional (CI) contra o Secretariado Internacional pablista (SI). A luta do CI tinha falhas profundas, tanto na sua elaboração política como em sua execução. Mesmo assim, em última análise, o impulso do CI para resistir à dissolução dos quadros trotskistas dentro dos partidos stalinistas e social-democratas (como foi proposto por Pablo), e a sua defesa da necessidade de um fator consciente na história, os fizeram qualitativamente superiores aos liquidacionistas do SI.

Dentro do CI, a seção mais importante era o Socialist Workers Party norte-americano (SWP). Também era a seção mais forte na época de fundação da internacional. Havia se beneficiado da colaboração direta de Trotsky e tinha quadros na sua direção que remontavam aos primeiros anos do Comintern. O colapso político do SWP como organização revolucionária, assinalado pelo seu entusiasmo acrítico em relação ao castrismo nos anos 60, e culminando com a sua unificação com os pablistas em 1963, foi um golpe enorme para todos os trotskistas.

Nós somos solidários com a luta da Tendência Revolucionária do SWP, que defendeu o programa revolucionário contra o objetivismo centrista da maioria. Nós nos baseamos nas posições trotskistas defendidas e elaboradas pela Liga Espartaquista revolucionária nos anos seguintes. Mesmo assim, sob a pressão de anos de isolamento e frustração, a SL se degenerou qualitativamente em uma seita grotescamente burocrática e um grupo de bandidos políticos que, apesar de terem uma capacidade residual para uma pose literária “ortodoxa”, têm demonstrado um impulso consistente de capitular sob pressão. A “tendência espartaquista internacional” hoje, não é politicamente superior, em nenhum sentido importante, a qualquer uma das dezenas de “Internacionais” pseudo-trotskistas, que falsamente reivindicam o manto da Quarta Internacional.

A fragmentação de vários dos pretendentes históricos à continuidade trotskista, e as dificuldades e giros à direita do resto, abrem um período fértil para a reavaliação e o realinhamento dos que não crêem que o caminho para o socialismo passe pelo Partido Trabalhista britânico, o Solidariedade capitalista/restauracionista de Lech Walesa ou a frente popular chilena. Nós pretendemos participar urgentemente num processo de reagrupamento internacional de quadros revolucionários baseado programaticamente no trotskismo autêntico, como um passo para o renascimento da Quarta Internacional, o Partido Mundial da Revolução Socialista.

Baseados em uma larga experiência histórica, podemos escrever como lei que os quadros revolucionários que se rebelam contra o seu meio social e organizam partidos para fazer a revolução podem, se a revolução demorar demais – se degenerar eles mesmo sob a constante influência e as pressões deste meio… Mas a mesma experiência histórica mostra que também há exceções a esta lei. A exceções são os marxistas que continuam a ser marxistas, os revolucionários fiéis à sua bandeira. As idéias básicas do marxismo, a única forma de criar um partido revolucionário, estão em aplicação contínua e têm estado assim há cem anos. As idéias do marxismo, que criam partidos revolucionários, são mais fortes que os partidos que criam, e nunca deixam de sobreviver à sua queda. Nunca deixam de encontrar representantes nas velhas organizações que dirigirão o trabalho da reconstrução
Estes são os continuadores da tradição, os defensores da doutrina ortodoxa. A tarefa dos revolucionários não corrompidos, obrigados pelas circunstâncias a começar o trabalho de reconstrução das organizações, nunca foi proclamar uma nova revelação – nunca faltaram tais Messias, e todos se perderam na confusão – e sim reinstalar o programa antigo e atualizá-lo.” 
James P. Cannon, Os Primeiros Dez Anos do Comunismo Americano

Polêmica com o Coletivo Lenin sobre a História do Trotskismo

Coletivo Lenin sobre James Cannon
Revisando a História do Trotskismo
 
Por Rodolfo Kaleb
Outubro de 2011
 
Esta é uma resposta a erros factuais, às vezes conscientemente desonestos, do Coletivo Lenin sobre a história do trotskismo e da Liga Espartaquista dos Estados Unidos (organização cujas posições e história de luta contra o revisionismo pablista nós defendemos até o fim da década de 1970) presentes em um comentário no blog Nova Dialética e reproduzido no blog do próprio Coletivo. O comentário foi feito após uma postagem (não reproduzida aqui) sobre a importância histórica e a figura política de James Cannon, um veterano trotskista norte-americano e quadro fundador a Quarta internacional que cumpriu também um papel progressivo nos primeiros anos da luta contra o revisionismo de Michel Pablo e Ernest Mandel.

Comentário do Coletivo Lenin
 
O Cannon foi uma figura fundamental em toda a história do trotskismo.
Foi ele que, no começo da Segunda Guerra, lutou contra a fração de Schatman, no SWP (Partido Socialista dos Trabalhadores), a seção americana da Quarta Internacional. A fração defendia que a URSS era um nova sociedade de classes e, por isso, não deveria ser incondicionalmente defendida contra a restauração do capitalismo.
O SWP, com Cannon como membro da direção, lutou contra o macartismo, inclusive defendendo militantes do PCUSA que fizeram espionagem para a URSS.
Em 1953, Cannon escreveu a “Carta Aberta aos Trotskistas do Mundo Inteiro”, onde denunciou a linha da direção da Quarta Internacional, que achava que os PCs do mundo inteiro poderiam cumprir um papel revolucionário.
A crítica de Cannon foi certa (pra ter uma ideia, uma minoria da Quarta Internacional rompeu em 1954 e se dissolveu dentro dos PCs), mas ele errou ao romper com a internacional e criar o Comitê Internacional, com os grupos de Lambert e Healy.
As duas organizações estavam totalmente adaptadas à socialdemocracia (Healy dentro do Partido Trabalhista inglês e Lambert, na central pelega Force Ouvrière) e, na verdade, por trás das críticas estava a stalinofobia (ou seja, elas consideravam que o stalinismo era completamente contrarrevolucionário e que, portanto, qualquer movimento contra o stalinismo seria progressivo). Ou seja, capitulavam ao clima anticomunista do primeiro mundo.
Como prova que o SWP era ainda uma organização saudável, ele logo saiu dessa canoa furada. Em 1956, depois do posicionamento fundamentalmente igual do Comitê Internacional e da Quarta Internacional sobre a revolução antiburocrática na Hungria, Cannon e Peng Shu-tse (da seção chinesa) começam a lutar pela reunificação dos trotskistas.
Essa reunificação acontece em 1963, formando o SU (Secretariado Unificado da Quarta Internacional). Infelizmente, a autocrítica do pablismo foi parcial (Pablo sai do SU em 1964), e não impediu que se repetissem as mesmas concepções centristas. Tanto Cannon como a maioria do SU, dirigido por Ernest Mandel, consideram a direção cubana como revolucionária e trotskista inconsciente. 
Por isso, a reunificação de 1963 foi uma puta (sic) de uma oportunidade perdida.
A Liga Espartaquista surgiu nessa época, lutando contra a posição sobre Cuba. Infelizmente, eles repetiram o mesmo erro de Cannon na época da Carta Aberta, e foram para o Comitê Internacional. Depois de serem expulsos de lá, criaram a sua própria corrente internacional, cada vez mais sectária e sempre capitulando ao stalinismo (por exemplo, não condenaram a invasão da Tchecoslováquia pela URSS em 1968).
Depois disso, Cannon continuou lutando pela fusão entre todas as correntes revolucionárias, como ele defendeu em “Novas Forças Revolucionárias estão Emergindo” (1962). Dentro do SU, ele combateu, junto com Moreno, a política de luta armada imediata na América Latina, que levou à destruição de várias seções. Infelizmente, mesmo a posição sobre a luta armada estando certa, tanto o SWP quanto o PST de Nahuel Moreno fizeram as críticas a partir de um ponto de vista muito próximo do social-pacifismo, refletindo as concepções centristas que já prevaleciam neles.
Resumindo: mesmo com todos os erros, James Cannon foi um grande revolucionário. A maior prova disso é que mesmo as correntes que romperam com o SWP quando ele estava na direção, como a Liga Espartaquista e o Partido da Liberdade Socialista (fundado por Clara e Dick Fraser), mesmo fazendo várias críticas (algumas corretas), se reivindicam cannonistas.

Crítica do Reagrupamento Revolucionário
O comentário do Coletivo Lenin é uma falsificação da história da Quarta Internacional que só pode servir para confundir a vanguarda trotskista. Também é um sintoma lamentável da degeneração de um grupo que antes, apesar de falhas e limitações, defendia o legado daqueles que combateram o revisionismo pablista do movimento fundado por Leon Trotsky, e que hoje se encontra mais precisamente do outro lado do muro, tentando enumerar qualidades para os pablistas ao invés de combatê-los (para saber mais leia nossa carta de ruptura O Coletivo Lenin é Destruído pelo Revisionismo!, de julho de 2011).

***

A primeira crítica do Coletivo Lenin ao papel de Cannon na luta contra o pablismo se refere ao fato de ele ter cumprindo um papel de liderança no rompimento do SWP com a “Quarta Internacional” sob domínio pablista. Parece que o Coletivo Lenin considera acertado pontuar críticas ao pablismo, mas um verdadeiro crime romper com eles. O grupo diz que “A crítica de Cannon foi certa…, mas ele errou ao romper com a internacional e criar o Comitê Internacional, com os grupos de Lambert e Healy”. Parece que para o Coletivo Lenin a luta contra o revisionismo deveria ser um exercício de ideias sem daí retirar conclusões organizativas e políticas. Isto é algo alheio à seriedade com a qual o próprio Cannon tratava a questão. Ele e seus apoiadores não teriam dividido o movimento trotskista se não houvesse motivos relevantes para isso.
Algo ausente em todo o comentário do Coletivo é o fato de que os pablistas eram não apenas oportunistas políticos como também utilizavam métodos burocráticos. Não falam sobre as posições do Secretariado Internacional de Pablo (SI) na greve geral francesa nem no princípio de revolta operária em Berlim Oriental em 1953, ocasiões em que os pablistas defenderam as traições dos stalinistas. Não demonstram que a adaptação de Pablo a outras correntes do movimento que supostamente cumpririam papel “objetivamente revolucionário” se estendeu não somente ao stalinismo, mas também ao nacionalismo e à socialdemocracia e outras forças não-revolucionárias que seriam supostamente forçadas ao caminho da revolução por circunstâncias objetivas.
Os pablistas são responsáveis por vários desrespeitos burocráticos aos direitos da seção chinesa emigrada na Europa, que foram denunciados como fugitivos de uma revolução por não seguirem a liderança de Pablo, que considerou Mao um revolucionário e não defendeu os trotskistas chineses contra a repressão que se seguiu. Pablo inclusive suprimiu artigos que criticavam a liderança maoísta (como é relatado por Peng Shuzi). Não apenas os pablistas expulsaram burocraticamente a maioria da seção trotskista francesa (PCI, o “grupo de Lambert”), que discordava da sua visão política liquidacionista, como também tentaram fazer o mesmo com a seção norte-americana através da colaboração secreta com a fração de Cochran-Clarke do SWP. De fato, foi somente esta tentativa que fez o SWP despertar de sua apatia internacional e passar a cumprir um papel na luta contra Pablo, Mandel e seus aliados. Isso pode ser confirmado com a leitura da Carta Aberta aos Trotskistas do Mundo Inteiro, onde Cannon escreve:
 
“O jogo duplo de Pablo ao apresentar uma face à liderança do SWP enquanto secretamente colaborava com a tendência revisionista cochranista é um método que está fora da tradição do trotskysmo. Mas existe uma tradição à qual ela pertence — ao stalinismo. Tais instrumentos, usados pelo Kremlin, são os mesmo usados para corromper a Internacional Comunista. Muitos de nós experimentamos isso no período de 1923-1928.”
 
No mesmo documento podemos ter uma idéia dos motivos da liderança do SWP para preferir disputar os quadros do trotskismo por fora da “Quarta Internacional” pablista, ao invés de travar a luta por dentro:
 
“Resumindo: o abismo que separa o revisionismo pablista do trotskysmo ortodoxo é tão profundo que nenhum compromisso político ou organizativo é possível. A fração de Pablo demonstrou que não permitirá decisões democráticas que reflitam a opinião da maioria. Eles exigem a completa submissão à sua política criminosa. Eles estão decididos a eliminar da IV Internacional todos os trotskystas ortodoxos, a calá-los ou atar-lhes as mãos.”
 
O Coletivo Lenin não está apenas discordando de Cannon sobre a tática correta para combater os pablistas, mas sim rejeitando sob qualquer condição um racha com a liderança burocrática e revisionista de Pablo e Mandel. O Comitê Internacional expunha a necessidade de travar uma luta para derrotar politicamente as concepções pablistas, extingui-las do movimento trotskista mundial. Isso é algo que o Coletivo Lenin não reconhece e de fato esconde. O racha do SWP com o pablismo é descrito como algo despropositado, “um erro”.
É sempre preferível para aqueles que querem indevidamente reivindicar a trajetória de revolucionários honestos tentar transfigurá-los em oportunistas inconsequentes à imagem e semelhança dos primeiros. O Coletivo Lenin hoje não considera que o pablismo foi o principal responsável pela destruição da Quarta Internacional (colocando a culpa no próprio programa do trotskismo e em algumas de suas previsões imprecisas sobre o desenvolvimento do capitalismo). O líder do grupo, Paulo Araújo, acredita que o Secretariado Internacional pablista era uma organização revolucionária. O guia teórico do Coletivo Lenin pode ser resumido no seguinte trecho:
 
“Nos próximos capítulos, mostraremos que é impossível formular uma estratégia certa para a revolução mundial sem uma análise correta da decadência do capitalismo, e que essa estratégia é bem diferente da concepção leninista-trotskista de pequeno grupo que se torna, combatendo o reformismo das direções traidoras, um partido de quadros que mobiliza as massas através de reivindicações transitórias rumo ao poder. Ao mesmo tempo, veremos como a Quarta Internacional foi destruída não pelo revisionismo pablista, mas sim pela sua incapacidade de superar a herança da estratégia leninista e sua visão sobre a revolução mundial iminente.”

***


Somos então informados pelo Coletivo Lenin de que o SWP era, no entanto, uma “organização saudável”, porque voltou atrás da sua decisão de 1953 e realizou uma fusão com os pablistas dez anos depois. Saudáveis aqueles que buscam aliança com o revisionismo?
O Coletivo tenta mostrar a fusão do CI com o SI (para formar o Secretariado Unificado) como uma necessidade urgente, independente do posicionamento político de ambos. Depois coloca que a “reunificação” foi uma “oportunidade perdida”, dando como exemplo a posição pablista do SU com relação à revolução cubana (Fidel Castro como um “trotskista inconsciente”). Isso não corresponde nem um pouco aos fatos concretos. Desde 1961 a liderança do SWP vinha tendo a mesma posição dos pablistas com relação a Cuba. No documento Gênese do Pablismo, escrito pela Liga Espartaquista em 1972 (e traduzido para o português pelo Coletivo Lenin na época em que ele era uma organização revolucionária) está escrito que:
 
“Quando a questão da reunificação, que se consumaria em 1963 com a formação do Secretariado Unificado, veio novamente à tona, o terreno político em sua totalidade havia mudado. O SI e o SWP convergiram com relação a Cuba. Mas a base já não era uma convergência aparente, senão o abandono por parte do SWP do trotskismo para abraçar o revisionismo pablista.”
 
Foi a adoção do método do pablismo pelo SWP que permitiu a fusão, e não uma mera necessidade de reunificar os trotskistas. Obviamente defendemos a necessidade de reunificar os quadros trotskistas, tanto naquela época quanto hoje. Mas essa reunificação deve se dar sob um programa que represente a perspectiva histórica revolucionária orientada para a classe trabalhadora, e não uma adaptação às lideranças traidoras (como o stalinismo, o nacionalismo, a socialdemocracia) existentes no movimento. A fusão do SWP com o SI pablista foi uma derrota que afastou, ao invés de aproximar, a reconstrução revolucionária de Quarta Internacional – o SWP foi perdido para o revisionismo e essa foi a base da fusão. Era assim que o próprio Coletivo Lenin colocava a questão quando seguia um programa político revolucionário:
 
“O colapso político do SWP como organização revolucionária, assinalado pelo seu entusiasmo acrítico em relação ao castrismo nos anos 60, e culminando com a sua unificação com os pablistas em 1963, foi um golpe enorme para todos os comunistas.”
 
De “um golpe enorme para todos os comunistas”, a aproximação e finalmente a fusão do SWP com os pablistas se transformou em uma “puta oportunidade perdida”. “Infelizmente”, diz o Coletivo Lenin, “a autocrítica do pablismo foi parcial… e não impediu que se repetissem as mesmas concepções centristas.” Aparece aqui como uma “infeliz” surpresa o que, na verdade, foi a própria base da reunificação que gerou o SU. Tal deformação da realidade só se explica pela adoração do atual líder do Coletivo Lenin ao centrismo de Mandel e do SU, que ele considera revolucionários (ainda que fazendo algumas críticas à parte de suas posições centristas). Como afirmou em um documento interno: “O SU, acho que em linhas gerais era revolucionário nas décadas de 50 e 60.” (outubro de 2010).

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É preciso ainda fazer alguns comentários sobre o Comitê internacional. Obviamente reconhecemos que ele cometeu erros políticos consideráveis. No entanto, o seu maior erro foi não ter combatido suficientemente bem o pablismo. Para isso, vamos citar o livreto O Pablismo e a Crise da Quarta Internacional, escrito em 2010 pelo Coletivo Lenin e disponível até hoje na página inicial do seu site, mas abandonado pelo próprio grupo na prática:
 
“Podemos vislumbrar que os objetivos táticos imediatos dessa nova organização [o CI] deveriam ser atrair os trotskistas remanescentes sob influência de Pablo e combater duramente o pablismo, se lançando para realizar as tarefas corretas diante do stalinismo (unidade na ação, mas clara diferenciação no programa), jogando luz sobre a estratégia traidora de Pablo. Infelizmente, essa perspectiva desafiadora jamais chegou a se concretizar. Apesar da atração dos quadros resistentes do trotskismo para fora da Quarta Internacional pablista, o Comitê Internacional nunca se tornou uma organização consequente de combate ao pablismo.”
 
A principal crítica que deve ser feita ao CI é pelo fato de não ter combatido o pablismo da maneira como deveria, não por ter rachado com Pablo e Mandel. No que diz respeito aos outros erros políticos do Comitê Internacional, não temos quaisquer ilusões. O CI cometeu erros graves, dentre os quais poderia ser incluído também o fato de nenhuma das suas seções ter dado uma resposta revolucionária à revolução boliviana de 1952, como é relatado pela Tendência Vern-Ryan do SWP.
Ao mesmo tempo há muitos lampejos prévios de desenvolvimentos que ocorreriam no futuro. A noção teórica incorreta de que os stalinistas eram “contrarrevolucionários de cabo a rabo” e dessa forma não poderiam, nem em circunstâncias excepcionais, derrubar o capitalismo foi adotada por todo o CI, incluído Cannon e o SWP. Ela foi um reflexo não de uma adaptação ao anticomunismo imperialista, mas uma tentativa com erros de combater as posições de Pablo de que os stalinistas haviam deixado de ser contrarrevolucionários e iriam agir para liderar a revolução mundial.
As afirmações de que o stalinismo era contrarrevolucionário de cabo a rabo, no fim, levaram a conclusões políticas stalinofóbicas sob circunstâncias diferentes, mas isso só iria acontecer muitos anos depois. A adaptação da seção britânica à socialdemocracia, por exemplo, foi real e teve sua origem em seguir a política de Pablo de entrismo profundo em todos os partidos de massas, fossem socialdemocratas ou stalinistas.
No entanto, a luta falha do CI foi, apesar de tudo, um luta contra o revisionismo. Essas falhas sem dúvida contribuíram para preparar a subsequente explosão do CI e a fusão do SWP com os pablistas. Mas o combate também gestou a continuidade da luta contra o revisionismo através da Liga Espartaquista, por exemplo. O Coletivo Lenin é absolutamente incoerente quando acusa (corretamente) a seção inglesa do CI de adaptar-se à socialdemocracia durante o período em que estava dentro do Labour Party ao mesmo tempo em que defende que foi correta uma fusão com os pablistas, adaptados por natureza à socialdemocracia, ao stalinismo e ao nacionalismo burguês.

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O Coletivo Lenin diz a Liga Espartaquista “repetiu o mesmo erro (sic) de Cannon da época da Carta Aberta”, ou seja, romper com os pablistas. Novamente o mesmo “crime”: formar uma organização independente dos revisionistas. A Liga Espartaquista reconheceu a necessidade de combater o pablismo e de tentar arrancar da liderança pablista os setores saudáveis do trotskismo. Em 1963, a sua precursora (a Tendência Revolucionária do SWP) se dispôs, inclusive, a adentrar a fusão que gerou o SU, com interesses táticos de disputar os trotskistas combativos do SWP – ou seja, realizar um entrismo. Isso está registrado no documento que traduzimos recentemente para o português, Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional (julho de 1963):
 
“’Reunificação’ do movimento trotskista na base centrista do pablismo em qualquer das suas variantes seria um passo que afastaria, ao invés de aproximar, o genuíno renascimento da Quarta Internacional. Se, entretanto, a maioria dos grupos trotskistas atualmente existentes insistem em seguir em frente com tal ‘reunificação’, a tendência revolucionária do movimento mundial não deve virar suas costas para esses quadros. Pelo contrário: seria vitalmente necessário passar por esta experiência com eles. A tendência revolucionária entraria nesse movimento ‘reunificado’ como uma fração minoritária, com a perspectiva de ganhar uma maioria para o programa da democracia operária. A Quarta Internacional não irá renascer através da adaptação ao revisionismo pablista: somente com uma luta teórica e política contra todas as formas de centrismo é que o partido mundial da revolução socialista pode finalmente ser estabelecido.”
 
Não se trata de uma ignorância justificável do autor do comentário, visto que nós mesmos deixamos essa posição da Tendência revolucionária clara para a maioria do Coletivo Lenin na época de nossa luta fracional contra o oportunismo que atualmente domina o grupo, e que o documento em questão foi lido pelos camaradas. O líder do Coletivo Lenin havia feito essa mesma acusação anteriormente e reconheceu o seu erro em um email de 14 de fevereiro: “Eu realmente não sabia sobre a posição da SL de entrar no SU. Então, temos que corrigir as teses. Além disso, essa decisão mostra que eles eram ainda melhores do que eu pensava, e se propuseram à tarefa certa. Infelizmente, se perderam depois naquela religião do CI, e se destruíram”.
Em nenhum momento, entretanto, a TR deixava de classificar o SI e a maioria do SWP como centristas e de prometer contra eles uma luta teórica e política. Acontece que tal perspectiva não chegou a se realizar. A TR foi expulsa de maneira antidemocrática do SWP, decisão sobre a qual os pablistas europeus de Pablo e Mandel “lavaram as mãos”. Será que o Coletivo Lenin vai agora negar isso para tentar atestar que o Secretariado Unificado tinha um regime interno “democrático”?
O Coletivo Lenin argumenta que a Liga Espartaquista era sectária (por buscar formar uma corrente internacional própria) e que capitulava ao stalinismo. Em primeiro lugar, desconhecemos qualquer documento da Liga Espartaquista que aponte como algum tipo de “princípio” o seu isolamento. Na verdade, ela pontuou que a necessidade de construir uma corrente internacional revolucionária advinha do oportunismo e/ou burocratismo das organizações “trotskistas” existentes naquele momento. Na sua Declaração à Conferência de 1966 do Comitê Internacional, a Liga Espartaquista corretamente afirmou:
 
“Um camarada francês colocou muito bem: ‘não existe família do trotskismo’. Só existe o programa correto do marxismo revolucionário, que não é um guardachuva. No entanto, existem agora quatro correntes internacionais organizadas reivindicando serem trotskistas, e que são consideradas como ‘trotskistas’ em certo sentido convencional. Esse estado de coisas deve ser resolvido através de rachas e fusões. A razão para a presente aparência de uma “família” é que cada uma das quatro tendências – ‘Secretariado Unificado’, ‘Tendência Marxista Revolucionária’ de Pablo, ‘Quarta Internacional’ de Posadas, e o Comitê Internacional – é, em alguns países, o único grupo organizado reivindicando a bandeira do trotskismo. Dessa forma, eles atraem todos aqueles que querem se tornar trotskistas em suas áreas e suprimem a polarização; não há luta e diferenciação, ganha-se alguns e expulsa-se outros para forçá-los a abandonar suas pretensões como revolucionários e trotskistas. Assim, quando vários camaradas Espartaquistas visitaram Cuba, nós descobrimos que o grupo trotskista de lá, parte da Internacional de Posadas, era composto em maioria de excelentes camaradas lutando com valor sob difíceis condições. Os discursos feitos aqui pelos camaradas dinamarqueses e ceilaneses, representando alas de esquerda do Secretariado Unificado, refletem tais problemas.”
 
“O racha parcial e exposição crua das forças do Secretariado Unificado – a expulsão de Pablo, a traição no Ceilão, a linha de colaboração de classe do SWP na guerra do Vietnã, Mandel se rastejando diante dos herdeiros da socialdemocracia belga – provam que foi-se o tempo em que a luta contra o pablismo poderia ser travada num plano internacional por dentro de um mesmo espectro organizativo. E a experiência particular de nossos grupos nos Estados Unidos, que foram expulsos meramente pelas opiniões que mantinham, sem direito de apelo, demonstram que o Secretariado Unificado mente quando ele diz quere incluir todos os trotskistas.”
 
A Liga Espartaquista estava correta nisso e tinha razões profundas para não buscar construir uma organização com os pablistas, ou com Gerry Healy, o líder da seção inglesa do Comitê Internacional, com o qual ela buscava uma fusão até ter sofrido perseguições burocráticas.
“Sectário” é aquele que busca se isolar do movimento revolucionário sem motivos a não ser seus próprios fetiches. O Coletivo Lenin acha que é “sectário” negar unidade político-organizativa com os revisionistas? A Liga Espartaquista apresentava motivos políticos que consideramos extremamente importantes para não estar dentro das organizações que então se reivindicavam revolucionárias. Se o Coletivo Lenin acredita que os motivos políticos que separavam os pablistas dos trotskistas eram irrelevantes, então eles deveriam rejeitar qualquer aproximação com James Cannon ou com a Carta Aberta. O Coletivo Lenin também deveria, se agisse conforme suas palavras, liquidar em um grupo “revolucionário” maior. Já que o Coletivo reivindica atualmente reconhecer vários outros grupos como revolucionários, pelos seus próprios critérios a decisão de manter a sua própria organização separada não tem sentido ou justificativa exceto uma expressão verdadeira de “sectarismo”.

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A Liga Espartaquista é acusada de capitular ao stalinismo por, supostamente, “não ter condenado” a invasão soviética à Tchecoslováquia em 1968, que esmagou a “Primavera de Praga”, uma concessão de uma ala da burocracia (liderada por Alexander Dubcek) de diminuir a repressão do regime, o que poderia facilitar as possibilidades de uma revolução política proletária no país. Trata-se de uma calúnia.
              A Liga Espartaquista não publicou nenhum texto sobre essa questão em 1968. Essa foi uma falha em razão das suas limitações (ela possuía então apenas um jornal bianual). Mas ela teve uma posição pública, que foi de condenar a ocupação soviética (uma forma de garantir a manutenção dos aspectos repressivos do regime), ao mesmo tempo em que chamava a não confiar na ala Dubcek da burocracia, nem em qualquer outra, apostando na ação independente da classe trabalhadora. Esta posição estava de acordo com o que a Liga Espartaquista colocou como tarefa dos trotskistas nos Estados operários degenerados ou deformados: defender as conquistas sociais contra as tentativas de contrarrevolução capitalista e lutar para derrubar a burocracia governante através de uma revolução política. Essa posição pode ser facilmente constatada em trechos posteriores publicados pela Liga Espartaquista ou sua corrente internacional. Para não sermos maçantes, vamos citar apenas três:
 
“A invasão soviética na Tchecoslováquia em agosto de 1968 sublinhou a contradição central dos países stalinistas primeiramente analisada por Trotsky: a propriedade social dos meios de produção coexistindo com uma burocracia repressiva que havia usurpado o controle político do proletariado e deforma os vastos potenciais da economia. O ímpeto para a invasão não foi o medo de uma ameaça militar da Alemanha, mas o relaxamento da censura política e controle que a ala Dubcek da burocracia foi forçada a tolerar com o objetivo de ‘liberalizar’ a economia ao aumentar a exploração dos trabalhadores Tchecos. A Liga Espartaquista condena a invasão russa, ao mesmo tempo notando a ausência de oposição sindical de massa, que caracterizou a revolução húngara de 1956. (…)”
Developments and Tactics of the Spartacist League
Resoluções Adotadas na Segunda Conferência Nacional, 30 de agosto a 1 de setembro de 1969
Reimpresso no Boletim Marxista número 9
 
“A URSS e os Estados operários deformados devem receber defesa militar incondicional pela classe trabalhadora contra o imperialismo ou contrarrevoluções nativas. Ao mesmo tempo, entretanto, nós nos posicionamos em oposição a tentativas da burocracia soviética de defender os seus próprios interesses estreitos através de tais táticas como a invasão da Tchecoslováquia em 1968 e a supressão dos sovietes húngaros pelos tanques russos em 1956. Nos Estados operários degenerados e deformados nós lutamos por partidos trotskistas para liderar o proletariado na luta pela democracia soviética através da derrubada desses burocratas anti-proletários.”
Defend the Russian Revolution, publicado pela Liga Trotskista (seção canadense da Tendência Espartaquista Internacional), extraído de Spartacist Canada número 21, página 12, novembro de 1977.
 
O terceiro que está aqui traduzido do espanhol foi, há menos de seis meses (!), circulado internamente por nossa tendência dentro do Coletivo Lenin, já que dizia respeito ao fato de Fidel Castro, que era defendido pelo SU, ter apoiado a invasão soviética. Também na “Primavera de Praga”, o SU apoiou sem críticas a ala da burocracia stalinista, que queria construir um “socialismo menos repressivo” em um só país.
 
“Ainda que sob uma pressão considerável por parte do colosso imperialista ianque do norte (…) os cubanos aparentemente decidiram ‘melhorar’ suas relações com Moscou em troca de um incremento na ajuda militar e econômica. Assim, quando em 23 de agosto de 1968 os tanques soviéticos entraram em Praga, Castro fez um importante discurso radiofônico para apoiar a invasão do Kremlin à Tchecoslováquia. Seu discurso foi uma ducha fria para muitos castristas latinoamericanos e deve ter remexido ainda ao SU. Mas tanto haviam se acostumado estes ex-trotskistas a desculpar o indesculpável, que Joe Hansen escreveu um grande artigo (…) no qual ‘lamenta’ de passagem que Castro não tenha visto a invasão tcheca como um dos piores crimes do Kremlin…”.
Lugarteniente del Kremlin en Africa: Cuba exporta la traición estalinista
Spartacist em espanhol número 7, junho de 1979
 
Essa questão também foi apontada por nós em nossa luta interna, quando deixamos claro que a Liga Espartaquista foi contra a invasão das tropas do Pacto de Varsóvia à Tchecoslováquia. Apesar disso, o Coletivo Lenin publica essa falsa acusação sem a menor base documental, com o objetivo claro de desmoralizar uma corrente revolucionária que combateu o pablismo. Foi somente quando estava se tornando uma corrente degenerada política e organizativamente que a Liga Espartaquista começou a ter ilusões e a elogiar o papel da burocracia stalinista. Na Carta de ruptura do Coletivo Lenin com a IBT (escrita em dezembro de 2010), quando o grupo ainda defendia uma perspectiva revolucionária, ele colocou a questão da maneira correta:
 
“Vimos que a SL havia assumido uma série de posições estranhas a partir de fins dos anos 1970. Em 1979, paralelamente à posição correta de defender a aliança tática com o Exército Vermelho contra os fundamentalistas islâmicos apoiados pela CIA, eles também levantaram a palavra de ordem acrítica de ‘Viva o Exército Vermelho no Afeganistão!’, quando da ocupação do país. Outras adaptações pró-stalinistas muito semelhantes se seguiram a essa, com a organização de uma coluna em um ato nomeada ‘Brigada Yuri Andropov’, em homenagem ao líder da URSS na época e a resposta às críticas com a publicação de um poema em sua homenagem na primeira página de seu jornal, quando da morte do burocrata.”
 
Isso é bem diferente de ter publicação insuficiente e não responder a todos os fenômenos da luta de classes, o que é infelizmente natural para um grupo pequeno. A mesma coisa aconteceu com o Coletivo na ocasião das provocações militares da Coréia do Sul contra o Estado operário deformado da Coréia do Norte no fim de 2010. O Coletivo Lenin, que então dizia inequivocamente que o país era um Estado operário deformado, teve a posição pública de defender militarmente a Coréia do Norte, mas não publicou nenhum texto sobre o assunto. Será que isso nos permitiria dizer que o Coletivo Lenin “não condenou” a provocação? Obviamente não.

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Se em alguns momentos o atual líder do Coletivo Lenin realizou enganações conscientes em sua narrativa sobre a história do trotskismo, em outros pontos ele está simplesmente expressando sua própria ignorância em muitas questões. No entanto, falta de familiaridade com certas questões nunca o inibiram de proclamar a si próprio uma autoridade no assunto. O papel de Cannon na reunificação do SWP com os pablistas não foi central. Desde a época após o racha com os pablistas em 1953, Cannon, já um senhor idoso, havia se recolhido para cuidar da saúde na Califórnia. Ele prestou apoio à reunificação (uma parte da sua trajetória que nós não reivindicamos), mas não foi o seu artífice como o comentário do Coletivo Lenin poderia deixar a entender ao dizer que ele “continuou lutando pela reunificação entre todas as correntes revolucionárias (sic)”.
Também falsa, entretanto, é a afirmação segundo a qual “Dentro do SU, ele [Cannon] combateu, junto com Moreno, a política de luta armada imediata na América Latina… Infelizmente, mesmo a posição sobre a luta armada estando certa, tanto o SWP quanto o PST de Nahuel Moreno fizeram as críticas a partir de um ponto de vista muito próximo do social-pacifismo”. Cannon nunca chegou a participar das disputas internas do SU, quando a ala à direita de Joseph Hansen e Nahuel Moreno decidiu romper com as concepções guerrilheiras que haviam adotado ao capitular ao castrismo. Nessa época, o veterano trotskista já tinha a saúde muito debilitada, vindo a falecer pouco depois, em 1974, aos 84 anos. Cannon estava nessa época longe de contato com o centro do partido havia muitos anos e de acordo com relatos, lhe desagradava o rumo político que estava tomando o partido que ele havia fundado.
O legado de Cannon ao romper com a Internacional Comunista em 1928 segue como um exemplo para todos os revolucionários que colocam os princípios e as intenções revolucionárias acima dos interesses pessoais ou privilégios. É também um exemplo de que a perspectiva revolucionária está amplamente ligada a dizer a verdade à classe trabalhadora para livrá-la das concepções burguesas ou “realistas”. A tradução para o português que realizamos da carta de Cannon que intitulamos James Cannon Sobre sua “Poltrona de Couro” (citada na postagem de Nova Dialética) buscou despertar o espírito crítico e corajoso de Cannon nos revolucionários dispersos pelo mundo.
Esse sentimento se encontra não apenas no rompimento de Cannon com a Terceira Internacional stalinista, como também na sua coragem para encabeçar uma ruptura do movimento por ele fundado em colaboração com Trotsky, em nome da defesa de um projeto revolucionário contra o revisionismo. Essa luta contra o pablismo e a coragem necessária para tanto estão atualmente ausentes na prática e nas palavras do Coletivo Lenin. Essa postura impede que esse grupo possa contribuir positivamente para reconstrução revolucionária da Quarta Internacional.

Balanço das Recentes Lutas Estudantis na UFRJ

Relato de um Participante
O Movimento Estudantil na UFRJ e a Confiança na Burocracia Acadêmica

Leandro Torres
Outubro de 2011
O artigo a seguir constitui o relato de um de nossos militantes sobre as recentes mobilizações e lutas ocorridas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O Reagrupamento Revolucionário esteve presente durante todo o processo, buscando através das intervenções de seus militantes fazer avançar a consciência dos estudantes envolvidos, rumo a um movimento estudantil de caráter realmente combativo e classista. O presente relato é essencial para um entendimento da realidade política existente no movimento estudantil, ainda mais levando em conta que a UFRJ passa por um processo eleitoral para a entidade representativa dos estudantes.

Nas três primeiras semanas de setembro, a UFRJ passou por um processo de considerável mobilização que levou para a luta centenas de estudantes e penetrou nos mais diversos cursos. Esse processo começou no campus da Praia Vermelha, onde o fechamento de um restaurante privado fez com que os estudantes, através de seus Centros Acadêmicos e do Diretório Central de Estudantes (DCE), se movimentassem em torno da luta pela construção de um restaurante universitário no local. No ápice dessa mobilização, ocorreu um ato-almoço como forma de demonstrar a necessidade por alimentação barata e assistência estudantil. A palavra de ordem central do ato foi “Bandejão no Fundão, na PV porque não?”. 
Com a repercussão do ato na Praia Vermelha, o DCE foi capaz de realizar um novo protesto na mesma semana, dessa vez no Conselho Universitário (CONSUNI). Compareceram cerca de 200 estudantes, que exigiram uma série de medidas que foram além da abertura de um bandejão na Praia Vermelha – bandejões nas demais unidades isoladas, creche para mães universitárias e reformas nas instalações físicas da universidade. Frente à mobilização dos estudantes, a Reitoria suspendeu a sessão de forma autoritária.
Esse tipo de autoritarismo é algo que os estudantes devem esperar sempre que suas demandas forem divergentes dos projetos da Reitoria, pois o CONSUNI é um órgão nada democrático, composto em sua imensa maioria por professores comprometidos com os projetos do governo Dilma para a educação e que tem estudantes e funcionários em número bem menor de representantes. Para piorar, os conselheiros não são eleitos por sufrágio universal entre todos os setores de universidade [1].
Porém, como veremos adiante, os principais grupos políticos que atuam no movimento estudantil da UFRJ e que compõem a atual gestão do DCE, por mais que reproduzam esse discurso de não-confiança no CONSUNI, acabam na prática por se adaptar aos limites que sua estrutura “aristocrática” impõe às lutas, impedindo a aprovação de demandas de caráter mais avançado.
Diferente de tais forças, nós defendemos uma alternativa real a este órgão que cumpre a função essencial de ser um braço do governo (e dos empresários) dentro da universidade: nenhuma confiança no CONSUNI, pelo controle da universidade através de órgãos dos estudantes e trabalhadores (funcionários efetivos e terceirizados e professores)! Esses setores são não só a maioria na universidade, mas também os mais interessados em um ensino de qualidade e acessível para os filhos da classe trabalhadora. Apenas quando a universidade for controlada por eles é que será realmente popular!

Um ascenso contra a precarização do ensino…

Após esta primeira investida, a Reitoria decidiu convocar uma sessão extraordinária do Conselho para a semana seguinte, voltada para discutir as demandas apresentadas pelos estudantes. Nessa segunda sessão, os estudantes compareceram em massa, em uma verdadeira demonstração de força que levou mais de 500 ao prédio da reitoria – quantidade que há muito não se via mobilizada dentro da UFRJ.
Passamos atualmente por um momento politicamente rico em várias partes do mundo, no qual setores da juventude e da classe trabalhadora têm saído às ruas contra ataques aos seus direitos e empregos, contra ditaduras que perduram há décadas e contra a sociedade extremamente desigual em que vivemos, onde alguns poucos patrões têm tudo e uma esmagadora maioria de trabalhadores e jovens precarizados não têm nada. E esse momento de intensa mobilização não se restringe à Europa ou a alguns países do “mundo árabe”. Também no Brasil temos visto importantes lutas sendo travadas, como a dos operários do PAC em Jirau, Pecém e Pernambuco. Em nossa própria cidade, a combativa greve dos educadores estaduais, e a recente ocupação estudantil da reitoria da UFF mostram que a luta é possível e necessária.
Constantemente bombardeados por notícias sobre mobilizações, muitos estudantes se dispuseram a deixar o campo do sonho e das reclamações vazias e adentrar a realidade, se organizando e lutando por uma educação de qualidade. Assim, vimos se espalhar pela UFRJ um intenso clima de mobilização e politização, que no segundo ato no CONSUNI demonstrou a disposição da juventude universitária em se movimentar, principalmente entre os calouros, que tiveram então uma primeira experiência com o movimento estudantil e que estavam presentes em peso.
Se tivesse sido levado até as últimas consequências, esse ascenso localizado poderia ter cumprido um importante papel de intensificar as mobilizações estudantis da cidade, que desde 2008 vêm sofrendo de uma paralisia que só fortalece os poderosos: quantos cortes, por exemplo, já não sofreu o passe estudantil dos secundaristas devido à incapacidade do movimento de se mobilizar?
E tal ascenso, como demonstra um documento de reivindicações formulado pela base dos estudantes, foi muito além da proposta inicial do DCE, de uma luta cujo centro era a construção de um bandejão na Praia Vermelha. Através de uma assembleia realizada com os estudantes presentes após a primeira sessão, além de outras reuniões ocorridas na semana que se seguiu, o DCE teve que preparar um extenso documento que condensava as principais reivindicações por assistência estudantil e ensino de qualidade. Entre elas constavam propostas bastante avançadas colocadas pelos diversos grupos que se encontram à esquerda da atual gestão do DCE – composta majoritariamente por simpatizantes e militantes do PSTU e do Enlace/PSOL, e que tem estado na direção desde 2007.
Destacamos as demandas de fim do vestibular e livre acesso à educação superior, efetivação imediata dos trabalhadores terceirizados da universidade e utilização apenas de mão de obra concursada, além da possibilidade de uso da creche e dos próprios bandejões por esses trabalhadores, extremamente precarizados e sem direitos. Também a construção de bandejões em todos os campi abertos em tempo integral e reajuste das bolsas de assistência estudantil para o valor de um salário mínimo. Propostas, portanto, capazes de dar um passo a frente na luta pela “educação pública, gratuita e de qualidade”, sem mão de obra precarizada e aberta aos filhos dos trabalhadores. Propostas que, obviamente, não seriam aprovadas de bom grado pela burocracia da universidade que controla o CONSUNI, menos ainda pelos lacaios do governo Dilma/PT que dominam a Reitoria.
A quantidade de propostas nesse documento de quase 15 páginas demonstra a precariedade do ensino público, que vem sofrendo constantes ataques por parte do governo do PT em aliança com os empresários. Com a força concentrada que tinha no momento do segundo ato, o movimento estudantil da UFRJ poderia ter arrancado muitas conquistas do CONSUNI e da Reitoria, porém não foi o que aconteceu.

… mas um ascenso que foi traído pela adaptação à burocracia acadêmica
         
Assim como fizeram na primeira sessão diante da força e da mobilização dos estudantes, os conselheiros, comprometidos com a Reitoria, suspenderam a segunda sessão e se retiraram do local. Muitos alegaram como desculpa para tal suspensão um forte sentimento de “insegurança”, já que a sala do Conselho estava completamente abarrotada de estudantes gritando palavras de ordem e exigindo que suas demandas fossem aprovadas imediatamente. Porém esses conselheiros não tinham nada a temer – o tempo inteiro os próprios representantes do DCE no CONSUNI pediram para que os estudantes se acalmassem, pois seria fundamental “garantir a sessão”, ou seja, garantir que ela não fosse suspensa, para assim poderem tentar colocar sob aprovação o documento com as demandas.
Com a suspensão da sessão, organizou-se uma grande assembleia entre todos os lutadores presentes, para decidir os rumos da mobilização. Nesse momento, os porta-vozes do Coletivo Levante e da direção majoritária da ANEL (ligados respectivamente ao Enlace/PSOL e ao PSTU) fizeram falas que defendiam a necessidade de se “retomar” a sessão, e isso depois dos conselheiros já terem até mesmo saído do prédio, fugindo da avalanche estudantil! Outras forças políticas, como o Movimento Correnteza, composto por militantes do PCR e independentes, foram pelo mesmo caminho, tentando apaziguar os ânimos e defender a necessidade de se retomar a sessão suspensa.
Graças à desorganização proposital imposta à assembleia pelas lideranças do DCE, os grupos de oposição à esquerda da atual gestão não conseguiram falar para defender que a tarefa colocada pelas circunstâncias era aprovar que se realizasse uma ocupação como forma de arrancar o máximo possível de conquistas das mãos da Reitoria. Apesar de não terem conseguido defender essa proposta, o coro de vozes que por vezes gritou “Ocupa, ocupa!” deixou clara a disposição dos estudantes e a única forma como eles viam ser possível garantir conquistas: ocupando!
Como sintoma da radicalização dos lutadores presentes, alguns representantes do bloco de apoio ao governo Dilma (PT/PCdoB) eram hostilizados após suas falas com vaias e protestos, pois defendiam abertamente que os estudantes deveriam tentar chegar aos seus objetivos “negociando” com o antidemocrático Conselho Universitário, dominado pela burocracia estatal-acadêmica que apoia tal governo.
Porém, em uma aparente contradição com sua identidade de “oposição de esquerda” a Dilma, as três forças citadas (Levante, ANEL e Correnteza) também preferiram apostar suas fichas em chamar de volta o CONSUNI, ao invés de aproveitar a justa raiva dos estudantes e realizar uma ação combativa e direta, que poderia ter combinado demandas de estudantes e trabalhadores em um forte movimento. Assim, a reação desses grupos de “oposição” a Dilma foi muito mais parecida com os defensores do governo do que eles gostariam de admitir: buscar conseguir conquistas através de um fórum da burocracia acadêmica ao invés de confiar inteiramente na mobilização dos estudantes e na aliança com os trabalhadores. Diferente desses grupos, para nós a oposição a governos e reitorias não se faz só com palavras, mas com atos. E naquele momento, o ato necessário de uma oposição consequente era ocupar a reitoria para arrancar conquistas.
A sequência de falas de militantes do Enlace, PCR e PSTU (para não falarmos dos defensores do governo e da Reitoria) cumpriu um nefasto papel de quebrar a disposição dos lutadores, espalhando ilusões no CONSUNI e na possibilidade de se obter vitórias profundas através desse fórum pertencente à burocracia universitária. Como resultado, após quase duas horas de uma infrutífera assembleia, cerca de um terço dos presentes já havia abandonado o local, descrentes de que aquilo chegaria a algum lugar.

Confiar nos estudantes ou na aristocracia da universidade?

Após mais algum tempo de assembleia, chegou um documento da Reitoria, entregue a uma comissão de negociação que não foi eleita por fórum algum, sendo formada pelos dirigentes das correntes que compõem a gestão do DCE. Tal documento não possuía praticamente nada de concreto, apenas uma série de propostas abstratas, sem prazo algum, sem orçamento, sem nada – apenas promessas vazias. Mas mesmo assim, os dirigentes do DCE resolveram colocar tal documento para aprovação da assembleia, alegando que bastava realizarmos “adendos” a ele. Ou seja, jogaram pela janela o documento aprovado pela base do movimento estudantil em uma série de fóruns democráticos e aceitaram negociar as propostas rebaixadas da Reitoria. Mais uma vez, graças principalmente aos grupos de oposição à esquerda do DCE, incluindo o Reagrupamento Revolucionário, a proposta aprovada na assembleia incluiu demandas avançadas, que ressaltaram inclusive a necessidade de combate à precarização do trabalho terceirizado que existe em larga escala na UFRJ.
            Ao final do processo de modificação do documento da Reitoria, muitos estudantes já estavam visivelmente abatidos pelo cansaço. Quando finalmente foram aprovados todos os adendos, menos da metade da quantidade de estudantes que havia no início permanecia no local. E não podemos de forma alguma criar mitos para justificar esse esvaziamento. Ele ocorreu por um motivo muito simples: as principais forças políticas que atuam no movimento estudantil da universidade preferiram confiar nos fóruns da burocracia acadêmica ao invés de confiar na força dos estudantes ali presentes.
            Adiou-se para mais uma semana a apreciação das demandas estudantis por parte do CONSUNI, quando elas poderiam ter sido arrancadas através de uma ocupação que podia ter começado com 500 e terminado com milhares. Graças à sua adaptação à ordem, as forças políticas mencionadas fizeram o jogo da Reitoria, de adiar e adiar as votações, desmobilizando assim a base do movimento e até mesmo quebrando sua confiança no caminho da luta.
            O discurso dos dirigentes do DCE era de que, adiando mais uma semana as votações, os estudantes poderiam comparecer em peso ainda maior e forçar o CONSUNI a aprovar mais demandas. Mas a realidade falou mais alto. Na semana seguinte estavam presentes tão poucos que, se chegaram a 200, número do primeiro ato, foi muito. Para piorar, as lideranças do DCE ainda acataram ao “pedido” dos conselheiros de não ter muitos estudantes dentro da sala do Conselho, dividindo assim os (já pouco) presentes em dois grupos, um menor do lado de dentro e outro maior do lado de fora, puxando palavras de ordem e assistindo à sessão através de uma TV!
            Resultado: não se aprovou praticamente nenhuma das demandas dos estudantes. Entre as poucas vitórias conseguidas chamamos atenção para aquela que mais tem sido alardeada pelo DCE como uma conquista “histórica”: o investimento de uma verba sobressalente para a construção de bandejão na Praia Vermelha – muito diferente, portanto, de “bandejão em todos os campi” [2]. Também foi importante a conquista de utilização dos bandejões existentes no período noturno. Infelizmente todo o restante das “conquistas” conseguidas contra a Reitoria é baseada em promessas abstratas, sem prazo e sem previsão de verbas.
            Aliás, falar em uma “vitória histórica” (como tem feito o DCE) diante de tão poucas conquistas reais [3] nada mais é do que mascarar a falta de sucesso em conseguir mais conquistas frente à Reitoria. O fracasso em obter as demandas estudantis mais avançadas foi imposto pelas lideranças estudantis que, completamente adaptadas à lógica do CONSUNI, cumpriram o nefasto papel de desmobilizar mais de 500 estudantes, em sua maioria dispostos a ocupar a reitoria. Hoje os representantes do DCE nos dizem, respondendo aos nossos questionamentos, que não havia “correlação de forças” para uma ocupação. Parece que os conselheiros que literalmente fugiram dos estudantes no segundo protesto tinham uma opinião bem diferente!
            Por último, importantes demandas que tinham como centro a aliança entre trabalhadores e estudantes foram completamente deixadas de lado pelo DCE no momento final, sendo completamente “esquecidas” no boletim publicado pela entidade, tais como a equiparação de todas as bolsas (e seus posteriores reajustes) ao salário mínimo, a imediata efetivação de todos os terceirizados da universidade e a utilização exclusiva de mão de obra concursada no futuro, além da utilização gratuita dos bandejões e creches pelos terceirizados e demais trabalhadores.
            É de extrema importância dizermos que, ao aprovar a construção de bandejões sem impor à Reitoria que não se utilize mão de obra terceirizada nos mesmos, faz com que a vitória (parcial) dos estudantes se expresse em ataques futuros para muitos trabalhadores e trabalhadoras pobres, que se vêm forçados a se submeterem cotidianamente às precárias e opressivas condições do trabalho terceirizado.
            Diferente dos conselheiros discentes no CONSUNI, diferente do Enlace/PSOL, do PCR e do PSTU, nós do Reagrupamento Revolucionário confiamos não na burocracia universitária e em seus fóruns/métodos, mas sim na intensa mobilização dos estudantes e da juventude em geral e em seus métodos de luta, em uma estreita aliança com a classe trabalhadora, dentro e fora da universidade. Confiamos não em meia dúzia de “iluminados” ou de conselheiros, mas nas assembleias da base do movimento e no seu potencial combativo. Foi essa a mensagem que buscamos passar aos mais de 500 lutadores que se dispuseram a ser realistas e exigir o “impossível”.
Fazemos aqui um chamado a todos aqueles que concordam com nossa avaliação a somarem forças pela aliança operário-estudantil como meio de conquistarmos uma universidade verdadeiramente popular!

Notas

[1] O CONSUNI é composto por 27 representantes docentes, 5 representantes dos funcionários e 5 representantes discentes, 14 conselheiros que são automaticamente empossados por comporem a Reitoria e demais cargos de direção dentro da estrutura universitária, além de 2 representantes dos governos estadual e municipal.

[2] Sobre os restaurantes universitários, temos que ter clareza da total insuficiência desses R$4 milhões, uma vez que apenas as obras de complementação do Bandejão Central custaram 8 milhões de reais (!).

[3] Entre as concessões consideravelmente abstratas feitas pela Reitoria encontram-se, por exemplo, a possibilidade de utilização da creche dos servidores por mães estudantes, a expansão do número de bolsas e o reajuste de seu valor, a expansão dos bandejões e do alojamento estudantil. É importante ressaltar que nenhuma delas possui determinação de prazo ou verba para implementação.

James Cannon Sobre sua “Poltrona de Couro”

A revelação de James Cannon sobre sua “Poltrona de Couro”

Esta é uma carta enviada em 27 de maio de 1959 para Theodore Draper, um historiador do movimento comunista norte-americano. A série completa de cartas enviadas por Cannon para Draper foi publicada sob o título de “Os Primeiros Dez Anos do Comunismo Americano” em 1962. Ela foi posteriormente reimpressa pela Pathfinder Press. A tradução para o português foi realizada por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres em 2011.

Eu acho que já dei por encerrado o assunto sobre “O Nascimento do Trotskismo Americano” – no qual eu desempenhei um papel central apenas por estar no lugar certo, na hora certa, e não haver ninguém mais para fazê-lo. Eu não poderia acrescentar muito ao que eu já escrevi em A História do Trotskismo Norte-Americano, em minhas cartas a você, e no longo artigo – “A Degeneração do Partido Comunista e o Novo Começo” na edição do outono de 1954 de Fourth International. A situação é essa. Se eu fosse escrever sobre isso de novo eu só poderia repetir o que eu já disse.

Você vai encontrar uma exposição melhor e mais completa nesses escritos do que uma que eu pudesse escrever hoje em dia. Eu tenho a habilidade, que para mim é gratificante, de empurrar as coisas para o fundo da mente depois de ter escrito sobre elas. Para escrever um relato novo sobre a origem do trotskismo americano, eu teria que me forçar de volta a um estado de semicoma, relembrando e revivendo a luta de 31 anos atrás. Isso é demais para eu enfrentar de novo.


A  única coisa que eu deixei de fora dos meus extensos escritos sobre aquele período, que eu tentei excluir de todos os meus textos, foi o elemento especial de motivação pessoal para minha ação – no qual os cínicos jamais iriam acreditar e os pesquisadores do movimento operário nunca achariam nos arquivos e livros de atas. Eu falo do impulso de consciênciaque surge quando alguém está diante de uma obrigação que, nas circunstâncias dadas, cabe somente a essa pessoa aceitar ou recusar.

No verão de 1928 em Moscou, somada à revelação teórica e política que eu tive depois de ler a Crítica ao Programa da Internacional Comunista de Trotsky, houve uma outra consideração que me atingiu em cheio. Foi o fato de que Trotsky tinha sido expulso e deportado para a distante Alma Ata [no Cazaquistão], de que seus amigos e apoiadores tinham sido caluniados, expulsos e encarcerados, e que todas essas coisas eram umaconspiração!


Será que eu tinha saído de casa, ainda garoto, para lutar por justiça para Moyer e Haywood [1], para naquele momento trair a causa da justiça quando ela se colocava bem à minha frente, numa questão de importância transcendente para o futuro da humanidade? Um moralista de apostila poderia responder facilmente a essa pergunta dizendo: “É claro que não. A regra é clara. Você faz o que é certo fazer, mesmo se isso custar a sua cabeça”. Mas não era tão simples para mim no verão de 1928. Eu não era um moralista de apostila. Eu era um político partidário e um fraccionalista que tinha aprendido a agir de maneira premeditada. Eu já sabia disso a essa altura, e o meu autoconhecimento me deixou apreensivo.
  
Eu tinha gradualmente me estabelecido numa posição segura como representante do partido, com um escritório e uma equipe de assessores, uma posição que eu poderia facilmente manter – desde que eu me mantivesse dentro de limites e regras definidos, sobre os quais eu sabia tudo, e conduzisse a mim mesmo com a facilidade e a habilidade que havia se tornado quase uma segunda natureza para mim nas longas e persuasivas lutas fracionais.
  
Eu sabia disso. E eu sabia de mais uma coisa que eu nunca havia dito a ninguém, mas que tive que dizer a mim mesmo pela primeira vez em Moscou, no verão de 1928. O rebelde de espirito livre que eu costumava ser quando membro do IWW [2] tinha, sem que eu percebesse, começado a se ajustar de maneira confortável a uma poltrona de couro, protegendo a si mesmo e ao seu cargo por pequenas manobras e evasivas, e até permitindo-se uma certa presunção sobre sua acomodação astuta nesse jogo mesquinho. Eu vi a mim mesmo pela primeira vez como outra pessoa, um revolucionário que estava a caminho de se tornar um burocrata. A imagem foi terrível e eu me afastei dela com nojo.
  
Eu nunca enganei a mim mesmo sequer por um momento sobre as consequências mais prováveis da minha decisão de apoiar Trotsky no verão de 1928. Eu sabia que eu iria perder minha cabeça e também minha poltrona de couro, mas eu pensei: Para o inferno – homens melhores do que eu arriscaram suas cabeças e perderam suas poltronas de couro pela verdade e pela justiça. Trotsky e seus aliados estavam fazendo isso naquele mesmo instante nos campos do exílio e prisões da União Soviética. Não era mais do que a obrigação de um homem, por mais limitadas que fossem suas qualificações, lembrar pelo que ele tinha começado a lutar em sua juventude, e expor sua causa para fazer o mundo ouvir, ou ao menos para fazer os Oposicionistas russos exilados e presos saberem que eles tinham encontrado um novo amigo e aliado.
  
Em A História do Trotskismo Norte-Americano, na página 61, eu escrevi:
  
“O movimento que então começava nos Estados Unidos causou repercussões por todo o mundo. Da noite para o dia toda a perspectiva da luta havia mudado. O trotskismo, oficialmente declarado morto, foi ressuscitado na arena internacional e inspirado com renovada esperança, entusiasmo e energia. Denúncias contra nós foram colocadas na imprensa do partido americano e reimpressas mundo afora, incluindo o Pravda de Moscou. Os Oposicionistas russos na prisão e no exílio, quando cedo ou tarde chegasse até eles uma cópia do Pravda, saberiam da nossa ação, da nossa revolta nos Estados Unidos. Na hora mais sombria da luta da Oposição, eles saberiam que novos reforços haviam se unido à luta do outro lado do oceano nos Estados Unidos, que em virtude do poder e peso do país por si próprio, dava importância e peso aos atos dos comunistas americanos.”
  
“Leon Trotsky, como eu coloquei, estava isolado na vila asiática de Alma Ata. O movimento mundial fora da Rússia estava em declínio, sem líderes, suprimido, isolado, praticamente inexistente. Com essas novidades inspiradoras de um novo destacamento na distante América, os pequenos jornais e boletins dos grupos da Oposição explodiram com vida novamente. Mais inspirador do que tudo, para nós, era a certeza de que os camaradas russos sob imensa pressão tinham ouvido nossa voz. Eu sempre pensei nisso como um dos mais gratificantes aspectos da luta histórica que nós tomamos em 1928 – que as notícias de nossa luta haviam atingido os camaradas russos em todos os cantos das prisões e campos de exílio, inspirando-os com nova esperança e nova energia para continuarem na luta.”
  
Em Moscou, no verão de 1928, eu previ essa possível consequência da minha decisão e ação. E eu pensei que isso por si só a justificava, independente do que poderia acontecer depois. Muitas coisas mudaram desde então, mas essa convicção nunca mudou.
  
Notas do tradutor 
  
[1] Moyer e Haywood foram dois proeminentes sindicalistas norte-americanos, cujas prisões, quando decretadas pelo governo, desencadearam uma enorme campanha operária por sua libertação. 
  
[2] Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo), organização sindical anarquista de origem norte-americana e projeção internacional da qual James Cannon foi membro.

Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária

Declaração de Posição Básica
Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária

Este documento foi originalmente publicado como uma declaração interna das posições básicas da Tendência Revolucionária (RT) do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) norte-americano em junho de 1962. Posteriormente, ele foi publicado no Boletim Marxista nº1 da Liga Espartaquista (SL) dos Estados Unidos, formada pela RT depois de sua expulsão do SWP. Ele marca a consolidação da Tendência Revolucionária do SWP, que combateu o giro deste partido para o revisionismo pablista e sua perspectiva de apoio acrítico à liderança burocrática de Fidel Castro, além do seu prognóstico de fusão com os pablistas europeus de Ernest Mandel e Michel Pablo. Também foi incluído como apêndice o prefácio de 1965 da Liga Espartaquista, que dá detalhes sobre a importância e a forma como o texto foi redigido e os seus resultados. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em setembro de 2011.

O instrumento decisivo da revolução proletária é o partido da vanguarda consciente de classe. Se falha a liderança de tal partido, as mais favoráveis situações revolucionárias, que surgem das condições objetivas, não podem ser levadas adiante à vitória final do proletariado e o início da reorganização planejada da sociedade sob bases socialistas. Isso foi demonstrado conclusivamente – e positivamente – na revolução russa de 1917. Essa mesma lição de princípio se deriva não menos irrefutavelmente – embora pela negativa – de toda a experiência mundial da época de guerras, revoluções e levantes coloniais que começou com o estouro da Primeira Guerra Mundial em 1914.

“Teses Sobre a Revolução Norte-Americana”, adotadas na Décima Segunda Convenção Nacional do SWP em Chicago, realizada entre 15-18 de novembro de 1946.

Introdução: o método do marxismo

O caráter contraditório do presente período histórico apresenta os mais graves perigos, assim como os mais altos potenciais, ao movimento trotskista. A combinação do grande levante revolucionário ao redor das partes coloniais e não-capitalistas do mundo com a aparente estabilização e progresso do capitalismo em seu centro; a prolongada crise de liderança proletária e dominação do movimento operário mundial por agentes socialdemocratas e stalinistas do capital combinada com o contínuo ressurgimento de lutas da classe trabalhadora; esses são os termos da situação na qual o nosso movimento mundial constantemente se arrisca a desorientação ideológica e o conseqüente colapso político como uma força revolucionária. Somente o máximo alcance do método dialético materialista, o constante desenvolvimento da teoria marxista, permitirá ao nosso movimento, numa realidade em permanente mudança, preservar e desenvolver a sua perspectiva revolucionária.

           A essência da metodologia política do marxismo é pôr todos os problemas ativamente do ponto de vista específico e proposital da única classe social consistentemente revolucionária da sociedade moderna, o proletariado. Esse ponto de vista de classe proletária tem a sua mais alta expressão na teoria científica do marxismo. Marxistas, em outras palavras, analisam todos os problemas em termos de uma estrutura teórica rigorosa e científica. Ao mesmo tempo, eles são participantes por completo do próprio processo histórico como o setor mais avançado da classe trabalhadora e sua ação é guiada pela teoria. Assim, as conclusões derivadas da teoria marxista, e logo a própria teoria, estão sendo continuamente testadas na prática.

“Revisionismo” é a visão de que cada novo desenvolvimento requer um abandono na prática dos aspectos básicos da teoria que se conhecia anteriormente. Em última instância, esse desvio para longe do materialismo dialético leva a um desvio para longe da própria classe trabalhadora. O marxismo, pelo contrário, se desenvolve através de uma contínua integração de novos elementos, novas realidades, na sua estrutura teórica. Ele explicitamente critica e rejeita, quando necessário, proposições erradas ou ultrapassadas, enquanto mantém a cada ponto o seu caráter como uma estrutura científica sistemática, rigorosa e unificada.

A pressão da classe capitalista é mais intensa precisamente contra a metodologia do marxismo, que os seus agentes ideológicos agridem como fanatismo dogmático. A não ser que os trotskistas sejam capazes de usar e desenvolver a teoria marxista, eles, como muitos outros marxistas antes deles, irão inevitavelmente sucumbir a essa pressão, cair em uma visão vulgar, pragmática, empirista da realidade, e converter a teoria marxista em um conjunto de dogmas sagrados úteis apenas para prover rótulos que podem ser jogados sobre uma realidade não-compreendida e sem leis.

Particularmente no presente período, quando a classe trabalhadora parece ao empirista estar sob a completa e eterna dominação das burocracias reformistas, essa pressão ideológica é o resultado de uma pressão social terrivelmente forte. Os grupos trotskistas sentem-se pequenos e isolados no exato momento em que significativas forças de esquerda estão em claro movimento ao redor do mundo. Estas forças, entretanto, estão sob a liderança de tendências não-proletárias: socialdemocratas “de esquerda”, stalinistas de uma ou outra variedade, e grupos “revolucionários” burgueses ou pequeno-burgueses nos países coloniais.

O partido revolucionário, se não possui uma compreensão real da metodologia do marxismo, está condenado a meramente refletir a contradição entre o seu próprio isolamento relativo e os levantes de massas. Essa postura reflexiva encontra expressão numa aparência objetivista onde se observa de longe o desenrolar de um processo panorâmico do qual o fator objetivo está completamente divorciado. Ao invés de colocar o problema da luta de princípios contra estas lideranças em última instância capitalistas, com o objetivo de desenvolver uma nova liderança proletária, o partido busca então simplesmente influenciar o movimento como ele se encontra, com o objetivo de afetar a política da liderança existente, entrando em um processo de acomodação política, organizativa e teórica com relação a essas tendências estranhas, e com elas se unindo.

Uma vez que o fio do marxismo está perdido, os conceitos de outras forças sociais passam a dominar o pensamento dos socialistas. O partido então começa a perder a sua perspectiva revolucionária – ele passa a ver em outros agrupamentos políticos e sociais, que não a classe trabalhadora liderada pela sua vanguarda marxista, a liderança da revolução. Os trotskistas relegam a si próprios um papel auxiliar no processo histórico.

O movimento trotskista mundial tem estado em uma crise política por mais de dez anos. Essa crise foi causada pela falha de teoria e de liderança da Quarta Internacional, resultantes de uma perda da perspectiva revolucionária por importantes setores do movimento trotskista sob condições de isolamento e sob pressão da classe capitalista através de seus agentes pequeno-burgueses dentro do movimento operário. Apenas o restabelecimento de uma perspectiva revolucionária em nosso movimento mundial e a completa eliminação de políticas derrotistas, acomodadas e essencialmente liquidacionistas das nossas fileiras pode criar a base para a reconstrução de nossos quadros mundiais e assim para a vitória da revolução mundial.

Foi a teoria de Pablo sobre a acomodação a tendências externas que levou aqueles trotskistas determinados a preservar a perspectiva revolucionária a romper com o Secretariado Internacional (SI) em 1953, um movimento que incapacitou a Internacional, mas que o partido julgou à época ser essencial para a preservação de um movimento revolucionário com princípios. Porém, a continuada paralisia de nossas forças mundiais desde aquele tempo e a atual divisão profunda dentro do Comitê Internacional (CI) são sinais de que as forças que operavam em Pablo também estavam afetando, em um grau menor, o Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP). Com o passar de oito anos desde o racha, os sinais dessa mesma doença em nossas próprias fileiras estão atingindo grandes proporções. Nós acreditamos que esse processo atingiu um ponto em que resistência é essencial.

Nesta declaração nós tentaremos acessar o grau que essa metodologia empirista e essas visões acomodacionistas penetraram em nosso partido e o que nós achamos que pode ser feito para reafirmar a nossa perspectiva mundial revolucionária. É apenas nessa base política que nós seremos capazes de reconstruir as nossas forças mundiais. Essa declaração é a nossa contribuição à plenária partidária que se aproxima e que, na nossa opinião, deveria preparar o partido para participar na discussão que está acontecendo agora em nosso movimento mundial. Como essa discussão é preliminar para o Congresso Mundial do Trotskismo próximo, convocado pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional, a nossa participação política é essencial.

A natureza do pablismo

O pablismo é essencialmente uma corrente revisionista dentro do movimento trotskista internacional que perdeu qualquer perspectiva mundial revolucionária durante o período pós-guerra de boom capitalista e a subsequente inatividade relativa da classe trabalhadora nos países avançados. Os pablistas tendem a substituir o papel da classe trabalhadora e da sua vanguarda organizada – isto é, o movimento trotskista mundial – por outras forças que parecem oferecer chances maiores de sucesso. Fundamental para a apreciação política dos pablistas é um olhar “objetivista” sobre o mundo, que vê o capitalismo entrando em colapso e o stalinismo se dobrando sob o impacto de um abstrato processo histórico mundial panorâmico, removendo assim a necessidade de uma intervenção com consciência de classe através da vanguarda marxista. O papel dos trotskistas é relegado ao de um grupo de pressão sobre as lideranças existentes das organizações dos trabalhadores que estão sendo arrastadas por este processo revolucionário.

Em sua metodologia, o grupo de Pablo é essencialmente empirista. Ele reage à situação política mundial que está em constante mudança, com mudanças aparentemente radicais de linha política, mas sem reconhecer, e muito menos fazer um balanço teórico, dos seus erros passados. Sublinhar esses vai-vens, entretanto, é uma necessidade fundamental: a existência de uma “nova realidade mundial” na qual a correlação de forças estaria definitivamente em favor do socialismo e na qual, consequentemente, a resolução sobre a “crise de liderança proletária” não é mais condição sine qua non [sem a qual não pode haver] da revolução socialista mundial. Sobre esta base, os pablistas tem consistentemente mantido a sua análise objetivista, e tem proposto um substituto após o outro para o papel revolucionário da classe trabalhadora e de sua vanguarda marxista.

Em 1949, Pablo defendeu a sua concepção teórica de “séculos de Estados operários deformados”. Reagindo de maneira impressionista à expansão do stalinismo na Europa Oriental e China, ele previu uma época histórica inteira durante a qual dos Estados burocratizados de tipo stalinista, não a democracia operária, iria prevalecer. Essa teoria era profundamente revisionista, como aquela de Burnham e Shachtman, que projetaram uma era histórica de “coletivismo burocrático”. Como a teoria de Burnham-Shachtman, essa teoria negava uma perspectiva revolucionária para o nosso movimento e via no stalinismo a expressão objetiva das forças revolucionárias do mundo.

Pouco depois, Pablo, em suas “Teses sobre as Guerras/Revoluções” fez desse abandono teórico a base para uma nova linha política. A Terceira Guerra Mundial, ele previa, iria explodir num futuro imediato. Essa guerra iria ser essencialmente uma guerra de classe. Ela resultaria na vitória do Exército Vermelho (ajudado pelos trabalhadores europeus liderados pelos Partidos Comunistas), e na formação de “Estados operários deformados” na Alemanha, França e Inglaterra. A experiência da Europa Oriental e China iria se repetir nos países capitalistas avançados do Ocidente. Portanto, no breve período que restava antes do início da “Guerra/Revolução”, era essencial para a Quarta Internacional se integrar, em todos os termos e a qualquer custo, nos partidos stalinistas (onde eles fossem partidos de massa) que iriam em breve “projetar uma orientação revolucionária” e emergir como os líderes objetivos da revolução européia.

Estes conceitos (nunca repudiados por Pablo posteriormente) estavam presentes de forma um pouco escondida nas teses principais do Terceiro Congresso Mundial da Quarta Internacional (1951) e imediatamente depois foram abertamente revelados como a orientação prática da liderança de Pablo. Durante o período do Terceiro Congresso Mundial, Pablo levou adiante uma batalha fracional contra as seções francesa, britânica e canadense do movimento mundial com o objetivo de desenvolver forças capazes de levar em frente esse entrismo essencialmente liquidacionista nos partidos stalinistas. Em nosso país, o grupo de Cochran foi um reflexo legítimo do pablismo. Havia dois elementos envolvidos no grupo de Cochran. A ala Bartell-Clarke queria se adaptar ao movimento stalinista norte-americano, enquanto a ala de Cochran queria se adaptar à burocracia operária. Ambas seções dessa minoria liquidacionista dividiam com Pablo o mesmo objetivo liquidacionista que não davam ao nosso movimento mundial mais nenhum papel independente.

Os “Quarto (1954), Quinto (1957) e Sexto (1961) Congressos Mundiais” (que não foram para nós “Congressos Mundiais”, mas reuniões da fração revisionista do movimento mundial) dos pablistas todos expressaram esta mesma característica. Houve, é claro, mudanças políticas importantes, já que os pablistas respondiam de forma impressionista a mudanças na situação mundial. O último Congresso não enfatiza a iminência de guerra, nem todas as fichas são colocadas no papel avassalador do stalinismo. Ao invés disso, eles tendem a ver a burocracia stalinista entrando em colapso sem a necessidade da nossa própria intervenção consciente.

Como um novo substituto para a classe trabalhadora e sua vanguarda, a revolução colonial tende a tomar o espaço da burocracia stalinista, causando impacto crítico na importância da classe trabalhadora avançada e suas lutas. O Sexto Congresso Mundial formalmente declara que o novo “epicentro da revolução mundial é na região colonial”. Assim, o socialismo agora está indo na maré da revolução sem líderes dos países coloniais.

Em 1949 era uma forma de stalinismo que iria prevalecer por séculos; em 1951 era uma guerra iminente que iria forçar os stalinistas a projetar uma orientação revolucionária; hoje é a revolução colonial que está se desenrolando automaticamente. Em nenhum momento foi a classe trabalhadora organizada sob uma liderança marxista o ponto central na estratégia revolucionária mundial do pablismo.

No nível tático, os pablistas generalizaram a sua perspectiva de entrismo profundo para incluir os partidos socialdemocratas e centristas na Europa e as formações nacionalistas burguesas nas regiões coloniais. Eles entraram nesses partidos com uma linha política de adaptação; eles estavam buscando pressionar a liderança da oposição centrista a se tornar a liderança revolucionária; eles não estavam entrando com o objetivo de construir uma alternativa de liderança revolucionária baseada nos trabalhadores de base.

O papel do pablismo na Inglaterra e na Bélgica expressa claramente na ação a natureza dessa tendência. Na Inglaterra os nossos camaradas devotaram muitos anos ao desenvolvimento de uma alternativa de liderança revolucionária a ambos o direitista Partido Trabalhista e aos stalinistas. Eles basearam suas táticas em todo o tempo nos trabalhadores de base com consciência de classe. 

Os pablistas britânicos, com o total apoio do centro do Secretariado Internacional, tiveram uma orientação diferente. Eles tentaram funcionar como um grupo de pressão sobre as tendências centristas dentro do Partido Trabalhista Britânico. Por isso eles declaram no Socialist Fight (órgão dos pablistas ingleses): “Acima de tudo deve-se aplicar pressão nos níveis de Regional e de distrito” e a publicação Fourth International (Primavera de 1960) vê “A tarefa central dos marxistas revolucionários britânicos” não na construção de uma alternativa de liderança revolucionária, mas em “reagrupar dentro do Partido Trabalhista todas as forças espalhadas da esquerda trabalhista”. Quando os nossos camaradas britânicos organizaram a Liga Trabalhista Socialista (SLL), os pablistas se uniram aos lamentos da liderança do Partido Trabalhista e a imprensa capitalista e lhes atacaram como “aventureiros irresponsáveis”.

Desde a formação da SLL, os nossos camaradas tem ganhado continuamente membros de dentro do Partido Trabalhista Britânico, especialmente da sua juventude. Os pablistas, por outro lado, tem sido incapazes de construir um grupo efetivo na Inglaterra. A experiência britânica comprovou dramaticamente que somente uma política de entrismo baseada inteiramente numa tentativa de criar uma liderança revolucionária alternativa representando os interesses genuínos dos trabalhadores de base pode construir uma força efetiva. Tal política é baseada fundamentalmente na manutenção de uma perspectiva mundial para a classe trabalhadora sob uma liderança marxista. A política dos pablistas na Grã-Bretanha é um reflexo do seu abandono de uma perspectiva mundial revolucionária: o fato de que eles vêem em outros as forças com potencial revolucionário. Assim, as diferenças entre o pablismo e o trotskismo na Inglaterra são fundamentais e não simplesmente táticas.

A mesma lição pode ser aprendida da experiência belga. Na Bélgica os pablistas tinham um grupo funcionando por muitos anos sob a liderança de uma das figuras internacionais do centro do Secretariado Internacional. Esse grupo devotou suas energias a buscar posições de influência dentro dos círculos centristas na Bélgica e não em tentar desenvolver raízes na base da classe trabalhadora belga. Durante a greve geral belga de 1960-61, o mais importante evento radical no continente em muitos anos, os pablistas belgas foram incapazes de levar adiante uma política revolucionária independente dos círculos centristas nos quais eles estavam atuando. Por isso o trotskismo não desempenhou nenhum pape político independente nos eventos revolucionários e a greve falhou como um todo em razão da inadequação dos líderes sindicais centristas que os pablistas estavam apoiando. A inabilidade dos pablistas de prestar um papel independente nesses eventos cruciais foi simplesmente uma expressão de uma característica política central que põe pouca ênfase no papel revolucionário do nosso movimento.

Após 12 anos de experimentação, os pablistas tem pouco a mostrar pelos seus esforços. O movimento europeu foi dizimado sob a sua liderança. As seções latinoamericanas dos SI são pequenas e fracas. As únicas organizações do continente que tem alguma raiz real na classe operária estão afiliadas ao CI. Na Ásia tudo o que eles têm é a afiliação formal do LSSP (Ceilão) que, ao longo dos anos, se envolveu numa direção oportunista e no presente momento alcançou o ponto de dar apoio crítico ao governo burguês.

O Comitê Internacional, apesar de sua fragilidade organizativa e problemas políticos que o vem atormentando (devido à falta de clareza sobre o pablismo em alguns grupos), contém as únicas seções do nosso movimento mundial que mostraram crescimento substancial, sólido. O desenvolvimento da seção britânica de um grupo pequeno em uma organização efetiva, de tamanho visível, com raízes profundas na classe trabalhadora e significativo apoio na juventude é um grande desenvolvimento para o nosso movimento mundial. O crescimento da nova seção japonesa e dos chilenos e peruanos se baseou no seu racha contra Pablo.

A experiência do nosso grupo chileno ilustra esse padrão. Em 1954, o grupo trotskista chileno rachou em cima da decisão do “quarto Congresso Mundial” de que ele deveria realizar uma tática de entrismo profundo no Partido Socialista. Cinquenta membros do grupo seguiram as instruções do SI e entraram no PS, enquanto apenas cinco camaradas se recusaram a entrar e romperam com o SI. Esses cinco camaradas se tornaram o núcleo da atual seção do CI no Chile. Essa seção hoje é a mais forte formação trotskista no Chile, com importante influência no movimento sindical chileno e um grande potencial para o futuro.

A seção argentina do CI, entretanto, como o LSSP, caiu em uma linha política essencialmente pablista. A sua adaptação à atual liderança burguesa de esquerda da classe trabalhadora argentina levou-a a glorificar Perón e a se apresentar meramente como um movimento peronista de esquerda. Vantagens organizativas obtidas a tal preço só podem abrir o caminho para um desastre no fim. A evolução do grupo argentino pode ser atribuída à falha do CI em desenvolver a luta política contra o pablismo no período desde o racha de 1953.

Toda a nossa análise do problema do nosso movimento mundial deve, portanto, começar com uma compreensão de que o pablismo é uma corrente revisionista que nega o conteúdo essencial revolucionário do trotskismo enquanto ainda se agarra numa aderência formal ao trotskismo. Ele é um revisionismo do trotskismo tanto quanto o kautskismo foi do marxismo. A presente divisão das nossas forças mundiais é a crise mais fundamental e a de mais longa duração em toda a história do movimento trotskista mundial. O que está em questão é a própria sobrevivência do trotskismo! 

Em 1953, o nosso partido, na “Carta Aberta” [aos Trotskistas do Mundo Inteiro] (The Militant, 11 de setembro de 1953), declarou que “O abismo que separa o revisionismo pablista do trotskismo ortodoxo é tão profundo que nenhum compromisso político ou organizativo é possível”. A avaliação do pablismo como revisionismo está tão correta hoje como era então e deve ser a base para qualquer análise trotskista sobre tal tendência.

As Diferenças com a SLL

Ao longo do ano passado, as diferenças dentro das forças do CI que estiveram esquentando por algum tempo acabaram pegando fogo. As diferenças começaram a surgir entre o SWP e a SLL sobre as análises conflitantes com relação ao pablismo. A SLL insistia que havia chegado o tempo de lidar com o pablismo politicamente ao invés de simplesmente com propostas de unidade. Os britânicos achavam que uma análise política deveria começar com uma comprensão do pablismo como uma corrente política revisionista. Eles, portanto, insistiram que uma discussão política plena deveria preceder quaisquer movimentos de unificação internacionais, já que a unificação do movimento mundial deve ser firmemente baseada em um saudável programa político principista.

A maioria do SWP defendeu uma aproximação exatamente oposta. Eles viam as diferenças políticas entre eles próprios e os pablistas diminuindo. De maneira bastante lógica, deste ponto de vista, eles enfatizaram obviamente a base organizativa para unidade, tomando como certo que existia uma base política.

Quando ocorre uma situação dentro do nosso movimento criando confusão numa questão tão essencial quanto o papel do próprio movimento, é necessário preparar um documento que apresenta as visões principais do trotskismo em aplicação à atual situação mundial. Então se torna possível, na base de uma discussão em torno de tal documento básico, determinar exatamente onde estão os acordos e desacordos dentro de nossas forças mundiais. A SLL tomou essa responsabilidade e preparou a sua Resolução Internacional.

Essa resolução expõe todos os pontos essenciais de uma perspectiva revolucionária. Ela começa com os centros do capitalismo mundial, compreendendo que é a luta da classe trabalhadora nesses centros que é crítica para o desenvolvimento da revolução mundial. Ela substitui esperanças efêmeras em um processo revolucionário automático nos países coloniais com o otimismo revolucionário a respeito das futuras lutas da classe trabalhadora nos países avançados. Ela vê na classe trabalhadora a única força na sociedade moderna que pode derrubar o capitalismo em um nível mundial. Ela vê o movimento trotskista mundial como o único movimento capaz de levar em frente a revolução mundial. Ela vê nos quadros existentes do trotskismo mundial o essencial fator de consciência na sociedade moderna. Ela relaciona todas as táticas revolucionárias, toda estratégia revolucionária ao desenvolvimento da classe trabalhadora e de sua vanguarda – os quadros mundiais do trotskismo. Ela põe o trotskismo, encarnado nos seres humanos vivos organizados nos grupos e partidos existentes, de volta à nossa perspectiva histórica.

Significativamente, a maioria respondeu a essa iniciativa não com um apoio caloroso a esse importante esforço, mas produzindo uma resolução internacional própria. Enquanto o documento do SWP não foi planejado como uma alternativa teórica pronta contra a posição da SLL – ele é ambíguo, e contém num padrão eclético muitas posições essencialmente corretas – como um todo ele expressa uma posição política diferente daquela da SLL. Certamente, se ela própria não o fez, será difícil explicar porque a maioria escreveu a resolução imediatamente depois de receber a resolução da SLL. Também é significativo que a maioria tenha rejeitado os adendos da minoria contendo a mesma linha essencial que a resolução da SLL porque, segundo eles afirmaram, esses adendos projetaram uma linha contraditória com a resolução da maioria.

A Linha Internacional da Maioria do SWP

A resolução internacional da maioria marca um importante passo político na direção das características internacionais objetivistas e da metodologia dos pablistas. A resolução começa defendendo que a vitória da revolução chinesa “alterou definitivamente a relação de forças mundiais em favor do socialismo”. Este conceito permeia o documento e é repetido ao longo de todo ele de uma forma ou de outra.

A concepção de uma transformação qualitativa na situação mundial é a essência no termo pablista “nova situação mundial” que pode ser encontrada nos documentos do “Terceiro, Quarto, Quinto e Sexto Congressos Mundiais”. Na nossa resolução de 1953, “Contra o Revisionismo Pablista” (Boletim de Discussão A-12, novembro de 1953), que analisou o documento central do “Quarto Congresso Mundial” de Pablo, “A Ascensão e a Queda do Stalinismo”, nós rejeitamos esse conceito declarando que “Uma avaliação resumida da rede de resultados da marcha da revolução internacional de 1943 a 1953 leva à seguinte conclusão. Com todas as suas conquistas e grandes potencialidades, a falha da revolução em conquistar o poder em um dos grandes países industrializados preveniu, assim, as forças revolucionárias da classe trabalhadora de crescer forte o suficiente para derrubar a oligarquia do Kremlin e conferir ímpeto irresistível à desintegração do stalinismo. Ainda não houve tal alteração qualitativa na correlação de forças de classe no mundo.”

“Até o momento, a intervenção contrarrevolucionária da burocracia por si própria na política mundial tem estagnado as condições objetivas para tal consumação. Ela fez a revolução retorceder na Europa Ocidental, enfraqueceu a classe trabalhadora em relação ao inimigo de classe, e facilitou a mobilização da contrarrevolução mundial. A luta entre as forças da revolução e da contrarrevolução ainda não está decidida, e longe de terminar. Essa própria falta de conclusão, que luta para persisitir, no presente momento trabalha para a vantagem do Kremlin”.

Isso nos trás ao centro da questão. Em 1953 nosso partido rejeitou o conceito de que a correlação de forças estivesse agora em favor da revolução. Nós fizemos isso porque, em nossa opinião, o fator decisivo era o elemento consciente. Enquanto a classe trabalhadora não estiver no poder em um país capitalista avançado, as forças revolucionárias não poderão ser dominantes numa escala mundial. O stalinismo e a socialdemocracia são forças essenciais que impedem a classe trabalhadora de chegar ao poder nesses países – portanto a nossa tarefa é derrotá-los para criar uma vanguarda trotskista no movimento dos trabalhadores. Essa era a nossa orientação estratégica em 1953.

Hoje a resolução do SWP reivindica que as forças da revolução são dominantes apesar do fato de que a classe trabalhadora não chegou ao poder em nenhum país capitalista avançado desde 1953 e de que as nossas próprias forças permanecem fracas. Assim, conscientemente ou não, a lidernça do SWP aceitou a posição teórica principal do revisionismo pablista.

Este objetivismo é refletido de outras maneiras ao longo do documento. A resolução tende a minimizar o perigo do stalinismo como uma força contrarrevolucionária mundial. De fato, ela chega até mesmo a sugerir que Kruschev está dando um “giro à esquerda”, se alianhando com a revolução colonial. Sem especificar os objetivos e métodos contrarrevolucionários da diplomacia do Kremlin, a resolução “reconhece” que “na arena diplomática, desde a morte de Stalin a União Soviética tem demonstrado crescente audácia e flexibilidade, obtendo conquistas entre os países ‘neutros’ através de programas de ajuda e exposição das políticas agressivas de Washington” e que “nessa ‘nova realidade’ de enormes pressões, abertura de oportunidades e perigos mortais, a burocracia soviética teve que revisar, adaptar e mudar a sua linha”. Na discussão na plenária sobre Cuba no ano passado, o camarada Stein usou o mesmo argumento de forma mais flagrante, ao declarar: “(…) a União Soviética está compelida hoje, ao invés de prestar um papel contrarrevolucionário – a se colocar do lado da revolução” (Boletim de Discussãodo SWP, volume 22, número 2, página 21).

Em 1953, os pablistas tomaram uma posição idêntica na resolução deles. Eles não afirmaram que o stalinismo não era mais uma força contrarrevolucionária – ao invés disso eles disseram que ele não podia mais ser efetivo como força contrarrevolucionária por causa do objetivo ritmo avassalador da revolução. Na época, nós declaramos claramente:

“É verdade que as condições mundiais conspiram contra a consumação pelo Kremlin de quaiquer acordos duradouros com o imperialismo ou suas barganhas com a burguesia nacional. Mas as consequencias objetivas das suas tentativas de manter o status quo ou atingir tais acordos fizeram muito mais do que efeitos práticos ‘limitados e efêmeros’. Suas manobras ajudam a bloquear o avanço do movimento revolucionário e afetam adversamente a correlação de forças mundial; a burocracia age e reage na arena internacional como um fator potente em dar forma à última (…) Não apenas a vanguarda é deseducada pela minimização desses resultados perniciosos do curso do Kremlin, mas ela fica desarmada na luta para desfazer as ilusões sobre o stalinismo entre os trabalhadores com o objetivo de quebrar a influência stalinista entre eles. (…) O fato de que a burocracia soviética não pôde esmagar e reter as revoluções iugoslava e chinesa, onde a maré revolucionária quebrou os seus diques, não muda o fato de que em todos os outros lugares, em número muito maior, a burocracia foi bem sucedida em virar a maré revolucionária na direção oposta. Isso influenciou a correlação de forças por todo um período.”

Além de minimizar o perigo real do stalinismo como uma força contrarrevolucionária mundial, a resolução aceita a visão pablista de que as mudanças na situação objetiva mundial acabaram com o isolamento da União Soviética e declara cegamente: “A União Soviética não está mais isolada internacionalmente”. Mas em 1953 nós dissemos:

“Como pode então ser declarado de forma tão desqualificada na resolução que o isolamento da URSS desapareceu? O isolamento foi modificado e mitigado, mas de forma alguma removido. As pressões do ambiente imperialista pesam sobre toda a vida dos povos soviéticos.”

Naquela época nós insistimos que apenas o desabrochar de revoluções na Europa Ocidental poderia acabar com o isolamento da União Soviética.

Muito do tratamento sobre o stalinismo na resolução é dedicado a especulações sobre fissuras no seio da burocracia com a “quebra do monolitismo stalinista”. Entretanto, em 1953 nós claramente afirmamos:

“A proposição de que nenhum segmento significativo da burocracia vai se aliar com as massas contra os seus próprios interesses materiais não significa que a burocracia não iria manifestar profundas clivagens sob o impacto de um levante. Tal desorganização, desintegração e desmoralização foi observável na Alemanha Oriental. Mas a função de uma política revolucionária é organizar, mobilizar e ajudar a liderar as massas na luta, não procurar, muito menos apostar, em qualquer racha real na burocracia.”

Em 1953 nós reafirmamos o conceito principal do Programa de Transição de que a destruição do stalinismo requeria a intervenção consciente e a luta revolucionária da classe trabalhadora, ambos dentro dos países soviéticos e nos países capitalistas avançados. E para a vitória dessa luta um partido marxista de vanguarda era essencial. Falou-se muito na declaração de 1953 do fato de que, enquanto a resolução dos pablistas formalmente menciona a revolução política, ela não se refere especificamente à nossa estratégia de criar partidos trotskistas nesses países. A atual resolução do SWP não apenas não menciona a necessidade de criar tais partidos – ela nem mesmo menciona a revolução política. Ao invés disso a restauração da democracia soviética é tratada simplesmente como um reflexo das mudanças objetivas na situação mundial e dentro da União Soviética.

A resolução da maioria declara formalmente que a luta da classe trabalhadora nos países capitalistas avançados é a luta central e assim se diferencia da posição das resoluções pablistas do “Sexto Congresso Mundial”. Entretanto, essa proposição correta, longe de estar no centro da resolução e suas perpectivas de estratégia revolucionária, foi na verdade inserida apenas depois de o restante do documento ter sido escrito. Assim, em contraste com o otimismo acrítico impregnando suas seções sobre a revolução colonial, as seções dos países capitalistas avançados são meramente comentadas, faltando análise revolucionária e perspectiva. De fato, a resolução da SLL trata o cenário norte-americano e sua relação com a revolução mundial de forma mais ampla e mais adequada do que faz o próprio documento norte-americano.

Nossa tarefa central de criar partidos marxistas em todos os países do mundo não recebe ênfase apropriada na resolução. Num contexto geral que dá peso principal a fatores objetivos que já teriam pesado a balança em favor da revolução, declara-se: “Agora poderosas forças, reunindo-se em escala mundial, projetam a criação de tais partidos no próprio processo da revolução”. Enquanto cada esforço deve ser feito para criar partidos revolucionários durante um levante revolucionário, também é dever do nosso movimento explicar que isso não é uma tarefa simples. A falha da revolução europeia seguindo a Revolução Russa vitoriosa se deveu à falha em criar partidos marxistas efetivos nos vários países europeus anteriormente ao desenvolvimento de situações revolucionárias. A resolução não toma conhecimento desse ponto; ao invés disso a implicação é de que na “nova realidade mundial” as “poderosas forças” (quais forças? a maré objetiva da revolução?) irão cirar o partido tão necessário automaticamente, conforme a revolução se desenrole. Essa é, de fato, uma séria fraqueza da resolução e uma outra expressão de um aspecto “objetivista” que minimiza a importância da tarefa árdua de criar a vanguarda revolucionária.

É da nossa opinião que a resolução internacional da maioria representa um sério desvio das visões essenciais do nosso movimento na direção do pensamento político revisionista dos pablistas. Esse movimento político foi realizado de maneira hesitante, ambígua, e portanto a resolução é eclética. Mas o movimento, de uma forma ou de outra, está sendo feito. A falha do partido em combater o pablismo politicamente a nível internacional está agora levando ao crescimento de métodos pablistas de pensamento dentro do nosso próprio movimento.

Cuba, China e Guiné

Métodos pablistas de pensamento penetraram em diferentes camadas do partido em diferentes graus e a respeito de questões políticas diferentes. Por exemplo, a liderança nacional inteira do partido foi arrastada pelos eventos em Cuba e perdeu noção da aproximação estratégica básica que o nosso movimento deve ter em direção a tal revolução. Toda a orientação do partido foi em direção ao aparato governante em Cuba e os seus líderes. Esperava-se que através do seu apoio virtualmente acrítico a esse governo, a liderança [de Castro] pudesse simplesmente ser ganha para o trotskismo. Uma análise trotskista sobre Cuba, entretanto, deve começar com a classe trabalhadora, não o aparato governamental. Os trotskistas deveriam permanecer politicamente independentes do governo de Castro apesar de eles poderem julgar taticamente aconselhável entrar no partido único. Os trotskistas deveriam chamar forte atenção dos trabalhadores para lutar conscientemente por um controle democrático sobre o aparato governante ao invés de esperar passivamente que o governo entregue tal controle a eles por si próprio. Nossa orientação estratégica em Cuba, como em todos os países, deveria se nos basearmos nos próprios trabalhadores e não em outras forças que nós esperamos que se transformem em trotskistas por pressão das massas.

Outros no partido começaram a carregar as implicações lógicas dessa análise pablista em outras áreas, e os resultados dos seus esforços deveriam deixar qualquer membro do partido de cabelo em pé. Por exemplo, Arne Swabeck e John Liang demonstraram que eles enxergam a lógica da posição da maioria melhor do que o faz a própria maioria: Mao poderia, como Castro, produzir um verdadeiro Estado operário sem contar com o apoio dos trabalhadores na revolução, sem democracia operária, e sem, presumivelmente, um partido marxista tampouco. Swabeck e Liang proclamaram o PC chinês como não mais stalinista, e se não exatamente trotskista, alguma coisa a caminho disso. Eles declararam que o Estado operário chinês não é deformado, mas genuíno; e que o slogan chamando pela revolução política aplicado à China deve ser retirado. Aqui novamente, numa escala significativamente maior, democracia operária – controle dos trabalhadores – é considerada como opcional e acessória, o papel da classe trabalhadora é diminuído, e a tarefa revolucionária é dada a uma tendência política diferente e hostil. Tornar Mao um trotskista honorário não muda o significado dessa posição.

Frances James, em um artigo produzido durante a discussão sobre Cuba, sugere que Guiné está se tornando um Estado operário. No curto tempo desde que ela escreveu este artigo os eventos provaram o quão desastroso tal impressionismo pode ser. Sekou Toure colocou membros do Partido Comunista e outros oponentes na prisão, suprimiu uma importante greve de professores, e lançou um ataque contra os “marxistas causadores de rupturas”. A linha de Frances James na Guiné, ou Gana ou em Mali poderia ser completamente suicida para nossas forças nesses países.

Essas análises sobre Cuba, China e Guiné não são mais do que uma expressão concreta da linha objetivista dos pablistas. Nem a liderança do partido sobre Cuba, nem Swabeck sobre a China, nem James sobre a Guiné, tem uma orientação revolucionária que começa com a classe trabalhadora e a tarefa de organizar a sua vanguarda trotskista.

O Desvio para Longe da Internacional

As diferenças essenciais no nosso partido e nosso movimento mundial são trazidos à luz por uma questão, a questão da Internacional. Conforme a acomodação política vai abrindo brechas no SWP, o racha político com Pablo é cada vez mais visto como facilmente remediável. Nossas diferenças com Pablo, diz a maioria, estão diminuindo. Isso é verdade, mas é a maioria nos Estados Unidos que mudou de plano, não o SI. Conforme o pablismo se torna mais e mais aceitável para a maioria, ao mesmo tempo a SLL, com sua firme aderência à posição e princípios trotskistas da Carta Aberta, se torna um constrangimento. É óbvio pela troca de cartas publicadas entre a SLL e o SWP, pelas “Cartas para o Centro” de James P. Cannon, da crítica política da resolução internacional do SWP apresentada pela SLL dentro do CI, que a nossa solidariedade profunda e de longa data estabelecida com a seção britânica foi seriamente corroída. Que tal situação seja permitida de se desenvolver sem nenhum tipo de discussão entre os membros do nosso partido é um estado de coisas intolerável.

Foi a inspiração política do SWP com sua Carta Aberta que levou à existência do CI. Quando nós enviamos a Carta Aberta nós tomamos para nós a responsabilidade pelo racha da Internacional. No entanto, como os britânicos documentaram e reclamaram, nós temos sido politicamente negligentes com ele desde a sua fundação. Agora, quando um conflito político mais fundamental explode entre a maioria do partido e a seção britânica, a maioria faz tudo que pode para prevenir uma discussão política das sérias questões políticas que foram levantadas. A resolução internacional da maioria foi preparada originalmente como uma contribuição para a discussão internacional. Os camaradas britânicos apresentaram suas opiniões sobre essa resolução – agora é uma responsabilidade da maioria do partido defender a sua linha política dentro do movimento mundial. Os britânicos trouxeram responsavelmente a sua crítica da resolução do SWP para o Comitê Internacional. O Comitê, com apenas um voto contrário, expressou sua oposição à linha da resolução do SWP na sua reunião de julho. Então, em dezembro, o CI votou a favor da linha geral de uma versão revisada da resolução internacional da SLL.

Nós damos total apoio à linha geral da resolução internacional do Comitê Internacional da Quarta Internacional, embora nós discordemos com amplos aspectos da sua avaliação da revolução cubana. Nós estamos em solidariedade política fundamental com o Comitê Internacional e suas seções ao redor do mundo. É essa resolução e essa solidariedade que são as bases principais nas quais nos baseamos. O que defende a maioria? Por que ela não vai levar adiante a sua responsabilidade política de defender seus pontos de vista dentro de uma organização mundial que o partido trabalhou tanto para fazer existir?

Se o presente desvio do SWP continuar sem nenhum balanço ele irá levar a uma de duas situações igualmente desastrosas. A maioria do SWP pode levar em frente a sua aproximação política com os pablistas à sua conclusão apropriada e anunciar solidariedade com o SI ou alguma fração dentro dele contra o CI. Ou, a maioria do SWP pode se desviar de qualquer relação política com o CI ou o SI. Dessa forma ela iria romper com os seus 30 anos de solidariedade política e apoio ao partido da revolução mundial, a Quarta Internacional. Tal desvio para longe da organização mundial do trotskismo seria um sinal de que um provincianismo, que não esteve completamente ausente do SWP no passado, adquiriu uma aderência profunda sobre a organização, uma aderência que só pode ser destrutiva também para o rumo nacional do partido. Foi o aspecto essencialmente provincial do LSSP, a sua verdadeira falta de preocupação profunda ou conexão com a Quarta Internacional, que contribuiu para o seu atual rumo oportunista no seu país nativo. Esse será inevitavelmente o futuro do SWP se ele continuar a se desviar da Quarta Internacional. Um retorno a um apoio real e a uma participação política na Internacional é o primeiro passo indispensável rumo à reafirmação de uma perspectiva mundial revolucionária.

Teses Sobre a Revolução Norte-americana

Em 1946, o Partido dos Trabalhadores Socialistas desenvolveu um importante documento, as “Teses Sobre a Revolução Norte-americana”. Esse documento projetou um curso revolucionário para o partido, e foram as idéias contidas nesse documento – o conceito de que todas as táticas, toda a estratégia deve ser relacionada com o objetivo de criar o partido leninista que irá liderar a revolução norte-americana – que manteve o partido firme diante dos difíceis anos que se encontravam à frente. Por volta de 1952, uma importante seção dos quadros centrais do partido havia sucumbido às pressões do isolamento e da prosperidade e haviam perdido esta perspectiva revolucionária. O camarada Cannon colocou adiante este documento uma vez mais e insistiu de forma correta que, apesar da sua avaliação inexata das perspectivas econômicas do capitalismo norte-americano, o seu essencial estava ainda correto e deveria ser a política central do nosso partido. Ele chamou pela reeducação dos quadros do partido em torno dos princípios encarnados na “Teses”.

A forma como essa questão surgiu em 1952-53 é bastante instrutiva para os problemas que o partido enfrenta hoje. Os seguidores de Cochran afirmavam que as decisões do Terceiro Congresso Mundial dominado pelos pablistas colocavam em questão as “Teses” e que as haviam superado. Assim, eles viam na visão de mundo do pablismo a base teórica para se livrar de uma perspectiva revolucionária neste país.

Em primeiro lugar, a maioria do partido tentou responder a este ataque nos próprios fundamentos do programa do nosso partido, afirmando apoio a ambos as “Teses” e às decisões do Terceiro Congresso Mundial. Assim, eles pareciam manter que as decisões do Terceiro Congresso Mundial valiam para o resto do mundo enquanto as “Teses” se mantinham válidas para os EUA. Essa era uma posição politicamente insustentável, já que as próprias “Teses” destruíam teoricamente qualquer conceito de “excepcionalidade norte-americana”, deixando claro que as leis do desenvolvimento capitalista mundial também valiam aqui. Assim, se as “Teses” se aplicavam aos EUA elas também deviam valer para os outros países capitalistas avançados, e o mesmo se aplicaria às decisões do Terceiro Congresso Mundial. Esta associação teórica foi finalmente resolvida quando a maioria do partido decidiu levar adiante uma luta política contra o pablismo numa escala mundial com o objetivo de manter a sua perspectiva revolucionária nacional.

Hoje novamente nós encaramos uma situação onde uma perspectiva mundial revolucionária está sendo desafiada – desta vez pela própria maioria do partido. É nossa forte convicção que o partido não pode manter uma perspectiva revolucionária nesse país enquanto ao mesmo tempo falhar em uma perspectiva revolucionária mundial. Essa contradição entre a perspectiva nacional e internacional será resolvida em algum momento. Pelo bem do movimento revolucionário mundial, ela deve ser resolvida projetando a orientação revolucionária das “Teses” numa escala internacional, ao invés de pôr as “Teses” no armário e permitir que um espírito acomodacionista penetre também em nosso trabalho neste país.

Até agora o partido manteve a sua perspectiva revolucionária neste país. Entretanto, há muita confusão no partido sobre para onde exatamente nós estamos indo, e às vezes parece que o partido está se arrastando de campanha em campanha sem ter comando completo sobre seu próprio curso político. Nós devemos a todo o momento ter em mente que nós buscamos nos tornar a vanguarda da classe trabalhadora norte-americana. Isto significa que todo o nosso trabalho deve ser relacionado à tarefa central de desenvolver raízes no movimento sindical e no movimento negro. Isto não é simplesmente uma questão de ganhar recrutas aqui ou acolá; na verdade, se trata do desenvolvimento dos próprios membros do partido como líderes da classe trabalhadora em sua luta contra a classe capitalista e contra os seus próprios falsos líderes.

Alguns no partido tentam contrapor a expressão vazia de “construção partidária” a essa tarefa essencial de construir o partido desenvolvendo as suas raízes na classe. Estas pessoas tenderam a ver o nosso trabalho de reagrupamento ou o de defesa de Cuba como um substituto, ao invés de um auxiliar, para as nossas tarefas centrais. Nós não afirmamos que essas tendências de afastamento de uma perspectiva revolucionária neste país se tornaram dominantes no partido. Mas nós sentimos fortemente que uma atitude de complacência sobre o nosso partido e suas perspectivas seriam muito danosas desta vez.

O Que Defendemos

Em suma, nós acreditamos que a falha da liderança do SWP em aplicar e desenvolver a teoria e o método do marxismo resultou em um perigoso desvio de uma perspeciva revolucionária mundial. A adoção na prática de uma análise objetivista e empiricista com relação aos pablistas, a minimização da importância central da criação de uma nova liderança proletária marxista em todos os países, o consistente encobrimento do papel contrarrevolucionário e potencial do stalinismo, as fortes tendências em direção à acomodação a lideranças não-proletárias, particularmente na revolução colonial – todas colocam, se não levadas em conta, uma séria ameaça ao desenvolvimento futuro do próprio SWP.

O que contrapomos a este desvio?

1.     Nós nos orientamos para a classe trabalhadora e somente para a classe trabalhadora como força revolucionária na sociedade moderna.
2.     Nós consideramos a criação de partidos marxistas revolucionários, ou seja, partidos trotskistas, como essencial para a vitória do socialismo em cada país do mundo.
3.     Nós chamamos pelo renascimento da ênfase trotskista tradicional na democracia operária como parte essencial do nosso programa e na nossa propaganda.
4.     Nós defendemos que o stalinismo é contrarrevolucionário na essência, que é o inimigo mortal da revolução, que permanece sendo a maior ameaça dentro do campo da classe trabalhadora para o sucesso da revolução mundial.
5.     Por essas razões nós chamamos por um pleno apoio à linha geral da Resolução Internacional do Comitê Internacional da Quarta Internacional.
6.     Nós chamamos por uma luta política contra o pablismo internacionalmente e contra as idéias e metodologia pablistas dentro do nosso movimento, reconhecendo no pablismo uma doença centrista que induz nossos quadros mundiais ao liquidacionismo.
7.     Nós somos a favor da reunificação da Quarta Internacional na base política da reafirmação dos fundamentos do trotskismo e a aplicação desses fundamentos à atual situação mundial. Nós chamamos pelo apoio a qualquer passo que leve adiante o processo de discussão internacional, já que isso nos aproxima do nosso objetivo e um movimento internacional saudável e forte, capaz de se expandir em uma poderosa força mundial.
8.     Nós chamamos por um retorno ao verdadeiro internacionalismo, no espírito no qual o nosso partido foi construído. Nós devemos participar plenamente no processo de discussão que está acontecendo agora no nosso movimento mundial; nós devemos dar total apoio ao Comitê Internacional e sua luta para reconstruir nossas forças mundiais dispersas. Nós devemos reconhecer que nós só podemos construir um partido efetivo nos Estados Unidos desempenhando um importante papel político no desenvolvimento do nosso movimento mundial.
9.     Nós devemos continuar a educar todos os membros no espírito dos princípios fundamentais estabelecidos nas “Teses Sobre a Revolução Norte-americana”. Nós defendemos que estes fundamentos estão tão válidos hoje como eram em 1946 e como eram em 1952. Nós mantemos que estes fundamentos são internacionalistas até a medula.
10.  Finalmente, nós consideramos o SWP, assim como a YSA [Aliança Socialista Jovem, juventude do SWP], no sentido político, como a seção norte-americana do nosso partido mundial. Em nosso partido se encontram os marxistas mais desenvolvidos e principistas em nosso país e a encorporação das ricas experiências de nossos 30 anos de batalha pelo leninismo e pelo trotskismo. Ao apresentar nossas visões para o partido nesses assuntos críticos nós estamos agindo no mais fundamental interesse do partido e do movimento revolucionário mundial. Este documento, tomado com a Resolução Internacional do CI, expressa os pontos essenciais do aspecto político ao qual o nosso partido deve retornar.

Nós nos apresentamos ao nosso partido no espírito das “Teses Sobre a Revolução Norte-americana”, que terminam com os seguintes trechos:

“O partido revolucionário de vanguarda destinado a liderar este tumultuoso movimento revolucionário nos EUA não precisa ser criado. Ele já existe e seu nome é PARTIDO DOS TRABALHADORES SOCIALISTAS. Ele é o único herdeiro legítimo e continuador do pioneiro comunismo norte-americano e dos movimentos revolucionários dos trabalhadores norte-americanos dos quais ele surgiu. Seu núcleo já tomou forma em três décadas de trabalho incessante e nado contra a corrente. Seu programa foi forjado em batalhas ideológicas e sucessivamente defendido contra todo tipo de ataque revisionista contra ele. O núcleo fundamental de uma liderança profissional foi estabelecido e treinado no espírito irreconciliável de um partido de combate da revolução.”

“A tarefa do PARTIDO DOS TRABALHADORES SOCIALISTAS consiste simplesmente nisso: permanecer fiel ao seu programa e bandeira; torna-los mais precisos a cada novo desenvolvimento e aplica-los corretamente na luta de classes; e se expandir e crescer com o crescimento do movimento revolucionário de massas, sempre aspirando levá-lo à vitória na luta pelo poder político.

Assinado por

Joyce Cowley (São Francisco)
J. Doyle (Filadélfia)
Ray Gale (São Francisco)
Margaret Gates (Filadélfia)
Ed Lee (Berkeley-Oakland)
Shane Mage (Nova Iorque)
Jim Petroski (Berkeley-Oakland)
Albert Philips (Detroit)*
Liegh Ray (São Francisco)
Jim Robertson (Nova Iorque)
Geoffrey White (Berkeley-Oakland)
Tim Wohlforth (Nova Iorque)

(*) Apesar de diferenças na avaliação sociológica, quero indicar apoio à idéia geral desta declaração e suas conclusões políticas.

Apêndice
Prefácio de 1965 da Liga Espartaquista
O material lidando com a história e as lutas da Tendência Revolucionária dentro do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP/EUA) ocupa um lugar especial na série de Boletins Marxistas [publicação teórica da Liga Espartaquista]. Sem uma atitude séria e crítica com relação ao seu próprio desenvolvimento, nenhuma formação política pode ir além dos primeiros estágios de resolver o desafio central diante dos marxistas revolucionários nos Estados Unidos – a construção de um partido revolucionário.

Os Boletins Marxistas números 1, 2, 3 e 4 são todos devotados ao período que vai da consolidação da Tendência Revolucionária (RT) dentro do SWP à expulsão da liderança da RT do partido, que ocorreu num período de dois anos entre 1962-1963.

Origem da Tendência Revolucionária

O núcleo da RT foi originado na liderança central da Aliança Socialista Jovem [grupo de juventude do SWP] e se uniu pela primeira vez como uma oposição de esquerda à linha majoritária acrítica do SWP com relação ao rumo da revolução cubana. Essa disputa preliminar culminou na adoção de uma posição completamente revisionista pela maioria do SWP na convenção do partido de 1961. O revisionismo teórico do partido, assim como a sua prática oportunista e abstencionista, foi levado à sua linha internacional geral e começou a levar o partido para longe de uma perspectiva revolucionária também nos Estados Unidos. (As causas dessa dramática degeneração do SWP constituem o principal tema do Boletim Marxista número 2, “A Natureza do SWP”).

A Necessidade de um Documento Básico

Os oposicionistas de esquerda responderam ao ataque geral da maioria contra as antigas posições do partido contrapondo um programa revolucionário. Este documento, “Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária” (EDPR, para simplificar), atingiu três resultados que levaram à cristalização da RT: (1) EDPR analisou e tornou explícita a base política da oposição de esquerda; (2) ao ganhar co-autores e apoiadores, EDPR lançou na oposição organizada um número considerável de membros antigos do partido, dando à RT uma autoridade que ia além dos seus números; (3) EDPR ligou a oposição norte-americana à maioria do Comitê Internacional (CI) da Quarta Internacional ao aprovar a resolução internacional preparada pela Liga Trabalhista Socialista (SLL) britânica e adotada pelo CI, “A Perspectiva Mundial para o Socialismo”.

Escrevendo EDPR

“Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária” foi o resultado de um longo esforço coletivo. A necessidade de tal declaração foi primeiramente apontada por Tim Wohlforth no outono de 1961, por conselho de Gerry Healy na Grã-Bretanha. Geoffrey White foi o autor do primeiro rascunho; os camaradas Shane Mage e Cliff Slaughter fizeram contribuições nas seções e críticas sobre a teoria e o método marxista; Wohlforth fez o acabamento e a expansão editorial, e muitos outros fizeram pequenas contribuições.

A versão final aprovada foi apresentada pela Tendência Revolucionária ao Comitê Nacional do SWP em março de 1962. Após a reunião expandida do partido em junho de 1962, onde o documento foi voto vencido por 43 a 4, ele foi impresso para os membros do SWP no Boletim de Discussão Interno (volume 23, número 4, julho de 1962). Essa declaração de posição básica da RT agora se torna disponível pela primeira vez para o público geral da esquerda.

Depois de EDPR

Mesmo enquanto EDPR estava sendo introduzido na discussão partidária, a contradição entre o curso do SWP e uma posição revolucionária estava se tornando cada vez mais agudo e aparente. Assim, a RT havia acabado de afirmar em EDPR que a oposição considerava o SWP como a “seção norte-americana de nosso partido mundial” (seção “O Que Defendemos”, ponto 10). Entretanto os colaboradores da RT na Grã-Bretanha, a Liga Trabalhista Socialista [SLL], se sentiu obrigada, em julho de 1962, a atacar o SWP num longo documento intitulado “O Trotskismo Traído – SWP Aceita o Método do Revisionismo Pablista”. Em setembro do mesmo ano, representantes do CI em uma reunião internacional declararam oficialmente que “eles não representavam politicamente o SWP”.

Desde que o CI, que dessa forma repudiou seus antigos laços com o SWP, era então equivalente ao partido mundial, a relação da maioria do SWP com a RT nos Estados Unidos foi colocada em dúvida. Surgiu dentro da tendência norte-americana uma discussão política necessária para examinar a natureza do SWP e clarificar a relação entre a RT e a maioria do SWP (ver os Boletins Marxistas subsequentes).

Apesar da degeneração do SWP enquanto organização revolucionária, “Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária” continua incomparável até hoje como uma declaração de posição básica.

Comitê Editorial da Liga Espartaquista
Janeiro de 1965

A Gênese do Pablismo

O SWP e a Quarta Internacional
A Gênese do Pablismo

O seguinte artigo foi originalmente publicado pela tendência Espartaquista internacional (iSt) na primavera de 1972, na 21ª edição de Spartacist. Sua tradução para o português foi realizada pelo Coletivo Lenin (coletivolenin.org) em 2010, a partir da versão em inglês disponível no site da Liga Comunista Internacional (ICL) e publicado na revista Revolução Permanente número 4.

Introdução

O Socialist Workers Party (SWP) norte-americano e os pablistas europeus andaram a velocidades diferentes e seguindo diferentes caminhos ao revisionismo até convergirem, nos primeiros anos da década de 1960, em uma “reunificação” sem princípios políticos que se consolida agora ao completar o SWP a transição do centrismo pablista a um reformismo descarado. O “Secretariado Unificado” que resultou da “reunificação” de 1963 tenta se equilibrar ao redor de uma divisão aberta; o “antirevisionista” “Comitê Internacional” se desfez no ano passado. O colapso dos vários competidores pelo manto da Quarta Internacional provê uma oportunidade decisiva para o surgimento de uma autêntica tendência trotskista internacional. O que é a chave para a tarefa de reconstruir a Quarta Internacional através de um processo de rupturas e fusões é um entendimento das características e das causas do revisionismo pablista e a reação defeituosa dos anti-pablistas que lutaram, pouco e tardiamente, em um terreno nacional, enquanto, de fato, abandonavam o movimento mundial.

A Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos e França

Antes de começar a guerra, Trotsky e a Quarta Internacional haviam acreditado que a decadência do capitalismo e o crescimento do fascismo haviam eliminado a possibilidade de existência do reformismo e, portanto, de ilusões democrático-burguesas entre as massas. Porém, não puderam se dar conta que, cada vez mais, o repúdio ao fascismo por parte da classe trabalhadora e a ameaça de ocupação fascista fizeram surgir o chauvinismo social e uma renovada confiança na burguesia “democrática” que permeou as massas proletárias em toda a Europa e Estados Unidos. Diante de tal contradição, as fortes pressões do nacionalismo retrógrado e as ilusões democráticas no meio da classe trabalhadora tenderam a desgarrar as seções da Quarta Internacional. Algumas adotavam posições sectárias enquanto outras capitulavam ao social-patriotismo que se espalhava entre as massas. O SWP adotou durante um curto período a “política militar proletária”, que reivindicava o serviço militar sob controle dos sindicatos, semeando implicitamente a idéia utópica de que os trabalhadores norte-americanos poderiam lutar contra o fascismo alemão sem que existisse um Estado operário nos Estados Unidos, através do “controle” do exército do imperialismo estadunidense. O trotskista inglês Ted Grant foi mais longe e referiu-se em um dos seus discursos às forças armadas do imperialismo britânico como o “nosso Oitavo Exército”. O IKD alemão regrediu a um menchevismo descarado com a teoria de que o fascismo trouxera consigo a necessidade de “um Estado intermediário equivalente fundamentalmente a uma revolução democrática” (Três Teses, 19 de outubro de 1941).

O movimento trotskista francês, fragmentado durante o curso da guerra, constituiu o maior exemplo dessa contradição. Um de seus fragmentos subordinou a mobilização da classe trabalhadora aos apetites políticos da ala gaulista da burguesia imperialista; outro grupo renunciou a toda luta na resistência e dedicou-se exclusivamente a fazer trabalho entre os operários das fábricas. Depois, sem reconhecer o nível de reformismo existente entre os trabalhadores, de maneira aventureira tentou ocupar fábricas durante a “liberação” de Paris enquanto as massas trabalhadoras estavam em casa. O documento da “Conferência Européia” de fevereiro de 1944, que constituiu a base para uma fusão entre dois grupos franceses para formar o Partido Comunista Internacionalista, caracterizava os dois grupos da seguinte maneira:  

“Em vez de distinguir entre o nacionalismo de uma burguesia derrotada, que continua sendo uma expressão de suas preocupações imperialistas, e o ‘nacionalismo’ das massas, que é apenas uma expressão reacionária de sua resistência contra a exploração das forças de ocupação imperialistas, a direção do POI considerava a luta de sua própria burguesia como progressista (…)”

“(…) o CCI, (…) sob o pretexto de manter intacta a herança do marxismo-leninismo, recusou obstinadamente a fazer a distinção entre o nacionalismo da burguesia e o do movimento de resistência das massas.”

I. O Isolamento do SWP

O trotskismo europeu e o trotskismo norte-americano responderam inicialmente de diferentes maneiras às diferentes tarefas e problemas que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. O internacionalismo do SWP norte-americano, mantido através da uma íntima colaboração com Trotsky durante seu exílio no México, não sobreviveu ao assassinato deste, em 1940, e ao começo da Segunda Guerra Mundial. Os trotskistas norte-americanos se refugiaram em um isolamento que somente parcialmente lhes havia sido imposto pela desintegração das seções européias sob as condições do triunfo fascista e da ilegalidade.

Prevendo as dificuldades de coordenação internacional durante a guerra, um residente Comitê Executivo Internacional havia sido instalado em Nova York. Seu único feito importante, porém, parece ter sido convocar uma “Conferência de Emergência” da Internacional, que ocorreu em 1º de maio de 1940 “em algum lugar do hemisfério ocidental” por iniciativa das seções norteamericana, mexicana e canadense. Essa foi uma conferência parcial à qual compareceram menos da metade das seções e foi convocada com o propósito de tratar das ramificações internacionais da separação do grupo de Shachtman da seção estadunidense, que havia resultado na saída da maioria do Comitê Executivo Internacional residente. A reunião se solidarizou com o SWP na luta fracional e reconheceu sua condição de única seção estadunidense da Quarta Internacional. A conferência adotou também um “Manifesto da Quarta Internacional sobre a guerra imperialista e a revolução proletária mundial”, escrito por Trotsky. Depois da morte de Trotsky, no entanto, o CEI residente desapareceu.

A seção norteamericana da Quarta Internacional deveria ao menos ter estabelecido um Secretariado clandestino em um país neutro da Europa, com membros competentes do SWP e emigrados de outras seções, para centralizar e supervisionar diretamente o trabalho dos trotskistas nos países ocupados pelos fascistas. Porém, o SWP se contentou em limitar suas atividades internacionais durante a guerra à publicação em seus boletins internos de cartas e documentos fracionais dos grupos trotskistas europeus. A aprovação da Lei Voorhis em 1941, proibindo os grupos estadunidenses de filiarem-se a organizações políticas internacionais – que até hoje nunca foi colocada à prova – deu ao SWP uma desculpa para minimizar suas responsabilidades internacionais.

O trabalho do SWP durante a guerra revelou certa perspectiva internacionalista. Estivadores do SWP usaram a oportunidade de barcos provenientes de Vladivostok atracando na Costa Oeste para distribuir clandestinamente cópias em russo da “Carta aos Trabalhadores Russos”, de Trotsky, aos marinheiros soviéticos. O SWP concentrou seus camaradas da marinha mercante nas viagens de abastecimento a Murmansk, até que baixas extremamente graves forçaram o partido a interromper a concentração sobre Murmansk. (Foi em resposta a tais atividades que a GPU iniciou a rede de espionagem anti-trotskista de Soblen. Anos mais tarde, descobriu-se que o telefone de Cannon havia sido grampeado pela GPU e que o diretor administrativo da revista “Quarta Internacional” do SWP, um certo “Michael Cort”, era um agente infiltrado). Porém, a manutenção da direção da Quarta Internacional era parte da responsabilidade internacionalista do SWP, e deveria ter sido uma prioridade tão urgente quanto o trabalho que o SWP realizou por conta própria.

A direção do SWP passou pelo período da guerra essencialmente intacta, mas com seu isolamento reforçado e teoricamente mal equipada para orientar-se no pós-guerra.

Durante os últimos anos da guerra e no período imediato do pós-guerra, o SWP havia obtido algumas vitórias notáveis ao inserir seus quadros na indústria durante o boom e ao recrutar uma nova coluna de militantes proletários que se aproximaram dos trotskistas devido à oposição destes à política do social-patriotismo e de conciliação de classes o Partido Comunista.

Otimismo e ortodoxia

O SWP entrou no período do pós-guerra com um alegre otimismo em relação a perspectivas de uma revolução proletária. A convenção de 1946 do SWP e sua resolução, “A Iminente Revolução Norteamericana”, fizeram a projeção da continuidade de vitórias por tempo indefinido. A perspectiva isolacionista do partido se pôs em evidência nessa convenção. Reconheceu-se o caráter necessariamente internacional das crises e das revoluções, mas não o caráter internacional concomitante do partido de vanguarda. Como conseqüência, a resolução apresentava desculpas para o atraso político da classe operária dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, exaltava sua disposição de luta concluindo com o seguinte silogismo: “as batalhas decisivas da revolução mundial serão travadas nos países avançados, onde os meios de produção se encontram altamente desenvolvidos e onde o proletariado é forte – acima de tudo nos Estados Unidos”; assim, é suficiente fazer a revolução norteamericana e o capitalismo mundial será derrotado. Um impressionismo profundo levou o SWP a ver o mundo através dos olhos do capitalismo norte-americano, que havia saído da guerra inquestionavelmente como um pré-iminente poder mundial.

A estabilização do capitalismo europeu no pós-guerra; o surgimento de partidos stalinistas e de partidos operários e reformistas na Europa; a expansão do stalinismo no Leste Europeu (aparentemente negando a análise trotskista de que o stalinismo só pode trair), a destruição do capitalismo por grupos nacionalistas e stalinistas baseados em camponeses em países como Iugoslávia e China – todos esses fatos colocavam novos problemas teóricos para o movimento trotskista aos quais o SWP, desprovido de uma coluna de intelectuais de talento, decepado com a ruptura do pequeno-burguês Shachtman e, logo depois, desprovido da liderança de Trotsky, não tinha condições de fazer frente. A resposta imediata do SWP foi refugiar-se em uma “ortodoxia” estéril desprovida de todo conteúdo teórico real, tornando assim seu isolamento ainda mais completo.

Os anos 1950 trouxeram uma nova onda de lutas operárias espontâneas na Europa Ocidental e Oriental; mas para o SWP trouxeram o começo da caça às bruxas da Guerra Fria: os julgamentos de membros e antigos membros do Partido Comunista por causa da Lei Smith; o aniquilamento de todo aspecto da vida social e intelectual; a perseguição implacável de conhecidos “vermelhos” e militantes do movimento sindical, cortando a conexão do SWP com o movimento operário que havia levado anos para construir; o abandono de uma coluna completa de trabalhadores recrutados pelo SWP durante a última parte dos anos de 1940. A pressão objetiva para converter-se em uma simples seção de aplauso para os sucessos europeus e coloniais era forte, mas o SWP se apegou a seu compromisso verbal ortodoxo de levar a cabo a revolução norteamericana.

II. A Ruptura da Continuidade na Europa

A vulnerabilidade do movimento trotskista europeu perante o revisionismo girava em torno das debilidades históricas das organizações européias combinadas com a total destruição de sua continuidade no período anterior. Quando Trotsky lançou a luta pra fundar a Quarta Internacional em 1934, a classe operária européia, confrontada com a escolha decisiva entre o socialismo ou a barbárie, carecia de uma direção comunista. A tarefa colocada para os membros da Quarta Internacional estava clara: mobilizar a classe contra as ameaças do fascismo e da guerra, ganhá-la para o partido revolucionário mundial que defenderia o internacionalismo proletário frente à marcha de uma guerra imperialista e a capitulação social-chauvinista da Segunda e da Terceira Internacionais. Mas, Trotsky sabia da imensa dificuldade que a vanguarda tinha para marchar adiante em um período de derrota total para a classe e da “terrível desproporção entre as tarefas e os meios” (Lutando contra a corrente, abril de 1939). A debilidade do movimento europeu foi exemplificada pela seção francesa, que foi criticada repetidamente por Trotsky. Seu desvio “obreirista” pequeno-burguês e seu diletantismo foram tema de uma resolução especial na conferência fundadora da Quarta Internacional em 1938.

A Quarta Internacional se preparou para sua luta decisiva contra o fascismo e a guerra; e perdeu. Durante o curso da guerra e as ocupações nazistas, os meros rudimentos de coordenação internacional, e até nacional, foram destruídos. A Internacional se desintegrou em pequenos grupos militantes que implementavam políticas improvisadas: alguns oportunistas, outros heróicos. Os 65 camaradas franceses e alemães que foram fuzilados pela Gestapo em julho de 1943 devido a sua confraternização revolucionária derrotista e pela construção de uma célula trotskista nas forças armadas alemãs são um monumento ao valor internacional de um movimento revolucionário débil em luta contra dificuldades insuperáveis.

Quadros trotskistas dizimados

Em agosto de 1943 se tentou o restabelecimento dos rudimentos de uma organização na Europa. O Secretariado Europeu, estabelecido em uma reunião na Bélgica, incluiu exatamente um só membro remanescente da direção de antes da guerra. E, principalmente pela inexistência de quadros experientes, é que Michel Pablo (Raptis), um habilidoso organizador clandestino, não precisamente conhecido por sua habilidade como líder teórico e político, pôde emergir na direção da Internacional. Quando, em junho de 1945 se reuniu o Comitê Executivo europeu para preparar a reunião de um congresso mundial, os quadros dirigentes experientes e os mais promissores dos jovens trotskistas (A. Leon, L. Lesoil, W. Held) haviam sido assassinados pelos nazistas ou pela GPU. Havia sido rompida a continuidade do trotskismo na Europa. Esse trágico processo se reproduziu em outros lugares com a prisão e a suposta execução de Ta Thu Tau e os trotskistas vietnamitas, a possível extinção dos trotskistas chineses e a liquidação dos restantes dos trotskistas russos (incluindo, além do próprio Trotsky, Ignace Reiss, Rudolph Klement, e Leon Sedov). Os europeus estavam aparentemente tão famintos de quadros dirigentes com experiência que Pierre Frank (membro dirigente do grupo Molinier, que Trotsky denunciou como “centristas desmoralizados” em 1935 e os expulsou em 1938, por se recusarem a romper com a social-democracia francesa após a “Virada Francesa” [como a tática de entrismo foi nomeada na época]) pôde assumir a direção da seção francesa no pós-guerra.

Nessa conjuntura crucial, a intervenção e a direção de um partido trotskista norte-americano verdadeiramente internacionalista poderia fazer uma grande diferença. Porém, o SWP, que deveria ter assumido a direção da Internacional ao longo dos anos da guerra, estava ocupado em suas próprias preocupações nacionais. Cannon fez notar mais tarde que a direção do SWP havia deliberadamente reforçado a autoridade de Pablo, chegando “a minimizar uma grande parte de nossas diferenças” (junho de 1953). A responsabilidade urgente do SWP, que independente de suas deficiências era a organização trotskista mais forte e experimentada, era precisamente fazer o oposto.

III. A Ortodoxia Reafirmada

A tarefa imediata frente aos trotskistas no pós-guerra era reorientar seus quadros e reavaliar a situação da vanguarda e da classe à luz das projeções prévias. As previsões dos trotskistas de regimes capitalistas enfraquecidos na Europa ocidental e de renovação da luta de classes de forma violenta em toda a Europa, especialmente na Alemanha, onde o colapso do poder estatal nazista deixou um vácuo, haviam sido confirmadas. Entretanto, os reformistas, particularmente os partidos stalinistas, se reforçaram em suas intenções de conter a agitação espontânea dos operários. A direção da classe operária francesa passou da social democracia (SFIO), que havia dirigido a CGT antes da guerra, para as mãos dos stalinistas franceses. Assim, apesar do espírito manifestamente revolucionário da classe operária européia e as grandes greves gerais, especialmente na França, Bélgica, Grécia e Itália, em toda a extensão da Europa ocidental o proletariado não tomou o poder e o aparato stalinista surgiu com renovada força e solidez.

A Quarta Internacional respondeu retrocedendo a uma ortodoxia estéril e a uma férrea negação a crer que essas lutas haviam sido derrotadas para o período imediato:
“Sob estas condições, derrotas parciais (…) períodos de retirada temporária (…) não desmoralizam o proletariado (…) A repetida demonstração por parte da burguesia de sua inabilidade para reestabilizar uma economia e um regime político da mais mínima estabilidade oferece aos trabalhadores novas oportunidades de avançar a estágios ainda mais altos da luta.”

“O aumento das fileiras das organizações tradicionais na Europa, acima de tudo os stalinistas (…) tem alcançado seu auge em quase todas as partes. A fase de declínio está começando.” (Comitê Executivo Europeu, abril de 1946)
Os críticos oportunistas de direita no movimento trotskista (o IKD alemão, a fração do SWP de Goldman-Morrow) estavam corretos em ressaltar o otimismo exagerado de tais análises e ao indicar que as direções reformistas tradicionais da classe operária são sempre os primeiros herdeiros de uma renovação na combatividade e luta. Sua “solução”, entretanto, foi defender a limitação do programa trotskista a demandas democrático-burguesas, como apoio crítico à constituição francesa burguesa do pós-guerra. Seu conselho de levar a cabo a política de entrismo nos partidos reformistas europeus foi rechaçada de antemão pela maioria, que esperava que os trabalhadores se organizassem mais ou menos espontaneamente sob a bandeira trotskista. Essa atitude preparou o caminho para uma brusca reviravolta na questão do entrismo quando a posição implícita de ignorar a influência dos reformistas não pôde ser mantida por mais tempo.

A perspectiva da Quarta Internacional no pós-guerra imediato foi resumida por Ernest Germain (Mandel) em um artigo intitulado “A primeira fase da revolução européia” (Fourth International, agosto de 1946). O título implicou o seguinte enfoque: a “revolução” estava implicitamente redefinida como um processo metafísico durando continuamente e progredindo inevitavelmente a uma vitória, em vez de um confronto brusco e necessariamente limitado no tempo sobre a questão do poder estatal, e cujo resultado dará forma a todo o período seguinte.

Stalinofobia

A capitulação subsequente, pablista, ao stalinismo foi preparada pelo exagero impressionista de seu oposto: a stalinofobia. Em novembro de 1947, o Secretariado Internacional de Pablo escreveu que a União Soviética havia se convertido em 

“um Estado operário degenerado até o ponto de que todas as manifestações progressistas que restavam das conquistas de Outubro estavam mais e mais neutralizadas pelos desastrosos efeitos da ditadura stalinista.”

“O que resta das conquistas de Outubro está perdendo mais e mais seu valor histórico como premissa para o desenvolvimento socialista.”

“(…) das forças de ocupação russas ou dos governos pró-stalinistas, que são completamente reacionários, nós não exigimos a expropriação da burguesia (…).”
No SWP, circulava um rumor de que Cannon estaria flertando com a caracterização de que a União Soviética havia se convertido em um Estado operário totalmente degenerado, isto é, um regime de “capitalismo de Estado” – uma posição que foi abraçada pouco depois por Natalia Trotsky.

Sobre a questão da expansão stalinista no Leste Europeu, a Quarta Internacional estava unida em uma ortodoxia simplista. Uma discussão extensa do “Kremlin no Leste Europeu” (Fourth International, novembro de 1946), por E. R. Frank (Bert Cochran) foi aguda em seu tom anti-stalinista e tendeu a uma visão de que os países ocupados pelo Exército Vermelho seriam deliberadamente mantidos como Estados capitalistas. Uma polêmica contra Shachtman, travada por Mandel em 15 de novembro de 1946 foi ainda mais categórica: declara simplesmente como “absurda” a teoria de “instalação de um Estado operário degenerado em um país sem uma revolução proletária previa”. E Mandel pergunta retoricamente: “Pensa [Shachtman] realmente que a burocracia stalinista conseguiu derrotar o capitalismo em metade do nosso continente?” (Fourth International, fevereiro de 1947).

O método aqui é o mesmo seguido mais cinicamente pelo “Comitê Internacional”, anos mais tarde, sobre a questão de Cuba (perplexo? Então negue a realidade!), com a diferença de que o caráter de classe do Leste Europeu, com instituições econômicas capitalistas, mas com o poder estatal nas mãos do exército de ocupação de um Estado operário degenerado, era muito mais difícil de entender. Os empiristas e os renegados, é claro, não tiveram nenhuma dificuldade em caracterizar os Estados do Leste Europeu:
“Todo o mundo sabe que nos países onde os stalinistas tomaram o poder, estes procederam, a uma ou outra velocidade, para estabelecer o mesmo regime econômico, político e social que existe na Rússia. Todo o mundo sabe que a burguesia está sendo rapidamente expropriada, desprovida de todo o seu poder econômico e, em muitos casos, desprovida de sua existência (…) Todo mundo sabe que o que resta do capitalismo nesses países não será nem sequer restos amanhã, que a tendência em sua totalidade é estabelecer um sistema social idêntico ao da Rússia stalinista.” (Max Shachtman, “O congresso da Quarta Internacional”, outubro de 1948, New International).
Por mais penoso que esse ridículo tenha sido para eles, entretanto, os trotskistas ortodoxos estavam atrapalhados por suas análises porque não podiam constituir uma teoria para explicar a transformação do Leste Europeu sem abraçar conclusões não-revolucionárias.

Mandel, como lhe era típico nesses anos, ao menos colocava o dilema teórico claramente: é correto o entendimento trotskista do stalinismo se o stalinismo se mostra capaz em alguns casos de levar a cabo algum tipo de transformação social anticapitalista? Apegados à ortodoxia, os trotskistas haviam perdido uma compreensão real da teoria e suprimido uma parte do entendimento dialético de Trotsky do stalinismo como uma casta parasitária e contra-revolucionária assentada sobre as conquistas da Revolução de Outubro, uma espécie de intermediário traiçoeiro colocado entre o proletariado russo vitorioso e o imperialismo mundial. Fazendo isso, reduzindo o materialismo dialético a um dogma estático, sua desorientação foi completa. Quando era necessário responder à pergunta de Mandel de maneira afirmativa, se preparou o caminho para o revisionismo pablista ocupar o vazio teórico.

A Quarta Internacional flerta com Tito

Virtualmente sem exceção, a Quarta Internacional foi desorientada pela revolução iugoslava. Depois de uns 20 anos de monolitismo stalinista, os trotskistas estavam pouco dispostos a sondar a fundo o PC iugoslavo anti-Stalin. Os titoístas iugoslavos foram descritos como “camaradas” e “centristas de esquerda”, e a Iugoslávia como “um Estado operário estabelecido por uma revolução proletária”. Em uma das várias “cartas abertas” a Tito, o SWP escreveu: “A confiança das massas operárias nele [o partido de Tito] crescerá imensamente e se tornará a expressão coletiva efetiva dos interesses e dos desejos do proletariado em vosso país”. A revolução iugoslava colocava um novo problema (mais tarde recapitulado pelos sucessos chinês, cubano e vietnamita): diferentemente do Leste Europeu, onde as transformações sociais foram realizadas pelo exército de um Estado operário degenerado, a revolução iugoslava foi claramente uma revolução social nativa, que, sem a intervenção da classe operária ou a direção de um partido trotskista, conseguiu estabelecer um Estado operário (deformado). A Quarta Internacional evitou o problema teórico chamando a revolução de “proletária” e aos titoístas “centristas de esquerda”. (O SWP evitou uma caracterização sem ambiguidades do regime maoísta como um estado operário deformado até 1955. Ainda em 1954, dois artigos da tendência de Phillips, que caracterizavam a China como capitalismo de Estado, foram publicados na revista Fourth International do SWP).

Novamente se manteve a ortodoxia, porém desprovida de conteúdo. O impulso, ao qual se havia resistido até que Pablo lhe deu uma expressão consistente, era de reconhecer que a capacidade das forças não proletárias, não trotskistas, de conquistar qualquer forma de mudança social tiraria da Quarta Internacional sua razão de existir. A diferença qualitativa e crucial entre um Estado operário e um Estado operário deformado – gravada com sangue na necessidade de uma revolução política para abrir caminho ao desenvolvimento socialista e a extensão da revolução a todo o mundo – havia sido perdida.

IV. O Pablismo Triunfa

Os quadros da Quarta Internacional do pós-guerra, débeis numericamente, isolados socialmente, teoricamente desarmados e sem experiência, foram uma presa fácil para a desorientação e a impaciência em uma situação de repetida agitação pré-revolucionária, cujo curso não podiam influenciar. Surgindo no princípio de 1951 como um novo revisionismo, o pablismo começou a se fazer valer respondendo à situação objetiva frustrante ao propor uma saída artificial do isolamento da Quarta Internacional em relação ao grosso do movimento da classe operária. O pablismo foi a generalização desse impulso em um corpo teórico revisionista que oferecia respostas impressionistas que eram mais consistentes que a ortodoxia unilateral da Quarta Internacional no pós-guerra imediato.

O crucial é não igualar simplesmente a debilidade organizacional, a falta de profundas raízes no proletariado e a incapacidade teórica e desorientação que foram precondições para a degeneração revisionista da Quarta Internacional com a consolidação e a vitória desse revisionismo. Apesar de graves erros políticos, a Quarta Internacional no período do pós-guerra imediato era, todavia, revolucionária. O SWP e a Internacional se apegaram a uma ortodoxia estéril como a um talismã  para proteger-se de conclusões não revolucionárias sobre os sucesos mundiais que já não podiam entender. A história tem demonstrado que em momentos cruciais os marxistas revolucionários tem sido capazes de superar uma teoria inadequada. Lenin, antes de abril de 1917, não estava equipado teoricamente para projetar uma revolução proletária em um país atrasado como a Rússia. Trotsky, até 1933, havia igualado o Termidor russo com o regresso ao capitalismo. O pablismo era algo mais que uma teoria simétrica falsa, mais que simplesmente uma exagerada reação impressionista contra a ortodoxia. Era uma justificativa teórica  para um impulso não revolucionário baseado no abandono da perspectiva da construção de uma vanguarda proletária nos países avançados e coloniais.

Em janeiro de 1951 Pablo se aventurou no reino da teoria com um documento chamado “Para Onde Vamos?”. Apesar de parágrafos cheios de confusões e equívocos sem sentido, a estrutura revisionista, em sua totalidade, aparece claramente:
A relação de forças no tabuleiro internacional está evoluindo agora em desvantagem para o imperialismo.

Uma época de transição ente o capitalismo e o socialismo, uma época que já começou e está bastante avançada (…) Esta transformação provavelmente requererá um período completo de vários séculos de regimes transicionais entre o capitalismo e o socialismo e necessariamente se desviarão de formas e normas ‘puras’.

O proceso objetivo é, em última análise, o único fator determinante, sobrepondo-se a todos os obstáculos de ordem subjetiva.”

Os partidos comunistas conservam a possibilidade, em certas circunstâncias, de delinear uma orientação revolucionária.
A elevação feita por Pablo do “processo objetivo” ao “único fator determinante”, reduzindo o fator subjetivo (a consciência e a organização do partido de vanguarda) à categoria de trivial, a discussão de “vários séculos” de “transição” (mais tarde caracterizado pelos oponentes de Pablo como “séculos de Estados operários deformados”), e a sugestão de que a direção revolucionária podia ser dada pelos partidos stalinistas ao invés de ser dada pela Quarta Internacional, consistem na estrutura analítica completa do revisionismo pablista.

Em outro documento, “A Guerra Que Se Aproxima”, Pablo propôs sua política de “entrismo sui generis” (entrismo de tipo especial):
Para integrarmos o movimento de massas real, para trabalhar e permanecer nos sindicatos de massas, por exemplo, ‘artimanhas’ e ‘capitulações’ não são somente aceitáveis, mas necessários.
Em essência, os trotskistas deveriam abandonar a perspectiva de um entrismo a curto prazo cujo propósito havia sido sempre o de rachar as organizações não revolucionárias, baseando-se em um programa sólido, como uma tática para construir um partido trotskista. A nova política entrista provinha diretamente das análises de Pablo. Dado que a afirmação de uma mudança na relação de forças mundiais a favor do avanço da revolução impusionaria os partidos stalinistas a desempenhar um papel revolucionário, era lógico que os trotskistas deveriam ser parte desses partidos, seguindo uma política que consistiria essenssialmente em pressionar o aparato stalinista.

Tudo isto deveria ter feito explodir uma bomba nas cabeças dos quadros trotskistas internacionais. Pablo era, afinal, a cabeça do Secretariado Internacional, o corpo político dirigente da Quarta Internacional! Mas há pouca evidência sequer de preocupação, quanto mais da necessária formação de uma fração anti-revisionista  internacional. Um extenso documento escrito por Ernest German (“Dez Teses”), e talvez um certo rumor subterrâneo, forçou Pablo a produzir uma tentativa de explicação ortodoxa quanto à questão do “período de transição”, mas nenhuma outra polêmica por escrito questionou o ataque mais descarado de Pablo contra o programa trotskista.

Mandel resiste

Em março de 1951, Mandel publicou suas “Dez Teses”, que era um ataque velado contra “Para Onde Vamos?”, mas não atacou a Pablo nem a seus documentos. Mandel voltou a estabelecer o uso marxista do “período transicional” como o período entre a vitória da revolução (a ditadura do proletariado) e a vitória do socialismo (a sociedade sem classes). Sem referir-se explicitamente à posição de Pablo, escreveu: “Assim como a burguesia, [o stalinismo] não sobreviverá a uma guerra que se transformará no surgimento de uma revolução.”. Mandel insistiu no caráter contraditório bonapartista do stalinismo, baseado em formas de propriedade proletárias enquanto protege a posição privilegiada da burocracia contra os operários. Realçou a natureza dos partidos comunistas de massas fora da URSS, determinada por sua base proletária por um lado, e a subserviência às burocracias stalinistas no poder por outro.

Mandel tentou apresentar uma resposta ortodoxa ao impulso pablista de que a destruição do capitalismo no Leste Europeu, na China e na Iugoslávia sem uma direção trotskista tornava a Quarta Internacional supérflua. Novamente, não referiu-se às posições que estava atacando; alguém poderia pensar que as “Dez Teses” simplesmente caíam do céu com um exercício teórico interessante, ao invéz de ser uma resposta ao surgimento de uma corrente revisionista, completamente oposta à linha de Mandel. Ao insistir que um novo levante revolucionário mundial não estabilizaria o stalinismo, mas que, pelo contrário, seria um perigo mortal para ele, escreveu:
É precisamente por que a nova onda revolucionária contém um embrião da destruição dos partidos stalinistas como tais que deveríamos estar hoje muito mais com os operários stalinistas. Esta é somente uma fase de nossa tarefa fundamental: construir novos partidos revolucionários (…)

“ ‘Estar mais com os operários stalinistas’  significa, então, ao mesmo tempo,  afirmar mais do que nunca nosso próprio programa e nossa própria política trotskista.
As “Dez Teses” mostraram que todas as ramificações do movimento trotskista eram incapazes, porém, de entender a natureza das transformações sociais que haviam ocorrido no Leste Europeu (ainda que a análise da maioria do RCP britânico de Hanston/Grant, incorporado pelo grupo de Los Angeles do SWP de Vern-Ryan, tenha conseguido o princípio – mas apenas o princípio – da sabedoria ao reconhecer que no período do pós-guerra imediato um exame das formas de propriedade nativas não seria suficiente, uma vez que o poder estatal no Leste Europeu era um exército de ocupação estrangeiro, o Exército Vermelho). Em 1951 Mandel considerava, porém, o processo de “assimilação estrutural” incompleto (!) e previa uma assimilação dos exércitos dos Estados do Leste Europeu ao exército soviético – isto é, que o Leste Europeu seria simplesmente incorporado  à União Soviética. Mandel reconheceu que a transformação do Leste Europeu destruía o capitalismo, mas continha em si, ainda que vitorioso, um obstáculo burocrático decisivo ao desenvolvimento socialista; destacou que a expansão do modo de produção não capitalista da URSS “é infinitamente menos importante que a destruição do movimento operário vivo que lhe há precedido.”

Não se havia reconhecido um obstáculo semelhante com relação à China e, especialmente, Iugoslávia. Os trostskistas eram incapazes de desassociar o fenômeno do stalinismo da pessoa de Stalin; a ruptura de Tito com o Kremlin obscureceu qualquer reconhecimento de que a Iugoslávia seguiria necessariamente uma política interna e diplomática qualitativamente idêntica para salvaguardar os interesses de seu próprio regime nacional-burocrático contra a classe operária. Mandel, não querendo admitir que forças stalinistas na direção das massas camponesas pudessem consumar uma revolução socialista, chamou aos sucessos na Iugoslávia e China em suas “Dez Teses” de revoluções proletárias e também propôs que “sob tais condições esses partidos deixam de ser stalinistas no sentido clássico da palavra.”

Enquanto Pablo interpretava esses sucessos como um modelo revolucionário novo que tornavam inválidas “as formas e normas ‘puras’” (isto é, a Revolução Russa), Mandel – novamente sem referir-se a Pablo – destacou que estes eram resultados de circunstâncias excepcionais que, em qualquer caso, não se poderiam aplicar a países industriais avançados.  Ele opunha “a frente única de fato existente entre revoluções coloniais na Ásia e a burocracia soviética, que tem sua origem objetiva no fato de que ambas se encontram ameaçadas pelo imperialismo…” às possibilidades para a Europa. Estava de acordo com a previsão de que uma terceira guerra mundial iminente entre “a frente única imperialista por um lado e a URSS e as revoluções coloniais por outro”, e lhe chamava de guerra contra-revolucionária.

A essência do argumento de Mandel era:
“O que importa acima de tudo no presente período é dar ao proletariado uma direção internacional capaz de coordenar suas forças e de proceder à vitória mundial do comunismo. A burocracia stalinista, forçada a voltar-se com uma fúria cega contra a primeira revolução proletária vitoriosa fora da URSS (Iugoslávia), é incapaz socialmente de levar a cabo tal tarefa. Aqui reside a missão histórica do nosso movimento (…) reside na incapacidade do stalinismo de derrotar o capitalismo mundial, uma incapacidade da natureza social da burocracia soviética.”
Com a vantagem da visão a posteriori e a experiência dos últimos 20 anos – a natureza contra-revolucionária do stalinismo, reafirmada mais claramente na Hungria em 1956; a Revolução Cubana de 1960, na qual um nacionalismo pequeno-burguês na direção de guerrilheiros camponeses destruiu o capitalismo tão somente para unir-se ao aparato stalinista interna e externamente; as políticas consistentemente nacionalistas e stalinistas do PC chinês no poder – é fácil reconhecer que as “Dez Teses” estão equivocadas em suas análises e previsões. O que é muito mais importante, entretanto, é o tom não fracional consistente e deliberado do documento, que pressagia a negação de Mandel de colocar-se no campo anti-pablista. Empenhado em não lutar por uma linha correta na Quarta Internacional, a defesa teórica de Mandel da necessidade do trotskismo queria dizer muito pouco. Isto era simplesmente pablismo de segunda mão, a negação do fator subjetivo no processo revolucionário.

O Terceiro Congresso Mundial

O Terceiro Congresso Mundial da Quarta Internacional ocorreu entre agosto e setembro de 1951. O principal informe político tentou distinguir entre os partidos comunistas e os partidos reformistas sobre a base de que somente os primeiros eram contraditórios, e projetava que sob a pressão de um forte auge do movimento de massas os PCs poderiam converter-se em partidos revolucionários. A natureza oportunista da versão de Pablo da tática de entrismo se revelou claramente pelo rechaço do entrismo de princípios, cuja finalidade é polarizar e dividr: “As possibilidades de rachas importantes nos PCs (…) são substituídas por um movimento à esquerda por parte das bases dos PCs.” Não se reconheceu nenhuma deformação decisiva nos Estados operários do Leste Europeu e China; assim, implicitamente, o Congresso estabelecia apenas uma diferença quantitativa entre a União Soviética de Lenin e os Estados operários degenerados e deformados. O informe projetava a possibilidade de que Tito poderia “dirigir um reagrupamento de forças revolucionárias independente do capitalismo e do Kremlin (…) que jogaria um papel importante na formação de uma nova direção revolucionária.” Não se mencionava para nada a perspectiva da revolução permanente nos países coloniais.

A aplicação da política de Pablo de “entrismo sui generis” foi elaborada na Comissão Austríaca:
A atividade de nossos membros no SP [Partido Socialista] será guiada pelas seguintes diretrizes: a) Não apresentar-se como trotskistas com nosso programa total. b) Não apresentar questões programáticas e de princípios (…)
Nem a maior quantidade possível de ortodoxia verbal nas resoluções poderia obscurecer durante mais tempo os olhos daqueles que quisessem ver.

O Partido Comunista Internacionalista da França submeteu as “Dez Teses” de Mandel a voto (depois que o próprio Mandel havia aparentemente decidido não fazê-lo) e propôs emendas ao documento principal. Não se votaram as “Dez Teses” ou as emendas francesas. O PCI votou contra a adoção da linha geral do documento principal; foi a única seção que o fez.

Nos meses que seguiram, a linha pablista foi elaborada de maneira revelada já antes e durante o Terceiro Congresso Mundial:
Estamos entrando [nos partidos stalinistas] para permanecermos neles durante muito tempo, contando com a grande possibilidade de ver esses partidos, sob novas condições [“um período pré-revolucionário genericamente irreversível”], desenvolverem tendências centristas que estarão na direção de um estado completo de radicalização das massas e de processos revolucionários objetivos…” (Pablo, Informe ao Décimo Pleno do Comitê Executivo Internacional, fevereiro de 1952)
Pressionada entre a ameaça imperialista e a revolução colonial, a burocracia soviética se viu obrigada a aliar-se com a segunda contra a primeira (…) A desintegração do stalinismo nesses partidos não deveria ser entendida (…) como uma desintegração organizacional (…) ou como uma ruptura pública com o Kremlin, senão como uma transformação interna progressiva.” (“O ascenso e o declínio do stalinismo”, Secretariado Internacional, setembro de 1953)
V. Os Anti-pablistas

Com a capitulação de Mandel, cujo papel nos conflitos preliminares sobre as políticas pablistas é ambíguo, mas em quem os franceses parecem haver depositado uma certa confiança, a tarefa de lutar contra o pablismo racaiu sobre a maioria do PCI francês de Bleibtreu-Lambert e no SWP norte-americano. Apesar de existir uma considerável mitologia que defende o contrário, tanto o PCI como o SWP vacilaram quando o revisionismo se manifestou na direção da Quarta Internacional, colocando obstáculos somente à aplicação em suas próprias seções. Ambos os grupos se comprometeram por sua inquieta conformidade (combinada, no caso do PCI, com resistência esporádica) a apoiar a política de Pablo, até que as consequências organziacionais suicídas para suas seções fizeram necessárias duras batalhas. Ambos abdicaram da responsabilidade de levar a luta contra o revisionismo a todos e cada um dos grupos e seções da Quarta Internacional, e ambos se retiraram da luta por meio da fundação do “Comitê Internacional”, baseado “nos princípios do trotskismo ortodoxo”. O CI, desde o seu começo, era apenas o esqueleto de uma tendência internacional formada por grupos que já haviam se dividido entre ramificações pablistas e ortodoxas.

O PCI luta contra Pablo

A maioria do PCI, depois de sofrer intervenção pelo Secretariado Internacional (que havia instalado uma minoria leal a Pablo conduzida por Mestre e Frank como direção da seção francesa), continuou afirmando sua conformidade com a linha do Terceiro Congresso Mundial, argumentando que Pablo, o SI e o Comitê Executivo Internacional estavam violando suas decisões: segundo os franceses, o pablismo “utiliza as confusões e contradições do Congresso Mundial – no qual não pôde impor-se – para se fazer valer após o Congresso” (“Declaração da tendência Bleibtreu-Lambert sobre os acordos concluídos no CEI”, sem data, março ou abril de 1952).

Uma importante carta fechada de Renard a Cannon, publicada em 16 de fevereiro de 1952 em nome da maioria do PCI, apelava ao SWP. A carta de Renard afirmava sua conformidade com o Terceiro Congresso Mundial, incluindo sua Comissão Francesa, e opunha o Congresso Mundial supostamente não pablista (citando vagas trivialidades para demonstrar seu impulso presumivelmente ortodoxo) às ações e linhas subsequentes de Pablo no CEI e no SI. Renard afirmava que “O pablismo não triunfou no Terceiro Congresso Mundial.” (Astutamente, não tentou explicar por que sua organização votou contra os principais documentos do Congresso!). O argumento principal da carta é um apelo contra a intervenção da direção internacional pablista na seção francesa.

A resposta de Cannon, de 29 de maio, acusa a maioria do PCI de oportunismo estalinofóbico no movimento sindical (fazer um bloco com os anticomunistas progressistas contra o PC) e negava a existência de alguma coisa como o pablismo.

A maioria do PCI mostrou um claro entendimento das implicações do entrismo pablista. Em uma polêmica contra o teórico da minoria, Mestre, a maioria havia escrito:
Se essas idéias são corretas, deixemos de chacotas sobre a tática do entrismo, até mesmo o entrismo sui generis, e implementemos claramente nossas novas tarefas: as de uma tendência mais consistente, nem sequer uma oposição de esquerda (…) cujo papel é ajudar o stalinismo a vencer suas dúvidas e colocar sob as melhores condições possíveis o enfrentamento decisivo com a burguesia (…) Se o stalinismo se transformou… [quer dizer] que já não refletiria os interesses particulares de uma casta burocrática cuja existência mesma depende do equilíbrio entre as classes, que já não é bonapartista, mas que reflete somente (…) a defesa de um Estado operário. Admitir que uma transformação tal possa ter ocorrido sem a intervenção do proletariado soviético (…) mas, ao contrário, pela evolução da própria burocracia (…) nos levará não somente a corrigir o Programa de Transição [mas também] todas as obras de Leon Trotsky desde 1923 e a fundação da Quarta Internacional.” (“Primeiras indicações de zigue zague”, Boletim Interno do PCI No. 2, fevereiro de 1952)
Mas a maioria do PCI, como o SWP, demonstrou uma falta de internacionalismo concreto quando se enfrentou com a possibilidade de levar a cabo por si só a luta contra o pablismo.

Em 3 de junho de 1952, a maioria do PCI pediu o reconhecimento de duas seções francesas da Quarta Internacional, permitindo assim à maioria levar a cabo sua própria política na França. Isto era uma violação clara dos estatutos de fundação da Quarta internacional e supunha a liquidação da Internacional como um organismo mundial disciplinado. O que era necessário era uma luta fracional internacional em cima da linha política da Quarta Internacional. Mas a maioria do PCI não estava disposta a subordinar seu trabalho na França à luta crucial a favor da legitimidade e continuidade da Quarta Internacional. A negação de Pablo a essa demanda conduziu diretamente ao racha da maioria do PCI.

O SWP entra na luta

O SWP se uniu à luta contra o revisionismo somente quando uma tendência pró-pablista, a ala de Clarke na fração Cochran-Clarke, surgiu no interior do partido norte-americano. Em sua resposta a Renard, com data de 29 de maio de 1952, Cannon havia dito:
Não vemos [nenhum tipo de tendência pró-stalinista] na direção internacional da Quarta Internacional, nem nenhum sinal ou sintoma disso. Não vemos nenhum revisionismo [nos documentos] (…) consideramos estes documentos como completamente trotskistas (…) é a opinião unânime dos dirigentes no SWP que os autores destes documentos têm feito um grande serviço ao movimento.
A história de que o SWP havia preparado algumas emendas aos documentos do Terceiro Congresso Mundial que Clarke (o representante do SWP na Internacional) havia queimado em vez de apresentá-los é possivelmente verdade, mas não muito significativa, dado que Cannon declarou sua lealdade política a Pablo no momento crucial e recusou solidariedade com a maioria anti-pablista do PCI.

Contra a defesa da fração Cochran-Clarke de um foco nos “companheiros de viagem” do PC, a maioria do SWP insistia em uma espécie de excepcionalismo norte-americano, opondo os partidos de massas europeus ao patético PC norte-americano, sem base operária e repleto de intelectuais de terceira categoria, mas em geral afirmou seu apoio à tática pablista de entrismo nos PCs.

Em resposta à ameaça de Cochran-Clarke, Cannon se dispôs a formar uma fração no SWP, ajudado pela direção local de Weiss em Los Angeles. Cannon buscava alinhar os velhos quadros do partido ao redor da questão de conciliação com o stalinismo e apelou aos sindicalistas do partido, como Dunne e Swabeck, fazendo uma analogia entre a necessidade de uma luta fracional no partido e a luta no meio da classe trabalhadora contra os reformistas e vendidos, como processos paralelos de luta fracional contra uma ideologia estranha. Disse ao pleno do SWP em maio de 1953:
Durante o curso do ano passado, tive sérias dúvidas sobre a possibilidade de SWP sobreviver (…) Pensei que nosso esforço de 25 anos (…) havia terminado em um fato catastrófico, e que, mais uma vez, um pequeno punhado teria que recolher os destroços e se empenhar de novo a construir os novos quadros de outro partido sobre os velhos fundamentos.” (Discurso de encerramento, 30 de maio)
Mas Cannon escolheu outro caminho. Em vez de perseverar na luta para onde quer que esta conduzisse, formou um bloco com o aparato de Dobbs-Kerry-Hansen frente às implicações organizacionalmente liquidacionistas da linha de Cochran-Clarke. Como preço por seu apoio, Cannon prometeu à administração rotineira e conservadora de Dobbs o controle do SWP sem mais ingerências de sua parte (“um novo regime no partido”).

A resposta do SWP ao encontrar a disputa da Internacional refletindo-se dentro da seção norteamericana foi aprofundar seu isolamento até um virulento anti-internacionalismo. O discurso de Cannon na reunião da maioria do SWP de 18 de maio de 1953 afirmava: “Não nos consideramos uma sucursal norteamericana de um negócio internacional que recebe ordens de um chefe” e culminava a discussão dizendo que “formaríamos, se fosse possível [!], uma linha comum”. Cannon negou a legitimidade da direção internacional e se referiu a “uma quanta gente em Paris” [o CEI]. Contrastou a Quarta Internacional com o Comintern de Lenin, que tinha poder estatal e uma direção cuja autoridade era reconhecida amplamente, e assim negava que a Quarta Internacional contemporânea poderia ser um organismo com centralismo democrático.

Cannon se opôs com atraso à conduta de Pablo contra a maioria francesa, mas somente sobre a questão organizativa, de acordo com a ideia de que a direção da Internacional não deveria intervir nos assuntos das seções nacionais. Escreveu:
“(…) Tivemos dúvidas ante as táticas usadas no recente conflito e racha na França e ante o precedente organizacional inconcebível que ali se estabeleceu. Esta é a razão por que demorou durante tanto tempo a minha resposta a Renard. Queria ajudar ao SI publicamente, mas não via como podia aprovar os passos organizacionais tomados contra a maioria de uma direção eleita. Finalmente resolvi o problema simplesmente ignorando essa parte da carta de Renard.” (“Carta a Tom”, 4 de junho de 1953)
A “Carta a Tom” também reiterava a posição de que o Terceiro Congresso Mundial não era revisionista.

Os defeitos cruciais na luta anti-pablista do PCI e do SWP foram devidamente utilizados pelos pablistas. O pleno do CEI criticou Cannon por seu conceito de Internacional como “uma união federativa”. Apontou que o SWP não se opusera nunca à política de entrismo pablista em princípio e acusava o SWP-PCI de um bloco sem princípios políticos sobre a China. Aproveitando-se da ortodoxia unilateral do SWP (a defesa de Hansen da formulação de um membro da maioria do SWP de que o stalinismo era “contra revolucionário de cabo a rabo”, uma caracterização que cabe somente à CIA) os pablistas foram capazes de vestir sua liquidação do programa trotskista independente com o manto de inocentes reafirmações das contradições do stalinismo como uma casta contra-revolucionária que repousa sobre formas de propriedade estabelecidas pela Revolução de Outubro.

O CI é fundado

Depois do racha de Cochran-Clarke, o SWP rompeu publicamente com Pablo de súbito. Em 16 de novembro de 1953, The Militant [o jornal do SWP] publicava “Uma Carta Aberta aos Trotskistas de Todo o Mundo”, que denunciava Cochran-Clarke e Pablo e se solidarizava tardiamente com a maioria do PCI, “injustamente expulsa”. As caracterizações anteriores do SWP do Terceiro Congresso Mundial como “completamente trotskista” necessitavam de uma tentativa, nesta chamada “Carta Aberta”, de localizar no tempo o surgimento do pablismo depois do Congresso, o que condenava o SWP a apresentar um caso pouco convincente, apoiando-se fundamentalmente em um ou dois panfletos da minoria pablista francesa de 1952. Aproximadamente nessa mesma época o SWP imprimiu seu documento “Contra o Revisionismo Pablista”, com data de novembro de 1953 e que continha uma análise mais competente da acomodação liquidacionista de Pablo ao stalinismo:
O conceito de que um Partido Comunista de massas tomará o caminho até o poder, necessitando somente de uma pressão suficiente das massas, é falso. Passa a responsabilidade das derrotas revolucionárias da direção às massas (…)

A classe operária se transforma [segundo as teorias de Pablo] em um grupo de pressão e os trotskistas, em um agrupamento de pressão a seu lado, que empurra uma seção da burocracia à revolução. Dessa maneira, a burocracia, de um dique e uma traidora da revolução, se transforma em uma força motora auxiliar dela.
Em 1954 se formou o “Comitê Internacional”. Incluía a maioria do PCI francês, o SWP norte-americano (fraternal) e o grupo de Healy (Burns) na Inglaterra. O último não jogou nenhum papel significativo ou independente na luta contra o revisionismo. O racha de Healy-Lawrence no Revolutionary Communist Party, que estava se desintegrando após a guerra, impulsionado pela perspectiva de fração de Healy-Lawrence de entrismo profundo no Partido Trabalhista britânico, havia sido respaldado pelo Secretariado Internacional de Pablo, que reconhecia duas seções na Inglaterra e lhes dava igual representação no Comitê Executivo Internacional. Healy era o “homem de Cannon” na Inglaterra e o SWP lhe havia apoiado consistentemente em suas disputas com o RCP. Quando o SWP se separou de Pablo, a fração Healy-Lawrence se dividiu, Healy se alinhou com o SWP e Lawrence com Pablo (Lawrence mais tarde passou ao stalinismo, assim como a minoria pablista do PCI). Apesar de ser parte do novo bloco internacional anti-pablista, o grupo de Healy continuou seu oportunismo arquipablista com relação ao Partido Trabalhista. Não teve nenhum peso no bloco do Comitê Internacional até que recrutou uma coluna impressionante de intelectuais e membros do PC nos sindicatos (muitos dos quais perdeu mais tarde), depois da Revolução Húngara em 1956, e isto lhe fez consideravelmente mais importante na esquerda britânica.

O Comitê Internacional também reivindicava possuir a adesão da seção chinesa (emigrados), que já havia sofrido uma divisão, e da pequena seção suíça.

O Comitê Internacional conseguiu imprimir um par de boletins internos no princípio de 1954, mas nunca se reuniu como um verdadeiro organismo internacional, nem nunca elegeu uma direção centralizada. A tática adotada pelo SWP era a de boicotar o Quarto Congresso Mundial, alegando que era simplesmente uma reunião da fração de Pablo, que não tinha nenhuma legitimidade como representante da Quarta Internacional.

O movimento mundial pagou um alto preço por essa fuga. Para citar um exemplo: o Ceilão (atual Sri Lanka). O LSSP ceilanês adotou uma posição não fracional sobre o pablismo, apelando ao SWP para que não se separasse e participasse do Quarto Congresso. Uma dura luta deveria ter sido agressivamente travada com os ceilaneses cheios de dúvidas, forçando uma polarização e forjando sólidos quadros através do enfrentamento. Em vez disso, os ceilaneses foram arrastados até Pablo. Uns sete anos mais tarde, a reputação revolucionária do trotskismo foi manchada aos olhos de militantes em todo o mundo pela entrada do LSSP no governo de coalizão burguês do Ceilão. Se houvesse sido travada uma dura luta antirrevisionista com sólidos princípios na seção do Ceilão de 1953, teria sido possível criar então uma sólida organização revolucionária que poderia ter reclamado para si de forma independente a continuidade do trotskismo, impedindo a associação do nome do trotskismo à traição do LSSP.

Assim, a luta antirevisionista foi deliberadamente não levada ao movimento mundial – o Comitê Internacional constituído principalmente daqueles grupos que já haviam tido suas rupturas em torno da aplicação da política de Pablo em seus próprios países – e a luta para derrotar o revisionismo e reconstruir a Quarta Internacional sobre as bases de um trotskismo autêntico foi abortada.

Do flerte à consumação

Em 1957, o Secretariado Internacional de Pablo e o SWP flertaram com uma possível reunificação (a correspondência de Hansen-Kolpe). A base nesse momento foi uma ortodoxia formal – a similaridade de linhas entre o SI e o SWP em resposta à Revolução Húngara de 1956. O SWP, esperando talvez ingenuamente, uma repetição da posição de Clarke em 1953 sobre a possibilidade de uma auto-liquidação das burocracias stalinistas, tendeu a receber conclusões formalmente trotskistas do SI sobre a Hungria, como se fossem boa coisa. Essas primeiras proposições de reunificação não avançaram devido à oposição dos grupos do Comitê Internacional ingleses e franceses, assim como às suspeitas de Cannon de que Pablo estaria manipulando. Havia-se colocado a questão simplesmente como um acordo empírico aparente sem examinar as diferenças passadas e a direção presente.

Quando a questão da reunificação, que se consumaria em 1963 com a formação do Secretariado Unificado, veio novamente à tona, o terreno político em sua totalidade havia mudado. O SI e o SWP convergiram com relação a Cuba. Mas, a base já não era uma convergência aparente, senão o abandono por parte do SWP do trotskismo para abraçar o revisionismo pablista (o qual o SWP, em sua linha de colaboração de classes sobre a guerra do Vietnã, supera agora em seu caminho até um reformismo descarado).

A base para a reunificação de 1963 foi um documento intitulado “Pela Total Reunificação do Movimento Trotskista Mundial – Declaração do Comitê Político do SWP”, de 1º de março de 1963. A chave da nova linha era a seção 13:
No caminho de uma revolução que comece com simples demandas democráticas e termine com a ruptura das relações de propriedade capitalistas, a guerra de guerrilhas conduzida por camponeses sem terra e forças semi-proletárias, sob uma direção que se vê forçada a levar a cabo a revolução até a conclusão, pode jogar um papel decisivo em precipitar a queda de um poder colonial e semi-colonial. Esta é uma das lições principais que se deve tirar da experiência desde a Segunda Guerra Mundial. Deve ser incorporada conscientemente na estratégia da construção de partidos marxistas revolucionários nos países coloniais.
No documento “Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional”, de 12 de junho de 1963, a tendência Espartaquista contrapunha:
A experiência desde a Segunda Guerra Mundial tem demonstrado que a guerra de guerrilhas baseada nos camponeses sob uma direção pequeno burguesa não pode ir além de um regime burocrático antioperário. A criação de tais regimes tem sido possível sob condições de decadência do imperialismo, a desmoralização e desorientação causadas pela traição stalinista e a ausência de uma direção revolucionária marxista na classe operária. A revolução colonial pode ter um signo inequivocamente progressista somente sob uma direção do proletariado revolucionário. Para os trotskistas, incorporar à sua estratégia o revisionismo sobre a questão da direção proletária na revolução, é uma profunda negação do marxismo-leninismo, qualquer que seja o beato desejo expressado ao mesmo tempo de ‘construir partidos marxistas revolucionários nos países coloniais’. Os marxistas devem opor-se resolutamente a qualquer influência aventureirista da via ao socialismo através da guerra de guerrilha camponesa – análoga historicamente ao programa tático dos Socialistas-Revolucionários russos em contraposição ao que lutou Lenin. Esta alternativa seria um curso suicida para os socialistas do movimento e, talvez, fisicamente, para os mesmos aventureiros.
Ironicamente, a contínua evolução à direita do SWP leva-o agora a repudiar a linha da seção 13, mas pela direita. A preconização por parte do SU de luta armada pequeno burguesa era demasiado aventureirista para o legalístico SWP, que pretende converter-se no partido de massas do reformismo norte-americano.

Espartaquistas e a Quarta Internacional

Em sua luta por fundar a Quarta Internacional, Trotsky destacou repetidamente a imperiosa necessidade de uma organização revolucionária sobre uma base internacional. O isolamento nacional prolongado dentro de um país deve finalmente desorientar, deformar e destruir qualquer grupo revolucionário, por mais firme que seja subjetivamente. Somente uma colaboração internacional disciplinada e com princípios pode prover um equilíbrio às fortes pressões ao isolamento e o social chauvinismo gerados pela burguesia e seus agentes ideológicos no meio do movimento operário. Como Trotsky reconheceu, aqueles que negam a necessidade de um partido mundial centralizado democraticamente e fundado programaticamente, negam o mesmo conceito leninista de partido de vanguarda. A destruição da Quarta Internacional pelo revisionismo pablista, em paralelo com a fratura organizacional em numerosos blocos internacionais competidores, necessita de uma luta incessante pelo seu renascimento.

Nos dez anos de nossa história, a tendência Espartaquista tem enfrentado e resistido a importantes pressões objetivas ao abandono de uma perspectiva internacionalista: cortada a possibilidade de laços internacionais disciplinados como resultado do sectarismo organizativo e da degeneração política subsequente do Comitê Internacional de Gerry Healy, a Liga Espartaquista tem recusado a consentir passivamente com o isolamento nacional que nos havia sido imposto. Temos rechaçado enfaticamente o “internacionalismo” postiço que conseguia conexões internacionais ao preço de um pacto de não agressão federalista renunciando de antemão à luta por uma organização internacional disciplinada. Temos buscado o desenvolvimento de laços fraternais com grupos de outros países como parte de uma coerente tendência internacional, democrática-centralista baseada na unidade de princípios programáticos; o embrião de uma Quarta Internacional reconstruída.

A atual separação dos diversos blocos “trotskistas” internacionais provê agora uma melhor oportunidade para a intervenção da tendência Espartaquista no movimento mundial. Nossa história e nosso programa podem servir como um “guia” para correntes que agora estão em movimento até o trotskismo autêntico porque, apesar do isolamento nacional involuntário durante um certo tempo, mantivemos nossa determinação internacionalista e continuamos nossa luta de princípios contra o revisionismo.

Os destroços das pretensões revisionistas e centristas a uma organização internacional – a revelação de que o Secretariado Unificado, o Comitê Internacional, etc., não foram mais do que blocos federativos apodrecidos – combinado com o renascimento mundial da combatividade proletária no contexto da agudização de rivalidade interimperialista e a intensificação da profunda crise capitalista, nos provê uma oportunidade objetiva sem precedentes para a cristalização e o desenvolvimento da tendência Espartaquista internacionalmente. Enquanto os cadáveres políticos dos blocos revisionistas continuam corrompendo-se, a Quarta Internacional, o Partido Mundial da Revolução Socialista, deve renascer.

PELO RENASCIMENTO DA QUARTA INTERNACIONAL!
Devido à sua própria natureza o oportunismo é nacionalista, uma vez que ele se apóia nas necessidades locais e temporárias do proletariado, e não em suas tarefas históricas. Oportunistas encaram o controle internacional como sendo intolerável e reduzem seus laços internacionalistas a inofensivas formalidades (…) sob a condição de que cada grupo não impeça os outros de conduzirem uma política oportunista em relação à sua tarefa nacional (…). Unidade Internacional não é uma fachada decorativa para nós, mas o próprio eixo de nossas visões teóricas e de nossa política. Ao mesmo tempo, não há poucos ultra-esquerdistas (…) [que] travam uma batalha semi-consciente para dividir a Oposição de Esquerda em grupos nacionais independentes e para liberá-los do controle internacional.” (Leon Trotsky, “A Defesa da União Soviética e a Oposição”, 7 de setembro de 1929)

Defendemos não a democracia em geral, mas a democracia centralizada. É precisamente por este motivo que colocamos a direção nacional acima da direção regional e a direção internacional acima da nacional.
(Leon Trotsky, “Carta Aberta a Todos os Membros do Leninbund [fração de esquerda do PC alemão, expulsa em 1928], 6 de fevereiro de 1930)

Arquivo Histórico: Oportunismo e Empirismo

Oportunismo e Empirismo
Comitê Nacional da Socialist Labour League

[Escrito em 1963 por Cliff Slaughter e aprovado em 23 de março de 1963 pelo Comitê Nacional da Liga Trabalhista Socialista (SLL), então seção inglesa do Comitê Internacional, o documento a seguir representa uma polêmica com Joe Hansen, dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) dos Estados Unidos. Até então principal seção do Comitê Internacional, nesse ano o SWP rompeu com tal organização para se reunificar com os setores organizados no Secretariado Internacional da Quarta Internacional, originando assim o Secretariado Unificado. Apesar da séria falha em reconhecer que Cuba havia se tornado um Estado operário deformado, o documento apresenta um valioso debate metodológico contra o pragmatismo e o empirismo. Como importante crítica ao significado do Comitê Internacional nessa época, sugerimos a Declaração da Liga Espartaquista à III Conferência do Comitê InternacionalA versão aqui presente foi copiada do site do Movimento Negação da Negação, movimentonn.org.]

     “Apenas aprendendo a assimilar o resultado do desenvolvimento da filosofia nos últimos dois mil e quinhentos anos é que ela [a ciência econômica] estará apta a livrar-se, por um lado, de qualquer filosofia natural e isolada, estranha e externa a ela, assim como, por outro lado, do seu mesquinho método especulativo, herdado do empirismo inglês”.


       Nesta passagem fica claro como Engels considerava o empirismo umabarreira à concepção dialética de mundo. O discurso de Hansen sobre o “empirismo consistente” é absolutamente absurdo. A tese central do empirismo, a confiança nos “fatos conforme eles são percebidos”, é inconsistente.

      O empirismo — e seu irmão caçula do outro lado do Atlântico, o pragmatismo — recusa-se a admitir a possibilidade de responder à questão: “qual é a natureza do mundo exterior objetivamente existente?” Assim, eles abrem caminho para o idealismo subjetivo, que explica o mundo a partir da opinião individual. O empirismo, ignorando a história da filosofia, rejeita a teoria dialética do conhecimento, como se esta fosse “metafísica”. Apenas a visão materialista dialética pode explicar o mundo, porque ela inclui uma explicação materialista do desenvolvimento dos nossos conceitos, bem como do mundo material que eles refletem. O empirismo deve ser rejeitado e não tornado “consistente”. Há muitos aspectos nesse erro metodológico de Hansen.


Em seus últimos escritos, Trotsky advertiu a direção do SWP sobre a necessidade de realizarem um esforço teórico contra a filosofia “americana” do pragmatismo, o desenvolvimento mais recente do empirismo; se isto não fosse feito, afirmava Trotsky, não haveria um desenvolvimento real do marxismo nos EUA. Hoje, Hansen e Cannon estão “confirmando” as advertências de Trotsky de modo negativo. Nas discussões que dizem respeito ao futuro da IV Internacional, Hansen lidera a tendência que defende a “unificação” — em cima de um acordo político puramente prático nas tarefas mais imediatas — com uma tendência revisionista. Partindo desse ponto de vista, ele se nega a examinar a história da cisão [1] e as diferenças entre as tendências. Isso é apenas parte da substituição das análises científicas pelo impressionismo (veja Trotskyism Betrayede a resposta de C.S. ao artigoReport to the Plenum de J.H. [2], Boletim Internacional n°11). Qual é a base metodológica da posição de Hansen? A questão principal, para ele, é sempre “o que funcionará melhor?” — baseada na estreita visão das aparências políticas mais imediatas. Esse é o ponto central do pragmatismo, o desenvolvimento “americano” do empirismo realizado por Pierce, James e Dewey. Isso leva Hansen a defender a unidade com o grupo de Pablo, já que “funcionaria” melhor para atrair as pessoas que se aproximam da esquerda — mesmo que as causas da cisão nunca sejam esclarecidas. Conforme explicamos em documentos anteriores, tal proposta destrói a base teórica do movimento. Os conceitos e os métodos incorretos do nosso trabalho político só podem ser superados através do trabalho teórico e prático conscientes, e não os varrendo para debaixo do tapete.

O pragmatismo e a crise cubana

A carta de Cannon para Dobbs, na qual a crise cubana é resumida, poderia servir igualmente como modelo do método pragmático. Após uma vida inteira dedicada à luta pelo marxismo revolucionário, particularmente contra o stalinismo, ele nega sua trajetória toda em duas páginas com uma política que os patéticos ensaios “teóricos” de Hansen pretendem justificar: “O que mais ele poderia ter feito sob as circunstâncias dadas?” pergunta Cannon. E quais eram essas “circunstâncias dadas”?

“1. Foi estabelecido um bloqueio naval americano para chocar-se com os navios soviéticos, o que aumentaria a possibilidade de uma guerra nuclear. Kennedy afirmou claramente que os EUA não impediriam o uso de medidas ainda mais drásticas;

“2. O pentágono estava pronto para bombardear e invadir Cuba, esmagando a revolução. Os jornais relatavam que essa era uma ação que havia sido considerada desde o início, e que seria colocada em prática caso Moscou não recuasse em relação às suas bases de mísseis.”

Cannon substitui a análise do caráter de classe das forças sociais e das tendências políticas por preceitos pragmáticos. As então chamadas “circunstâncias dadas” (equivalentes aos “fatos” de Hansen) são oproduto da política de colaboração de classes de Khrushchev e da burocracia stalinista com o imperialismo americano. Nós devemos avaliar a conduta de Khrushchev como parte do processo que produziu tais circunstâncias. Apenas dessa forma os marxistas poderão compreender seu programa político em relação a outras tendências de classe.

Empirismo versus Política Revolucionária

A carta de Cannon sobre Cuba ilustra bem o caráter de classe do empirismo e do pragmatismo, aquelas tendências da filosofia que aceitam o “fato dado” etc. Essa aceitação se torna, inevitavelmente, o que Trotsky certa vez chamou de “culto do fato consumado”. Com efeito, isso significa aceitar formas de consciência adaptadas à estrutura existente, como a da burocracia soviética e do movimento sindical. Estes desenvolvem suas idéias como formas de racionalizar e justificar sua própria posição intermediária entre o capitalismo e a classe trabalhadora. A justificativa de Cannon sobre Khrushchev, assim como as recentes contribuições de Murry Weiss justificando a burocracia stalinista, bem como, ainda, a constante fuga das discussões, por parte do porta-voz do SWP e dos pablistas, a respeito da necessidade de uma revolução política e da construção de partidos revolucionários nos estados operários, são o abandono da política revolucionária principista, que é, por sua vez, a conseqüência da substituição do materialismo dialético pelo empirismo. A análise dialética consiste em ver os fatos no contexto de uma série de processos correlacionados, não como fatos acabados, entidades independentes sobre as quais as decisões “práticas” devem ser tomadas. Na esfera política, isso significa submeter cada situação ao desenvolvimento internacional da luta de classes, avaliar o programa das várias forças políticas existentes naquele momento com base em sua relação com as forças da luta de classes, além da sua relação com todo o movimento anterior. Por isso, é totalmente absurdo colocar o problema cubano como Cannon o coloca — “o que mais ele poderia ter feito sob as circunstâncias dadas?”. Considerando suas conseqüências lógicas, esse tipo de argumento poderia ser usado para justificar qualquer coisa. Não é nem mesmo surpreendente, uma vez que a amplitude deste afastamento teórico do marxismo é compreendida, que Cannon afirme um absurdo como “(…)aqueles que não foram afetados pela propaganda imperialista respiram, creio eu, aliviados com a situação e agradecem a Khrushchev por ter agido com base na razão. Bertrand Russell e Nehru se expressaram baseados nessa linha”. Quem poderia imaginar que, ao mesmo tempo, Nehru era o chefe de um governo envolvido em um conflito armado, com o apoio imperialista, contra a república da China? No decorrer desse conflito foram feitas prisões em massa de comunistas indianos. E, ao mesmo tempo, Khrushchev fornecia aviões de combate para o governo indiano! Sem dúvida, Nehru exaltou Khrushchev (assim como a Kennedy e a Macmillan) por essa amostra de “sabedoria” prática. Talvez Cannon perguntasse: “o que mais ele poderia ter feito sob as circunstâncias dadas?” O método de Cannon leva a esse fim não por uma artimanha do desenvolvimento lógico, mas porque as forças que ele defende estão, na realidade, amarradas ao imperialismo e suas necessidades atuais. O trotskismo não poderia estar imune às leis da história mais do que qualquer outra fase do desenvolvimento do marxismo ou do movimento operário. Uma vez que o movimento teórico cessa, ele se torna vítima das ideologias dominantes de seu tempo, por mais gradual e sutil que seja seu processo e por mais venerável que seja o “quadro”.

O método de Hansen

O documento Cuba — The Acid Test [3], de Hansen, é uma importante contribuição à discussão internacional. Ele deixa explicitas as basesempiristas e anti-dialéticas do método das tendências políticas oportunistas do SWP; bem como sua posição sem princípios e ahistórica na questão da unificação e do desenvolvimento do movimento trotskista mundial. Desde o começo da discussão, a SLL, descrita por Hansen como “os sectários ultra-esquerdistas”, insiste que as diferenças básicas de método fundamentam diferentes linhas políticas e ações para as organizações. Hansen agora confirma isso. Sua insistência sobre “os fatos”, como sendo os mesmos para o empirismo e para o marxismo, é efetivamente respondida por Lukács:

“Sem dúvida, esses fatos não estão apenas em constante mudança, mas também eles são — precisamente na estrutura de sua objetividade — os produtos de uma época historicamente determinada: o capitalismo. Consequentemente, essa ‘ciência’, que reconhece como fundamental ao seu valor enquanto tal o fenômeno imediatamente dado e o toma como ponto de partida para sua conceituação científica objetiva, essa ciência se encontra simples e definitivamente no terreno da sociedade capitalista, aceitando acriticamente sua essência, sua estrutura ‘objetiva’, suas leis, enquanto um fundamento inalterável da ciência. A fim de avançar desses ‘fatos’ para os fatos no real sentido do mundo, deve-se penetrar nas suas condições históricas como tais e abandonar o ponto de vista que parte deles enquanto imediatamente dados: eles devem ser submetidos à análise histórico-dialética…” (História e Consciência de Classe).

Como suporte à sua capitulação ao empirismo, Hansen cita o veredicto de Hegel:

“Genericamente falando, o empirismo encontra a verdade na aparência do mundo; mesmo isso permitindo um mundo supra-sensível, ele detém o conhecimento de que este mundo é impossível, restringindo-nos ao campo da percepção-sensitiva. Essa doutrina, quando sistematicamente desenvolvida, produz o que tem sido recentemente chamado de materialismo. O materialismo desse tipo considera a matéria, como matéria, como o genuíno mundo objetivo.” (A Lógica de Hegel, traduzido da Encyclopaedia of the Philosophical Sciences, p. 80).

A oposição de Hegel ao empirismo é correta em um sentido. Se “o empirismo sistematicamente desenvolvido” levasse ao materialismo dialético, como poderia Hegel, o Idealista Absoluto, figurar tão decisivamente no desenvolvimento do marxismo? O “materialismo” ao qual o empirismo leva, de acordo com Hegel, é evidentemente um materialismo mecânico, que permanece incapaz de explicar o papel da consciência e da unidade material do mundo, incluindo a ação e o pensamento humanos. A “deficiência de todo o materialismo até agora existente”, como diz Marx, significa que ele não pode ser tornado consistente e que abre a porta para o dualismo e para o idealismo subjetivo. Hegel superou a dicotomia entre o subjetivo e o objetivo introduzindo uma concepção unificada de um todo dialeticamente interconectado ao fazer do espírito a matéria de toda a realidade. Marx teve apenas que “colocá-lo de cabeça para cima” para chegar ao materialismo dialético. Foi dessa forma, na verdade, que o materialismo dialético se desenvolveu — através da contradição, e não através da fórmula lógica mecânica de Hansen de “empirismo sistematicamente desenvolvido”. A relação entre empirismo e materialismo dialético tem uma história, que mostra a luta do materialismo dialético contra os empiristas e seu desenvolvimento no positivismo e no pragmatismo. É contrário ao método do marxismo examinar o empirismo por seus “pontos fortes e fracos”. Como uma tendência filosófica, ele formou as bases mais sólidas para ataques pseudo-científicos ao materialismo desde a época de Marx, sendo que na política ele sempre representou a base filosófica do oportunismo.

Hansen evita esse tipo de discussão citando Hegel e procurando introduzir sua própria paráfrase de Hegel. Hegel disse que o desenvolvimento sistemático do empirismo resultou no “materialismo”, falando, naturalmente, do materialismo de seu próprio período. Nós devemos avaliar historicamente o que Hegel pretendeu dizer ao afirmar que o “desenvolvimento sistemático do empirismo” conduziu ao materialismo, e que este “considera a matéria, como matéria, como o genuíno mundo objetivo”. O materialismo vulgar daquela época tinha uma visão metafísica de mundo, considerando os fatos dados pela experiência como fixos, mortos, produtos acabados, que interagem segundo princípios mecânicos, com a mente refletindo essa realidade de modo mecânico e morto. Hansen, seguramente, tem de concordar que era esse o tipo de materialismo que Hegel ataca aqui. Hegel muito dificilmente teria considerado a teoria do materialismo dialético como produto do “desenvolvimento sistemático do empirismo”. O método de pensar do materialismo dialético nasceu apenas depois de Hegel, através de um esforço contrário ao idealismo dialético de Hegel. E ainda assim Hansen, com uma artimanha muito fraudulenta e grosseira, usa as citações de Hegel para identificar o “empirismo sistematicamente desenvolvido” com o materialismo dialético:

“Eu diria que ‘Lênin e outros’ não trazem de Hegel a oposição ao empirismo nos campos do idealismo e da religião. Por outro lado, o marxismo compartilha com Hegel a posição de que o empirismo vulgar é arbitrário, estreito e não dialético. Mas e o “empirismo sistematicamente desenvolvido”? Essa é a visão segundo a qual o ‘mundo objetivo genuíno’, o mundo material, tem primazia sobre o pensamento e onde uma relação dialética existe entre eles. O que é isso senão o materialismo dialético?”

“Fatos” são abstrações

A frase vital “onde uma relação dialética existe entre eles” (matéria e pensamento) é introduzida de forma externa por Hansen. . Ele salta todo o desenvolvimento do materialismo dialético passando por cima da escola hegeliana, para, para, assim, “colocar Hegel de cabeça para cima, ou melhor, de cabeça para baixo!” Todo o respeito que Hansen tem pelos “fatos” parece não tê-lo ajudado a prosseguir do simples “fato” de que as idéias têm uma história, que são parte do processo social-histórico, e que o materialismo vulgar da burguesia não pode ser sistematicamente desenvolvido até chegar ao materialismo dialético por uma mera canetada. Para alcançar tal resultado foram necessários muitos anos de luta, de conflito teórico e prático junto ao desenvolvimento da sociedade burguesa durante a primeira metade do século XIX.

Quando atacamos o empirismo, atacamos o método de análise que diz que todas as afirmações, para serem significativas, devem se referir a dados observáveis e mensuráveis na sua forma imediatamente dada. De acordo com esse método, qualquer conceito “abstrato” que reflita as implicações gerais e históricas desses “fatos” é insignificante. Ele negligencia completamente que os nossos conceitos gerais refletem as leis de desenvolvimento e a interconexão dos processos que esses “fatos” ajudam a construir. Na verdade, os assim chamados fatos da experiência concreta são, eles próprios, abstrações desse processo. Eles são o resultado da primeira aproximação de nossos cérebros com as inter-relações essenciais, leis do movimento, contradições do eternamente mutável e complexo mundo da matéria… do qual eles, os fatos, formam parte. Apenas elevadas abstrações, numa teoria superior, podem nos revelar os significados desses fatos. Aquilo que Lênin chama de “análise concreta de uma situação concreta” é o oposto do empirismo. Para ser concreta, a análise deve considerar os fatos dados em sua inter-conexão histórica e deve começar com as descobertas teóricas no estudo da sociedade, com a necessidade de fazer uma análise do caráter de classe de cada evento, de cada fenômeno. O empirista, que pretende restringir-se ao fundamento dos “fatos”, acaba apenas impondo aos “fatos” uma série de conexões cujas bases são ilusórias. Segundo Hansen e os pablistas, a nova realidade atual é uma lista de abstrações, como “a revolução colonial”, “o processo de desestalinização”, “forças que se movem à esquerda”, “pressão das massas” etc. Como todas as afirmações sobre fenômenos sociais, elas não têm significado algum, a menos que possuam um conteúdo declasse específico, que se refiram à luta de classes e à exploração, sendo esses, sim, o conteúdo de todo fenômeno social. Essa descoberta de Marx é o ponto teórico central esquecido por Hansen com todo o seu discurso sobre “os fatos”.

Empirismo: um método burguês

Todos esses argumentos de que “os fatos” são a realidade objetiva e que nós devemos “partir deles”, são, na verdade, uma preparação para justificar políticas de adaptação a lideranças alheias à classe trabalhadora.

O empirismo, já que “parte dos fatos”, nunca irá além deles e aceita o mundo como é. Esse método burguês de pensamento enxerga o mundo do ponto de vista do “indivíduo isolado na sociedade civil”.

Ao invés de colocar a situação objetiva como um problema a ser resolvido sob a luz da experiência histórica da classe trabalhadora, generalizada na teoria e prática do marxismo, o empirismo toma “os fatos” como eles são. Eles são produzidos sob circunstâncias que estão além do nosso controle.

O marxismo arma a vanguarda da classe trabalhadora em sua luta por uma ação do movimento operário independente da burguesia; o empirismo a adapta à situação existente — ao capitalismo e aos seus agentes no interior das organizações da classe trabalhadora.

“No começo foi a ação”, cita Hansen. Mas, para os marxistas, a ação não é uma adaptação cega aos “fatos”, mas sim o trabalho dirigido teoricamente para a ruptura da classe trabalhadora com as lideranças pequeno-burguesas. A proposta de “unir-se na ação” orientada por essas direções, na busca meramente por “ajudar a construir um partido socialista revolucionário durante o próprio processo da revolução” é a renúncia ao marxismo e a abdicação à responsabilidade em favor da pequena-burguesia.

Hansen diz:

“Se podemos expressar nossa opinião, é exagero dizer que alguém um se encontra “prostrado diante de líderes nacionalistas e pequeno-burgueses de Cuba e da Argélia” pelo simples fato de se recusar a seguir a idéia do Comitê Nacional da SLL segundo a qual um trotskista pode livrar-se de qualquer responsabilidade futura ao colocar a etiqueta de “traição” em tudo o que esses líderes fazem. É um erro de primeira ordem acreditar que o nacionalismo pequeno-burguês não possui nenhuma diferenciação ou contradição interna e não pode, possivelmente, ser afetado pelas forças de massa que o empurram para frente.”

Em primeiro lugar, ninguém disse que não há nenhuma diferenciação dentro do movimento nacionalista pequeno-burguês ou que ele permanece intacto às pressões de massa. Quem é que negou isso? O que está em questão é o método com que esse “fato” é analisado e qual a conseqüência disso para a construção de partidos revolucionários independentes que possam liderar a luta da classe trabalhadora. Hansen e os pablistas, de outro modo, usam o “fato” dessas mudanças à “esquerda” para justificar a capitulação a essas forças. Poderíamos considerar essa questão isolada das diferenças sobre método e filosofia? Certamente não: a análise marxista de toda a época moderna estabeleceu que direções políticas que representam camadas sociais alheias à classe trabalhadora podem ir apenas até certo ponto na luta contra o imperialismo. Os limites objetivos da sua revolução podem até mesmo, eventualmente, leva-los a virar-se contra a classe trabalhadora, cujas reivindicações são independentes e correspondem à revolução socialista internacional. Apenas o caminho da construção de partidos independentes da classe trabalhadora, com o objetivo de estabelecer a ditadura do proletariado, baseado no programa da Revolução Permanente, pode evitar que cada revolução nacional se transforme numa nova forma de estabilização do imperialismo mundial. A luta para criar partidos como esses é uma luta contra tendências oportunistas e contra-revolucionárias dentro do movimento, principalmente contra o Stalinismo, que submete a classe trabalhadora aos nacionalistas, burgueses e pequeno-burgueses na base da teoria das “duas etapas”, que se assemelha mais à linha da burocracia stalinista de um entendimento internacional com o imperialismo. Seguindo os “fatos” estabelecidos através das lutas e do trabalho teórico de Lênin, Trotsky e outros, é que nós avaliamos as posturas e ações das tendências políticas de hoje, e não considerando estas como fatos “em si mesmos” ou como “circunstâncias dadas” à laHansene J.P. Cannon.

É necessária uma análise de classe

Hansen e a direção do SWP analisam toda a situação internacional a partir dessa visão empirista e não-marxista. Hansen queixa-se de que a SLL ignora os fatos e recusa-se a analisar a “nova realidade”, uma vez que ela não se encaixa nas prescrições de Lênin e Trotsky. Pelo contrário, os camaradas na SLL iniciaram uma análise da real base de classe oculta na superfície dos “fatos” da situação atual. Hansen se satisfaz em listar as “poderosas forças da revolução colonial e do processo inter-relacionado de desestalinização”. Nós publicamos diversos artigos (ver Labour Review [4], 1961 e 1962, artigos escritos por Baker, Kemp, Jeffries, e a resolução Perspectiva Mundial para o Socialismo) que contêm uma análise do conteúdo de classe e da relação desses dois processos (lutas nos países coloniais e crise no stalinismo) com a revolução internacional da classe trabalhadora contra o imperialismo. Nós tentamos encontrar qualquer tentativa como esta nas publicações do SWP ou dos pablistas. Somente encontramos um exame das tendências mais positivas ou progressistas dentro dos movimentos nacionalistas e stalinistas. Isso significa que eles se baseiam em “fatos” de superfície, como os pronunciamentos de líderes stalinistas russos ou chineses, atribuindo-lhes valores positivos ou negativos. Germain [5], por exemplo, assumiu uma posição totalmente estranha a uma Internacional revolucionária. Segundo ele, existiriam “pedaços” do programa trotsquista de forma “fragmentada” em vários partidos comunistas do mundo, desde a Iugoslávia, com seus comitês de fábrica, e mesmo na Itália, Rússia e China, como até Albânia, com sua insistência nos direitos dos pequenos partidos! Não há dúvidas de que isso é um ótimo exemplo de empirismo sistematicamente desenvolvido. Seria interessante perguntar às minorias, digamos, do Partido Comunista Albanês, quais as conseqüências “pragmáticas” que esse “empirismo sistemático” trouxe a eles! (Ver também o “apoio crítico” às várias alas do stalinismo na Resolução do SI [6] no 22º Congresso).

Evian foi uma vitória?

Voltemos à resposta de Hansen. É muito interessante que a Argélia já esteja afastada quase por completo do seu argumento. Isso acontece porque a acusação da SLL sobre “prostração” diante dos líderes nacionalistas é melhor exemplificada aqui.

Em documentos anteriores, Hansen ridicularizava as condenações da SLL referentes ao acordo de Evian, entre o governo argelino e o imperialismo francês. Nós dissemos que isso significava vender o movimento. Hansen disse que cometemos um erro ultra-esquerdista, argumentando que, pelo menos, o acordo de Evian incluiu a independência nacional e, por isso, deveria ser considerado como uma vitória. Nós realizamos uma análise de classe que foi confirmada pelo acordo feito entre a direção da FLN (Frente de Libertação Nacional) e o imperialismo francês, acordo que evitou que o povo argelino chegasse à vitória através de suas próprias reivindicações revolucionárias. Aqueles que apoiaram a “vitória” e especularam sobre a possibilidade de Ben Bella continuar na mesma direção que Fidel Castro apenas ajudaram Ben Bella a iludir as massas, enfraquecendo as energias dos socialistas através de alianças com a burguesia — ao invés de trabalhar pela construção de um partido revolucionário independente. Nós caracterizamos isso como uma forma bem conhecida de oportunismo e agora dizemos que, dessa maneira, ao invés de assumirem a responsabilidade de marxistas revolucionários, de construir partidos da classe trabalhadora, os pablistas e o SWP se unem para preparar derrotas para os trabalhadores da Argélia.  O próprio Pablo trabalha, ele mesmo, no governo argelino como um funcionário técnico e capacitado. Por si só esse fato poderia ou não significar algo. Mas o que importa é a sua linha política e a de sua organização. Não resta a menor dúvida de que essa linha política não colocará em risco sua posição na administração (o que não significa dizer, absolutamente, que ele não possa ser demitido). Os artigos de Hansen no The Militant [7] e a campanha dos pablistas em “apoio à revolução argelina” estão restritos a um apelo por ajuda os pobres duramente atingidos pela herança do imperialismo francês. Ao invés de realizar uma campanha no movimento operário, o que eles fazem é um apelo humanitário. Pablo e seus amigos sempre defenderam o envio de técnicos e administradores voluntários à Argélia para servirem no governo de Ben Bella, a fim de se contrapor à possível influência reacionária dos funcionários e das forças humanitárias francesa e americana. Dessa forma, serão criadas as condições “objetivas” movendo Ben Bella à esquerda e afastando-o da direita. No decorrer disso, o Partido Comunista Argelino foi banido, um novo programa de ajuda humanitária do governo francês foi anunciado e a camarilha de Ben Bella assumiu o controle direto dos sindicatos. Enquanto isso, Ben Bella encena acabar com a farra dos “puxa-sacos” e toma a “firme” posição de fechar um acordo com os franceses, para que estes explodam suas bombas bem longe dali, no extremo sul do Sahara. Não estariam, esses “trotsquistas” sendo coniventes com a retirada de todos os direitos democráticos da classe trabalhadora, enquanto o líder nacionalista realiza medidas de “esquerda em nome” das massas? Não seria essa uma atitude de prostração diante da burguesia nacional? Onde no mundo já se viu prostração maior? Hansen alega que “todo mundo sabe” que precisamos de partidos revolucionários, a única diferença está no modo de construí-lo. Mas, na prática, os pablistas não estão trabalhando pela construção de partidos revolucionários. Na verdade, eles fogem a necessidade dessa construção. Se desenvolvimentos objetivos na “nova” realidade empurrarão inevitavelmente os nacionalistas pequeno-burgueses ao marxismo revolucionário, talvez o papel dos trotsquistas seja apenas o de encorajar essas “forças objetivas”.

Pierre Frank, líder proeminente do grupo de Pablo, visitou recentemente a Argélia e relatou suas observações no The Internationalist(suplemento do Quatrième Internationale, Nº 17, 17 de fev. de 1963). É de suma importância comentar o significado das seguintes passagens:

“Mesmo que o governo seja composto de elementos políticos e sociais variados, o núcleo central, núcleo decisivo encontrado atualmente no Bureau Político da FLN (Frente de Libertação Nacional) é, entretanto, baseado nas massas mais empobrecidas da cidade e do interior do país. Essa é sua força principal. Mas ele não pode conduzir automaticamente a uma extensiva nacionalização da estrutura econômica sem correr o risco de produzir conseqüências catastróficas. É preciso permitir, durante alguns anos, o desenvolvimento das forças burguesas, comprometer-se em certas esferas com o capital estrangeiro e criar apoio nas cidades e no interior do país como forma a passar, mais tarde, à construção de uma sociedade socialista. Isso não será feito sem crises ou sem desenvolvimentos nacionais e internacionais, que entrarão em choque com essa difícil orientação.
“Para concluir: tudo está em movimento. Isso é um experimento, é uma luta que deve ser apoiada em todo o mundo, mas que exige a determinação constante das ações para que o desenvolvimento das várias forças que atuam na área possa ser estimado. Nesse sentido, nós podemos contribuir com essa nova experiência revolucionária em todos os seus momentos, suas dificuldades e suas potencialidades, e em ajudá-la a ser conduzida rumo a um resultado socialista.”

No nível metodológico, isso ilustra as conseqüências extremas de uma atitude “contemplativa” ao invés de uma atitude “prático-revolucionária”. Para a primeira, o reconhecimento empirista das “circunstâncias dadas”, “dos fatos”, é o ponto de partida natural (e ponto final). No nível político, isso ilustra a capitulação às forças e às formas existentes de consciência no movimento político, conduzindo, por fim, ao apoio aos servos do imperialismo — tudo isso é o resultado do abandono do método dialético.

Quem corrigiu o erro de quem?

Hansen diz que estávamos retornando às diferenças originais de 1953, ao invés de demonstrar que, na verdade, as revisões pablistas daquele ano resultarm do rumo oportunista da “Internacional” Pablista. O fato de Hansen aceitar a atual posição dos pablistas na Argélia não faz com que essa posição deixe de ser oportunista. Em todo o caso, Hansen deve responder nossa questão (ver réplica do C.S. ao artigo de HansenReport to the Plenum, no Boletim Internacional Nº 11) ligada a esse assunto da “correção de erros”. Ele defende a unificação dizendo que os pablistas corrigiram seus erros de 1953. Mas o comitê executivo pablista insiste que a unificação é possível pela razão oposta — o SWP teria superado seus erros a tempo de “entender” o programa de Pablo (Declaração a respeito da Reunificação do Movimento Trotsquista Mundial, 23/24 de Junho de 1962).

Temos chamado atenção à atual política dos pablistas também nos países desenvolvidos. Hansen considera que nossas críticas resultam da essencialização de afirmações isoladas feitas pelas seções pablistas; “Nem mesmo os panfletos lançados por esse grupo de camaradas (o grupo de Pablo) nesta ou naquela situação específica escapam dos detetives. Uma frase tirada de um panfleto distribuído na fábrica da Renault, em Paris, em defesa de Cuba e contra o imperialismo dos EUA, vai parar na capa do The Newsletter [8], em Londres, de tão desesperados que estavam os dirigentes da SLL em encontrar evidencias de revisionismo no SI.” (Cuba — The Acid Test, p. 30).

Em primeiro lugar, nossa réplica ao último Report to the Plenum de Hansen sobre a unificação (Boletim Internacional Nº 11) discorre sobre o material pablista a respeito das mais importantes questões políticas da atualidade, portanto é um absurdo afirmar que a SLL não fez nenhuma crítica geral. Se Hansen escreveu Cuba — The Acid Test antes de ler essa réplica, é provável que, agora, ele defenda os pablistas contra o que escrevemos. Segundo: o que há de errado em examinar os panfletos lançados pelas seções pablistas? É precisamente a forma como as políticas se desenvolvem no trabalho das seções que ilustra mais claramente suas diferenças de método. Com certeza a seção de Paris é um bom exemplo de uma seção pablista — o centro nervoso da “Internacional” Pablista se encontra lá. Seria o caso da fábrica da Renault apenas “uma ou outra situação específica”? A Renault representa uma concentração vital de trabalhadores franceses. O SWP, quando tornou pública a sua cisão com Pablo, não realizou um ataque sistemático a um panfleto lançado na fábrica da Renault em 1953? Em terceiro lugar, se Hansen afirma que a passagem criticada pelo jornalThe Newsletter estava fora de contexto, por que ele não esclarece o contexto e explicita nossa distorção metodológica? Ele não faz isso porque não pode fazer isso; a passagem referida coloca uma ação solidária da classe trabalhadora internacional no mesmo nível da “ajuda” dada pela burocracia stalinista. Hansen prefere não considerar uma única palavra, nem do panfleto nem da crítica do The Newsletter!

(Omitimos aqui uma breve referência à seção italiana do SI, pelo fato de estar baseada na tradução de um artigo de seu jornal, ao qual não tivemos acesso)

Cuba e Espanha

A maior parte do ataque de Hansen aos “ultra-esquerdistas sectários” se baseia na atitude da SLL em relação a Cuba. Hansen começa seu documento tentando fazer um amálgama entre a SLL e de seus apoiadores do CI, por um lado, e o grupo de Posadas que rompeu com o SI, por outro. Hansen sabe que essas são duas tendências absolutamente separadas e distintas. Ele não faz avaliação alguma, qualquer que seja, sobre seus conteúdos políticos ou sobre a evolução de suas posições presentes. Ambas se opõem à “unificação”, portanto, ele conclui, devem estar respondendo às mesmas forças sociais e devem ser essencialmente similares. Aqui, novamente, temos uma ótima ilustração do método do pragmatismo. As relações objetivas entre essas tendências, sua história e suas respostas aos principais problemas políticos são ignoradas. Identificá-las como sabotadoras da unificação, como “correntes ultra-esquerdistas”, é muito conveniente, “funciona” muito bem. Hansen observa que o grupo de Posadas considera em seu programa a possibilidade de uma guerra nuclear contra o capitalismo. Conjuntamente a isso é afirmado o fato de a SLL se opor a caracterizar Cuba como um Estado Operário. Mas Posadas, diz Hansen, por outro lado, deve concordar que Cuba é um Estado Operário, pois seria “morte política”, na América Latina, pensar de outra forma. As diferenças, para Hansen, portanto, devem então ser explicadas geograficamente. Politicamente o grupo de Posadas e a SLL são a mesma coisa — sectários ultra-esquerdistas que têm medo da unificação. Mas como isso pode ser explicado? Hansen não é claro: a direção das principais correntes do trotskismo (a liderança do SWP e o SI pablista) que rumam para a unificação vem das “poderosas forças da revolução colonial e dos processos inter-relacionados de desestalinização”.

“O movimento trotskista também não escapou de seu abalo. A vitória chinesa, a desestalinização e a insurreição húngara se refletiram em ambas as organizações ultra-esquerdistas e capitulacionistas, assim como, por outro lado, fortaleceram as principais correntes trotskistas. O que nós temos realmente testemunhado em nosso movimento são diversos testes — e o quão bem têm respondido os diversos agrupamentos trotskistas e similares à série de eventos revolucionários que culminaram na mais importante ocorrência no hemisfério ocidental desde a Guerra Civil Americana. O movimento pela unificação, assim como a resistência a ele, não são mais do que as conseqüências lógicas resultantes da leitura da realidade, sobretudo daqueles que passaram pela prova de fogo das poderosas ações cubanas.”

Onde se encontra a explicação? Dois pontos de vista opostos são “explicados” aqui como sendo a mesma coisa. Como sendo apenas dois diferentes resultados “lógicos” dos mesmos eventos. Algo poderia ilustrar mais claramente as conseqüências absurdas de se recusar a lidar com a história das controvérsias e das cisões e, ainda, tentar estabelecer suas bases sobre a teoria e o método? Hansen achou ser mais “prático” produzir, com um truque de mágica, uma identificação entre as posições do seu oponente, a SLL, e as do grupo de Posadas.

A observação dos camaradas franceses, anexada a esta resposta, levanta pontos semelhantes sobre os resultados demagógicos desses métodos de discussão. Como eles apontam, seu documento sobre Cuba também é atacado por Hansen, mas não foi apresentado aos membros do partido dele. Eles ainda indicam corretamente a falta de princípios do argumento seguinte: ninguém que atua na América Latina concordaria com a caracterização de Cuba feita pela SLL; portanto, a posição deles é suspeita e mostra o quão estúpidos e sectários eles são. Conforme observam os camaradas franceses, as “opiniões” das pessoas soviéticas e espanholas também foram constantemente usadas contra a caracterização de Trotsky a respeito do estado e das facções dominantes em ambos os países. Além disso, eles comentam as piadas feitas por Hansen das observações que fizeram em um documento anterior, onde falavam do “fantasma” de um estado burguês em Cuba. O que Hansen deve fazer é explicar o porquê de tal conceito ser motivo de piada, e de que forma ele acha que isso parte do tipo de análise feita por Trotsky a respeito das forças de classe na Espanha em 1936-1937. Hansen esqueceu-se, ou decidiu não lembrar seus leitores, do conceito levantado por Trotsky àquela época, sobre uma “aliança com a sombra da burguesia”. Talvez ele conheça algumas boas piadas sobre isso também.

Seria desnecessário acompanhar todos os passos do documento de Hansen dessa forma. Todo o seu método é de argumentar sobre incidentes e impressões, combinados com as mais vagas generalizações como “força da revolução colonial” e “processos inter-relacionados de desestalinização”.

Nossos documentos sobre Cuba

Na questão propriamente sobre Cuba, Hansen não traz novos argumentos à discussão nem novos fatos acerca do regime. Não vemos nenhuma necessidade de responder detalhadamente à caricatura feita por Hansen de nossos documentos sobre Cuba no The Newsletter,antes e durante o bloqueio de Novembro-Outubro de 1962. Hansen se preocupa demasiadamente com os artigos do The Newsletter: nós assumimos toda a responsabilidade por tudo o que foi escrito em nosso jornal, mas também apontamos que Hansen estava na Europa durante a crise. Ele e o correspondente do The Militant em Londres não fizeram o menor esforço em informar-se sobre a campanha que estava sendo conduzida pela SLL nesse período. Hansen diz corretamente que havia diversas manifestações contrárias ao bloqueio — e ele as contrasta com o “provinciano” Newsletter! Isso é uma calúnia. Os membros da SLL estiveram à frente de todas as manifestações. Eles estimularam e lideraram muitas delas. Os primeiros encontros e manifestações de massa na Inglaterra foram liderados e realizados por nossos membros. Ninguém, exceto a SLL, organizou manifestações em porta de fábrica contra o bloqueio. Nossos camaradas ainda lutaram com unhas e dentes para levar os protestos principalmente ao movimento operário e às fábricas. Eles tiveram de lutar com afinco contra a direita e o stalinismo para conseguir isso. Eles lideraram essas manifestações contra o imperialismo e em defesa da revolução cubana, ao mesmo tempo em que educavam os estudantes e os trabalhadores sobre o papel da burocracia soviética. Eles explicaram as causas das políticas contraditórias de Khrushchev, ao invés de apoiar Russell e os pacifistas na glorificação de sua “brilhante” diplomacia. Para tanto, tiveram de lutar contra o stalinismo, uma luta que ganhou o apoio de diversos membros do Partido Comunista. Isso não poderia ter sido feito sem que se treinasse a SLL no espírito dos métodos de trabalho do comunismo revolucionário contra o revisionismo. Quão bem nossos camaradas teriam atuado se estivessem armados com a herança do pablismo — “a nova situação restringe mais e mais a capacidade da burocracia em assumir posições contra-revolucionárias” — ou com a apologia de Cannon: “o que mais ele poderia ter feito sob as circunstâncias dadas?” ou, ainda, se tivessem chamado Nehru e Russel para apóiá-los, uma vez que estes estão “intactos à propaganda imperialista”? Nós nos orgulhamos de nossas posições diante dos acontecimentos cubanos do Outono passado, e nos envergonhamos da identificação do “trotskismo” com a capitulação de Cannon e dos pablistas à burocracia soviética. As longas citações do The Newsletter por Hansen são, na verdade, somente uma forma de mascarar sua capitulação.

Normas abstratas

O caso de Hansen é basicamente o mesmo de Pablo em 1953. As forças “objetivas” que pressionam em direção ao Socialismo teriam tornado impossível a traição da burocracia soviética e, ao mesmo tempo, estariam pressionando os agrupamentos pequeno-burgueses a adotarem um caminho revolucionário. Já vimos acima como na Argélia isso simplesmente significava convidar marxistas para contribuir com as forças “objetivas” que empurrariam Ben Bella e seu governo nacionalista para a esquerda. Apesar de toda a fraseologia sobre firmeza contra o imperialismo, que supostamente implicaria em chamar Cuba de “Estado Operário”, a atual defesa da Revolução Cubana pelo SWP e pelos pablistas foi incapaz até mesmo de separá-los da burocracia contra-revolucionária de Khrushchev!Essaé uma das coisas que queremos dizer quando falamos que Hansen não está analisando Cuba do ponto da vista do desenvolvimento internacional da luta de classes, mas pela aplicação de normas abstratas a casos isolados.

Hansen levanta a questão da definição do estado cubano ao relacioná-la à história de tal discussão dentro do movimento trotskista. A análise de tal debate é certamente uma parte vital da resposta marxista ao problema apresentado por Cuba hoje, mas isso deve se dar por uma linha diferente da adotada por Hansen. Ele tenta ridicularizar a posição do Comitê Nacional da SLL, segundo o qual não se pode transportar de forma abstrata a definição da URSS feita por Trotsky para o atual sistema econômico e político de Cuba. Ele diz que assim nós “desfazemos a conexão” entre a discussão do presente e a do passado.

Hansen chega até a dizer que nós excluímos a definição de Trotsky da URSS “declarando que ela não tem nenhuma relevância para a discussão cubana”. Seria isso a mesma coisa que dizer que a questão do estado Cubano não pode ser resolvida abstratamente por um “critério” da discussão anterior? É sempre mais fácil acabar com seu oponente se você reescreve os argumentos dele com suas próprias palavras. O verdadeiro objetivo de uma análise histórica do desenvolvimento de nossos conceitos é o de estabelecer o caminho em que eles se desenvolvem cientificamente quando refletem o mundo objetivo. Assim como as definições de Trotsky sobre a URSS foram elaboradas com base nas condições que se modificavam na URSS e no mundo — de lutas contra tendências revisionistas e pela construção de uma nova Internacional — também os fios históricos da discussão devem ser vistos hoje como parte da luta pela construção de uma Internacional revolucionária capaz de levar a classe operária ao poder. Toda a linha política das diferentes tendências do movimento trotskista a esse respeito deve ser objeto de análise e discussão. O que parece uma análise “histórica” recebe, das mãos de Hansen, o tratamento mais estático e ahistórico.

Lideranças pequeno-burguesas e a classe trabalhadora

Por exemplo, ele critica o texto Trotskyism Betrayed por não fazer a caracterização da burocracia stalinista como sendo uma burocraciapequeno-burguesa. Há uma motivação específica na insistência de Hansen neste ponto: “o que era novo nessa situação — e esse é o ponto central da posição de Trotsky em relação a isso — era que uma organização reacionária pequeno-burguesa dessa espécie, depois de uma contra-revolução política, poderia exercer o poder num Estado Operário e até mesmo defender as bases desse estado caso estivesse em primeiro plano a preocupação com seus próprios interesses particulares”. Segue-se então que, sob certas circunstâncias, as organizações pequeno-burguesas seriam forçadas a liderar as revoluções de trabalhadores e camponeses e a abolir o estado capitalista. Hansen diz: os líderes da SLL aceitaram isso para a Europa do Leste e a China, por que não para Cuba? (eles deveriam estar mais propensos a isso, sugere ele, uma vez que a “liderança cubana é em todos os aspectos superior à chinesa”). Nós vemos, agora, o que Hansen quer dizer com “continuidade” da discussão. Trotsky viu que uma burocracia pequeno-burguesa poderia conduzir e até mesmo “defender” um Estado Operário. Após a II Guerra Mundial, inclusive, essa burocracia pequeno-burguesa poderia até mesmo tomar a liderança da revolução e estabelecer um novo “Estado Operário deformado”. Então por que a SLL deveria excluir Cuba da noção de que lideranças pequeno-burguesas poderiam estabelecer estados operários? Aí se encontra todo o jogo de Hansen com a “história da discussão”. Ele escolhe um aspecto da história, como a caracterização de certos grupos sociais como pequeno-burgueses. Esse aspecto é selecionado por ser o essencial para a justificação de seu atual direcionamento político. Mas é, na verdade, absolutamente essencial que a caracterização de “pequeno-burguês” seja muito precisa. Essa classe é frequentemente caracterizada como intermediária entre as principais classes da sociedade, burgueses e proletários. Seus vários representantes refletem essa posição intermediária, dependente e instável. Eles não são capazes de ter uma linha de atuação política independente e consistente. Somente se o intelectual pequeno-burguês se alia ao proletariado, nas palavras de Marx, ele poderá alcançar independência e consistência tanto teórica quanto política. A burocracia do movimento operário era frequentemente caracterizada por Lênin e Trotsky como pequeno-burguesa, graças à sua forma de vida, sua aproximação dos padrões e aceitação da ideologia da classe média, o que transformava, nas condições especiais dos países ricos imperialistas, seu próprio modo de vida e sua função social na de classe média. Nos países imperialistas, portanto, eles formam uma “nova casta média” da sociedade. Na URSS, o grupo dominante da burocracia consiste nos elementos listados por Hansen — “um reflexo do campesinato, os remanescentes das velhas classes, aqueles elementos que trocaram a lealdade ao czar pela lealdade ao novo regime — todos estes e os níveis administrativos político-militares do novo governo, que, juntamente, sob pressão do ocidente capitalista, afastaram-se da posição do socialismo revolucionário, ou se destacaram sem nem mesmo terem compreendido esta posição.”

O termo pequeno-burguês não é suficiente para caracterizar essa burocracia para o propósito da presente (e qualquer outra) discussão. Um setor decisivo da burocracia soviética foi a facção stalinista no controle do partido bolchevique e do estado soviético. A relação histórica entre esse partido, esse Estado e a classe operária soviética deu um caráter específico à burocracia. Não é simplesmente uma questão de relação entre a velha classe média e a nova elite governante. A existência de relações de propriedade nacionalizadas estabelecidas pela revolução socialista, com o partido bolchevique no poder, originou historicamente um extrato pequeno-burguês na direção do primeiro Estado Operário, um grupo que representava, como Trotsky analisou cuidadosamente, não as leis gerais do desenvolvimento das classes na transição do capitalismo para o socialismo, mas uma refração particular e única a essas leis na condição de um Estado Operário atrasado e isolado. Levando adiante essa “capacidade” dos pequeno-burgueses, enquanto pequeno-burgueses, de defender e mesmo encabeçar Estados Operários, Hansen e companhia fazem precisamente aquilo que Trotsky combateu na discussão. Nossos camaradas franceses estão certíssimos em insistir que a avaliação histórica dessa discussão no movimento trotskista dura mais do que um dia de trabalho, e que a pré-condição para qualquer resultado útil terá de ser um cuidado muito mais sério e científico com os conceitos marxistas, muito mais do que Hansen tem demonstrado com sua identificação simplista entre a “formação pequeno-burguesa” da burocracia no primeiro Estado Operário com a liderança pequeno-burguesa do movimento 26 de Julho de Cuba.

Hansen e a Revolução Permanente

Nos próximos meses as seções francesa e inglesa do CI publicarão contribuições acerca da historia da discussão dos “Estados Operários”. Enquanto isso, nos ateremos à discussão do método de Hansen, particularmente em relação a Cuba. Nada do que Hansen diz em Cuba — The Acid Test responde ao nosso principal argumento exposto na seção sobre Cuba do Trotskyism Betrayed. Mas, antes de observarmos os pontos específicos do documento de Hansen, é necessário afirmar a posição geral da qual acreditamos que os marxistas devem partir. O motivo para fazermos isso é que Hansen nos acusa de tratarmos Cuba somente como uma “exceção”, e de não vermos continuidade entre a discussão do passado e a do presente sobre o caráter do Estado. Fidel Castro despontou como o líder do partido nacionalista pequeno-burguês. Seu partido liderou uma revolução e foi capaz de tomar o poder em Cuba. Como isto foi possível? Qual a importância deste fato?

Na revolução russa, a pequena-burguesia (a “democracia”) não pôde, resolutamente, segurar o poder em suas próprias mãos e muito menos “manter-se” no poder, por causa da força do proletariado e seus aliados camponeses naquele momento. Dada sua liderança revolucionária, a classe trabalhadora provou ser capaz de derrubar a “democracia” e chegar ao poder. Esse poder, na visão de Lênin e Trotsky, representava o início da revolução mundial. O poder nesse país atrasado era considerado por eles como algo a ser defendido “até que os trabalhadores da Europa Ocidental viessem ajudá-los”.

Nisso consistem as idéias fundamentais da “Revolução Permanente”. Aqueles países que chegaram ao estágio da revolução democráticatardiamente não podem realizar essa revolução sob a liderança da burguesia. Os porta-vozes dos partidos pequeno-burgueses são incapazes de um desenvolvimento independente. Suas relações com o capital internacional e o seu medo do proletariado tornam sua tarefa impossível, logo eles correrão para a proteção da reação. O proletariado é a única classe que pode realizar as tarefas da revolução democrático-burguesa. Mas, no curso de suas ações revolucionárias e da criação de seus próprios organismos de luta, o proletariado desenvolve suas reivindicações independentes. Do primeiro estágio da revolução há uma rápida transição para o poder operário. A condição para a manutenção e o desenvolvimento desse poder e sua base social é a revolução socialista mundial.

A pequena-burguesia na luta anti-imperialista

As nações lançadas à luta contra o imperialismo recobrem, agora, todo o globo. A composição de classe dessas nações varia enormemente. Em muitas delas não há um proletariado industrial que se compare nem mesmo com o russo de 1905, ou o chinês de 1919. Em várias, o desenvolvimento da indústria foi forçosamente restringido pelos interesses especiais das forças imperialistas no poder, de forma que a população se constitui quase que inteiramente de uma classe camponesa muito pobre. Esse “campesinato” não é exatamente igual ao dos textos marxistas do século XIX. Em diversos casos a maioria dos cultivadores não possui terra e ocasionalmente realizam trabalho assalariado. As necessidades especiais das indústrias de base e extrativista criam ocasionalmente um tipo especial de trabalhador — é o trabalhador migrante, que gasta metade do seu tempo em minas ou plantações recebendo baixos salários, e a outra metade desempregado ou em pequenas plantações de agricultura de subsistência. A atual relação de exploração entre o capital internacional, os bancos, os agiotas nativos e comerciantes, de um lado, e os produtores diretos, camponeses e operários, de outro, apresenta formas novas e originais. Essas formas freqüentemente são terríveis combinações entre a cruel busca pelo lucro do avançado capital financeiro e o atraso das relações sociais pré-capitalistas. No nível político, os povos desses países sofrem dessas mesmas combinações mortais. Eles são vítimas de todos os horrores da guerra moderna, tanto em conflitos diretos entre as forças imperialistas, quanto por meio das igualmente eficazes atividades “pacíficas” da ONU. Em ambos os casos, devemos ver uma combinação específica das forças e das leis analisadas por Lênin e Trotsky em seus trabalhos sobre o Imperialismo e a Revolução Permanente.

Cuba é um daqueles países em que o desenvolvimento capitalista tem sido determinado quase que exclusivamente pelos investimentos e controle estrangeiro. A dependência das economias de países da América Latina a um único produto (como o açúcar, em Cuba) já foi várias vezes comentada. A burguesia nacional jamais poderia ser uma força social independente em Cuba. Ela só poderia funcionar como um comitê executivo comercial e político dos investimentos norte-americanos. Sob essas condições, os ideólogos da democracia pequeno-burguesa não poderiam mais exercer seu papel clássico na revolução burguesa — que é o de fornecer uma liderança política que una os operários e os camponeses primeiramente numa luta burguesa contra o absolutismo e pela independência, para, depois, incorpora-los ao novo regime. Na Revolução Russa, os Socialistas Revolucionários e os Mencheviques se esforçaram para isso. A direção dos Bolcheviques sobre um proletariado concentrado em poucos núcleos avançados, particularmente em Petrogrado, na vanguarda de uma guerra camponesa, conquistou o poder soviético. A alternativa poderia ter sido um regime repressivo, fundado na capitulação dos partidos pequeno-burgueses à contra-revolução. Mesmo na Alemanha e na Itália, países mais desenvolvidos com uma classe operária bem mais expressiva, o insucesso da revolução proletária foi substituído em pouco tempo não por uma democracia burguesa, mas pela opressão explícita de regimes fascistas. A humanidade entrou num período no qual as alternativas são socialismo ou barbárie, na forma de reação fascista.

Capitulação à burocracia soviética

Em nosso mundo de hoje observamos um estágio mais avançado da mesma situação. Não apenas a barbárie, mas a destruição completa apresenta-se como alternativa ao socialismo. Esse fato, considerado em escala mundial, associado à manutenção do Estado Operário sob dominação burocrática na União Soviética e a instituição de regimes semelhantes em outros países atrasados (Leste Europeu e China), levou alguns “marxistas” a considerarem a situação atual como qualitativamente diferente. Os stalinistas concluíram que a ameaça de uma guerra e seu próprio poder bélico tornaram possível uma estratégia de coexistência pacífica com as principais potências imperialistas mundiais, o que abriu, assim, várias vias pacíficas e parlamentares para se chegar ao socialismo dentro de cada nação. Isso não é, obviamente, uma teoria, mas uma apologia ideológica da atual capitulação da burocracia soviética, determinada, sobretudo, a preservar seus privilégios e se equilibrar entre a classe trabalhadora e o imperialismo. A atual disputa Sino-Soviética levanta tais questões para discussão nos Partidos Comunistas. Nunca a clareza teórica e a determinação política foram tão necessárias ao movimento trotskista. Somente o desenvolvimento científico da teoria da Revolução Permanente pode dar uma resposta aos problemas levantados. Em nossa opinião, as revisões do trotskismo feitas por Pablo, levando à cisão de 1953, e agora expressas em políticas oportunistas para os países desenvolvidos, Estados Operários e países coloniais, constituíram uma capitulação política a forças que se situam entre a classe trabalhadora e a derrocada do imperialismo. O poder da burocracia soviética e a lentidão dos movimentos operários do leste europeu e dos Estados Unidos em solucionar a crise da direção nas décadas de 1930 e 1940, tiveram impacto nas idéias de Pablo e de seu grupo, não sendo resolvidas por eles cientificamente, de forma marxista, mas de uma forma impressionista. Tal abandono do método dialético, do critério de classe da análise da sociedade e da política, resultou na conclusão de que outras forças que não o proletariado organizado por partidos marxistas, poderiam liderar o próximo passo histórico da luta contra o capitalismo. Nós vimos como Hansen defende isso para a China e para o Leste Europeu. Nós nos lembramos da insistência de Pablo de que os partidos stalinistas em países como a França poderiam levar a classe operária ao poder. Nós temos visto, desde então, a “restauração do campesinato revolucionário” de Pablo e a atual crença de que lideranças da pequena-burguesia nacionalista podem liderar a criação e a manutenção de Estados operários. De acordo com esses “marxistas”, em Cuba se estabeleceu um “regime incorruptível dos trabalhadores”. Tudo isso é possível porque há uma “nova realidade”, como diz Hansen: “a isso devemos acrescentar que a situação mundial hoje é completamente diferente (?) do que era em 1936-39. Em lugar da (?) posição defensiva contra o fascismo europeu, a União Soviética se consolidou enquanto uma das duas maiores potências mundiais. A estrutura econômica soviética se espalhou pela Europa. A China se tornou um Estado Operário. A revolução colonial trouxe centenas de milhões aos seus pés. A desestalinização alterou a capacidade da burocracia em impor sua vontade de forma tão flagrante como fazia nos anos trinta…”.

A semelhança da posição de Hansen com as análises da “nova situação” apresentada pelos stalinistas é notável. Ambos falam da “força do campo socialista”, “da revolução colonial” e do “crescimento da economia soviética”. Ambos tentam impedir a formação de novos partidos revolucionários argumentando que o que garante o futuro do movimento comunista é a reação defensiva de “desestalinização” feita por eles.Aqueles que se referem a Lênin são “dogmáticos”! A capitulação à burocracia em questões políticas acarretará, conseqüentemente, na degradação de seu método de análise ao empirismo e ao pragmatismo estreitos, combinados com generalizações demagógicas. Essa é a forma de pensar que está por trás do atual bloqueio revisionista à construção da Quarta Internacional.

A posição da SLL sobre Cuba

Deixem-nos resumir, brevemente, as “refutações” feitas por Hansen às nossas posições em relação a Cuba, publicadas no documentoTrotskyism Betrayed, e vejam como elas se sustentam.

1. Nós criticamos o método “normativo” de aplicar de maneira estanque um “critério” abstrato e ahistórico sem uma específica análise histórica e de classe. Por outro lado, nós exigimos uma análise do caráter de classe das forças políticas do governo e do Estado cubanos. Hansen responde acusando-nos de ignorarmos a atualidade histórica da discussão sobre o caráter de classe da URSS, da China, do Leste Europeu e de Cuba. Vimos acima como ele demonstra essa atualidade — procurando a justificativa para a submissão da classe trabalhadora às direções pequeno-burguesas. Tentamos, antecipando futuras análises, estabelecer as bases gerais para uma discussão marxista. Sugerimos, portanto, que as análises feitas durante os dois últimos anos na LaborReview constituam a base para uma avaliação do caráter de classe das forças nacionalistas e stalinistas em Cuba e em outros países.

2. Nós afirmamos categoricamente que o novo partido unificado (ORI) [9], de Castro e dos stalinistas, não poderia substituir a construção do partido marxista revolucionário em Cuba. Hansen não discute essa questão em nenhum momento. Ele supostamente defende a posição declarada anteriormente por Cannon, de que os trotskistas deveriam manter fidelidade dentro das ORI. Hansen responde aos camaradas franceses que, nos documentos deles, “a importância dada aos ataques aos trotskistas cubanos (feitos pelo governo e seus porta-vozes) é exagerada e foi colocada em lugar errado, além de não ser corretamente estimada a influência ideológica que o trotskismo exerce sobre um setor significativo da vanguarda revolucionária cubana” [10].

Ainda falta a ele explicar a afirmação categórica de Guevara de que não deveriam existir facções dentro das ORI, cujo “centralismo democrático” seria, deste modo, de tipo stalinista. Ele precisa explicar também quem foi responsável pelos ataques aos trotskistas. E ele que não espere que levemos a sério sua sutil insinuação de que o SWP ou alguma outra pessoa tem amigos influentes e secretos ao lado de Castro. Quando isto se tornou um argumento marxista e como se relaciona com a questão da possibilidade da construção de um partido marxista? Não é difícil que nos digam que na Argélia também há “influência ideológica” de trotskistas como Pablo sobre um “setor significativo da vanguarda revolucionária”, o difícil é nos entusiasmarmos com isso. Hansen, nesse momento da discussão, teve a oportunidade de desenvolver seu tema anterior: “todos nós sabemos o beabá — precisamos de partidos revolucionários — mas a questão é como ir em frente e construí-los”. Porém, ele não tem nada a dizer, exceto que é “exagerado” defender os trotskistas cubanos de ataques vindos do aparato estatal e que devemos nos lembrar de que temos alguns amigos por lá lá.

3. Nós declaramos nossa opinião de que a ditadura do proletariado não foi estabelecida em Cuba, e que, por essa razão, classificá-la como Estado Operário era errado. Hansen não encara a realidade de frente — ou talvez isso seja um daqueles antigos “modelos” de Lênin, obsoletos demais para serem aplicados. Ao nosso argumento de que a máquina estatal manteve uma estrutura burguesa apesar da ausência da burguesia, Hansen responde apenas com escárnio, a despeito do fato de que, como bem apontaram os camaradas franceses, a sua posição implica na necessidade de revisar as conclusões de Trotsky a respeito da Espanha Republicana dos anos trinta (Lições da Espanha —Última Advertência,1937). A SLL, diz Hansen, deveria rever sua opinião porque: os imperialistas discordam quanto ao caráter burguês do Estado cubano; a população da URSS e de outros estados operários discordam (!); a população de Cuba discorda; outros marxistas discordam; e, finalmente, porque a mesma posição da SLL havia sido declarada uma vez por Pablo, antes dele estudar melhor a questão. Todos esses argumentos não significam, absolutamente, nada (ver carta de F. Rodriguez neste boletim).

Hansen não se ocupa das questões a respeito dos sovietes ou dos conselhos operários como uma forma de poder estatal, nem mesmo do significado da existência de uma “milícia” sem tal governo operário. Ele não diz como tal “milícia” — controlada, na verdade, pelo exército do aparato estatal centralizado — difere do “povo em armas”. E não é verdade que o suprimento de armas é regulado pelo do exército e nãopelas milícias? Pelo aparato estatal e não pelos conselhos e comitês operários? Por que Hansen não responde ao nosso argumento de que a velha máquina estatal não foi destruída, mas preenchida por funcionários do movimento de Castro, depois substituídos por burocratas stalinistas? Seriam os “modelos” de Marx e de Lênin que deveriam ser descartados agora? Nós insistimos que a permanência da liderança pequeno-burguesa de Castro na máquina estatal, burocraticamente independente de qualquer órgão de poder operário, controlando o poderda sociedade cubana, é a principal esperança da burguesia para retornar a Cuba, apesar das nacionalizações.

4. Essencialmente conectada a esse último ponto está nossa caracterização do governo de Castro como um regime Bonapartista, sustentado em bases estatais burguesas (Trotskyism Betrayed , p. 14). Certamente, Castro se apoiou bastante no proletariado e nos camponeses pobres até agora, mas também foi cuidadoso o suficiente para preservar uma boa relação com os camponeses ricos — e as exigências da economia podem forçá-lo a confiar neles mais e mais. Hansen deveria pensar quão longe está disposto a ir com Castro numa aventura dessas. Já Pablo, com quem Hansen quer se unificar, está se esforçando para formular uma linha teórica que justifique a insistência de Ben Bella de que na Argélia os camponeses são mais importantes que os operários. Se Hansen responder o caso dizendo que Castro é um Bonaparte de esquerda, equilibrando-se entre o imperialismo e a classe trabalhadora, então ele deve dar uma outra explicação para a ausência de uma democracia operária em Cuba. Se Cuba é realmente um regime operário não corrompido, como poderíamos explicar a ausência de conselhos de trabalhadores? Existe alguma outra explicação para isso, a não ser a preservação da independência do poder estatal por Castro e o seu movimento, contra a classe operária assim como contra o imperialismo? O regime Stalinista também foi caracterizado por Trotsky como um regime Bonapartista. Isso significa que Cuba é, portanto, um Estado Operário? Não: dizemos que o regime Stalinista era um regime burocrático apoiado em bases estatais proletárias conquistadas pelos Sovietes em 1917; O regime de Castro é um regime Bonapartista que ainda repousa sobre as bases burguesas. Se a revolução cubana ainda pode ser defendida de invasões externas com sucesso, então o próximo período será um curto período de dualidade de poder, com os trabalhadores e camponeses liderados nos Sovietes por um novo partido revolucionário sob o programa da ditadura do proletariado.

5. Hansen não responde nosso seguinte argumento: “O ataque a Escalante [11] foi motivado por um desejo de manter o poder centralizado em suas próprias mãos [de Castro] e não por hostilidade à burocracia ou qualquer coisa do tipo”. (Trotskyism Betrayed, p. 14). Hansen ainda escreve, como se não precisasse de provas, que a remoção de Escalante do cargo foi uma medida contra a burocracia Stalinista. Mas precisamos repetir que ele deixa vários pontos sem resposta. Por que, então, a maioria da liderança stalinista cubana também condenou Escalante e por que o Pravda considerou a expulsão como um golpe contra o sectarismo? Isso significa que eles estão agora se posicionando a favor da cruzada de Castro contra o stalinismo? Mas isso não implicaria numa reforma à direita por parte do movimento stalinista? Ou isso significa que o PC cubano e o Pravda decidiram conciliar com Castro por enquanto, sabendo de sua sólida posição em Cuba? Neste caso, a natureza da relação entre o Movimento 26 de Julho e os Stalinistas deveria ser exposta pelo SWP e suas implicações quanto à natureza do novo “partido revolucionário unificado” (ORI) deveriam ser reconhecidas.

A principal base para interpretar o caso da remoção de Escalante parece ser o pronunciamento de Castro “Contra o Sectarismo e a Burocracia”. Nesse pronunciamento, Castro deu vários exemplos de favorecimento e discriminação burocrática na administração estatal. Escalante e seu grupo, de acordo com Castro, usavam seu poder para aparelhar todos os níveis do aparato estatal com seus próprios nomeados (do Partido Comunista). Tudo isso parece ser normal, mas se o pronunciamento for lido claramente, e comparado com pronunciamentos anteriores e outros escritos, fica claro que há muito mais por trás do processo aparente.

Condenando os homens nomeados por Escalante, Castro ressalta, repetidamente, que eles não eram revolucionários de fato, mas intelectuais do partido, alguns dos quais estavam debaixo de suas camas enquanto os verdadeiros revolucionários arriscavam suas vidas contra o regime de Batista. A clara intenção dessa parte do pronunciamento é a de reafirmar a liderança do Movimento 26 de julho sobre o Partido Comunista [o PSP], e de ameaçá-los chamando o apoio do povo aos “verdadeiros revolucionários”. Foi provavelmente diante dessa ameaça às suas próprias posições burocráticas que os Stalinistas decidiram apoiar o ataque a Escalante, para diminuir, assim, suas perdas. É muito interessante comparar esse discurso com outro igualmente bem conhecido de Castro, também publicado pelo SWP, onde ele diz ter estado, ao menos, sempre perto do comunismo. Nesse pronunciamento posterior, feito num período em que ele era ainda mais dependente do Partido Comunista para o aparelhamento da Burocracia Estatal, Castro praticamente se desculpa por qualquer hostilidade que tenha mostrado ao Stalinismo no início de sua carreira. Ele explicou que somente a sua “falta de compreensão” o impediu de ser um comunista; assim ele mascarou a traição do Stalinismo Cubano no passado. Ele chamou os militantes do Movimento 26 de Julho para aprender o marxismo das velhas mãos do Partido Comunista. De que mais poderíamos chamar essas rápidas mudanças de eixo, se não de adaptação de um Bonaparte à necessidade de preservar sua dominação? Poderia alguém sugerir que elas tinham alguma avaliação séria do Stalinismo como uma tendência política?

O pronunciamento de Castro para a população, em cima dessa questão, guarda alguma relação com o processo de “educar as massas” ao qual ele supostamente é adepto? Um artigo de Hansen sobre isso seria interessante. Em Cuba — The Acid Test, ele faz uma referência brevíssima: “A pretensa tomada das forças castristas pelo PC Cubano foi suficientemente despedaçada pelos acontecimentos” (p.28).

Hansen opta, aqui, por ignorar que, mesmo se tivesse razão a respeito do significado das ações de Castro “contra o burocratismo”, isto só confirmaria amplamente o que foi dito a respeito do perigo à Revolução Cubana que causava a dependência de Castro dos stalinistas para o aparelhamento da burocracia estatal. Ele não faz análise alguma a respeito das relações atuais entre o Movimento 26 de Julho e o Partido Comunista, e simplesmente se refere, mais uma vez, às “medidas tomadas pelo regime de Castro contra o burocratismo Stalinista” (Cuba — The Acid Test, p. 16), como se, assim, fosse inquestionável o caráter progressista ou “revolucionário” de Fidel Castro. Mas, uma leitura do pronunciamento de Castro torna o assunto muito claro. Ao condenar a indicação burocrática de membros do Partido Comunista ao Estado, feita por Escalante, Castro não defende a ditadura do proletariado ou o poder operário, mas sim a independência da máquina estatal. Ele enfatiza queo Estado deve ter o direito de escolher suas pessoas. Esses oficiais serão leais ao Estado e não a qualquer organização externa. O argumento do valor dos combatentes do 26 de Julho contra aqueles que estavam “debaixo de suas camas” é a justificativa desse poder independente do aparato estatal, centralizado sob o controle do governo de Castro. Os pronunciamentos de Guevara, contra o controle operário da indústria e atacando os trotskistas cubanos, vão todos no mesmo sentido.

6. Hansen repete todos os argumentos em relação às nacionalizações feitas pelo governo de Castro, sem introduzir nada de novo à discussão. Nós indicamos que nacionalizações podem, hoje, significar muitas coisas diferentes e serem freqüentemente levadas a cabo por governos burgueses, particularmente em países atrasados. Quanto mais o capitalismo avança — não havendo a vitória do proletariado nos países desenvolvidos — mais a economia capitalista terá de adotar medidas que se adaptem ao caráter da indústria moderna, à divisão do trabalho e à comunicação, restringindo, mais ainda, a economia às contradições do capitalismo. Hansen faz uma terrível confusão na argumentação desse ponto. Ele diz: se nacionalizações como aquelas em Cuba podem ser levadas adiante por um Estado Burguês, isso não nos leva a conclusão de que o capitalismo ainda pode ter um papel progressista? Esse é o único argumento que os revisionistas têm em mente (“O capitalismo ainda pode dar certo”). Hansen está afirmando aquilo que é dito pelos governos e porta-vozes do capitalismo. O fato é que, assim, a economia de Cuba, de Israel, do Egito ou de qualquer outro país é impedida de se tornar parte da economia internacional racionalmente planejada do socialismo. Será que o uso da fissão nuclear prova que a ciência e a indústria ainda podem avançar sob o capitalismo e que o marxismo está errado? Ou isso demonstra exatamente o contrário, que cada avanço tecnológico, enquanto o capitalismo não for abolido, se transforma em seu oposto, i.e., que todo o desenvolvimento tecnológico envolve contradições econômicas e políticas ainda maiores?

Hansen não leva em consideração a relevância de seu critério de “nacionalização” para dizer onde, se no Egito ou em Burma, um governo militar-nacionalista recentemente nacionalizou os bancos e demais propriedades estrangeiras. Talvez estes tenham de ser chamados de Estados Operários caso alguém (um governo burguês ou pequeno-burguês) nacionalize essas empresas, o que deve implicar em futuros papéis progressistas à classe e ao sistema capitalistas. Nós levantamos a questão da avaliação do SWP em relação a esses estados num documento anterior, mas Hansen não nos deu qualquer resposta. Sobre a questão da nacionalização da terra, um pequeno detalhe demonstrará a limitação da apresentação de Hansen. Ele diz que a alienabilidade da terra (uma vez que ela pode ser comprada e vendida) está “fora do cerne dessa discussão”, e ainda aproveita a oportunidade para atacar a “ignorância dos fatos em relação a isso” por parte da SLL. Ele continua: “acontece que a Lei da Reforma Agrária especifica que o ‘mínimo vital’ de terra, cuja propriedade o camponês recebe, ‘será inalienável’. Isenta de impostos, essa terra não pode ser anexada, não é sujeita a contrato, arrendamento, aluguel ou usufruto. Ela só pode ser transferida por meio da venda para o Estado, ou por herança passada apenas a um herdeiro com a morte do proprietário, ou, no caso de não haver herdeiros, pela venda numa audiência pública a compradores que devem ser ou camponeses ou operários agrícolas”. Mas, uma omissão muito interessante dessa passagem — da qual o único significado que se pode extrair é o de que o governo Castro tentou criar uma classe média camponesa, estável e pequena em Cuba — é a de que, apesar do “mínimo vital”, existem, também, propriedades muito maiores, até um máximo de 1.000 acres. E que, estando num número entre o mínimo e o máximo, a terra pode ser comercializada no mercado. A correção de Hansen à nossa “ignorância”, aqui, talvez sirva de exemplo sobre como começar com “os fatos”.

7. Por fim, nós levantamos a questão da necessidade de um novo partido revolucionário em Cuba. Hansen ignora isso completamente. Ele prefere ficar com “os fatos”.

O silêncio de Hansen

Em nossa resposta a Cuba — The Acid Test, nos restringimos aos princípios metodológicos levantados por Hansen e demos vários exemplos das diferenças entre estes e os nossos, particularmente sobre Cuba. Outras questões que citamos em Trotskyism Betrayed foram ignoradas por Hansen — e ainda esperamos sua resposta. Por exemplo, nós discorremos várias páginas para responder a acusação de “subjetivismo” em nossa avaliação da situação mundial. Tomando oPrograma de Transição [12] de Trotsky e a resolução internacional da SLL (Perspectiva Mundial para o Socialismo) nós demonstramos que a nossa avaliação da relação entre a direção e as contradições objetivas do capitalismo é a mesma de Trotsky. Hansen não dedica nenhum esforço a responder este ponto; talvez ele pense ser suficiente dizer que “o mundo hoje é completamente diferente daquele de 1936-1939” (p. 28). Nós fizemos, ainda, uma resposta detalhada, defendendo nossa caracterização da liderança da Argélia e do entreguismo do acordo de Evian. Mais uma vez, nenhuma resposta de Hansen (veja a seguir). Que tipo de discussão Hansen pretende fazer? Nós tentamos abordar todos os pontos levantados, para levá-los até o fim, mas Hansen simplesmente os ignora. Tal discussão logo se tornará estéril. Tratamento similar é dado à questão da construção de partidos leninistas. Nós estabelecemos, com evidências documentais, a falsidade das afirmações de Hansen de que Lenin e Trotsky haviam construído o Partido principalmente por meio de rupturas e fusões. Nós apontamos a firmeza teórica essencial e a habilidade características de Lênin para levar a cabo essas rupturas, bem como o reconhecimento dessas qualidades por Trotsky. Hansen não respondeu uma única palavra sobre isso.

Por fim, levantamos mais uma vez a relação entre a revolução nos estados capitalistas desenvolvidos e nos países atrasados. Nós insistimos, especialmente, nas implicações políticas da declaração do SWP, de que “o citado atraso no oeste, essa característica negativa, (era) o mais importante elemento da realidade atual”. Toda a conversa dos revisionistas acerca das “forças objetivas favoráveis” se soma, na verdade, ao oposto do que pode parecer. Os tempos estão bons, e cada vez melhores, dizem eles. Mas para quê? Para a construção de partidos revolucionários em torno do programa da Quarta Internacional? Não! Para a ascensão de marxistas nos agrupamentos políticos pequeno-burgueses, uma política à qual o trotskismo deveria dirigir todos os seus esforços! Isso é o máximo que se pode esperar de Hansen e dos pablistas. Seu “aprofundamento” e seu silêncio em questões de princípio a respeito de novos partidos revolucionários, da democracia soviética e da revolução política, têm a função de encontrar caminhos para “começar a participar da ação”. Alguém tem que fazer o trabalho, e, nesse momento, quem o está fazendo são a burocracia stalinista e os líderes nacionalistas. E para os países desenvolvidos: “Na verdade, a experiência nos parece mostrar que a dificuldade de chegar ao poder nos países imperialistas aumentou, de alguma forma, desde o tempo dos bolcheviques”. Isso é dito por Hansen para fazer uma contraposição, argumentando que a construção de partidos revolucionários é, mesmo assim, uma “necessidade absoluta nos países capitalistas desenvolvidos”. Nesses países, portanto, é justamente esta é a questão: são necessários partidos marxistas. Mas, de qualquer forma, o epicentro da revolução está hoje em outro lugar e, nele, ela pode ser realizada por outros grupos. Na verdade os “partidos” de Hansen e dos pablistas nos países desenvolvidos se tornam “chefes de torcida” para os pequeno-burgueses nacionalistas da Argélia, Cuba, etc. Hansen opta por ignorar a linha desses pablistas na Europa, que “mantêm suas cabeças rebaixadas” diante da social-democracia, esperando serem descobertos por algum partido centrista ao invés de construir partidos independentes em oposição às lideranças reacionárias.

O documento de Hansen, Cuba — The Acid Test, é uma séria advertência aos marxistas. Ele é uma séria contribuição para uma discussão internacional, mas ignora várias questões vitais levantadas anteriormente, questões acerca de todo o passado e orientação do bolchevismo.

Ao invés disso, Hansen insiste nos “fatos” e, em particular, no fato da revolução cubana. Nessa parte da discussão ele não introduz nada de novo, a não ser a distorção demagógica das posições da SLL — numa tentativa inconsistente de tirar alguma vantagem em cima das avaliações diferentes sobre Cuba feitas pelas seções francesa e britânica do CI.

Tudo isso indica que Hansen está fugindo da questão política fundamental. Sua insistência na “prova de fogo” de Cuba é, na verdade, a defesa de que o “senso comum” se sobreponha à teoria. É isso que embasa as concepções completamente diferentes de construção da Internacional, agora dividindo o SWP e a SLL. Sem teoria revolucionária, não há partido revolucionário.

O grande benefício a ser extraído de Cuba — The Acid Test é que torna explícito o fundamento desse abandono da teoria revolucionária, do materialismo dialético. Hansen agora estabeleceu abertamente a defesa do empirismo como um método, um método que tem uma expressão natural nas políticas do oportunismo. A essas políticas que os métodos de Hansen levam. É por esse motivo que ele e Cannon caminham para unificação com o pablismo, cujas revisões oportunistas e liquidacionistas de 1953 estão longe de serem corretas. O que aconteceu foi que a estagnação teórica dos trotskistas americanos levou-os inevitavelmente ao mesmo fim.

Adaptado por unanimidade pelo Comitê Nacional da Socialist Labour League, em 23 de março de 1963.

Adendo

É uma característica do regime castrista que nenhum órgão dirigente das ORI seja eleito.

Enquanto Castro incentiva o sectarismo e o dogmatismo no partido, ele é ao mesmo tempo o responsável pela instalação de uma burocracia autocrática que se perpetua.

Por exemplo, o “processo de reorganização” nas ORI é conduzido pelo Comitê Nacional — que é nomeado. Quem organiza o Comitê Nacional? Presumidamente Castro. Não existe liberdade para tendências dissidentes nem provisões para a representação da minoria.

Todas as decisões políticas são feitas a portas fechadas por uma pequena quadrilha de Castro e seus apoiadores. Não existe debate democrático e nem mesmo pequenas discussões. Por exemplo, durante a última crise dos mísseis, transpareceu que “algumas pessoas” das ORI haviam favorecido uma inspeção da ONU. Ninguém soube quem eram essas pessoas e que chance elas tiveram de se manifestar. Nós tivemos que esperar que Castro falasse para captar os fatos que conseguíssemos.

Há pouco tempo, mais uma vez, os trabalhadores de Havana foram tratados com uma desonestidade de organização sem precedente na revolução. Esse foi o motivo que levou à decisão de dissolver o Comitê de Província (37) de Havana, seu comitê executivo e seu secretariado. Foi substituído por um reduzido comitê executivo provisório (11) com “funções limitadas, consideradas indispensáveis nesse estágio”.

A aparente razão — a oficial — para essa ação arbitrária foi a falência desse importante órgão de liderança em conduzir o “trabalho de reorganização”, mas a real razão foi provavelmente de cunho político — a eliminação dos remanescentes das forças de Escalante nas ORI.

O Comitê de Província — um dos mais importantes em Cuba — não teve o direito de apelar a qualquer congresso das ORI, pela simples razão de que não houve reuniões democráticas do congresso e há poucas possibilidades de que isso se realize no futuro.
Ao mesmo tempo, também, todas as organizações de partidos na Província de Havana foram estabelecidas sob a direção de onze comissões regionais, que não estão submetidas a eleições e renovações.

A centralização burocrática atual nas ORI é a antítese da democracia da classe trabalhadora e o mais claro sintoma de bonapartismo na revolução.

Nós não desejamos fazer da democracia um fetiche — nem minimizar a importância da disputa eleitoral numa revolução. Mas se a ditadura for permanecer popular e viável, ela deve ser baseada numa ampla democracia. O camarada Cannon, em seu próprio estilo inimitável, expressou esse pensamento sucintamente quando escreveu:

“Quando os fundadores do socialismo científico disseram que os trabalhadores deveriam se emancipar, eles quiseram dizer que ninguém o faria, nem poderia, por eles. O mesmo se aplica às suas organizações, seus instrumentos de luta pela emancipação. Se eles realmente servem ao seu propósito, essa organização deve pertencer aos trabalhadores e ser democraticamente controlada e operada por eles. Ninguém pode fazer isso por eles. Assim pensaram os grandes democratas, Marx e Engels” (Caderno de um Agitador, p.239, Publicações Pioneer, 1958).

Não temos mais nada a dizer.

NOTAS

1. Refere-se o autor, aqui, à cisão de 1953, que criou o Comitê Internacional, opondo-o ao Secretariado Internacional pablista.

2. Ambos os textos, Trotskyism Betrayed (O Trotskismo Traído) e Report to the Plenum (Relato Ao Pleno), foram publicados no volume III doTrotskyism Versus Revisionism. Já as iniciais referem-se, aqui, a Cliff Slaughter (C.S.) e Joseph Hansen (J.H.).

3. Cuba— The Acid Test: A reply to the Ultra-left sectarians (Cuba — A Prova de Fogo: uma resposta aos sectarios ultra-esquerdistas), de Joseph Hansen, publicado em 20 de novembro de 1962.

4. Revista teórica da SLL

5. “Germain” era o nome com o qual Ernest Mandel assinava seus textos.

6. Secretariado Internacional da Quarta Internacional, SI, corrente internacional que existia antes da “unificação”, dirigida por Pablo e Mandel.

7. Jornal do SWP, na época a seção norte-americana do CI.

8. Jornal da SLL.

9. Em julho de 1961 foram formadas as Organizações Revolucionárias Integradas, ORI, pela fusão entre o Movimento 26 de Julho de Fidel Castro, o Partido Socialista Popular (antigo Partido Comunista) dirigido por Blas Roca e o Diretório Revolucionário 13 de Março, dirigido por Faure Chomón. Em 26 de março de 1962 as ORI tornaram-se o Partido Unido da Revolução Socialista Cubana (PURSC), que, por sua vez, tornou-se o Partido Comunista de Cuba em 3 de outubro de 1965, tendo Castro como seu secretário geral.

10. O SWP, que inicialmente defendia os trotskistas cubanos contra a repressão do regime Castro, dentro de alguns meses mudou de posição e apoiou a repressão.

11. Aníbal Escalante, influente figura das ORI, era o líder do stalinista do PSP.

12. Trata-se do programa histórico da Quarta Internacional.

Arquivo Histórico: Carta Aberta aos Trotskistas do Mundo Inteiro

Uma Carta Aberta aos Trotskistas do Mundo Inteiro [1]

O texto a seguir foi publicado em 16 de novembro de 1953 por James P. Cannon, principal dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) dos Estados Unidos. Ele representa um importante marco da luta contra a degeneração pablista da Quarta Internacional e impulsionou a criação do Comitê Internacional, organização que visava se opor à tal degeneração. A versão aqui presente foi copiada do Arquivo Marxista da Internet, marxists.org.

Caros Camaradas:

No 25º aniversário de fundação do movimento trotskysta nos Estados Unidos, a Plenária do Comitê Nacional do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party—SWP) envia saudações socialistas revolucionárias aos trotskystas ortodoxos de todo o mundo.

Apesar de o SWP, devido às leis antidemocráticas promulgadas pelos democratas e republicanos, não mais ser filiado à IV Internacional — o Partido Mundial da Revolução Socialista fundado por Leon Trotsky para carregar e realizar o programa traído pela II Internacional dos social-democratas e pela III Internacional dos stalinistas — defendemos o desenvolvimento da organização mundial criada sob a direção de nosso líder assassinado. [2]

Como todos sabemos, há 25 anos, os precursores trotskystas americanos atraíram a atenção da opinião pública mundial ao programa de Trotsky, censurado pelo Kremlin. Esse ato mostrou-se decisivo para quebrar o isolamento imposto a Trotsky pela burocracia stalinista e para lançar as bases para a fundação da IV Internacional. Em seu exílio pouco tempo depois, Trotsky iniciou uma colaboração estreita e de confiança com a direção do SWP que durou até o dia de sua morte.

A colaboração incluiu um esforço conjunto para organizar partidos socialistas revolucionários em vários países. Isso culminou, como se sabe, na fundação da IV Internacional em 1938. O Programa de Transição, que permanece como chave do programa do movimento trotskysta internacional hoje, foi escrito por Trotsky em colaboração com os dirigentes do SWP e a seu pedido foi assumido por eles em seu Congresso de fundação.

A proximidade e plenitude da colaboração entre Trotsky e a direção do SWP pode ser avaliada pela trajetória de luta em defesa dos princípios trotskystas ortodoxos em 1939-40 contra a oposição pequeno-burguesa liderada por Burnham e Shachtman. Essa atuação teve profunda influência nos rumos da IV Internacional nos últimos 13 anos.

A partir do assassinato de Trotsky por um agente da polícia secreta de Stalin, o SWP assumiu a direção da defesa de seus ensinamentos. Assumimos a direção não por escolha, mas por necessidade — a II Guerra Mundial obrigou os trotskystas ortodoxos a passar para a clandestinidade em muitos países, especialmente na Europa sob os Nazistas. Junto aos trotskystas da América Latina, Canadá, Inglaterra, Ceilão, Índia, Austrália e outras partes, nós fizemos o possível para levantar a bandeira do trotskysmo ortodoxo ao longo dos difíceis anos de guerra.

Com o fim da guerra, estávamos contentes com a saída da clandestinidade, na Europa, dos trotskystas que empreenderam a reconstituição da organização da IV Internacional. Desde que fomos impedidos de fazer parte da IV Internacional devido a leis reacionárias, lançamos nossas maiores esperanças na emergência de uma liderança capaz de continuar a grande tradição legada por Trotsky ao nosso movimento mundial. Acreditamos que à jovem e nova direção da IV Internacional na Europa devemos dar toda confiança e apoio. Quando, por iniciativa dos próprios camaradas, sérios erros foram corrigidos, sentimos que nosso caminho se mostrava correto.

Todavia, nós temos que admitir que o fato de não termos, nós e mais alguns, lançado uma crítica severa a essas lideranças, isso facilitou a consolidação de uma fração fora de nosso controle, secreta e personalista na administração da IV Internacional, fração que abandonou o programa fundamental do trotskysmo.

Essa fração, centrada em Pablo, está agora trabalhando consciente e deliberadamente para quebrar, romper e dilacerar os quadros do trotskysmo historicamente formados em vários países e para liquidar a IV Internacional.

O Programa do Trotskysmo

Para demonstrar precisamente o que está em jogo, retomemos os princípios fundamentais sob os quais o movimento trotskysta internacional está construído:

1. A agonia mortal do sistema capitalista ameaça a civilização de destruição através do aprofundamento das crises, guerras mundiais e manifestações de barbárie como o fascismo. O desenvolvimento das armas atômicas, hoje, enfatiza o perigo na sua forma mais grave possível.

2. A queda ao abismo só pode ser evitada substituindo o capitalismo pela economia planejada do socialismo em escala mundial, retomando assim a espiral de progresso aberto pelo capitalismo no seu início.

3. Isso pode apenas ser realizado sob a direção da classe trabalhadora, a única e verdadeira classe revolucionária na sociedade. Mas a própria classe trabalhadora enfrenta uma crise da sua direção, apesar de as forças sociais não terem sido nunca tão favoráveis como hoje para os trabalhadores se lançarem no caminho para a tomada do poder.

4. A fim de organizar-se para cumprir essa tarefa histórica mundial, a classe trabalhadora em cada país deve construir um partido socialista revolucionário segundo o modelo desenvolvido por Lênin; ou seja, um partido combativo capaz de combinar dialeticamente democracia e centralismo — democracia na tomada de decisões e centralismo para leva-las a cabo; uma direção controlada pela militância, uma militância capaz de seguir adiante, debaixo de fogo, de maneira disciplinada.

5. O principal obstáculo a isso é o stalinismo, que atrai trabalhadores explorando o prestígio da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, para depois, traindo sua confiança, arremessa-los nos braços da social-democracia, na apatia ou de volta às ilusões no capitalismo. Essa traição é paga pela classe trabalhadora sob a forma de consolidação das forças fascistas e monarquistas, e da deflagração de novas guerras criadas e preparadas pelo capitalismo. Desde seu início, a IV Internacional coloca como uma de suas principais tarefas a derrota revolucionária do stalinismo dentro e fora da URSS.

6. A necessidade de táticas flexíveis para as muitas seções da IV Internacional, e de partidos ou grupos simpáticos ao seu programa, torna imperativo que eles saibam lutar contra o imperialismo e todas as agências pequeno-burguesas (tais como os grupos nacionalistas ou a burocracia sindical) sem capitular para o stalinismo; e, por outro lado, saber lutar contra o stalinismo (que em última análise é uma agência pequeno-burguesa do imperialismo) sem capitular ao imperialismo.

Esses princípios fundamentais apresentados por Leon Trotsky mantêm toda a validade na política cada vez mais complexa e fluida do mundo atual. De fato, as situações revolucionárias que se abrem em todos os lugares, como previu Trotsky, apenas agora trazem concretude para o que uma vez pode ter aparecido como abstrações remotas não diretamente ligadas à realidade viva do tempo. A verdade é que esses princípios hoje se sustentam com mais força tanto nas análises políticas como na determinação da direção da ação prática.

Revisionismo de Pablo

Esses princípios foram abandonados por Pablo. Ao invés de enfatizar o perigo de uma nova barbárie, ele vê o caminho ao socialismo como algo “irreversível”; todavia, não vê o socialismo para esta geração ou para as próximas. Ao contrário, ele desenvolve a idéia de uma onda “avassaladora” de revoluções que darão origem a Estados Operários “deformados”, do tipo stalinista, que durarão por “séculos”.

Isso revela um grande pessimismo em relação à capacidade da classe trabalhadora, pessimismo que está totalmente de acordo com a ridicularização que ele faz da luta em construir partidos socialistas revolucionários independentes. Em vez de manter como caminho principal, a construção de partidos socialistas revolucionários independentes a partir de meios táticos, Pablo considera a burocracia stalinista — ou, pelo menos, uma de suas seções principais — capaz de mudar sob pressão das massas, podendo chegar a aceitar as “idéias” e o “programa” do trotskysmo. Sob o pretexto de uma “diplomacia” necessária — segundo ele — para aproximar trabalhadores no campo do stalinismo em alguns países como a França, ele agora encobre as traições do stalinismo.

Esse caminho já levou a inúmeras deserções das fileiras do trotskysmo para o campo dos stalinistas. A ruptura pró-stalinista no partido do Ceilão é um aviso aos trotskystas de todo o mundo sobre as trágicas conseqüências das ilusões com o stalinismo que o pablismo promove.

Em outro documento, apresentamos uma detalhada análise do revisionismo de Pablo. Nessa carta, nos limitaremos a algumas provas recentes que mostram no campo fundamental da ação o quão longe foi Pablo em suas conciliações com o stalinismo e o quão grave é o perigo para a existência da IV Internacional.

Com a morte de Stalin, o Kremlin anunciou uma série de concessões na URSS, nenhuma delas de caráter político. Em vez de caracterizá-las como apenas parte de uma manobra destinada a um posterior entrincheiramento da burocracia usurpadora e parte da preparação de um burocrata dirigente para assumir o capote de Stalin, a fração pablista tomou tais concessões como legítimas, apresentando-as como concessões políticas, e até projetou a possibilidade de que a burocracia stalinista “dividisse o poder” com os trabalhadores. (IV Internacional, jan-fev, 1953, p.13).

O conceito de “dividir o poder”, expressado na sua forma mais direta por Clarke, [3] um dos sumo sacerdotes do culto a Pablo, foi indiretamente proclamado como dogma pelo próprio Pablo em uma questão não respondida, mas obviamente fundamental. 

Pablo pergunta: “A liquidação do regime stalinista tomará a forma “de lutas interburocráticas violentas entre os elementos que lutarão para manter o status quo — se não para voltar para trás — e os elementos cada vez mais numerosos lançados pela poderosa pressão das massas?” (IV Internacional mar-abr, 1953, p.39).

Essa linha dá novo conteúdo ao programa trotskysta ortodoxo de revolução política contra a burocracia do Kremlin; ou seja, contra a posição revisionista de que as “idéias” e o “programa” do trotskysmo irão purificar e penetrar a burocracia, ou uma de suas importantes seções, destruindo então o stalinismo de maneira imprevista.

Na Alemanha Oriental, em junho [de 1953], os trabalhadores se levantaram contra governo dominado pelo stalinismo em uma das maiores manifestações na história da Alemanha. Esse foi o primeiro levante proletário de massas contra o stalinismo, desde que este usurpou e consolidou o poder na União Soviética. Como Pablo respondeu a esse notável acontecimento?

Ao invés de expressar claramente as aspirações políticas revolucionárias dos trabalhadores insurgentes da Alemanha Oriental, Pablo encobriu os dirigentes stalinistas contra-revolucionários que mobilizaram tropas soviéticas para derrotar o levante (“os dirigentes soviéticos e aqueles das várias `democracias populares´ e Partidos Comunistas não poderiam continuar falsificando ou ignorando o profundo significado de tais acontecimentos por muito tempo. Eles foram obrigados a continuar no caminho de dar concessões ainda mais amplas e genuínas para evitar o risco de perder para sempre o apoio das massas e para evitar explosões ainda maiores. A partir de agora eles não mais poderão parar no meio do caminho. Serão obrigados a fazer concessões para evitar explosões mais sérias no futuro imediato e, se possível, efetuar uma transição `de maneira fria´ da situação presente para uma situação mais tolerável para as massas.”) (Declaração do Secretariado Internacional da IV Internacional publicado em The Militant, [6] de julho).

Ao invés de exigir a retirada das tropas soviéticas — a única força que sustenta o governo stalinista — Pablo criou a ilusão de que “concessões mais amplas e genuínas” estariam vindo dos gauleiters [4] do Kremlin. Poderia Moscou ter tido melhor apoio enquanto procedia monstruosamente em falsificar o profundo significado daqueles acontecimentos, estigmatizando os trabalhadores em luta de “fascistas” e de “agentes do imperialismo americano”, e abrindo uma onda de bárbara repressão contra eles?

A Greve Geral na França

Em agosto [de 1953], na França, aconteceu a maior greve geral na história do país. Deflagrada pelos próprios trabalhadores, contra a vontade das suas lideranças oficiais, ela apresentou uma das mais favoráveis aberturas na história da classe trabalhadora para o desenvolvimento de uma luta real em direção à tomada do poder. Além dos trabalhadores, os camponeses franceses somaram-se com manifestações, indicando sua grande insatisfação com o governo capitalista.

A liderança oficial, tanto a social-democrata quanto a stalinista, traiu o movimento, fazendo o máximo para conte-lo e evitar o perigo ao capitalismo francês. Seria difícil encontrar, na história das traições, outra mais abominável se a compararmos à oportunidade que ali se apresentava.

Como a fração de Pablo respondeu a esse acontecimento colossal?

Eles consideraram a ação da social-democracia uma traição — mas pelas razões erradas. A traição, diziam eles, consistia na negociação com o governo pelas costas dos stalinistas. Essa traição, no entanto, era secundária, derivava de seu maior crime: a recusa em lançar-se no caminho da tomada do poder.

Quanto aos stalinistas, os pablistas encobriram sua traição e com isso foram cúmplices a ela. A critica mais severa que foram capazes de formular contra o caminho contra-revolucionário dos stalinistas, foi acusá-los de uma “falha” política.

Isso era mentira. Os stalinistas não fizeram uma “falha” política. Sua política consistia em manter o status quo dos interesses da política externa do Kremlin e assim, ajudar a sustentar o capitalismo francês em crise.

Mas isso não era tudo. Até para a educação interna do partido dos trotskystas franceses, Pablo recusou-se a caracterizar a ação stalinista como traidora. Ele afirmou “o papel de freio realizado, em maior ou menor medida, pela direção das organizações tradicionais” — uma traição é um mero “freio”! — “mas também sua capacidade — especialmente da direção stalinistas — em ceder à pressão das massas quando essa pressão se torna poderosa, como foi o caso dessas greves”. (Political Note no. 1) [5]

Poderíamos pensar que isso já é uma conciliação suficiente com o stalinismo por um líder que abandonou o trotskysmo ortodoxo, mas ainda procura encobrir-se sob a IV Internacional. No entanto, Pablo foi ainda mais longe.

Um Panfleto Vergonhoso

Um panfleto de seus seguidores, dirigido aos trabalhadores da fábrica Renault em Paris, declarava que na greve geral as lideranças stalinistas da CGT (maior central sindical na França) “estavam corretas em não apresentar demandas outras que as exigidas pelos trabalhadores”. Isso, lembrando o fato de que os trabalhadores, através de suas ações, estavam reivindicando o governo operário e camponês!

Arbitrariamente separando os sindicatos stalinistas do Partido Comunista — evidência do pensamento mais mecânico ou evidência do projeto deliberado de encobrir os stalinistas? — os pablistas declararam em seu panfleto que, em relação ao significado da greve e de suas perspectivas,

“isso apenas se refere ao sindicato de maneira secundária. A crítica a isso não se aplica à CGT que é uma organização sindical, que deve primeira e principalmente agir como tal, mas sim aos partidos cujo papel era apontar o profundo significado desse movimento e de suas conseqüências” (Panfleto “Às organizações de trabalhadores e aos trabalhadores da Renault”, 3 de setembro de 1953. Assinado por Frank, Mestre e Privas.)

Nessas afirmações, vemos o completo abandono de tudo o que Trotsky nos ensinou sobre o papel e as responsabilidades dos sindicatos na época da agonia mortal do capitalismo.

Portanto, o panfleto pablista “critica” o Partido Comunista Francês por seu “afastamento do caminho”, por simplesmente colocar-se no nível do movimento sindical ao invés de explicar aos trabalhadores que essa greve era uma importante etapa(!) na crise da sociedade Francesa, o prelúdio (!) para uma grande luta de classes, onde o problema do poder dos trabalhadores seria colocado na ordem do dia para salvar o país da armadilha capitalista e abrir o caminho ao socialismo”.

Se os trabalhadores da Renault acreditassem nos pablistas, os burocratas stalinistas franceses traidores seriam culpados apenas de serem sindicalistas, e não de uma traição deliberada à maior greve geral na história da França.

A aprovação de Pablo à política da direção da CGT parece pouco verossímil, mas esse outro fato ainda salta aos olhos: na maior greve geral já vista na França, Pablo brandamente caracteriza como “correta” uma versão francesa da política burguesa de Gomper, a de manter os sindicatos fora da política. E isso em 1953!

Se é incorreto para as lideranças da CGT avançarem reivindicações políticas em consonância com necessidades objetivas, incluindo a formação de um governo operário e camponês, então por que o SWP exige dos atuais Gompers do movimento sindical americano que eles organizem um Partido dos Trabalhadores? Um Partido dos Trabalhadores que objetive colocar um governo operário e camponês no poder nos Estados Unidos?

A aprovação de Pablo parece ainda mais estranha se nos lembrarmos que a liderança da CGT é altamente política. Ao menor sinal do Kremlin, essa liderança não hesita em convocar os trabalhadores para a mais precipitada aventura política. Lembremos, por exemplo, seu papel nos acontecimentos iniciados com as manifestações anti-Ridgway no ano passado. Esses dirigentes sindicais stalinistas não hesitaram em chamar greves para protestar contra a prisão de Duclos, um líder do Partido Comunista.

O fato é que a direção da CGT revelou seu alto caráter político mais uma vez em greves gerais. Com toda a habilidade de anos de traição e jogo duplo, ela deliberadamente tentou eliminar os trabalhadores, sufocar suas iniciativas, impedir de avançarem suas reivindicações políticas. As lideranças sindicais stalinistas foram conscientemente traidoras. E esse caminho de traições é o que Pablo considera “correto”!

E isso não é tudo. Um dos principais objetivos do panfleto pablista é denunciar os trotskystas franceses que atuaram durante a greve na fábrica Renault como genuínos revolucionários. O panfleto nomeia especificamente 2 camaradas que “foram expulsos da IV Internacional e da seção francesa há mais de um ano.” Declara também que esse “grupo foi expulso por razões de indisciplina; e a orientação que seguiram, especialmente durante o último movimento grevista, era oposta àquela realmente defendida pelo PCI (Seção francesa da IV Internacional).” A referência ao “grupo” é, na verdade, à maioria da Seção Francesa da IV Internacional que foi arbitraria e injustamente expulsa por Pablo. [6]

O movimento trotskysta internacional alguma vez ouviu tamanho escândalo como a denúncia de militantes trotskystas a stalinistas e ainda a apresentação de tal fato aos trabalhadores justificando-o como uma traição stalinista abominável?

Deve-se observar que a denúncia pablista desses camaradas aos stalinistas, se dá depois de um veredito do tribunal dos trabalhadores, absolvendo os trotskystas da fábrica da Renault das calúnias que lhes fizeram os stalinistas.

Os Pablistas Americanos

O exame desses acontecimentos mundiais é suficiente, na nossa opinião, para indicar a profundidade da conciliação entre o pablismo e o stalinismo. Mas nós gostaríamos de submeter à análise de todo o movimento trotskysta internacional alguns fatos adicionais.

Por mais de um ano e meio o SWP esteve comprometido em uma luta contra uma tendência revisionista liderada por Cochran e Clarke. A luta contra essa tendência foi uma das mais duras na história do nosso partido. Na verdade, se tratavam das mesmas questões fundamentais que nos dividiram do grupo de Burnham e Shachtman e do grupo de Morrow e Goldman no começo e final da II Guerra Mundial. Essa é uma nova tentativa de revisar e abandonar nosso programa fundamental. Suas posições comprometem a perspectiva da revolução americana, o caráter e o papel do partido revolucionário e seus métodos de organização, e as perspectivas para o movimento trotskysta internacional.

Durante o período pós-guerra, uma poderosa burocracia consolidou-se no movimento operário americano. Essa burocracia apóia-se sobre uma ampla camada de trabalhadores privilegiados, conservadores, que foram “amolecidos” pelas condições da prosperidade da guerra. Essa nova camada privilegiada saiu em grande medida das fileiras dos setores militantes da classe trabalhadora, da mesma geração dos que fundaram a CIO.

A relativa segurança e estabilidade das suas condições de vida paralisaram temporariamente a iniciativa e o espírito de luta daqueles trabalhadores que anteriormente estavam na linha da frente em todas as ações militantes de classe.

O Cochranismo é a manifestação da pressão dessa nova aristocracia operária, com sua ideologia pequeno-burguesa exercida sobre a vanguarda proletária. Os ânimos e tendências das camadas de trabalhadores passivos e relativamente satisfeitos atuam como um mecanismo poderoso transmitindo pressões contrárias para o nosso movimento. O slogan dos Cochranites, “abaixo o velho Trotskysmo”, expressa esse sentimento.

A tendência cochranista vê um grande potencial revolucionário da classe trabalhadora americana como um projeto distante. Eles acusam de “sectária” a análise marxista que revela os processos moleculares de criação de novos setores de luta no proletariado norte-americano.

À medida que há tendências progressistas no interior da classe trabalhadora nos Estados Unidos, eles as vêem apenas nas fileiras ou periferia do stalinismo e entre “sofisticados” políticos dos sindicatos — o restante da classe é considerada irremediavelmente adormecida, e somente o impacto de uma bomba atômica poderia acordá-la.

Sinteticamente, suas posições revelam: falta de confiança na perspectiva da revolução norte-americana; falta de confiança no papel do partido revolucionário em geral e no SWP em particular.

Características do Cochranismo

Como bem sabem todas as seções do movimento internacional a partir de suas duras e difíceis experiências, as pressões que existem são maiores que as que se criaram com a prolongada prosperidade da guerra e com a onda de reação como a que ocorreu nos Estados Unidos. Mas o fator que sustenta os quadros sob as mais difíceis circunstâncias é a total convicção da concretude teórica do nosso movimento, é saber que eles são os meios reais para seguir adiante na tarefa histórica da classe trabalhadora, é compreender que, de uma maneira ou de outra, o destino da humanidade depende do que eles fazem, é a firme convicção de que quaisquer que sejam as circunstâncias momentâneas, a linha principal do desenvolvimento histórico exige a criação de partidos leninistas combativos que resolverão a crise da humanidade a partir da revolução socialista vitoriosa.

Cochranismo é a substituição desta visão de mundo trotskysta ortodoxa pelo cepticismo, improvisações teóricas e especulações jornalísticas. Foi isso que tornou irreconciliável a luta no SWP, no mesmo sentido em que a luta com a oposição pequeno-burguesa em 1939-40 era irreconciliável.

Os Cochranistas manifestaram as seguintes posições ao longo da luta:

1. Desrespeito à tradição do partido e à sua tarefa histórica. Os cochranistas dificilmente perdem uma oportunidade para denegrir, ridicularizar e desprezar os 25 anos de tradição do trotskysmo norte-americano.

2. Uma tendência a substituir a política fundamentada em princípios marxistas por combinações sem princípios contra o “regime” do partido. Assim, a fração cochranista é composta por um bloco de elementos contraditórios. Um grupo, centrado principalmente em Nova Iorque, favorece uma espécie de tática “entrista” no movimento stalinista norteamericano.

Outro grupo, composto por elementos conservadores do sindicato, centrados originalmente em Detroit, considera que pouco será ganho na aliança com os stalinistas. O grupo baseia sua perspectiva revisionista em uma super-estimação da estabilidade e duração do poder da nova burocracia operária.

Também se vêem atraídos pelos cochranistas indivíduos cansados que não mais podem suportar a pressão das condições adversas atuais e que estão buscando uma justificativa plausível para afastarem-se para a inatividade.

O cimento que une este bloco sem princípios é a comum hostilidade ao trotskysmo ortodoxo.

3. Uma tendência a afastar do partido aquilo que deve ser nosso principal campo de luta na América, os trabalhadores politicamente adormecidos das grandes indústrias. Os cochranistas, de fato, eliminaram do programa as palavras de ordem e reivindicações transitórias as quais o SWP tem usado como ponte a esses trabalhadores e argumentam ainda que a maioria que permanece nesse caminho está se adaptando ao atraso dos trabalhadores.

4. Uma convicção de que se deveria descartar toda a possibilidade da classe trabalhadora norte-americana avançar em oposição radical ao imperialismo norte-americano antes da III Guerra Mundial.

5. Uma absurda teorização experimental com o stalinismo de “esquerda” que se reduz à extravagante crença de que os stalinistas “já não podem mais trair”, de que o stalinismo inclui um lado revolucionário que torna possível aos stalinistas liderarem uma revolução nos Estados Unidos, no processo no qual eles absorveriam “idéias” trotskystas, de tal maneira que a revolução eventualmente “entraria para o caminho correto”.

6. Adaptação ao stalinismo diante dos novos acontecimentos. Eles apóiam e defendem a conciliação com o stalinismo baseados na interpretação de Pablo sobre a queda de Béria [7] e as conseguintes desobstruções na URSS. Eles repetem todos os argumentos pablistas que encobrem o papel contra-revolucionário do stalinismo no grande levantamento dos trabalhadores da Alemanha Oriental e na Greve Geral na França. Eles chegam a interpretar a aproximação do stalinismo norte-americano com o Partido Democrata como uma mera “oscilação” à direita dentro de um “processo de esquerdização”.

7. Desprezo pelas tradições do leninismo em relação à organização. Durante algum tempo eles tentaram implementar um “poder dual” no partido. Quando foram rechaçados pela esmagadora maioria do partido na Plenária de Maio de 1953, eles aceitaram por escrito submeter-se à decisão da maioria e à linha política tal como fora decidido na Plenária. Posteriormente romperam o acordo renovando sua sabotagem fracionista às ações do partido sobre bases mais febris e histéricas.

O cochranismo, cujas principais características mencionamos acima, nunca foi mais que uma fraca minoria no partido. Não teria tido mais que uma insignificante e fraca expressão de pessimismo, se não tivesse a ajuda e apoio de Pablo por trás das lideranças do partido.

A ajuda e apoio secretos dados por Pablo foram desmascarados logo depois da nossa Plenária de Maio, e desde então, Pablo vem colaborando abertamente com a fração revisionista no nosso partido, sendo inspirador da sua campanha de sabotagem das finanças do partido, destruição do trabalho do partido e da preparação para uma ruptura.

A fração Pablo-Cochran, por fim, culminou sua conduta desleal em um boicote organizado à celebração do 25º Aniversário do Partido, que se realizou em Nova Iorque, combinada com uma manifestação para a campanha às eleições municipais de Nova Iorque, que finalmente foram canceladas.

A ação traidora e de quebrar a greve constituiu, de fato, uma manifestação organizada contra a luta de 25 anos do trotskysmo norte-americano e, ao mesmo tempo, um ato de apoio direto ao stalinismo, que havia expulsado os núcleos iniciadores do trotskysmo norte-americano em 1928.

O boicote organizado a esse encontro foi, de fato, uma demonstração contra a campanha do SWP nas eleições municipais de Nova Iorque.

Todos os que participaram deste ato traidor anti-partido, obviamente consumaram a ruptura com o partido, a qual vinham planejando há muito tempo e perderam o direito de fazer parte do nosso partido.

Em um reconhecimento formal desse fato, a Plenária do 25o Aniversário do SWP expulsou os membros do Comitê Nacional que organizaram o boicote, e declarou que todos os membros da fração Pablo-Cochran que participaram dessa ação traidora e de quebra da greve ou que se negaram a repudiar esses atos, colocavam-se, por isso, fora das fileiras do SWP.

Métodos do Comintern [8]

O jogo duplo de Pablo ao apresentar uma face à liderança do SWP enquanto secretamente colaborava com a tendência revisionista cochranista é um método que está fora da tradição do trotskysmo. Mas existe uma tradição à qual ela pertence — ao stalinismo. Tais instrumentos, usados pelo Kremlin, são os mesmo usados para corromper a Internacional Comunista. Muitos de nós experimentamos isso no período de 1923-1928.

A evidência agora é clara de que aquela forma de atuação não é uma aberração isolada por parte de Pablo. Um padrão consistente aparece.

Por exemplo, em uma das principais seções européias da IV Internacinal, um destacado dirigente do partido recebeu uma ordem de Pablo, segundo a qual ele deveria conduzir-se como alguém que “defende até o 4o Congresso Internacional, a linha e a disciplina da IV Internacional”. Junto a esse ultimato, Pablo anunciava represálias àqueles que não obedecessem às ordens. [9]

A “maioria” a que Pablo se refere é simplesmente a modesta etiqueta que ele coloca sobre si mesmo e sobre a pequena minoria hipnotizada pelas suas novidades revisionistas. A nova linha de Pablo está em violenta contradição com o programa fundamental do trotskysmo e está apenas começando a ser discutida em muitas partes do movimento trotskysta internacional. Não havendo sido sustentada por qualquer organização trotskysta, ela não constitui a linha oficial aprovada da IV Internacional.

Os primeiros informes que temos recebido indicam a indignação que provoca sua vontade arbitrária de introduzir à força suas concepções revisionistas na organização em nível mundial, sem esperar por uma discussão ou votação. Já temos informações suficientes para afirmar que a IV Internacional está decidida a rechaçar a linha de Pablo por esmagadora maioria.

A exigência autocrática de Pablo a um dirigente da IV Internacional, de abster-se de criticar a linha política revisionista de Pablo, já é ruim o suficiente. Mas Pablo não para por aí. Enquanto tenta silenciar esse líder e impedi-lo de participar de uma discussão na qual a militância se beneficiaria de sua experiência, conhecimento e percepção, Pablo continuava a intervir organizativamente, tratando de consolidar uma fração minoritária revisionista que levasse adiante a luta pela liderança da seção.

Esse fato é típico da asquerosa tradição do Comintern, quando este caiu em degeneração sob a influência do stalinismo. Se não houvesse outro problema como este, seria necessário vencer o pablismo até o final para salvar a IV Internacional da corrupção interna.

Tais táticas têm um objetivo claro. Fazem parte da preparação de um golpe pela minoria pablista. Utilizando o controle administrativo de Pablo, eles pretendem impor sua linha revisionista na IV Internacional e onde encontrarem resistência, provocarem rupturas e expulsões.

O método organizativo stalinista começou, como podemos perceber agora, com o brutal abuso do controle administrativo por Pablo na sua campanha contra a maioria da seção francesa da IV Internacional, há mais de um ano e meio.

Por ordem do Secretariado Internacional, a maioria eleita da seção francesa foi proibida de exercer seus direitos de liderar o trabalho político e de propaganda do partido. Em vez disso, o Bureau Político e a imprensa foram colocados sob o controle de uma minoria, a partir do modelo cominternista de uma “comissão paritária”.

Nesse momento, nós desaprovamos profundamente essa ação arbitrária na qual uma minoria foi usada para contrariar e derrubar arbitrariamente uma maioria. [10] Assim que soubemos disso, nós comunicamos nosso protesto a Pablo. No entanto, nós devemos admitir que cometemos um erro em não tomar atitude mais vigorosa. Esse erro foi devido a uma insuficiente apreciação da nossa parte dos reais problemas que estavam envolvidos. Pensamos que as diferenças entre Pablo e a seção francesa eram táticas, o que nos levou para o lado de Pablo, apesar de nossa desconfiança quanto aos seus procedimentos organizativos, quando, depois de meses de uma luta destruidora de frações, a maioria foi expulsa.

No fundo, as diferenças eram de caráter programático. O fato é que os camaradas franceses da maioria viram o que estava acontecendo de maneira mais clara do que vimos. O 8º Congresso do seu partido declarou que “um grave perigo ameaça o futuro e inclusive a existência da IV Internacional… Concepções revisionistas, produto da covardia e do impressionismo pequeno-burguês apareceram no interior da sua direção. A fragilidade ainda grande da IV Internacional, separada da vida de suas seções, facilitaram momentaneamente a instalação de um sistema de domínio pessoal, que baseia a si mesmo e os seus métodos anti-democráticos no revisionismo do programa trotskysta e no abandono dos método marxista.” (La Verité, 18 de setembro de 1952)

Toda a situação francesa deve ser reexaminada à luz dos acontecimentos subseqüentes. A atuação da maioria da seção francesa na greve geral demonstrou de maneira decisiva que eles, sim, sabem carregar os princípios fundamentais do trotskysmo ortodoxo. A seção francesa da IV Internacional foi injustamente expulsa. A maioria francesa, agrupada em torno do periódico La Verité, são os verdadeiros trotskystas da França, e o SWP os reconhece abertamente como tais.

Particularmente repugnante é a declaração caluniosa de Pablo sobre as posições políticas da seção chinesa da IV Internacional. A fração pablista os apresentou como “sectários” e “desertores da revolução”.

Contrariamente à impressão deliberadamente criada pela fração de Pablo, os trotskystas chineses atuaram como verdadeiros representantes do proletariado chinês. Eles foram escolhidos como vítimas do regime de Mao, da mesma maneira que Stalin condenou à morte toda a geração de bolcheviques leninistas na URSS, imitando os Noskes e Scheidemanns alemães que decidiram executar os Luxemburgos e Liebknechts da revolução de 1918. [11] Mas a linha de Pablo, de conciliação com o stalinismo, a leva inevitavelmente a defender o regime de Mao, enquanto ataca a posição principista de nossos camaradas chineses.

O Que Fazer

Resumindo: o abismo que separa o revisionismo pablista do trotskysmo ortodoxo é tão profundo que nenhum compromisso político ou organizativo é possível. A fração de Pablo demonstrou que não permitirá decisões democráticas que reflitam a opinião da maioria. Eles exigem a completa submissão à sua política criminosa. Eles estão decididos a eliminar da IV Internacional todos os trotskystas ortodoxos, a calá-los ou atar-lhes as mãos.

Seu plano tem sido introduzir a conciliação com o stalinismo de forma fragmentada e, ao mesmo tempo, livrar-se daqueles que vêem o que se passa e levantam objeções. Esta é a explicação da estranha ambigüidade de muitas das formulações e evasões diplomáticas pablistas.

Até agora, Pablo tem tido um certo êxito em suas manobras maquiavélicas e sem princípios. Mas chega-se a um ponto em que há uma mudança qualitativa. As questões políticas se apresentam liquidando as manobras, e a luta é agora um enfrentamento aberto.

Se pudermos dar um conselho às seções da IV Internacional, da nossa posição forçada de estarmos fora das filas, [12] pensamos que é o momento de atuar, e atuar de maneira definitiva. É chegada a hora da maioria da IV Internacional mostrar sua vontade contra a usurpação da autoridade feita por Pablo.

Eles deveriam, além disso, salvar a direção da IV Internacional retirando Pablo e seus agentes de seus cargos, e levando para lá, quadros que têm demonstrado na ação que sabem conduzir o trotskysmo ortodoxo e manter o movimento no caminho correto tanto do ponto de vista político como organizativo.

Saudações fraternas trotskystas,
Comitê Nacional do SWP.

Notas:

(1) A Letter to Trotskyists Throughout the World. A carta foi publicada em 16 de novembro de 1953, no The Militant. Ficou conhecida como “A carta de Cannon de 1953”. Este documento tornou-se o símbolo do trotsquismo ortodoxo. Documento escrito em 1953, que serviu de base para a fundação do Comitê Internacional da Quarta Internacional. Foi a partir deste documento, defensor do trotsquismo ortodoxo, que se iniciou a luta histórica contra as teorias revisionistas de Michel Pablo e Ernest Mandel. A carta de 1953 ainda deve ser lida por todos aqueles que querem conhecer os princípios da luta histórica do trotsquismo contra a burocracia stalinista e contra o revisionismo pablista.

(2) Devido à repressão da “democracia” americana dos anos 50, o SWP não se podia declarar filiado à IV Internacional.

(3) Dissidente do SWP que em 1953 sabotava o trabalho da seção americana.

(4) Delegacias de repressão e controle nazistas.

(5) Ou seja, a noção de “freio” encobria aquilo que era, na verdade, traição!

(6) Trata-se dos militantes comandados por Pierre Lambert.

(7) Dirigente da burocracia que assumiu o poder na URSS, após a morte de Stálin.

(8) Ou seja, refere-se aos métodos burocráticos da III Internacional corrompida pelo stalinismo.

(9) Referência ao ultimato dado a Gerry Healy, líder da seção inglesa.

(10) A maioria era liderada por Lambert.

(11) Referência aos líderes da social-democracia alemã que colaboraram na repressão e assassinato dos revolucionários alemães, Rosa Luxemburgo e Liebknecht.

(12) Mais uma referência à situação delicada da seção americana que não podia se declarar como pertencente à IV Internacional, devido à repressão da “democracia” americana.

A Vitória do CNT/OTAN na Líbia e o Centrismo do Coletivo Lenin

Derrota para os Trabalhadores na Líbia
Combater o Governo do Conselho Nacional e o Imperialismo!

Setembro de 2011

Kadafi foi um tirano que oprimiu a classe trabalhadora da Líbia por mais de quatro décadas. Sob a fachada de algumas nacionalizações progressivas contra a burguesia imperialista na década de 1970, enganou os operários e oprimidos e garantiu a manutenção do capitalismo no país sob as formas mais brutais. Após a década de 1980, alargou seus laços com os países centrais do capitalismo, sobretudo a Itália, e removeu passo a passo até as pequenas medidas progressivas que havia realizado. Apesar disso, sua derrota por uma coalizão dominada por setores da burguesia nacional – o Conselho Nacional de Transição (incluindo líderes tribais, monarquistas e militares anteriormente aliados a Kadafi) – e o poderio militar da OTAN (organização militar dos países imperialistas) foi uma derrota para os trabalhadores.

Os trabalhadores não poderiam ter nenhuma segurança com Kadafi. Era necessário preparar a cada momento a sua derrubada revolucionária, que poderia criar um governo operário revolucionário de liberdade, encerrando as condições de pobreza e exploração do povo, e de igualdade, principalmente para as mulheres de um país que era, e continua sendo, marcado pela opressão. Entretanto, e apesar das ilusões de muitos dentro e fora da esquerda, o governo que agora vai dominar a Líbia nada tem a ver com isso, muito pelo contrário. É um governo com laços próximos aos países que exploram a Líbia, um governo que não mediu esforços (sacrificando a população) em busca de seus próprios interesses mesquinhos de exploração dos trabalhadores, quando chamou a OTAN a intervir militarmente no país. A vitória do CNT sob a tutela da OTAN vai intensificar a exploração imperialista sobre a Líbia e manter a opressão às mulheres e outros setores.

Era papel dos revolucionários na Líbia e nos outros países desde o começo quebrar as ilusões nesse Conselho. O movimento de massas que ele passou a dominar deveria encarar a sua liderança, programa e trajetória reacionários – concluindo, assim, que as promessas do CNT por democracia não mereciam confiança alguma. Os trabalhadores não deveriam lutar do mesmo lado que os setores militares, tribais e monarquistas que tomaram metade do país e se enfrentavam com Kadafi desde fevereiro. Apoio ao CNT quando este tomou o poder em Bengasi (e outras cidades do Leste do país) seria uma traição contra a classe proletária. Essa era uma guerra civil entre frações equivalentes da burguesia líbia, cada uma dominando parte do país e onde a defesa da classe trabalhadora não estava associada a tomar o mesmo lado militar de algum dos combatentes. Era uma luta, portanto, que não dizia respeito aos proletários, os quais deveriam lutar por uma via classista.

Com o apoio militar dos países imperialistas ao Conselho Nacional Transitório a partir de meados de março, a situação mudou. Tornou-se necessário formar um bloco tático entre o movimento dos trabalhadores e os setores burgueses do governo de Kadafi que fossem contra o ataque imperialista, que tinha o interesse de impor uma opressão qualitativamente maior sobre os trabalhadores do país. O objetivo imediato dos revolucionários era vencer o bloco CNT/OTAN, mas isso não mudava a sua perspectiva de preparar a derrubada de Kadafi ao mesmo tempo em que a ameaça imperialista era vencida. Em suas táticas, os revolucionários jamais devem colocar de lado a luta pelo socialismo. Os trabalhadores revolucionários na Líbia deveriam dizer: “Não vamos deixar os imperialistas derrubarem Kadafi, porque isso é tarefa nossa!”.

Os setores amplos da esquerda que consideram a vitória do CNT (em razão de uma base de massas possuir ilusões em suas promessas) como uma vitória dos trabalhadores, enganam cruelmente a vanguarda que se reivindica revolucionária. Como se não fosse suficiente dar apoio a uma insurreição liderada pela burguesia reacionária da Líbia, esses demagogos ignoram o fato de que essa “vitória dos trabalhadores” foi apoiada pelo imperialismo. Invertem a lógica da luta de classes e passam a defender que o imperialismo pode ser um aliado na luta dos trabalhadores. Os revolucionários, porém, tem a tarefa de dizer a verdade por mais amarga que ela possa ser. Somente assim podemos ser coerentes diante das tarefas que se colocam diante de nós na luta pela revolução proletária.


 ***


Na época em que a guerra civil estourou, assim como no início dos ataques aéreos da OTAN, fomos incapacitados de dar uma resposta pública coerente sobre este tema porque estávamos engajados em uma luta fracional com a maioria do Coletivo Lenin (confira nossa carta de ruptura O Coletivo Lenin é Destruído pelo Revisionismo!), que teve uma posição traiçoeira diante destes eventos. Como verdadeiros leninistas, respeitamos o princípio do centralismo democrático e discutimos nossas posições apenas internamente. Agora temos a oportunidade de publicar alguns trechos de nossa polêmica interna, que denunciam a degeneração do Coletivo Lenin enquanto organização revolucionária.

A posição atual do Coletivo Lenin, após a ocupação imperialista, é correta no fundamental, mas pode ser usada para tentar disfarçar a adaptação centrista que o grupo teve diante da guerra civil em seus primeiros momentos. Naquela época, o atual líder do Coletivo, Paulo Araújo, tinha amplas ilusões com o CNT, defendendo que ele tinha “formas democráticas” e que iria garantir a democracia para o povo líbio. Paulo Araújo defendeu que era necessário apoiar a derrubada de Kadafi pelo CNT e que era necessário tomar o lado militar do governo de Bengasi. Ignorava, portanto, o programa, trajetória e liderança do movimento liderado pelo Conselho e o fato de que sua dominação de metade do país era um regime inimigo dos proletários, além do fato de este governo chamar pela “ajuda” da OTAN.

Curiosamente, depois da ocupação imperialista chamada pelo CNT, o Coletivo Lenin deu um giro de 180 graus, passando para o outro extremo da barricada. Antes, Paulo Araújo chamava os trabalhadores a darem seu sangue por líderes traidores que supostamente lhes dariam democracia para, logo depois, dizer que era necessário lutar contra estes “democratas” armados com o fuzil imperialista. Esse é um típico ziguezague centrista baseado em apoiar um movimento que conta com certa popularidade enquanto se ignora o seu programa e liderança burgueses para depois, quando a liderança do movimento executa seu programa, “descobrir ingenuamente” que ele tem um conteúdo reacionário.

Para clarificar a posição do Reagrupamento Revolucionário, pautada na elaboração de nossa tendência dentro do Coletivo Lenin, estamos publicando trechos de um documento interno que escrevemos na época. O documento intitulado “Dilma e Líbia: Dois Sintomas de Uma Doença Revisionista” fazia um paralelo entre a posição de Paulo Araújo no conflito líbio e sua posição de “apoio crítico” a Dilma nas eleições brasileiras de 2010. Para facilitar a compreensão do conteúdo do texto, limitamos nossa publicação a trechos que dizem respeito à guerra civil líbia, fazendo pequenas modificações indicadas entre colchetes. É importante ressaltar que o texto discute a posição do Coletivo Lenin no momento anterior aos ataques aéreos da OTAN em apoio ao CNT e com o objetivo de estabilizar a situação no país. Nossas perspectivas com relação ao CNT, e os erros do Coletivo Lenin, podem ser facilmente comprovados pelo curso posterior dos acontecimentos.

***

O Coletivo Lenin na Líbia e as Tarefas dos Revolucionários

Os trechos a seguir foram extraídos do documento interno “Dilma e Líbia: Dois Sintomas de uma Doença Revisionista”, publicado em abril de 2011 pela tendência de Rodolfo Kaleb e Leandro Torres no Coletivo Lenin. As fontes consultadas para a primeira parte do texto foram o site do governo do Conselho Nacional Transitório líbio (que continha todas as declarações públicas feitas por este até então) e também a versão em inglês da Wikipédia.

Um resumo dos acontecimentos na Líbia

Antes de partir para a interpretação das posições políticas é necessário conhecer concretamente [a trajetória] dos fatos. Esse é um componente fundamental do materialismo histórico e portanto base de qualquer análise marxista. Em fins de janeiro houve os primeiros chamados a uma rebelião contra Kadafi após a queda dos ditadores na Tunísia e Egito. Os confrontos começaram em 15 de fevereiro com uma passeata de 500 pessoas em frente ao quartel policial de Bengasi, que foi reprimida violentamente. O processo se alastra por outras três cidades do leste do país. Também em 15 de fevereiro acontece o primeiro encontro para organizar a Oposição – a Conferência Nacional da Oposição Líbia, que chama uma manifestação para o dia 17 de fevereiro.
Forma-se o exército da Oposição a partir de deserções das forças armadas e derrubam-se vários quartéis policiais e do exército na região leste do país no dia 17, “coincidindo” com o dia das manifestações. A oposição também toma controle dos meios de comunicação das cidades tomadas e começa a ganhar largo apoio dos setores populares. No dia 18 já estão sob controle da Oposição Bengasi e outras cidades menores no leste. O movimento oposicionista é composto por muitos setores populares, além de professores, estudantes e petroleiros. Kadafi acusa os rebeldes de receberem ajuda da Al Qaeda. A OTAN diz que houve indícios de atividade da Al Qaeda no exército da Oposição, sem confirmar as acusações. A Oposição negou o fato.
Em 20 [de fevereiro] muitas cidades do leste do país, inclusive Bengasi (segunda cidade do país, importante para o transporte marítimo), estabelecem um governo provisório. Desde essa data, segundo a Oposição, Kadafi tem ordenado para que o exército atirasse contra protestos com o objetivo de dizimar os manifestantes (o número de mortos é completamente incerto, com várias fontes dizendo números muito distintos entre 1000 e 8000 mortos). Também há relatos inúmeros da contratação de exércitos de mercenários nos países próximos para perseguir os manifestantes.
O embrião do CNT se reúne em 24 de fevereiro para organizar o Conselho, ato que se conclui no dia 27. É formado por 31 membros (líderes militares, líderes tribais, empresários e acadêmicos). Seu presidente é Mustafa Abdul Jalil, antigo ministro da justiça de Kadafi. Já nessa primeira reunião, muitos dos líderes do CNT pediram por uma intervenção das Nações Unidas. A importante cidade de Zawiyah (cidade estratégica a meio caminho entre Trípoli e Bengasi) é tomada em 24 de fevereiro. As forças do exército de Kadafi tentam retomar a cidade e são repelidas em 28 de fevereiro. Em 26 de fevereiro a oposição ganha mais duas cidades importantes.
O CNT surge em 27 de fevereiro com o objetivo de ser a “face política da revolução” segundo ele próprio. Em 5 de março ele se intitula o “único representante de toda a Líbia”, chamando o Estado de “República Líbia”. Ganhariam assentos no CNT apenas as cidades e vilas que ficassem sob controle da Oposição. As identidades dos 31 membros não foram reveladas, apenas o presidente, o porta-voz e dois cargos públicos. O exército do CNT se chama “Exército do Povo Líbio” e é um racha das forças armadas líbias, utilizando as armas pesadas e os tanques capturados. O CNT promete eleições livres e uma nova constituição para o país em suas declarações de 5 de março.
Em 6 de março o jogo começa a virar e Kadafi recupera algumas cidades perdidas, além de parar o avanço do CNT pelo país. Em 10 de março, Kadafi recupera Zawiyah. Em 17 de março a ONU aprova um ultimato exigindo cessar fogo do governo de Kadafi. Em 18 de março Kadafi aceita o cessar fogo mas ocorrem relatos de combate contra o exército da Oposição, com os soldados do governo ainda se aproximando de Bengasi.
A resolução 1.973 da ONU estabelece a criação de uma zona de exclusão aérea (que significa destruir as baterias antiaéreas para permitir tráfego de qualquer aeronave pelo espaço aéreo líbio). Em 19 de março começaram os bombardeios realizados por Inglaterra, França, Itália e Estados Unidos. A ação militar da França se concentrou em proteger as cidades dominadas pela oposição, com o envio de 19 caças da força aérea francesa. Até 22 de março 161 mísseis já haviam sido lançados contra alvos militares do governo líbio por aviões comandados pela OTAN. As forças da OTAN foram bem sucedidas em parar o avanço das forças leais a Kadafi, mas não conseguiram tomar o país e nem permitir o avanço da Oposição. Desde então há especulações sobre um cessar fogo e possíveis acordos entre o governo e a Oposição diante do conflito estagnado.

[CNT: “Defensores da democracia”?]

No caso líbio, a confiança do camarada Paulo na boa vontade da burguesia se estendeu a uma formação inteiramente burguesa, ainda que o camarada Paulo tenha achado em certo momento que era uma frente popular (opinião essa que, por sua “ousadia” organizativa [de postar uma nota no blog da organização sem consultar os demais membros ou a Direção Executiva], rendeu ao Coletivo Lenin uma crítica mais do que merecida na imprensa da esquerda). Em um email sobre a questão líbia, Paulo diz:

O que os trabalhadores teriam a ganhar com o CNT? Ora, a democracia burguesa! Essa é a verdadeira polêmica. O companheiro [Rodolfo] subestima a reivindicação democrática e as formas democráticas mantidas pelo CNT”

Achávamos que democracia era uma promessa do Conselho Nacional. Promessa essa que um marxista deveria ouvir e em nenhum momento acreditar como verdadeira. Como disse certa vez a Tendência Bolchevique, quando [era] uma organização revolucionária:

É um axioma do marxismo que os movimentos sociais e políticos devem ser julgados por sua liderança, programa, trajetória e composição de classe — não pelas ilusões da base. As mobilizações de massas contra o Xá do Irã em 1978-79 fornecem um caso exemplar. Apesar das esperanças e das intenções de muitos milhares de trabalhadores iranianos e esquerdistas que participaram (assim como as correntes pseudo-marxistas diversas que saudaram este suposto movimento ”objetivamente revolucionário”), o fato era que a direção estava firmemente nas mãos dos reacionários teocráticos ao redor do Aiatolá Khomeini. A contradição objetiva entre a base e o topo indica que uma tarefa chave dos marxistas era lutar para destruir as ilusões que as massas tinham no resultado final de um movimento com tal liderança e programa, levando os trabalhadores à oposição aos mulás, assim como ao Xá.” (Teses Sobre o Solidariedade, 1986).

Os marxistas não deveriam se basear nas promessas do movimento do Conselho, nem nas ilusões da sua base, que são justamente as de que o Conselho vai lhes dar democracia. Mas são nessas ilusões que o camarada Paulo parece se basear. Os marxistas deveriam avaliar a liderança (burguesia pró-imperialista, líderes tribais [reacionários] e chefes militares desertores), o seu programa (república democrática, pedido de ajuda ao imperialismo), a sua trajetória (formação no dia 15/02, tomada do poder de várias cidades no dia 18/02, consolidação em sua forma atual no dia 27/02 e continuidade da sua luta armada pelo poder de Estado, pedindo ajuda ao imperialismo, recebendo-a no dia 20/03) e composição [da base] (setores populares urbanos, setores de classe média e ao menos um setor operário, os petroleiros).
A conclusão que os marxistas devem tirar dessa análise é precisamente que o Conselho Nacional não pode ser um defensor dos direitos democráticos. Existe uma linha que separa “lutar por direitos democráticos” de “lutar por democracia burguesa”. Essa linha é completamente apagada pelo camarada Paulo.
Os marxistas defendem as liberdades democráticas e lutam por elas no sistema capitalista. Essas liberdades garantem ao proletariado melhores condições de se organizar e lutar pela sua emancipação. Por isso os revolucionários estão presentes nos movimentos que lutam por direitos democráticos, sempre que possível integrando-os. Em todos os momentos, defendemos que os revolucionários na Líbia deveriam levantar bandeiras democráticas e que deveriam intervir em todos os espaços possíveis influenciados politicamente pela Oposição líbia.
Isso é muito diferente de conceder ao Conselho a tarefa, ou melhor, a capacidade de garantir esses direitos democráticos. Não devemos dizer, como faz o camarada Paulo, que ajudar a “República Líbia”, que foi como o Conselho Nacional chamou o seu Estado, a se consolidar é lutar pelos direitos democráticos. Vamos lembrar que, apesar das suas promessas, o Conselho é composto pelos militares que por décadas estiveram com a ditadura. Ele é liderado também pelos serviçais do imperialismo e pelos líderes religiosos que apoiavam a monarquia líbia. Que o próprio presidente do Conselho foi o ministro da Justiça de Kadafi por mais de 20 anos!
Dizer que a vantagem em colocar o Conselho Nacional no poder é obter democracia é uma contradição incrível. É estender a luta por liberdades democráticas ao apoio ao governo do Conselho, ou seja, acreditar que apoiar militarmente o Conselho é lutar pelos direitos democráticos. O Conselho Nacional é inimigo dos direitos democráticos da classe operária! Se ele organizar eleições, vai ser só depois de ter certeza que a classe [trabalhadora] foi politicamente controlada e esmagada (o que o imperialismo já está fazendo, com o seu apoio) e com certeza haverá restrições inúmeras de direitos, manutenção dos aparatos de repressão, etc.

[“Frente única contra Kadafi”?]

A frente única é uma tática com que revolucionários procuram se aproximar de formações reformistas ou centristas para ‘jogar a base contra a direção’, quando há uma necessidade sentida e urgente de ação unida por parte das bases. É possível entrar em acordos de frente única com formações pequeno-burguesas ou burguesas, onde há um acordo episódico sobre um assunto particular, e onde é do interesse da classe trabalhadora (por exemplo, os bolcheviques fizeram frente única com Kerensky contra Kornilov). A frente única é uma tática que não só é projetada para realizar o objetivo comum, mas também demonstrar, na prática, a superioridade do programa revolucionário, e assim ganhar mais influência e aderentes para a organização de vanguarda.” (Programa do Coletivo Lênin)

Na questão Líbia, o camarada Paulo supõe a existência de uma “frente única contra Kadafi”, não em torno de ações práticas que fossem vantajosas para a classe operária, mas sim com o objetivo de colocar o Conselho Nacional no poder. Isso tem que ficar claro para todos: desde o dia 18 de fevereiro o Conselho controla cidades do país e luta para se consolidar como o representante de toda a burguesia na Líbia. Nisso consiste a luta do Conselho contra Kadafi. Apoiar esse movimento militarmente não pode ter outro significado que não ajudar o Conselho a se consolidar.
Os revolucionários deveriam lutar por direitos democráticos independente do governo do Conselho Nacional, que é o inimigo desses direitos. Isso significa não apoiar as investidas militares do Conselho Nacional contra Kadafi. Mas quando se defende “dar apoio militar ao Conselho” é justamente essas investidas que se está apoiando. Cria-se a ideia de que se pode ter uma “frente única” quando o objetivo dessa frente não é obter direitos democráticos, mas colocar o Conselho Nacional no poder. Os revolucionários só entram em frentes únicas “onde é do interesse da classe trabalhadora”. Se acha que é do interesse da classe trabalhadora colocar o Conselho Nacional no poder, então o camarada Paulo deveria expor de forma clara a sua tese, coisa que ele não fez nas reuniões.
Só pode-se conceber uma “frente única contra Kadafi” em relação ao que acontece hoje na Líbia se (1) considera-se que a guerra civil é uma luta por direitos democráticos, e não uma luta entre interesses burgueses (onde o CNT seria o “defensor do lado democrático”) e que, portanto, (2) o Conselho Nacional é o representante dos direitos democráticos na Líbia e que é “tático” para os revolucionários colocar esse governo burguês no poder.
Os revolucionários fazem frente única para lutar por direitos democráticos, onde tentam demonstrar que os partidos burgueses são incapazes de cumprir essas tarefas de maneira consequente. Já apoiar a tentativa do governo do Conselho de se consolidar não é uma “frente única”, mas sim um liquidacionismo. Assim se desmancha a retórica revisionista. Usa-se de um termo revolucionário – frente única – para apagar completamente o seu conteúdo, para defender que é “tático” para os revolucionários colocar no poder o Conselho Nacional.

[“Apoio aos atos de base”?]

No caso da Líbia, a falsificação do camarada Paulo ganha bases inteiramente concretas. Na proposta de declaração que escreveu sobre a Líbia, o camarada comparou o que acontecia no país com a redemocratização brasileira.

Por isso, é correto lutar pelo fim da ditadura de Kadafi, mesmo se existe um grande setor pró-imperialista na oposição. Os melhores exemplos que conhecemos dessa situação são do Brasil. Primeiro, a luta contra o Estado Novo, em 1945. Na época, o Partido Socialista Revolucionário, a seção brasileira da Quarta Internacional, levantou a palavra de ordem de Abaixo Vargas! Assembleia Constituinte!, mesmo sabendo que o governo era nacionalista e o maior setor da oposição, a UDN, era pró-americana, tendo inclusive apoio dos militares. […]”

O segundo exemplo foi o movimento pelas Diretas Já! Por acaso alguém nega que o MDB era pró-imperialista? E, por acaso, alguém acha que o caráter pró-imperialista do MDB era motivo para estar fora do movimento de massas que era dirigido pelos setores burgueses desse partido?” (Proposta de nota de Paulo sobre a Líbia).

Enquanto os trotskistas brasileiros estavam num movimento por direitos democráticos junto com setores da burguesia, não houve dúvidas para os trotskistas quando essa burguesia ascendeu ao poder: eles eram oposição e não ajudaram esse governo “democrático” (que reciclou todos os aparatos da ditadura) a se consolidar. Dizer que o que acontece na Líbia é um simples movimento é falsificar a sua natureza. De fato, a declaração sobre a Líbia em momento algum faz menção ao fato de o Conselho Nacional ter inúmeras cidades sob seu domínio na hora de avaliar a política correta. Em outro email, o camarada Paulo fez essa mesma falsificação se referindo ao Conselho Nacional como uma liderança em atos de rua:

A grande confusão do companheiro [Rodolfo] é que deveríamos ‘intervir’ nas mobilizações da oposição, mas sem apoiá-las. Aí existe um duplo erro: primeiro, nunca apoiamos as direções das mobilizações, por mais progressivas que forem, se as direções não forem revolucionárias. Não apoiar a direção não significa que não era para apoiar os atos, mesmo criticando as suas palavras de ordem.”

Nossa preocupação aqui não é avaliar a tática correta para os atos [de rua]. Acreditamos que os revolucionários deveriam intervir neles e disputar a consciência dos trabalhadores envolvidos. Mas não se toma o poder através de atos. Para tomar o poder são necessários armas e elementos conscientes. É a nossa posição diante do governo de Bengasi, e se vamos ou não ajudar esse governo a se consolidar, que está em jogo aqui. Em outubro de 1917, mencheviques e socialistas-revolucionários participavam dos atos. Eles participavam até mesmo dos sovietes. No entanto, diante da tomada do Palácio de Inverno e de algumas poucas cidades, nenhum deles teve dúvida: todos foram contra e nenhum deles trabalhou para consolidar o Estado operário soviético.
Da mesma forma, existe uma diferença brutal entre intervir em movimentos de massas com ilusões numa direção reacionária e apoiar essas direções reacionárias na sua tentativa de tomar o poder. Como exemplo, citamos a política da Tendência Bolchevique [que o Coletivo Lênin reivindicava como uma aplicação do defensismo revolucionário] na tentativa do [reacionário] Solidariedade [polonês] de tomar o poder em 1981.   

A intenção contrarrevolucionária da liderança do Solidariedade inequivocamente foi revelada (para os que quiseram ver) pelos acontecimentos do período imediatamente anterior ao contragolpe de Jaruzelski:
(a) as tentativas de estender o Solidariedade ao exército e à polícia;
(b) as discussões abertas sobre a necessidade de derrubar o Estado na reunião da direção geral do Solidariedade em Radom, em 3 de dezembro;” 
(c) a reunião de 12 dezembro em Gdansk de líderes do Solidariedade, que propôs ”fazer um plebiscito nacional por conta própria sobre um voto de confiança no General Jaruzelski, e para estabelecer um governo provisório não-comunista e organizar eleições livres” (New York Times, 14 dezembro 1981).”

Uma organização trotskista na Polônia no outono de 1981 teria se oposto intransigentemente ao curso pró-capitalista de Walesa & Cia. enquanto continuasse a intervir em reuniões de massa do Solidariedade nos locais de trabalho, e em cada outra arena onde fosse possível receber uma audiência da classe trabalhadora para cristalizar uma oposição anti-estalinista pró-socialista à direção do Solidariedade.” (Teses Sobre o Solidariedade, ênfase nossa).

Enquanto os revolucionários interviriam na base de massas do Solidariedade, eles não dariam nenhum apoio ao Solidariedade para obter os meios de consolidar um governo capitalista (rachar a polícia e o exército, derrubar o Estado, estabelecer um governo provisório). É exatamente isso que estamos contestando na atual posição do Coletivo Lenin. É claro que os revolucionários deveriam agir diante do que está acontecendo na Líbia. O que está em questão é se apoiar o governo do Conselho Nacional avança ou retrocede a luta por conquistas democráticas para o proletariado.
Na declaração que o camarada Paulo propôs, nem mesmo se coloca nossa posição diante do atual governo de Bengasi. Para nós não há a menor dúvida: deveríamos ser oposição a esse governo e não ter lhe dado nenhum “apoio tático” para se consolidar. Podem até nos perguntar: não iríamos lutar contra Kadafi e por liberdades democráticas? É claro que vamos! Mas entre essas duas coisas existe uma linha divisória que o camarada Paulo cruza de maneira irresponsável. Poderíamos até mesmo organizar uma frente única para resistir aos ataques contra os manifestantes por parte do governo Kadafi. Mas em nenhum momento isso pode ser confundido com dar apoio militar ao governo do Conselho Nacional.
Diante disso, chamamos os camaradas a reconsiderarem a posição aprovada pelo Coletivo Lenin e lutarem ao nosso lado por uma modificação da atual posição.

Arquivo Histórico: Liga Espartaquista e a Autodefesa Operária

Família Negra Ameaçada em Chicago
Regional do UAW Organiza Autodefesa Negra e Operária

Publicado originalmente em abril de 1975 pela Liga Espartaquista (Workers Vanguard número 67). A tradução para o português foi realizada pelo Coletivo Comunista Internacionalista em 2007. Esta versão foi copiada daquela disponível em coletivolenin.org.

Chicago, 18 de abril de 1975 – C. B. Dennis, negro e membro do UAW (Sindicato Unido dos Trabalhadores Automobilísticos), tentou se mudar para o bairro de classe média branca de Broadview. A sua casa foi queimada e apedrejada repetidas vezes. Mas hoje à noite, como em todas as noites desde a semana passada, a casa da família Dennis está sendo protegida por uma auto-defesa inter-racial de seus companheiros sindicalistas. A regional 6 do UAW votou unanimemente, na sua assembléia de domingo, organizar a auto-defesa.


Num momento em que há um aumento dramático do terror racista contra os negros em todo o país, a ação da regional do UAW é um poderoso exemplo do que pode ser feito para parar os ataques noturnos. E esta é a melhor resposta possível para os que pregam a confiança na polícia da burguesia, se escondendo atrás do lamento desesperado: “os trabalhadores não vão defender os negros dos ataques racistas – não existe solução a não ser chamar a polícia”.

Os ataques, que causaram um prejuízo de milhares de dólares à casa, e impediram a família de se mudar, são parte de um padrão de terror contra os negros nos bairros brancos, onde a direita tenta espalhar o ódio racial. Em outra vizinhança, na Zona Sul, quatro famílias negras foram forçadas a viver virtualmente sob estado de sítio, com o Partido Nacional-Socialista do Povo Branco (Nazista) fazendo tudo, menos assumir os ataques.
  
Os primeiros voluntários da regional 6, incluindo o presidente local, Norman Roth, estavam a postos do lado de fora da casa, poucas horas depois da assembléia. C. B. Dennis, que trabalha na manutenção na planta da International Harvester de Melrose Park há 15 anos, foi entrevistado em casa pelo jornal Workers Vanguard [jornal da Liga Espartaquista]. Ele falou que não conseguiu proteção policial adequada.
  
“Eles falaram que iam chegar em vinte minutos. Mas não tem proteção nenhuma” Dennis falou, observando que só acontecem patrulhas de duas em duas horas à noite. “Isto é a melhor coisa que poderíamos fazer”, disse, referindo-se à auto-defesa, “Eu estou realmente orgulhoso do sindicato hoje. Eu acho que isso é uma grande coisa”. Um velho trabalhador negro que estava ouvindo concordou, dizendo que não conseguia lembrar de uma ação como essa feito pelo sindicato em toda a sua história. Ele comparou com as atividades de auto-defesa das campanhas em que participou nos anos 1930.
  
A ação de auto-defesa da regional do UAW recebeu uma atenção considerável em Chicago. Apareceram artigos na segunda-feira nos dois jornais diários, e Dennis e os dirigentes da regional 6 foram entrevistados por dois canais de televisão à noite. Também houve, no mínimo, três reportagens no rádio.
  
Na segunda noite, os sindicalistas foram xingados por passantes, e um vizinho a duas casas de distância mandou-os “para o inferno”. Outro morador branco, entretanto, veio mais cedo para conversar com Dennis por vinte minutos, expressando simpatia e dizendo que algumas pedras também atingiram a sua casa.
  
É evidente que a polarização racial é profunda, mas a vizinhança não chegou ainda a ser toda aterrorizada. Os voluntários da regional 6 falam em impedir outra mobilização racista, como aconteceu em Boston. Não houve novos ataques desde que o grupo de voluntários começou a vigiar a casa diariamente. A base votou que eles devem ficar “o tempo que for necessário” para assegurar que a família se mude com segurança para a casa.
  
Os ataques a famílias cresceram desde uma ofensiva organizada dos grupos fascistas e racistas de Chicago. Além dos ataques a quatro famílias negras na Zona Sul, houve ataques anteriores a outras famílias em Broadview. O Partido Nazista lançou candidatos para xerife em cinco distritos nas últimas eleições, e a Ku Klux Klan recentemente também esteve se organizando mais ativamente.
  
Esta escória se aproveita do desespero causado pelos altos índices de desemprego e inflação na classe trabalhadora, e seus esforços para dividir os trabalhadores pelas suas raças só podem beneficiar os patrões. Ações corajosas, como a feita pela regional 6 podem, se prosseguirem e forem adotadas pelo resto do movimento operário, impedir futuros ataques e, rapidamente, mandar o pequeno mas mortal movimento fascista para a sepultura que ele merece.
  
O terceiro ataque à casa de Dennis, que aconteceu dois dias antes da assembléia, revoltou particularmente muitos membros da regional. A moção para organizar as auto-defesas voluntárias foi feita por um membro da Corrente de Luta Operária, que distribuiu um boletim na planta da empresa antes da assembléia, chamando uma resposta militante à onda de terror racista. A Corrente de Luta Operária é um agrupamento na regional 6 com um programa classista que esteve ativo, recentemente, em lutas bem-sucedidas contra a proibição de panfletagem na planta pela empresa, e contra a extensão dos mandatos dos representantes sindicais para três anos. A sua resolução na assembléia de domingo apoiava a “luta pela integração dos negros na moradia, na educação e nos empregos” como “um interesse vital de todos os trabalhadores”, e denunciava a confiança na polícia, que “serve aos patrões, e da qual não podemos depender para defender os direitos dos negros ou dos sindicatos”. A moção também exigia que as auto-defesas fossem estendidas às famílias negras da Zona Sul, assim como de Broadview.
  
Depois da assembléia, a regional lançou um número especial de seu boletim. Embora ele não tenha sido bem distribuído, uma reunião especial na terça-feira foi assistida por 25 membros de todas as correntes políticas da regional, assim como por um canal de televisão, que filmou tudo. O presidente Roth estava na mesa e recebeu várias críticas pela distribuição ineficiente do boletim especial da regional que, foi dito, faria a reunião ser bem maior.
  
Ele também voltou atrás, sob pressão, da sua objeção anterior à formação de um comitê especial para organizar as auto-defesas. Um comitê foi então formado, sob a direção do sindicato. Ele inclui dois membros da Corrente de Luta Operária, um membro do grupo sindicalista Voz Operária, e outros membros da regional. Os membros do comitê imediatamente começaram a procurar voluntários na planta.
  
Houve apoio à atividade de auto-defesa, pelo menos verbalmente, pela direção do UAW na área, incluindo o diretor regional Robert Johnston. O boletim especial da regional declarou que “estes esforços estão de acordo com os princípios e políticas do UAW”.
  
Por outro lado, a direção do UAW pareceu preocupada, em primeiro lugar, em conseguir a intervenção do governo, tirando assim a responsabilidade das mãos do sindicato. Na casa de Dennis no domingo à noite, Roth disse ao Workers Vanguard que a sua intenção era “exercer toda a pressão política para obrigar as autoridades a fazerem alguma coisa”. Depois, ele disse que “Em alguns casos, a polícia deu alguma proteção”.
  
Roth, que é um famoso apoiador dos Sindicalistas por Ação e Democracia, o grupo sindical apoiado pelo reformista Partido Comunista, não surpreende ao confiar no Estado dos patrões. Nem a justiça, nem a polícia, o exército ou a Guarda Nacional vão proteger os negros da violência racista. Isso pode ser visto claramente pela situação de Boston, onde a justiça está conciliando com os racistas e dando um passo gigantesco para trás na questão do plano contra o apartheid nos ônibus.
  
Em Boston, houve duas linhas fortemente opostas sobre a questão de como defender os negros dos ataques racistas. De um lado, estavam os liberais, com o Partido Comunista e o SWP [que na época era seção do Secretariado Unificado (SU), corrente internacional reivindicada pelo Enlace/PSOL], que exigiram as tropas federais. Contra esta confiança mortal nas forças armadas do Estado capitalista, a Liga Espartaquista lutou por auto-defesas inter-raciais. Em Chicago, Boston, ou em qualquer lugar, as autodefesas negras e operárias podem eliminar rapidamente os terroristas racistas, neutralizar os elementos oscilantes da população branca e, finalmente, desmobilizar manifestações racistas.
  
A ação da regional 6 poderia ser o início de uma resposta militante e classista ao terror racista na grande Chicago, mas somente se toda a regional, incluindo a direção, trabalhasse seriamente nela e espalhasse a idéia para as outras regionais. Se a direção da regional 6, em vez disso, semeia ilusões no Estado, isso vai abrir o caminho para a piora da polarização racial. A auto-defesa não pode ser encerrada prematuramente, com a promessa de que o exército ou a polícia vão ser garantidos pelo Estado.

Libya: A Defeat for Workers and Victory for the Imperialists

Qaddafi Ousted by Imperialist Stooges in Libya 

A Defeat for Workers and Victory for the Imperialists

September 2011

Muammar Qaddafi was a tyrant who oppressed Libya’s working people for more than four decades. While deceiving many by coming into conflict with the imperialists at a time when Libya instituted some progressive reforms and nationalizations in the 1970’s, his brutal regime remained committed to maintaining Libya as a capitalist country. With the end of the 1980’s, Qaddafi proceeded to reverse many of those reforms as he mended fences and re-established ties with the imperialist powers (Italy in particular). Nevertheless, his overthrow by the imperialist backed National Transitional Council (lead by the national bourgeoisie, tribal leaders, monarchists and Qaddafi’s former government and military officials) and NATO represented a defeat for workers internationally.

Workers could not give Qaddafi any political support. It was necessary at every step to prepare for his future overthrow with the aim of creating a revolutionary workers’ government which would establish democratic freedoms, abolish poverty and exploitation, and establish full equality for women. But despite the false illusions of some on the left, the new regime’s aims are the diametric opposite of these goals. Having come to power through NATO’s military support, Libya will now be even more subjugated to the imperialist powers who seek to exploit it.

From the beginning it was necessary for revolutionaries to point to the NTC’s reactionary political trajectory and seek to dispel its claims to be fighting for any kind of progress or democracy. In February, as the NTC started taking over many regions and civil war engulfed the country, workers initially had no class interest in supporting either side in what were essentially two equivalent bourgeois forces. Those left groups which supported the NTC’s bid to take over the country therefore betrayed those class interests.

The nature of the civil war changed in mid-March with NATO’s direct intervention on the side of the NTC. It then became necessary for revolutionaries to enter into a temporary military bloc with Qaddafi to repel the imperialists and their allies, with their aim of tightening the imperialist grip on Libya. While the immediate goal was to militarily defeat the NATO/NTC bloc, this would not change the necessity for workers to also prepare for Qaddafi’s overthrow. The struggle for socialist revolution can never be strategically subordinated to any temporary tactical necessity. But it was in the interests of the working class that Qaddafi be overthrown by them rather than the imperialists.

Those left organization that tail after any popular movement of the moment and shared in the celebration of the NTC’s triumph as a working class victory are deceiving their supporters. If it was not enough that this particular “popular movement” was led by the most reactionary sections of the Libyan bourgeoisie, it in addition came to power directly through imperialist support. They invert the logic of the class struggle by portraying the possibility of imperialist global intervention in defense of working class interests. The interests of socialism though, can only be consistently advanced through the willingness of revolutionaries to not fear temporary unpopularity and telling the working class the truth.

James Cannon Sobre o Movimento Negro Norte-americano

A Revolução Russa e o Movimento Negro Norte-americano 

por James P. Cannon

  
James P. Cannon foi um dos fundadores e principais dirigentes do Partido Comunista dos Estados Unidos. Expulso em 1928 por apoiar a Oposição de Esquerda Internacional dirigida por L.D. Trotsky, ele fundou o movimento trotskista norte-americano. O seguinte artigo foi publicado em 1959 e logo formou parte do seu livro The First Ten Years of American Communism (Os primeiros dez anos do comunismo norte-americano), publicado em 1962. Esta edição baseia-se na primeira tradução no português feita e distribuída pela Luta Metalúrgica (agora a Liga Quarta-Internacionalista do Brasil) em 1995.

Durante seus dez primeiros anos, o Partido Comunista dos EUA estava preocupado com a questão do negro, e gradualmente chegou a uma política que era diferente e superior à do radicalismo norte-americano tradicional. Não obstante, nas minhas memórias publicadas relacionadas a este período, a questão do negro não aparece em nenhuma parte como tema de controvérsia interna entre as frações principais. A explicação era que nenhum dos dirigentes norte-americanos colocou nenhuma nova idéia sobre esta questão explosiva por conta própria; e nenhuma das frações propôs nenhuma das mudanças de política, atitude e forma de abordar a questão que se haviam realizado gradualmente quando o partido chegou ao fim de sua primeira década.


As principais discussões sobre a questão do negro ocorreram em Moscou, e a nova forma de ver a questão foi elaborada lá. Já no Segundo Congresso da Comintern (Internacional Comunista), em 1920, “Os Negros na América” foi um ponto na ordem do dia e uma discussão preliminar sobre esta questão foi levada a cabo. As investigações históricas comprovarão decisivamente que a política do PC sobre a questão do negro recebeu seu primeiro impulso de Moscou, e também que todas as seguintes elaborações desta política, incluindo a adoção da palavra-de-ordem de “autodeterminação” em 1928, vieram de Moscou. 

  
Sob a constante pressão e estímulo dos russos na Comintern, o partido começou com o trabalho entre os negros durante seus primeiros dez anos; mas não conseguiu incorporar muitos e sua influência dentro da comunidade negra não chegou a muito. Disto seria fácil tirar a conclusão pragmática de que toda a discussão e preocupação sobre a política com respeito à questão nessa década, desde Nova Iorque até Moscou, era muito barulho sobre nada, e que os resultados da intervenção russa foram completamente negativos. 
  
Esta pode ser a avaliação convencional nestes dias da Guerra Fria, quando a animosidade contra todas as coisas russas é o substituto convencional pela opinião considerada. Porém, está longe de ser a verdade histórica. Os primeiros dez anos do comunismo norte-americano são um período curto demais para permitir uma avaliação definitiva da nova forma de abordar a questão do negro que foi imposta ao partido norte-americano pela Comintern. 
  
A discussão histórica sobre a política e ação do Partido Comunista sobre a questão do negro, e sobre a influência russa na formação das mesmas, durante os primeiros dez anos da existência do partido, por exaustiva que seja, não pode ser suficiente se a investigação não projeta-se até a seguinte década. O jovem partido tomou os primeiros dez anos para fazer um começo neste terreno até então não explorado. As façanhas espetaculares dos anos 30 não podem ser entendidas sem referência a esta década anterior de mudanças e reorientações. As posteriores ações e resultados vieram disto. 
  
 *   *   * 
  
Uma análise séria de todo o processo complexo tem que começar com o reconhecimento de que os comunistas norte-americanos na primeira parte dos anos 20, tal como todas as outras organizações radicais deste período e períodos anteriores, não tinham nada com que podiam começar sobre a questão do negro senão uma teoria inadequada, uma atitude falsa ou indiferente e a aderência de alguns indivíduos com tendências radicais ou revolucionárias. 
  
O movimento socialista anterior, do qual o Partido Comunista surgiu, jamais reconheceu a necessidade de um programa especial sobre a questão do negro. Esta era considerada pura e simplesmente um problema econômico, uma parte da luta entre os operários e os capitalistas; a idéia era que não se podia fazer nada sobre os problemas especiais da discriminação e a desigualdade antes da chegada ao socialismo. 
  
Os melhores dos socialistas do período anterior foram representados por Debs, [1] [veja notas ao final do texto] que se mostrava simpático a todas as raças e completamente livre de preconceitos. Porém, a limitação do ponto de vista deste grande agitador, sobre esta questão complexa, foi expressada na sua declaração: “Nós não temos nada especial para oferecer ao negro, e não podemos fazer chamamentos separados a todas as raças. O Partido Socialista é o partido de toda a classe operária, seja qual for a cor – de toda a classe operária de todo o mundo” (Ray Ginger, The Bending Cross). Esta foi considerada uma colocação muito avançada nesse período, mas não colocou o apoio ativo à exigência especial do negro por um pouco de igualdade aqui e agora, ou no futuro previsível, no caminho rumo ao socialismo. 
  
Inclusive Debs, com a sua fórmula geral que ignorou o ponto principal – a questão ardente da constante discriminação contra os negros em todos os aspectos – era muito superior nesta questão, tal como em todas as outras, a Victor Berger, que era um racista declarado. [2] O seguinte é um pronunciamento de um editorial de Berger no seu jornal na cidade de Milwaukee, o Social Democratic Herald: “Não há dúvida de que os negros e mulatos constituem uma raça inferior”. Esta foi a colocação do “socialismo de Milwaukee” sobre a questão negra, como foi expressada por seu ignorante e insolente líder e chefe. Um negro perseguido e atacado jamais conseguiria digerir tal posição com uma simples cerveja de Milwaukee, inclusive se tivesse cinco centavos e pudesse encontrar uma cantina dos brancos onde pudesse beber um copo de cerveja, na parte dos fundos do bar. 
  
O chauvinismo declarado de Berger nunca foi a posição oficial do Partido Socialista. Havia outros socialistas, tais como William English Walling, que foi partidário da igualdade de direitos para os negros e um dos fundadores da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP – Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor) em 1909. Mas tais indivíduos foram uma pequena minoria entre os socialistas e radicais antes da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. 
  
A insuficiência da política socialista tradicional sobre a questão do negro tem sido amplamente documentada pelos historiadores do movimento, Ira Kipnis e David Shannon. Shannon resume a atitude geral que prevalecia no Partido Socialista sobre os negros da seguinte forma: 
  
“Não eram importantes no partido, o partido não fazia nenhum esforço especial para atrair militantes negros, e se o partido não era realmente hostil ao esforço dos negros para melhorar sua posição dentro da sociedade capitalista norte-americana, este esforço geralmente não lhe interessava.” E mais adiante: “O partido mantinha que a única salvação do negro era a mesma que a única salvação do branco: ‘o socialismo’.” 
  
Esta foi a posição tradicional que o Partido Comunista dos primeiros anos herdou do movimento socialista anterior, do qual havia surgido. A política e a prática do movimento sindical era ainda pior. A organização IWW (Industrial Workers of the World – Trabalhadores Industriais do Mundo) não excluia ninguém da militância pela sua “raça, cor nem credo”. Mas os sindicatos predominantes da AFL (American Federation of Labor – Federação Norte-Americana do Trabalho), com só umas poucas exceções, eram compostos exclusivamente pelos brancos da aristocracia operária. Estes também não tinham nada especial que oferecer aos negros; na realidade, não tinham absolutamente nada que oferecer-lhes. 
  
 *   *   * 
  
A diferença – e foi uma diferença profunda – entre o Partido Comunista dos anos 20 e os seus antecessores socialistas e radicais, foi mostrada pela sua ruptura com esta tradição. Os comunistas norte-americanos dos primeiros anos, sob a influência e pressão dos russos na Comintern, estavam aprendendo lenta e dolorosamente a mudar sua atitude; a assimilar a nova teoria da questão negra como uma questão especial de gente duplamente explorada e posta na situação de cidadãos de segunda classe, o que requeria um programa de reivindicações especiais como parte do programa geral – e a começar a fazer algo sobre esta questão. 
  
A verdadeira importância desta mudança profunda, em todas suas dimensões, não pode ser medida adequadamente pelos resultados que ocorreram nos anos 20. É necessário considerar os primeiros dez anos principalmente como o período preliminar de reconsideração e discussão, e de mudança na atitude e política sobre a questão dos negros – como preparação para a atividade futura neste terreno. 
  
Os efeitos desta mudança e esta preparação nos anos 20, produzidos pela intervenção russa, manifestaram-se explosivamente na década posterior. As condições muito favoráveis para a agitação e organização entre os negros, produzidas pela Grande Depressão, encontraram o Partido Comunista preparado para atuar neste terreno como nenhuma outra organização radical havia feito neste país. 
  
 *   *   * 
  
Tudo de novo e progressista sobre a questão do negro veio de Moscou depois da revolução de 1917, e como resultado da revolução – não só para os comunistas norte-americanos, que responderam diretamente, mas também para todos os que se interessavam na questão. 
  
Sozinhos, os comunistas norte-americanos nunca inventaram nada novo ou diferente da posição tradicional do radicalismo norte-americano sobre a questão negra. Essa posição, como mostram as citações anteriores das histórias de Kipnis e Shannon, foi bastante fraca na teoria e ainda mais fraca na prática. A fórmula simplista de que a questão dos negros era meramente econômica, uma parte da questão do capital contra o trabalho, jamais inspirou os negros, que sabiam que não era assim, mesmo se não o dissessem abertamente; eles tinham que viver com a discriminação brutal, cada hora de cada dia. 
  
Esta discriminação não era sutil nem dissimulada. Todo mundo sabia que ao negro se dava o pior em todo momento, mas quase ninguém estava interessado ou queria fazer algo para procurar moderar ou mudar esta situação. A maioria branca da sociedade norte-americana, que constituia [nesse período] 90% da população, incluindo seu setor operário, no Norte como no Sul, estava saturada com preconceitos contra o negro; e o movimento socialista refletia bastante este preconceito – embora, para não contradizer o ideal da irmandade humana, esta atitude dos socialistas era oculta e tomava a forma de evasiva. A velha teoria do radicalismo norte-americano mostrou na prática ser uma fórmula para a falta de ação sobre a questão dos negros e, incidentalmente, uma cobertura conveniente para os latentes preconceitos raciais dos radicais brancos. 
  
A intervenção russa transformou tudo isto, drasticamente e num sentido benéfico. Ainda antes da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, Lenin e os bolcheviques se distinguiam de todas as outras tendências no movimento socialista e operário internacional por sua preocupação com os problemas das nações e minorias nacionais oprimidas, e seu apoio positivo às lutas destas pela liberdade, a independência e o direito da autodeterminação. Os bolcheviques davam este apoio a toda a “gente sem igualdade de direitos”, de uma forma sincera e honesta, mas não havia nada “filantrópico” nesta posição. Reconheciam também o grande potencial revolucionário na situação dos povos e nações oprimidos, e os viam como aliados importantes da classe operária internacional na luta revolucionária contra o capitalismo. 
  
Depois de novembro de 1917, esta nova doutrina, com ênfase especial nos negros, começou a ser transmitida ao movimento comunista norte-americano com a autoridade da Revolução Russa. Os russos na Comintern começaram a enfrentar os comunistas norte-americanos com a exigência brusca e insistente de que abandonassem seus próprios preconceitos não declarados, que dessem atenção aos problemas e queixas especiais dos negros norte-americanos, que trabalhassem entre eles e que se convertessem em campeões de sua causa dentro da população branca. 
  
Para os norte-americanos, que tinham sido educados numa tradição diferente, levou tempo para assimilar a nova doutrina leninista. Mas os russos seguiam, ano após ano, montando os argumentos e aumentando a pressão sobre os comunistas norte-americanos até que estes finalmente aprenderam, mudaram e começaram a trabalhar a sério. E a mudança na atitude dos comunistas norte-americanos, que se efetuou gradualmente nos anos 20, exerceria uma influência profunda em círculos muito mais amplos durante os anos posteriores. 
  
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A ruptura do Partido Comunista com a posição tradicional do radicalismo norte-americano sobre a questão negra coincidiu com mudanças profundas que estavam ocorrendo entre a população negra. A migração em grande escala das regiões agrícolas do Sul dos Estados Unidos para os centros industriais do Norte se acelerou muito durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou nos anos posteriores. Isto produziu algumas melhorias em suas condições de vida em comparação com o que haviam conhecido no Sul (“Deep South”), [3]  mas não foram suficientes para compensar o desencanto de encontrar-se relegados aos guetos e submetidos ainda à discriminação por todos os lados. 
  
O movimento negro, tal como era então, apoiou patrioticamente a Primeira Guerra Mundial “para tornar o mundo seguro para a democracia”; e 400.000 negros serviram nas forças armadas. Quando regressaram aos Estados Unidos, buscaram um pouquinho de democracia para eles mesmos, mas não puderam encontrar muito em nenhum lado. O seu novo espírito de reclamar algo para si mesmos foi contestado com cada vez mais linchamentos e uma série de distúrbios raciais em todo o país, tanto no Norte como no Sul. 
  
Tudo isto – as esperanças e as decepções, o novo espírito de decisão e as represálias bestiais – contribuiu para o surgimento de um novo movimento negro. Rompendo decididamente com a tradição de Booker T. Washington [4] de acomodação a uma posição de inferioridade no mundo do homem branco, uma nova geração de negros começou a impulsar suas exigências de igualdade. 
  
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O que o novo movimento emergente dos negros norte-americanos – uma minoria de 10% da população dos Estados Unidos – mais necessitava, e que carecia quase por completo, era de apoio efetivo dentro da comunidade branca em geral e, em particular, dentro do movimento operário, seu aliado necessário. O Partido Comunista, defendendo vigorosamente a causa dos negros e propondo uma aliança do povo negro e o movimento operário combativo, entrou na nova situação como um agente catalizador no momento preciso. 
  
Foi o Partido Comunista, e nenhum outro, que converteu os casos de Herndon e Scottsboro [5] em questões conhecidas nacional e internacionalmente, e que pôs os grupos de linchamento legal dos “Dixiecratas” (políticos racistas sulistas do Partido Democrata) na defensiva pela primeira vez desde a derrubada da Reconstrução. [6] Os militantes do partido dirigiram as lutas e as manifestações para conseguir consideração justa para os negros desempregados nos postos de ajuda, e para colocar novamente nos seus apartamentos os móveis dos negros jogados na rua pelos donos das casas. Foi o Partido Comunista que de forma demonstrativa apresentou um negro como candidato a vice-presidente em 1932 – algo que nenhum outro partido radical ou socialista jamais havia contemplado. 
  
Por meio deste tipo de ação e agitação nos anos 30, o partido sacudiu todos os círculos mais ou menos liberais e progressistas da maioria branca, e começou a produzir uma mudança radical na atitude sobre a questão negra. Ao mesmo tempo, o partido se coverteu num verdadeiro fator entre os negros, que avançaram em seu status e sua confiança em si mesmos – em parte como resultado da vigorosa agitação do Partido Comunista sobre a questão. 
  
Não se pode descartar esta realidade dizendo que “os comunistas atuaram assim porque tinham um interesse por trás disto”. Toda agitação a favor dos direitos dos negros favorece o movimento negro; e a agitação dos comunistas foi muito mais enérgica e eficaz que qualquer outra naquele período. 
  
Estes novos acontecimentos parecem conter um aspecto contraditório, e este, que conheço, jamais tem sido confrontado ou explicado. A expansão da influência comunista dentro do movimento negro durante os anos 30 ocorreu apesar do fato de que uma das novas palavras-de-ordem impostas ao partido pela Comintern nunca pareceu adequar-se à situação real. Esta foi a palavra-de-ordem da “autodeterminação”, sobre a qual se fez o maior alvoroço e se escreveu o maior número de teses e resoluções, sendo inclusive apregoada como a palavra-de-ordem principal. [7]  A palavra-de-ordem da “autodeterminação” teve pouca ou nenhuma aceitação na comunidade negra. Depois do colapso do movimento separatista dirigido por Garvey, [8]  a tendência dos negros foi principalmente em direção à integração racial, com igualdade de direitos. 
  
Na prática o PC passou por cima desta contradição. Quando o partido adotou a palavra-de-ordem da “autodeterminação”, não abandonou sua vigorosa agitação a favor da igualdade e os direitos dos negros em todas as frentes. Ao contrário, intensificou e estendeu esta agitação. Isto era o que os negros desejavam ouvir, e isso é o que fez a diferença. A agitação e ação do PC sobre esta última palavra-de-ordem foi o que produziu resultados, sem a ajuda e provavelmente apesar da impopular palavra-de-ordem da “autodeterminação” e todas as teses escritas para justificá-la. 
  
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Durante o “Terceiro Período” de ultra-radicalismo [da Comintern], os comunistas convertidos em stalinistas realizaram sua atividade entre os negros com toda a desonesta demagogia, os exageros e distorsões que lhes são próprias e das quais eles são inseparáveis. Apesar disto, a reivindicação principal em torno da igualdade de direitos foi ouvida e encontrou eco na comunidade negra. Pela primeira vez desde a época dos abolicionistas, [9] os negros viram um grupo enérgico, dinâmico e combativo de gente branca que defendia sua causa. Desta vez não foram uns quantos filantropos e liberais tímidos, mas sim os pertinazes stalinistas dos anos 30, que estavam à frente de um movimento radical de grande alcance que, gerado pela depressão, estava em ascensão. Havia uma energia em seus esforços naqueles anos e esta foi sentida em muitas esferas da vida norte-americana. 
  
A resposta inicial de muitos negros foi favorável, e a reputação do partido como uma organização revolucionária identificada com a União Soviética provavelmente era mais ajuda que obstáculo. A camada superior dos negros, buscando respeitabilidade, tendia a distanciar-se de todo o radical; porém as bases, os mais pobres entre os pobres que não tinham nada que perder, não tinham medo. O partido incorporou milhares de militantes negros nos anos 30 e se converteu, por um tempo, em uma força real dentro da comunidade negra. A causa principal disto era sua política sobre a questão da igualdade de direitos, sua atitude geral – a qual havia aprendido dos russos – e sua atividade em torno da nova linha. 
  
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Nos anos 30, a influência e a ação do Partido Comunista não se restringia à questão dos “direitos civis” em geral. Também atuava poderosamente para dar nova forma ao movimento operário e auxiliar os operários negros a conseguir neste movimento o lugar que anteriormente lhes havia sido negado. Os mesmos operários negros, que haviam contribuido nas grandes lutas para criar os novos sindicatos, pressionavam a favor de suas próprias reivindicações mais vigorosamente que em nenhum período anterior. [10]  Mas necessitavam de ajuda, necessitavam de aliados. 
  
Os militantes do Partido Comunista começaram a desempenhar este papel no momento crítico dos dias formativos dos novos sindicatos. A política e a agitação do Partido Comunista neste período fizeram mais, dez vezes mais, que qualquer outra força para ajudar os operários negros a assumir um novo status de, pelo menos, semi-cidadania dentro do novo movimento sindical criado nos anos 30 sob a bandeira do CIO. 
  
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É freqüente atribuir o progresso do movimento negro, e a mudança da opinião pública a favor de suas reivindicações, às mudanças produzidas pela Primeira Guerra Mundial. Mas o resultado mais importante da Primeira Guerra Mundial, o acontecimento que mudou tudo, incluindo as perspectivas para os negros norte-americanos, foi a Revolução Russa. A influência de Lenin e da Revolução Russa – apesar de ser degradada e distorcida como foi posteriormente por Stalin, e depois filtrada através das atividades do Partido Comunista dos Estados Unidos – contribuiu, mais que qualquer outra influência, de qualquer fonte, para o reconhecimento, e a aceitação mais ou menos geral, da questão negra como um problema especial da sociedade norte-americana; um problema que não pode ser colocado simplesmente sob o cabeçalho do conflito entre capital e trabalho, como fazia o movimento radical pré-comunista. 
  
Se acrescenta algo, mas não muito, ao dizer que o Partido Socialista, os liberais e os dirigentes sindicais mais ou menos progressistas aceitaram a nova definição e outorgaram algum apoio às reivindicações dos negros. Isso é exatamente o que fizeram: aceitaram. Não tinham nenhuma teoria nem política independente desenvolvidas por eles mesmos. De onde iam tirá-las? De suas próprias cabeças? De nenhuma maneira. Todos iam atrás o PC sobre esta questão nos anos 30. 
  
Os trotskistas e outros grupos radicais dissidentes – que também tinham aprendido dos russos – contribuiram com o que puderam para a luta pelos direitos dos negros; mas os stalinistas, dominando o movimento radical, dominavam também os novos acontecimentos no terreno da questão negra. 
  
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Tudo o que havia de novo sobre a questão negra veio de Moscou, depois que começava a ressoar em todo o mundo a exigência da Revolução Russa pela liberdade e a igualdade para todos os povos subjugados e todas as raças, para todos os desprezados e rechaçados do mundo. O estrondo continua ressoando, mais forte que nunca, como atestam as manchetes diárias dos jornais. 
  
Os comunistas norte-americanos responderam primeiro, e mais enfaticamente, à nova doutrina que veio da Rússia. Mas o povo negro, e setores significativos da sociedade branca norte-americana, responderam indiretamente, e seguem respondendo, mesmo não reconhecendo isto. 
  
Os atuais líderes oficiais do movimento pelos “direitos civis” dos negros norte-americanos, mais que um pouco surpreendidos frente à crescente combatividade do movimento e o apoio que está conseguindo na população branca do país, pouco suspeitam o quanto o ascendente movimento deve à Revolução Russa que todos eles patrioticamente rechaçam. 
  
O Reverendo Martin Luther King afirmou, ao tempo da batalha do boicote em Montgomery, que o seu movimento fazia parte da luta mundial dos povos de cor pela independência e a igualdade. [11]  Deveria haver acrescentado que as revoluções coloniais, que efetivamente são um poderoso aliado do movimento negro nos Estados Unidos, conseguiram seu impulso inicial da Revolução Russa – e são estimuladas e fortalecidas dia a dia pela contínua existência desta revolução na forma da União Soviética e da nova China, que o imperialismo branco subitamente “perdeu”. 
  
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Indiretamente, mas de uma forma ainda mais convincente, os mais raivosos anti-soviéticos, entre eles os políticos liberais e os dirigentes sindicais oficiais, testemunham isto quando dizem: O escândalo de Little Rock e coisas do mesmo tipo não devem acontecer porque favorecem a propaganda comunista entre os povos coloniais não-brancos. [12]  Seu temor à “propaganda comunista”, tal como o temor de outras pessoas a Deus, lhes faz virtuosas. 
  
Agora tornou-se convencional, para os líderes sindicais e os libe-rais do Norte, simpatizar com a luta dos negros por alguns poucos direitos elementares como seres humanos. É “O Que Se Deve Fazer”, um símbolo da inteligência civilizada. Até os ex-radicais convertidos em uma espécie de “liberais” anti-comunistas – uma espécie muito fraca – são agora orgulhosamente “corretos” em seu apoio formal aos “direitos civis” e em sua oposição à segregação dos negros e outras formas de discriminação. Mas como chegaram a isso? 
  
Os liberais de hoje jamais perguntam-se por quê – salvo algumas notáveis exceções – nunca ocorreu a seus similares de uma geração anterior esta nova e mais esclarecida atitude sobre os negros antes que Lenin e a Revolução Russa puseram de pernas pro ar à velha, bem estabelecida e complacentemente aceitada doutrina de que as raças deviam ser “separadas e desiguais”. [13]  Os liberais e líderes sindicais anti-comunistas norte-americanos não sabem, mas algo da influência russa que odeiam e temem tanto lhes contagiou. 
  
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Como todo mundo sabe, finalmente os stalinistas atrapalharam a questão negra, assim como atrapalharam todas as demais questões. Traíram a luta pelos direitos dos negros durante a Segunda Guerra Mundial, em serviço à política exterior de Stalin – do mesmo modo, e pelo mesmo motivo fundamental, que trairam os operários grevistas norte-americanos e aplaudiram os representantes do governo quando pela primeira vez se utilizou a Lei Smith, no julgamento contra os trotskistas em Minneapolis em 1941. [14]
  
Agora todo mundo o sabe. Ao final se colheu o que se semeou, e os stalinistas mesmos têm-se visto obrigados a confessar publicamente algumas de suas traições e ações vergonhosas. Mas nem o suposto arrependimento por crimes que não podem ser ocultados nem os alardes sobre virtudes passadas que outros estão pouco dispostos a recordar, parecem servir-lhes de nada. O Partido Comunista, ou melhor, o que fica disso, é tão desprestigiado e desprezado que hoje se reconhece pouco ou nada de seu trabalho na questão dos negros durante aqueles anos anteriores, quando teve conseqüências extensas que em sua maior parte foram progressistas. 
  
Não é meu dever nem meu propósito prestar ajuda aos stalinistas. O único objetivo desta descrição resumida é esclarecer alguns fatos acerca da primeira época do movimento comunista norte-americano para o benefício dos estudiosos de uma nova geração, que desejam conhecer toda a verdade, sem temor nem favor, e aprender algo dela. 
  
A nova política sobre a questão negra, aprendida dos russos durante os primeiros dez anos do comunismo norte-americano, deu ao Partido Comunista a capacidade de avançar a causa do povo negro nos anos 30; e de estender sua própria influência entre os negros em uma escala da qual nenhum movimento radical tinha-se aproximado até então. Estes são os fatos históricos, não somente da história do comunismo norte-americano, mas também da história da luta pela emancipação dos negros. 
  
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 Para aqueles que olham para o futuro estes fatos são importantes, uma antecipação das coisas por vir. Através de sua atividade combativa durantes os anos anteriores, os stalinistas deram um grande ímpeto ao novo movimento negro. Posteriormente, sua traição à causa dos negros durante a Segunda Guerra Mundial preparou o caminho para os gradualistas que têm sido os dirigentes incontestados do movimento desde esse período. 
  
A política do gradualismo, de prometer liberdade ao negro dentro do marco do sistema social que o subordina e degrada, não está dando resultado. Não vai à raíz do problema. Grandes são as aspirações do povo negro e grandes também as energias e emoções em sua luta. Porém as conquistas concretas de sua luta até agora são lastimosamente escassas. Têm avançado alguns milímetros, mas a meta da verdadeira igualdade se encontra a muitos, muitos quilômetros de distância. 
  
O direito de ocupar um banco vazio em um ônibus; a integração de um punhado de meninos negros em algumas escolas públicas; algumas vagas abertas para indivíduos negros na administração pública e algumas profissões; direitos de emprego iguais no papel, mas não na prática; o direito à igualdade, formal e legalmente reconhecido mas negado na prática a cada momento: este é o estado de coisas na atualidade, 96 anos depois da Proclamação da Emancipação. 
  
Tem havido uma grande mudança na perspectiva e nas reivindicações dos negros desde a época de Booker T. Washington, mas nenhuma mudança fundamental em sua situação real. O crescimento desta contradição está levando a uma nova explosão e uma nova mudança de política e liderança. Na próxima etapa do seu desenvolvimento, o movimento negro norte-americano se verá obrigado a orientar-se a uma política mais combativa que a do gradualismo e buscar aliados mais confiáveis que os políticos capitalistas do Norte, que estão vinculados com os “dixiecratas” do Sul. Os negros, mais que ninguém neste país, têm motivo – e direito – para ser revolucionários. 
  
Um partido operário honesto da nova geração reconhecerá este potencial revolucionário da luta dos negros e proporá uma aliança combativa do povo negro e o movimento operário em uma luta revolucionária comum contra o sistema social existente. 
  
As reformas e as concessões, muito mais importantes e significativas que as obtidas até agora, serão subprodutos desta aliança revolucionária. Em cada fase da luta se lutará a seu favor e elas serão conseguidas. Porém o novo movimento não se deterá com reformas, não será satisfeito com concessões. O movimento do povo negro e o movimento operário combativo, unificados e coordenados por um partido revolucionário, resolverão a questão dos negros da única maneira em que pode ser resolvida: mediante uma revolucão social. 
  
Os primeiros esforços do Partido Comunista nesta questão, durante a geração passada, serão reconhecidas e assimiladas. Nem sequer a experiência da traição stalinista será desperdiçada. A lembrança desta traição será uma das razões porque os stalinistas não serão os dirigentes na próxima vez. 
  
 Los Angeles 
 8 de maio de 1959

Notas dos tradutores
  
1. Eugene V. Debs (1855-1926) foi dirigente de uma importante greve dos ferroviários e depois do Partido Socialista dos Estados Unidos. Foi encarcerado por sua oposição à Primeira Guerra Mundial. Embora tenha declarado sua simpatia pela Revolução Bolchevique, não uniu-se ao Partido Comunista.
  
2. Victor Berger: um dirigente da ala direita do Partido Socialista.
  
3. Nos Estados Unidos, a região do Sudeste que foi o coração da confederação escravocrata durante a Guerra Civil (1860-65) é conhecida como o “Deep South”.
  
4. Booker T. Washington (1856-1915) foi um dirigente negro que colocou a “auto-melhoria” da população negra e se opôs às lutas diretas contra a opressão.
  
5. Angelo Herndon foi um jovem comunista negro perseguido por um embuste da polícia em Atlanta, Georgia em 1932 e acusado de “incitar à insurreição”. Os acusados de Scottsboro, Alabama foram oito jovens negros vítimas de um embuste racista nos anos 30. Foram condenados à morte mas logo foram perdoados como resultado da campanha em sua defesa.
  
6. A Reconstrução (1865-77) foi o período depois da derrota da Confederação escravocrata na Guerra Civil norte-americana, quando, sob a proteção de tropas do Norte, foram concedidos direitos de cidadania aos antigos escravos e se desmantelou uma parte do poder dos latifundiários (antigos escravistas) do Sul. Em várias partes do Sul foram eleitos governos locais compostos em grande parte de negros, junto com radicais brancos do Norte. A Reconstrução foi traída pela burguesia do Norte no seu Compromisso de 1877 com os políticos racistas do Sul; as tropas federais foram retiradas e o terror racista esmagou os direitos básicos dos negros.
  
7. A palavra-de-ordem da autodeterminação dos negros na “faixa negra” formada por várias áreas do Sul dos Estados Unidos foi promulgada pelo Sexto Congresso da Internacional Comunista (1928). Já então essa “faixa negra” era semi-fictícia, devido à migração de grande parte da população negra às cidades industriais do Norte e centro do país, Califórnia, e outras áreas. Na realidade, o povo negro (que entre outras coisas não tinha um território em comum) não era uma nação mas sim uma “casta de cor e raça”, integrada na economia capitalista mas segregada nos níveis inferiores da mesma. A palavra-de-ordem da autodeterminação encontrou resistência da maioria dos dirigentes negros do PC dos Estados Unidos. Porém, a Comintern stalinizada insistiu e se começou a propagar a palavra-de-ordem mais energica-mente em 1930.
  
8. Marcus Garvey (1887-1940) dirigiu o movimento pelo “retorno à África”.
  
9. Os abolicionistas foram os que agitaram a favor da abolição da escravidão nos Estados Unidos antes da emancipação dos escravos em 1863, proclamada por Abraham Lincoln durante a Guerra Civil.
  
10. Com o impulso das três greves gerais de 1934 (as de Minneapolis, dirigida pelos trotskistas; Toledo, dirigida pelo American Workers Party, que pouco depois se unificou com os trotskistas; e São Francisco, dirigida pelos stalinistas), em 1935 se formou uma nova agrupação sindical: o Congress of Industrial Organizations (CIO – Congresso de Organizações Industriais). O CIO rompeu com a velha e conservadora confederação, a American Federation of Labor (AFL – Federação Norte-Americana do Trabalho), cujos sindicatos, organizados por profissões, geralmente haviam agrupado somente os operários mais qualificados. Os novos sindicatos do CIO foram “industriais”, quer dizer, baseados na organização de todos os trabalhadores de uma indústria em um só sindicato. Em 1953 a AFL e o CIO se fundiram para formar a AFL-CIO, que na atualidade é a única confederação sindical nos Estados Unidos.
  
11. Em 1955, o movimento pelos direitos civis chegou à atenção nacional nos Estados Unidos quando a população negra de Montgomery, Alabama, realizou, durante todo um ano, um boicote dos ônibus municipais, que eram racialmente segregados.
  
12. Em Little Rock, Arkansas, em setembro de 1957, racistas brancos atacaram estudantes negros que, sob um mandado judicial contra a segregação racial, freqüentaram pela primeira vez uma escola secundária que anteriormente havia sido reservada para os brancos. Quando a população negra mobilizou-se para defender-se, o presidente Eisenhower enviou tropas para ocupar a cidade e impedir este esforço de auto-defesa dos negros.
  
13. “Separadas e desiguais”: referência irönica à doutrina da primeira metade do século XX de que os negros iam ser “separados” (quer dizer, segregados) dos brancos, mas “iguais” aos mesmos. Esta doutrina havia sido avalizada também por alguns “líderes” negros.
  
14. Pregando a “união anti-fascista” com o presidente Roosevelt na Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista stalinizado se opôs raivosamente tanto às greves como aos protestos contra a segregação racial. A Lei Smith contra a “subversão” foi usada para encarcerar 18 trotskistas, entre eles Cannon e dirigentes do sindicato dos caminhoneiros de Minneapolis, devido a sua oposição revolucionária à Segunda Guerra Mundial imperialista. Logo, sob o macartismo, a mesma lei foi usada para encarcerar muitos dirigentes do Partido Comunista

A Greve do Sepe-RJ e a Luta dos Trabalhadores da Educação

Lutar por uma educação pública, universal, gratuita e de qualidade 
Abaixo a Burocracia Sindical, pela União da Classe Trabalhadora!

Por Leandro Torres
Agosto de 2011

         O mês de junho foi tido como um marco para setores da esquerda do Rio de Janeiro, que incorretamente enxergaram na insubordinação de parte do Corpo de Bombeiros Militares do estado um ascenso de “trabalhadores”. Porém, os BMs não foram os únicos a se movimentar na cidade. Os professores e funcionários da rede estadual de educação, organizados através Sepe-RJ (Sindicado Estadual dos Profissionais da Educação), protagonizaram uma importante mobilização por melhores salários e direitos, marcada por uma combativa greve que durou 66 dias. As principais organizações da esquerda do Rio de Janeiro (PSTU e PSOL), entretanto, acabaram dando mais atenção à insubordinação dos bombeiros, repleta de demandas reacionárias, do que à luta dos educadores, da mesma forma como fez a mídia burguesa. [1]

          Tais educadores (o que inclui professores, animadores culturais, merendeir@s, inspetores e porteir@s), além de terem realizado uma greve e erguido um acampamento de 32 dias em frente à Secretaria Estadual de Educação, também engrossaram as fileiras de outras lutas, como a manifestação ocorrida em 30 de julho “Por uma Copa do Povo”, organizada contra as ações de repressão e despejo realizadas pelo governo contra os trabalhadores pobres do estado. Isso demonstrou a disposição da categoria em transformar sua luta em uma ampla campanha contra o governo estadual de Sérgio Cabral (PMDB) e seus aliados, como o prefeito do Rio, Eduardo Paes (também PMDB).
   Entretanto, a greve foi “suspensa” no dia 12 de agosto, após uma sessão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que discutiu as demandas dos educadores e aprovou algumas delas – mesmo que parcialmente. Em tal sessão, a proposta inicial dos lacaios de Cabral e dos patrões, de um aumento salarial de 3,5% para os professores, acabou sendo levemente elevada para 5%. Além do aumento salarial para professores (e animadores culturais, que foi de 14,6%), foram aprovadas algumas outras medidas importantes, como o descongelamento do Plano de Carreira dos funcionários e o abono dos dias paralisados.
Para alguns, a conquista de 5% de aumento aos professores e descongelamento do Plano de Carreira dos funcionários pode soar como uma vitória plena dos trabalhadores, mas quando lembramos que a pauta de greve incluía reivindicações como aumento de 26% para os educadores e eleições diretas para os diretores escolares, vemos que o desfecho não foi tão positivo quanto a direção do Sepe faz parecer, intitulando o boletim publicado no último dia 18 de “Greve Histórica Derrota Cabral e Risolia [Secretário de Educação]”. No mesmo boletim de título demasiado otimista, a própria direção do Sepe reconhece:

“É verdade que nossos salários ainda estão baixos, que o Plano de Metas ainda está vigorando e que não conquistamos a eleição direta para diretores, entre outras coisas.”
Boletim do Sepe, disponível em seperj.org.br

A “suspensão” da greve após um acordo que só obteve algumas das reivindicações se explica em parte pela intransigência do Governo de Sérgio “Caveirão” Cabral em negociar um aumento e também pela sua atitude repressora, que conseguiu aprovar no Legislativo o corte do ponto daqueles educadores que não voltassem ao trabalho no retorno das férias escolares (medida que foi revertida na sessão da Alerj).

Como afirma reportagem do Portal G1, “segundo o Sepe, a categoria vai se manter em estado de mobilização para acompanhar o cumprimento [das medidas aprovadas] da parte do governo”, que ainda precisa sancioná-las (Professores da rede estadual decidem suspender greve no RJ, de 12 de agosto). Porém, tal “ameaça” por parte da direção do Sepe, composta majoritariamente pelo PSTU e por setores do PSOL (APS/MTL/Enlace), [2] parece com a de um general que acaba de retirar suas tropas do campo de batalha. Sem dúvida alguma o Sepe deveria ficar atento ao cumprimento das medidas já aprovadas na Alerj (e ainda não sancionadas pelo governo estadual), mas isso deveria ter sido feito permanecendo na greve e no acampamento até que as conquistas se concretizassem, e também para lutar por aquelas ainda não obtidas.
Com o acampamento desfeito e os educadores de volta às escolas e salas de aula pouco após o retorno das férias, Cabral conseguiu a normalização da situação e a categoria viu parte das demandas de sua aguerrida luta de mais de 2 meses não se concretizar. Certamente, se as conquistas obtidas na Alerj fossem mais avançadas, haveria uma grande chance de Cabral não sancioná-las, o que torna a atitude dos dirigentes do Sepe extremamente irresponsável e deseducadora, por apostar mais na legalidade burguesa do que na mobilização da classe trabalhadora. Nesse momento os dirigentes do Sepe podem apenas “torcer” para que as conquistas sejam aprovadas por Cabral e sua corja.
Mas a pressão do governo dos patrões não foi o único fator envolvido. A burocracia sindical do Sepe certamente tem culpa no cartório. Acovardada pelas consequências (inclusive as eleitorais) de um corte no ponto dos educadores e incapaz de responder a essa ameaça a altura, optou por aceitar as negociações rebaixadas e voltar para casa com uma algumas conquistas para apresentar às suas bases.
Esse medo de perder parte da influência que possui sobre a categoria fica ainda mais claro se levarmos em conta que a radicalização do movimento fez surgir atritos entre a burocracia sindical e setores da base, como ficou claro no já citado ato do dia 30 de julho. Nessa ocasião, o “Comando do Ato” (composto pelos dirigentes do Sepe, principalmente os do PSTU), contrariando o clima radicalizado e combativo dos manifestantes, optou por não ocupar a rua em frente à Marina da Glória. Para piorar, o PSTU e sua base se retiraram durante a ocupação da mesma por cerca de metade dos manifestantes presentes, dividindo e enfraquecendo a mobilização enquanto havia companheiros na luta. Assim como em relação à greve e a muitos outros momentos, também nessa manifestação o PSTU optou pela via de menor resistência.
Não raro, o PSTU e o PSOL ainda tem a cara de pau de jogar parte da culpa nas costas dos trabalhadores e trabalhadoras, alegando que não foi possível ir mais além em determinada campanha devido ao “isolamento”, à “falta de apoio” e etc. Usam, assim, a desmobilização de parte da classe trabalhadora para trair suas lutas, quando na verdade o papel daqueles que se dizem revolucionários é justamente o de nadar contra a corrente e fazer o possível para avançar a consciência da classe, trazendo setores cada vez mais amplos do proletariado para uma postura combativa.
No caso da greve, como em tantos outros, ao invés de tentarem fazer avançar ainda mais a mobilização dos educadores estaduais, ampliá-la através de alianças com outros setores e lutar até o fim por suas demandas mais avançadas, o PSTU e o PSOL optaram por recuar após conseguirem algumas migalhas que os patrões resolveram ceder de seu enorme banquete, obtido através do suor dos trabalhadores.
Como os partidos que se encontram hoje a frente da classe trabalhadora não cumprem o papel de lutar pelas melhorias através de um projeto revolucionário, que tenha como cerne preparar os trabalhadores para derrubar do poder econômico, político e militar das mãos da burguesia, então estes partidos acabam inevitavelmente circunscritos a uma lógica reformista, que mantém o capitalismo intacto. No caso da greve dos educadores, ambos PSTU e PSOL não só se limitaram a uma postura reformista como também extremamente recuada, não deixando nada a desejar se comparados aos setores majoritários da CUT, que eles tanto condenam (corretamente) enquanto grandes inimigos dos trabalhadores. Para os revolucionários, uma greve deve ser uma “escola de guerra” na qual os trabalhadores devem aprender os mecanismos para expandir as lutas e melhor se organizar contra os patrões e o Estado, assim como perceberem os interesses comuns de toda a classe e sua necessidade de romper com o capitalismo.
Após aprovação da “suspensão” da greve pela assembleia da categoria, realizada em seguida à sessão na Alerj, convocou-se nova reunião do movimento para o dia 27 de agosto. Como já dissemos, entretanto, com os educadores de volta às escolas e com o acampamento desfeito, essa reunião provavelmente servirá apenas para que a burocracia realize seu balanço positivo da greve e pese na balança os riscos de reiniciá-la, contra as demandas (parcialmente) conquistadas, tentando assim convencer a base de que o mais “sensato” seria terminá-la de vez e esperar o próximo ano para uma nova campanha salarial (na qual, sem dúvidas, outras demandas políticas figurariam apenas de forma secundária).
Para aqueles que estão distantes, o fim da greve pode parecer uma perspectiva “realista”, tendo em vista a truculência de Cabral e de seus aliados. Mas estes não devem se deixar enganar: diversas entidades e grupos vinham prestando ativa solidariedade à greve dos educadores, dispondo-se não só a engrossar suas fileiras, como também a contribuir materialmente para a continuação do movimento, doando parte de suas finanças para o Fundo de Greve (destinado a pagar os professores que tivessem o ponto cortado por estarem em luta). Esse Fundo, aliás, poderia ter recebido uma considerável ajuda do voluptuoso caixa do Sepe, mas a direção majoritária do sindicato não tomou a menor iniciativa para organizá-lo.
Além disso, tem sido deflagradas em todo o Estado diversas outras greves e mobilizações ligadas ao setor da educação. Assim, na assembleia do dia 27 de agosto, todos os professores e funcionários combativos devem lutar pela continuação da greve, até que todas as suas reivindicações sejam atendidas. Passar por cima da burocracia sindical e levar a greve até o fim! Pela derrota de Cabral e de seus aliados!

A luta pela educação cresce em todo país…

Indo na contramão da atitude da burocracia sindical do Sepe, poucos dias após a saída de campo dos educadores do Rio de Janeiro, os servidores e professores dos Colégios Pedro II declararam greve, realizando logo após uma manifestação no centro da cidade com cerca de 1500 trabalhadores e estudantes. O mesmo fizeram aqueles ligados ao Instituto Federal e ao Instituto de Educação de Surdos. E seguem por caminho parecido os docentes de diversas universidades, que organizaram uma paralização nacional no dia 24 de agosto. Tais mobilizações se inserem em um conjunto ainda maior, a “Jornada Nacional de Lutas”, que aglomera importantes setores do funcionalismo público, entidades como o MST, dentre outros, em torno de uma campanha por melhorias sociais e trabalhistas.
Fora esses setores, também os educadores ligados à rede municipal do Rio de Janeiro estão mobilizados, preparando-se para um ato-paralização junto a diversos outros trabalhadores ligados ao funcionalismo público do município, contra medidas do governo que visam atacar sua previdência. Já os educadores da rede municipal de Niterói, cidade vizinha ao Rio, estão em greve desde o início de agosto! O irônico é que ambos setores se organizam através Sepe-RJ, porém o PSTU e o PSOL nada fizeram para unificar tais mobilizações, o que as tornaria muito mais poderosas. Pelo contrário, enfraqueceram-nas ao buscarem acabar nesse momento com a greve da rede estadual.

…mas é preciso ir além!

Nesse contexto de lutas do setor da educação, onde pautas como aumentos e reposições salarias, melhorias e descongelamento de Planos de Carreira, além da abertura de novos concursos, são quase onipresentes, o movimento dos educadores estaduais teria muito a oferecer enquanto um importante exemplo de combatividade a ser seguido por seus mais variados companheiros. Se unificadas, essa série de mobilizações seriam capazes de uma verdadeira “vitória histórica”, ao expandir e interligar a luta dos trabalhadores, mostrando seus interesses comuns contra o Estado capitalista e os patrões. Mas, ao retirar a categoria da luta, a direção do Sepe presta um verdadeiro desserviço à integração das mobilizações por melhores condições de trabalho e por uma educação pública, universal, gratuita e de qualidade. Portanto, cabe aos educadores não só passarem por cima dos burocratas de sua direção e lutarem pela continuação da greve, mas também pela aliança com os demais setores em luta.
É fundamental que os trabalhadores deixem as (péssimas) tradições corporativistas herdadas de anos de marasmo, que consistem em pensar apenas nos interesses específicos de sua própria categoria, e lutem pela unificação das suas campanhas. É verdade que as esferas de negociação são diferentes (Municipal, Estadual e Federal; Ensino Fundamental, Médio e Universitário; etc.), mas os trabalhadores não podem se deixar dividir por tal modelo fragmentador imposto pelo Estado dos patrões. Se queremos mudanças amplas e profundas na sociedade em que vivemos,  então temos que ter como perspectiva a unificação das diversas lutas. Uma só classe, uma só luta!
Mas quando falamos de unificar as diversas mobilizações em andamento, não nos restringimos à perspectiva de um ato nacional unificado, como é o caso da “Jornada Nacional de Lutas” comentada – o que sem dúvida possui peso e importância, mas não é suficiente. Ainda mais quando a principal demanda da “Jornada”, no que diz respeito à educação, se limita a exigir que o governo aumente para 10% do PIB a verba do setor. Ou seja, não só não apresenta um programa próprio com medidas práticas para a educação, como não questiona a ordem vigente, buscando apenas arrancar mais verbas do governo Dilma. “Exigir” mudanças por parte de Dilma e do PT, aliás, tem sido o carro-chefe de praticamente todas as campanhas do PSTU, que prefere mobilizar não para fortalecer e educar a classe sobre os limites do capitalismo, mas para “cobrar” melhorias do governo dos patrões.

Por um comitê unificado de trabalhadores da educação!

Na perspectiva de unificação das lutas, seria um grande avanço se @s profissionais da educação se unificassem em um Comitê de Luta dos Trabalhadores da Educação. Tal comitê deveria incluir não só os sindicatos de professores e funcionários em greve, mas também entidades estudantis. Esse tipo de iniciativa fortaleceria enormemente a luta dos grevistas e, com a adesão dos estudantes, daria fim ao discurso demagógico da mídia burguesa de que “greve na educação prejudica a juventude”, como se os educadores não estivessem lutando justamente por melhoras na educação dada aos jovens. Isso é algo importante, porque tal discurso ajuda a isolar as campanhas dos educadores em relação ao resto da classe.
Além desses setores, também seria fundamental buscar organizar os profissionais dos estabelecimentos privados de ensino, muitas vezes submetidos a condições mais precárias e com direitos muito mais restritos. É o caso, por exemplo, dos funcionários e funcionárias terceirizad@s que cuidam da faxina e de outros serviços, não só nas escolas privadas, como em praticamente todas as universidades, públicas ou não. Tais funcionári@s são em sua maioria mulheres negras, com salários de fome e sem nenhum direito trabalhista. Esse tipo de profissional, super-explorado pelo capitalismo, teria muito a ganhar em uma luta conjunta, que traria menos riscos de demissões e retaliações, já que contaria com o suporte de outras categorias e setores efetivos e com direitos sindicais.
Fora que um comitê assim teria grande força para conquistar demandas históricas ligadas à educação, como o passe livre e ilimitado para estudantes de todos os níveis; alojamentos, creches e bandejões gratuitos para estudantes, professores e funcionários (principalmente @s terceirizad@s) nivelamento nas três esferas (Municipal, Estadual e Federal) dos salários de acordo com os mais altos; etc. Mais importante ainda, uma luta desse tipo seria capaz de arrastar atrás de si outras categorias, inflamadas pelo exemplo combativo. Mas essas demandas avançadas, que representam um forte ataque aos lucros dos patrões, só podem ser conquistadas com união e combatividade. Elas apontam para as enormes possibilidades de melhorias sociais que podemos alcançar caso os trabalhadores estejam no poder, utilizando de forma planejada e democrática a enorme riqueza que produzem.
Porém, algo dessa magnitude só será possível quando, primeiro, os profissionais da educação romperem com o recuo e as capitulações de suas direções ante os ataques do Governo, como estão fazendo atualmente o PSTU e o PSOL à frente do Sepe. Segundo, superarem a lógica corporativista e atuarem enquanto uma só classe, unificada contra os patrões e contra o capitalismo. E terceiro, quando os estudantes passarem por cima da mentalidade de atuarem sozinhos e se aliarem à classe trabalhadora, como é o caso do exemplo que têm dado os estudantes chilenos, ainda que de maneira limitada. Romper com a burocracia sindical e o corporativismo. Avançar rumo a uma luta unificada pela educação pública, universal, gratuita e de qualidade!

Notas

[1] Nossas análises sobre esse processo foram recentemente publicadas no artigo O Vermelho Deles e o Nosso (13 de agosto, blog do RR).

[2] Nas últimas eleições, realizadas em maio de 2009, a Chapa 1 (Enlace e MTL) obteve 18 diretores, enquanto a Chapa 4 (PSTU, APS, PCB e Coletivo Paulo Romão, um racha do Enlace) obteve 16, de um total de 48 cargos para a Diretoria Central. As demais chapas (2 e 3 – encabeçadas pela corrente Democracia Socialista do PT e pelo PCdoB, respectivamente) obtiveram juntas 14 cargos. Cerca de dois terços da Chapa 4 foram compostos por membros do PSTU. Confira o resultado das eleições, no site do Sepe e a composição das chapas, no site do PSTU. Em abril desse ano, o Coletivo Paulo Romão deixou o PSOL junto com outro grupo, o Alternativa Socialista (centrado no Rio Grande do Sul). Os dois formaram uma nova organização, denominada Construção Socialista (CS).

Arquivo Histórico: A Contrarrevolução Triunfa na URSS

Defender os Trabalhadores Soviéticos Contra os Ataques de Yeltsin!
A Contrarrevolução Triunfa na URSS

A declaração a seguir foi publicada pela Tendência Bolchevique Internacional em setembro de 1991. Sua tradução para o português foi realizada pelo Coletivo Comunista Internacionalista em novembro de 2007. Ela permanece enquanto uma importante avaliação da situação política que culminou na destruição da URSS e as posições aqui apresentadas demonstram um correto entendimento do programa do defensismo revolucionário como formulado pela Quarta Internacional.

O golpe abortado em Moscou de 19-21 agosto foi tão mal concebido e executado que quase não aconteceu. Mas será lembrado como um dos acontecimentos decisivos na história do século 20. A vitória da corrente abertamente pró-capitalista ao redor de Boris Yeltsin, depois que o golpe fracassou, destruiu o poder de estado criado pela revolução de outubro de 1917. Isto representa uma derrota catastrófica não só para a classe trabalhadora soviética, mas para os trabalhadores em toda a parte.
Os acontecimentos de agosto foram a culminação de lutas recentes por poder dentro do Kremlin e no país como um todo. Mas, num sentido mais amplo, eles são o ato final na degeneração da burocracia stalinista, uma camada privilegiada que usurpou o poder político dos trabalhadores soviéticos desde meados da década de 1920. Em vez dos sovietes operários democraticamente eleitos de1917, os estalinistas erigiram um estado autoritário policial. Em vez do internacionalismo proletário de Lenin e Trotsky, eles criaram a doutrina do ”socialismo em um país”, que justificou a traição das revoluções no exterior para ganhar vantagens diplomáticas triviais. Apesar disso, mesmo com todos os seus crimes, a burocracia estalinista se sustentava sobre a economia coletivizada criada pela Revolução de Outubro e, da sua própria forma deturpada, frequentemente tentou defender estas fundações econômicas da pressão imperialista no estrangeiro e da contrarrevolução no interior. O fracasso do golpe de agosto acabou com o domínio desta casta burocrática, e levou à sua substituição por um grupo de regimes nacionalistas comprometidos a desmontar a economia de propriedade estatal, e recolocar o capital no poder.
Há mais de meio século, o líder da Oposição Esquerda, Leon Trotsky, advertiu que, a longo prazo, um sistema social baseado na propriedade coletiva nem poderia ser desenvolvido nem defendido com métodos burocráticos policiais. A estagnação da economia soviética durante os anos de Brezhnev representou uma confirmação poderosa desta predição. Numa tentativa inverter o declínio econômico da URSS, Mikhail Gorbachev avançou suas célebres reformas de mercado. O caos econômico e político causado pela Perestroika polarizou a burocracia Soviética, e as divisões internas tornaram-se particularmente agudas durante o ano passado. De um lado, uma ala da elite governante—identificada com o dirigente anterior do partido em Moscou, Boris Yeltsin—abraçou abertamente a restauração capitalista. Do outro lado, uma aliança de militares e burocratas do partido e do Estado, a assim chamada “linha-dura”, via o rumo em direção ao mercado e à desintegração nacional como uma ameaça a seu poder. Gorbachev agiu como um intermediário entre estas duas frações, inclinando-se alternadamente em direção ao ”reformadores” e à “linha-dura”.

Os Ziguezagues de Gorbachev
Começando em outubro de 1990, a linha-dura desencadeou uma ofensiva dentro do Partido Comunista Soviético. Forçaram Gorbachev a impedir o plano de 500 dias de Shatalin para a privatização da economia. Enviaram unidades ”boinas pretas” para tomar medidas contra os governos separatistas pró-capitalistas das repúblicas bálticas. Projetaram uma limpeza no escalões mais altos do partido, levando Gorbachev a retirar os ”reformadores” de postos-chave do partido e do governo, e substituí-los por servidores leais do aparato. Esta movimentação levou muitos dirigentes “reformadores” —mais notavelmente o ministro do exterior de Gorbachev, Eduard Shevardnadze—ao campo de Yeltsin, e à especulação comum nos meios de comunicação ocidentais de que Gorbachev tinha desistido da Perestroika.
Ainda, diante de manifestações enormes dos ieltsinistas em Moscou já na primavera passada, e do temor de que os imperialistas talvez fossem menos generosos com a ajuda econômica, Gorbachev recuou, e outra vez tentou cerrar fileiras com as forças de Yeltsin. Recusou-se a levar a intervenção báltica à sua conclusão lógica e depor os governos de lá. Mais uma vez, começou a avançar as medidas de mercado. Pior ainda do ponto de vista da linha-dura, ele aceitou o acordo “nove mais um”, que transferiu mais poderes governamentais da URSS para suas quinze repúblicas constituintes. As tentativas de conciliação de Gorbachev só incentivaram Yeltsin, que respondeu com uma série de decretos proibindo o Partido comunista dentro da polícia e das fábricas na República Russa. A linha-dura concluiu que o terreno internediário ocupado por Gorbachev estava desaparecendo rapidamente, e que eles não podiam mais depender dele para resistir a Yeltsin. Isto abriu o terreno para a formação do Comitê de Emergência e seu sequestro do presidente soviético na manhã de 19 agosto.

A Classe Trabalhadora Tem um Lado
À luz do fracasso abjeto do golpe, a discussão das posições das frações rivais agora pode parecer um exercício acadêmico infrutífero. Mas, só tendo uma orientação correta a respeito dos acontecimentos passados, a classe trabalhadora pode se armar para as lutas futuras. A tentativa de golpe de agosto era um confronto em que a classe trabalhadora tinha um lado. Uma vitória dos líderes do golpe não teria salvado a URSS do impasse econômico a que estalinismo a levou, nem iria acabar com a ameaça de restauração capitalista. Poderia, no entanto, diminuir o poder dos restauracionistas, ao menos temporariamente, e daria um tempo precioso para a classe trabalhadora soviética. A derrota do golpe, por outro lado, levou inevitavelmente à contrarrevolução, que está agora a todo vapor. Sem deixar de expor a falência política dos líderes do golpe, o dever dos revolucionários marxistas era tomar partido com eles contra Yeltsin e Gorbachev.
Não é surpreendente que a maioria da esquerda reformista e centrista se juntasse a Gorbachev e Yeltsin. Estes pseudo-marxistas são tão temerosos de ofender opinião liberal burguesa que sempre podemos esperar que eles tomem partido da “democracia”, mesmo quando as bandeiras democráticas são uma camuflagem para a a contrarrevolução capitalista. Um pouco mais confusos são os argumentos de grupos centristas que reconhecem Yeltsin como o restauracionista que é, admitem que o seu triunfo seria uma grave derrota para a classe trabalhadora, mas não obstante se recusam a tomar partido no golpe. Os proponentes desta posição “nem a favor nem contra” incluem a Liga Espartaquista dos EUA e seus satélites estrangeiros na Liga Comunista Internacional, que durante anos se proclamaram como os defensores mais incondicionais da União Soviética.
Os advogados da neutralidade dizem que os líderes de golpe não eram menos comprometidos com a restauração capitalista que Gorbachev e Yeltsin. Alguns apontam trechos na declaração principal do Comitê de Emergência, em que seus líderes prometeram honrar os tratados existentes com o imperialismo e respeitar os direitos da iniciativa privada na URSS. Os trotskistas, no entanto, nunca basearam sua atitude política nos pronunciamentos oficiais dos estalinistas, mas sim na lógica interna dos acontecimentos. Qualquer um que reivindique que não havia nenhuma diferença essencial entre as frações opostas terá dificuldade em explicar, em primeiro lugar, por que os líderes do golpe decidiram entrar num jogo tão desesperado. Quando uma fração da burocracia detém o presidente, tenta suprimir os principais restauracionistas e envia tanques para as ruas; quando membros dirigentes desta fração executam pactos de suicídio com suas esposas e se enforcam quando fracassam, está abundantemente claro que há mais envolvido do que uma querela sobre táticas.
As razões para as ações dos líderes de golpe são óbvias. Representaram a fração estalinista que tinha mais a perder com um retorno ao capitalismo. Viam a agressividade de Yeltsin, o poder crescente dos nacionalistas pró-capitalistas e a prostração de Gorbachev diante destas forças como um perigo mortal para o aparelho centralizado sobre o qual seus privilégios e prestígio estavam baseados. Agiram, mesmo se irresolutamente e no último momento, para deter a maré.
Não pode haver nenhuma dúvida de que a linha-dura foi completamente desmoralizada: tinham perdido a fé num futuro socialista de qualquer espécie, abrigado muito das mesmas noções pró-capitalistas de seus adversários, e eram apenas fracos demais para rebaixarem-se ao chauvinismo grão-russo e mesmo ao anti-semitismo para proteger o seu monopólio político. Mas a posição trotskista de defesa incondicional da União Soviética sempre significou a defesa do sistema de propriedade coletivizada contra as ameaças restauracionistas, independentemente da consciência ou das intenções subjetivas dos burocratas. O status quo que a linha-dura tentou proteger, embora incompetentemente, incluía a propriedade estatal dos meios de produção—uma barreira objetiva ao retorno da escravidão assalariada capitalista. O colapso da autoridade central do estado abriu o caminho para a torrente da reação que agora se desenrola no território da antiga URSS. Para conter o avanço desta torrente, os revolucionários deve estar preparados para fazer alianças militares táticas com qualquer seção da burocracia que, por qualquer razão, fique na frente da maré.

Derrotar a Contrarrevolução!
De forma alguma está tudo perdido para a classe trabalhadora da União Soviética. Os governos pró-capitalistas que se alçaram ao poder são ainda extremamente frágeis, e ainda não consolidaram seus próprios aparelhos repressivos de estado. A maioria da economia permanece nas mãos do estado, e os ieltsinistas encaram a tarefa formidável de restaurar o capitalismo sem o apoio de uma classe capitalista nativa. A resistência dos trabalhadores aos ataques iminentes aos seus direitos e bem- estar, portanto, envolverá uma defesa de muitos elementos do status quo sócio-econômico. Os regimes burgueses embrionários que estão se formando agora na ex-URSS podem ser varridos muito mais facilmente do que estados capitalistas maduros.
Nada disto, no entanto, pode mudar o fato de que os trabalhadores agora serão forçados lutar em um terreno fundamentalmente alterado em sua desvantagem. Eles não se constituíram ainda como uma força política independente, e continuam extremamente desorientados. O aparelho estalinista—que tinha um interesse objetivo em manter a propriedade coletivizada—foi destruído. Mais resistência por parte dos estalinistas é improvável, já que eles fracassaram num teste político decisivo, e os quadros que tentaram resistir estão agora em aposentadoria forçada, presos ou mortos. Em resumo, o maior obstáculo organizado à consolidação de um estado burguês foi eficientemente retirado. Antes do golpe, a resistência massiva da classe trabalhadora à privatização teria rachado a burocracia estalinista e seus defensores armados. Agora, os trabalhadores lutando para inverter a onda restauracionista vão encarar “corpos de homens armados” dedicados aos objetivos dos capitalistas ocidentais e seus aliados internos. Este poder incipiente de estado deve ser desarmado e destruído pelos trabalhadores.
A transição de um Estado Operário Degenerado para um Estado Burguês consolidado não é algo que possa acontecer em um mês nem um ano. Em 1937 Trotsky predisse isso:

”Se uma contrarrevolução burguesa prosperasse na URSS, o novo governo, durante um período prolongado, teria que basear-se sobre a economia nacionalizada. Mas, o que tal um tipo de conflito temporário entre a economia e o estado quer dizer? Significa uma revolução ou uma contrarrevolução. A vitória de uma classe sobre outra significa que a economia será reconstruída no interesse da vencedora.”
— ”Nem Um Estado Operário nem um Estado Burguês?”

Era claro para ele, assim como para nós, que tal transformação só pode ocorrer como o resultado de um processo em que o estado operário é subvertido por graus. A tarefa da análise é localizar o ponto decisivo nesta transformação, ou seja, o ponto além do qual as tendências dominantes não podem ser invertidas sem a destruição do poder de estado. A aceleração em direção à restauração capitalista estava sendo construída na União Soviética há muitos anos. Todas as evidências disponíveis levam-nos a concluir que a derrota do golpe e a ascensão ao poder dos elementos comprometidos com a reconstrução da economia numa base capitalista constituiu um salto qualitativo decisivo.
A ação revolucionária não pode ser baseada em ficções agradáveis. A luta pelo o futuro socialista exige a capacidade de encarar realidade duramente e ”falar a verdade às massas, não importa o quanto amargo possa ser”. A vitória do ieltsinistas é uma derrota enorme para a classe trabalhadora. A tentativa de reimpor o capitalismo na União Soviética envolverá ataques aos interesses mais básicos de dezenas de milhões de trabalhadores. Ainda resistindo a estes ataques, os trabalhadores soviéticos poderão redescobrir suas próprias tradições heróicas. As idéias revolucionárias do bolchevismo, as únicas que correspondem à necessidade do progresso histórico para a humanidade, podem superar qualquer obstáculo. Mas estas idéias só se tornam um fator na história através da ação de um partido do tipo que dirigiu a revolução em 1917—um partido educado no irreconciliável espírito revolucionário de Lenin e Trotsky. A luta por tal partido, uma Quarta Internacional renascida, permanece a tarefa central de nosso tempo.

Bombeiros: O Vermelho Deles e o Nosso

As “Greves” Policiais, os Bombeiros e a Esquerda
O Vermelho Deles e o Nosso

Por Rodolfo Kaleb
Agosto de 2011

No início de junho as recentes reivindicações dos Bombeiros Militares do estado do Rio de Janeiro chegaram a um ápice quando o Quartel Central da corporação foi ocupado após uma passeata no centro da capital. Esse foi o ponto de maior tensão num processo que se estendia desde abril, incluindo muitas passeatas e aquartelamentos (ato de permanecer nos quartéis nos fins de semana) realizados pelos bombeiros na busca pelos seus interesses. Em grande parte dessas ações, os bombeiros receberam apoio de membros da Polícia Militar do Rio de Janeiro, inclusive fazendo parte das passeatas. Na ocupação do Quartel Central, entretanto, a polícia manteve uma posição mais “moderada”, e tentou retirar os bombeiros do Quartel. Diante dos fracassos na negociação, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar reprimiu violentamente os bombeiros e prendeu 439 deles. Essa não foi a primeira situação em que se projetou uma repressão aos bombeiros por parte da polícia – em abril as passeatas já vinham sendo acompanhadas pelo Batalhão de Choque da PM, armado com gás lacrimogêneo, armas de efeito moral e cassetetes (que geralmente são usados para dispersar mobilizações operárias, populares e estudantis).

A cidade foi impactada pela repressão aos bombeiros. Do dia para a noite as fitas, adesivos, cartazes e faixas vermelhos prestavam apoio e solidariedade aos bombeiros. Sem dúvida grande parte da população apoiou a luta da corporação. Infelizmente, essa não foi uma expressão de consciência de classe por parte dos trabalhadores (como muitos na esquerda pretenderam), mas um reflexo do seu estado de nível de consciência recuado (e do oportunismo gangrenoso na esquerda brasileira). Os bombeiros são parte da Polícia Militar do Rio de Janeiro e como tal são utilizados (ainda que com menor frequência) em tarefas de repressão da classe trabalhadora e outros setores populares. Essa não é uma situação atemporal no Brasil e nem comum a todos os países, mas a atual subordinação dos bombeiros militares (armados e treinados) à polícia os caracteriza como parte dos “corpos profissionais de homens armados” sob controle da burguesia brasileira e os torna aptos como os inimigos, e não os aliados, dos trabalhadores em sua luta pelo socialismo.

A natureza complexa dos Bombeiros Militares

A paralisação e as mobilizações dos bombeiros militares abriram uma situação relativamente nova para a esquerda. Embora muitos tenham suas posições sobre apoiar ou não greves policiais definidas há muito tempo, a condição dos bombeiros não é exatamente a mesma do restante da polícia, o que sem dúvida gerou confusão entre grupos que normalmente se opõem às “greves” policiais. É necessário reconhecer, antes de tudo, que a condição dos bombeiros militares é complexa, uma vez que eles não são, por essência, profissionais de repressão. A Liga Comunista (uma pequena organização centrada em São Paulo) foi uma das que tentou simplificar a realidade ao extremo para facilitar uma resposta política, igualando os bombeiros à polícia em todos os países, apagando qualquer diferença entre eles:
“Somos pela destruição dos bombeiros porque são uma polícia burguesa, por serem, repetindo mais uma vez os ensinamentos do velho Engels, um destacamento especial de homens armados do Estado capitalista, não simplesmente por serem militarizados. (…) Por sua vez, os bombeiros são militarizados no Brasil e não militarizados nos EUA, Japão e Austrália, e nem por isto deixam de ser uma força coadjuvante da repressão policial nesses países”

Diferente do que propõe a Liga Comunista, os bombeiros não são por natureza uma “força de repressão coadjuvante” ou uma “polícia burguesa igual a qualquer outra”. Na maioria das democracias burguesas, como é o caso nos Estados Unidos, eles cumprem apenas tarefas de resgate, manutenção, prevenção de acidentes, etc. Nos Estados Unidos e na maioria dos países dos quais temos conhecimento, os bombeiros cumprem um papel necessário e seus interesses podem ser considerados os mesmos dos proletários. Sem dúvida alguma, os bombeiros brasileiros também cumprem tarefas socialmente úteis. Entretanto, o fato de estarem subordinados à Polícia Militar e ao Exército, e de amplos setores receberem armas e treinamento de combate, faz com que eles sejam elementos aptos a reprimir a classe operária, e que se identificam conscientemente e os seus interesses com os da polícia.

A condição de policiais militares só foi incorporada aos bombeiros no Brasil após a Segunda Guerra. Durante um breve período, na década de 1930, os corpos de bombeiros foram desmilitarizados, quando o governo bonapartista de Getúlio Vargas quis diminuir o poderio militar dos estados. A sua condição de corpos armados subordinados à polícia foi acentuada durante o regime militar (1964-85), quando eles foram completamente integrados à hierarquia das polícias a nível nacional [1]. Isso se deveu a uma necessidade do Estado brasileiro por mais forças de repressão. Foi nesse período que os bombeiros foram mais utilizados em ações repressivas. Uma das situações mais comentadas pela esquerda foi o atentado a bomba no Riocentro em primeiro de maio de 1981. Na época, um setor militar planejou um atentado à bomba contra um show de comemoração do dia do trabalhador, que por sorte foi frustrado e acabou matando um dos seus executores. Nesse momento, muitos bombeiros eram parte do GOESP (Grupo de Operações Especiais), ao qual o atentado foi atribuído, que perpetrava ações qualificadas de investigação e repressão contra a esquerda e o movimento dos trabalhadores. Mesmo após o fim do regime militar, os bombeiros foram mantidos na estrutura policial e mantiveram todos os treinamentos que qualificam grande parte deles para a repressão, o que os deixa preparados para serem utilizados como policiais sempre que o Estado burguês sentir necessário.

O nível relativamente baixo de luta de classes faz com que os bombeiros sejam utilizados com menor frequência em atividades oficiais de repressão. Mas apenas porque isso não tem sido necessário. Não há dúvida de que, em sua condição atual, diante de um levante na mobilização dos trabalhadores, os bombeiros podem e serão utilizados para atacar o movimento dos proletários. Talvez a prova mais cabal disso seja o fato de que eles têm reprimido violentamente a população atuando nas milícias que dominam vários ramos comerciais nas periferias do Rio de Janeiro, explorando e oprimindo a população pobre. De acordo com o próprio Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, 25% dos milicianos são membros do corpo de bombeiros [2].

Uma das organizações que diz ser contra as greves de policias, e que mesmo assim apoiou o motim dos bombeiros, foi o Coletivo Lenin, do Rio de Janeiro. Esse grupo, que antes era uma tentativa honesta, ainda que com falhas, de construir um partido revolucionário [3], manteve até agora a sua posição traiçoeira mesmo após o panfleto que tentou distribuir no acampamento dos bombeiros ter sido proibido pela liderança do “movimento” porque fazia críticas à polícia. Apesar de já ter ficado evidente para a maioria dos militantes honestos da esquerda que os bombeiros são parte da polícia, o Coletivo Lenin insiste que:
Mas acreditamos que a luta dos Bombeiros deve ir além da demanda por um piso salarial decente. Diferente da polícia e das Forças Armadas, os Bombeiros não cumprem nenhum papel repressivo na sociedade, pelo contrário, o papel deles sim é ajudar e socorrer.”

Nenhuma justificativa de confusão honesta explica porque o Coletivo Lenin mantém a sua posição sem nenhum balanço público desse erro. Agindo assim, o grupo apoia um aumento salarial para profissionais treinados para repressão, coisa que era terminantemente contra até então. Talvez pior, diz para a vanguarda dos trabalhadores que o papel dos bombeiros é simplesmente “ajudar e socorrer”, despreparando-os para futuras situações radicalizadas da luta de classes, em que os bombeiros serão instrumentos de repressão utilizados com frequência muito maior do que hoje. A explicação para essa posição não é uma falta de informação, mas simplesmente uma adaptação do Coletivo ao nível atual da luta de classes, um pessimismo com relação às possibilidades de a classe operária e se radicalizar.

Sem dúvida seria vantajoso para os trabalhadores se os bombeiros deixassem de ter treinamento de repressão, armas e fossem desvinculados da polícia, já que assim suas características de repressão seriam destruídas. No entanto, esse era o conteúdo oposto ao da reivindicação dos Bombeiros, que o Coletivo Lenin e muitos outros na esquerda apoiaram. Os bombeiros no Rio de Janeiros são parte das mesmas organizações “sindicais” que os policiais e uma a uma, as suas reivindicações propunham aproximá-los do aparato policial, e não afastá-los.

A principal reivindicação dos bombeiros era um aumento salarial e “melhores condições de trabalho”, como o vale transporte. Essas reivindicações, por si sós, tornam a profissão de bombeiro militar muito mais atraente. Em outras palavras, fazem pressão para que os proletários se sintam tentados a se tornar parte do aparato de repressão burguês. “Melhores condições de trabalho” para os policiais só pode significar melhores armas, carros e munições a serem usados contra os trabalhadores e a população pobre, como nós discutiremos melhor mais a frente.

Outra reivindicação dos bombeiros era serem transferidos para a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. Os bombeiros haviam recentemente sido alocados na Secretaria de Saúde, uma posição afastada dos demais policiais e que eles claramente repudiavam. Uma nota no blog “SOS Bombeiros” reclama dessa situação de maneira visivelmente reacionária:
“Todos os Bombeiros Militares e certos setores da sociedade civil sabem o desastre que foi e é a inclusão do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro na Secretaria de Saúde. Contrariando o artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nossa Carta Magna, o CBMERJ [Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro] está subordinado à Secretaria de Saúde e Defesa Civil, e não a Secretaria de Segurança Pública ou de Defesa Civil. Pasmem! Estamos inconstitucionalmente recebendo ordens de um secretário paisano, médico cirurgião ortopédico, que manda no Comandante Geral.”

Blog SOS Bombeiros, 31 de maio
Depois de reclamarem por “receberem ordens” de um civil, os bombeiros militares conseguiram parte do que queriam. Após a repressão no Quartel Central no início de junho, o Governador Sergio “Assassino” Cabral já criou uma Secretaria de Defesa Civil que é composta unicamente pelo corpo de bombeiros. E o Secretário é o Comandante Geral da corporação. Essa medida, que cumpre uma das exigências dos bombeiros, torna mais fácil a sua utilização em atividades de repressão contra os trabalhadores, já que passam a “receber ordens” diretamente do Comandante.

Outra reivindicação dos bombeiros é a aprovação da PEC 300, um projeto de emenda à Constituição para aumentar o piso salarial dos policiais militares (e também dos bombeiros militares) em todo o Brasil. O movimento dos bombeiros está abertamente convocando uma marcha para Brasília para lutar por essa medida. Somente as organizações que tomam a “melhoria das condições” dos policiais como algo vantajoso para os trabalhadores teriam interesse em apoiar o motim dos bombeiros. Diante de um confronto como esse, em que todas as reivindicações dos bombeiros são negativas para os trabalhadores, a única posição revolucionária é de nenhum apoio a qualquer dos lados, e de sair em defesa dos interesses da classe proletária.Nenhuma confiança na polícia ou nos bombeiros! Pela destruição de todos os aparatos de repressão da burguesia! Nenhum apoio ao motim de 3 de junho! Qualquer outra posição é uma traição.

Os revolucionários deveriam dar apoio a ações dos bombeiros somente se a sua manifestação refletisse um conteúdo representando setores que não são treinados para reprimir, em oposição à polícia e em repúdio às atividades de repressão para as quais muitos bombeiros são treinados. Levantando a bandeira de oposição às ações repressivas, os bombeiros estariam, momentaneamente, defendendo algo que também é interesse dos trabalhadores. Mas isso não mudaria nossa oposição aos aparatos de repressão. Aqueles que escolhem permanecer membros das ferramentas de combate da burguesia são inimigos da classe trabalhadora. A única solução definitiva é a destruição dos órgãos de repressão capitalistas. Somente os trabalhadores podem fazer isso, organizando a sua própria segurança, de forma independente dos patrões e contra estes. Pela autodefesa dos trabalhadores e oprimidos! Destacamentos operários contra os policiais da burguesia!

A esquerda e as “greves” policiais

O mais entusiasmado de todos com o levante dos bombeiros militares foi sem dúvida o PSTU, que adotou um adesivo com o lema “Somos todos bombeiros”. Ignorando o fato de que as reivindicações dos bombeiros fortaleciam os aparatos repressivos, assim como as greves policiais por “melhores salários e condições de trabalho”, o PSTU deu “total apoio” à luta dos bombeiros:
“O PSTU vem a público manifestar total apoio à luta dos trabalhadores do corpo de bombeiros, que durante meses vem exigindo do governador Sergio Cabral que sente para negociar suas reivindicações por melhores condições de trabalho, por um aumento decente dos salários, pelo pagamento do vale transporte, e pelo fim das gratificações.”

Somos Todos Bombeiros, site do PSTU, 4 de junho
Provavelmente a posição do PSTU não seria muito diferente se aqueles que lutassem por “melhores condições de trabalho” fossem os policiais que são usados, não apenas em conjunturas específicas, mas diariamente, na repressão dos movimentos sociais e da esquerda. Numa declaração de seu dirigente sindical Zé Maria, o PSTU explicou que:
“Essa luta [dos bombeiros no Rio de Janeiro], por si só, é na verdade a ponta de um verdadeiro iceberg, do descontentamento dos bombeiros e policiais civis e militares de todo o País, que lutam pela aprovação da PEC 300, que estabeleceria um piso salarial digno para o setor.”

Curiosamente, a PEC 300 une não apenas os policiais militares, civis e bombeiros, como também todos os partidos da direita reacionária brasileira. O DEM e o PSDB têm estado na ponta de lança do projeto e agora recebem o apoio “inesperado” de um dos partidos da “extrema esquerda” para fortalecer os carrascos da classe trabalhadora. É especialmente deseducativo para a vanguarda da classe trabalhadora que um partido que reivindica o legado do trotskismo e com considerável influência na juventude tenha essa postura plenamente adaptada ao sistema capitalista e ao Estado burguês. Por isso é nosso papel, mesmo com nosso pequeno alcance, desmistificar esta posição adaptada ao senso comum de que “policial também é trabalhador” e quebrar os argumentos pseudo-ortodoxos que o PSTU coloca.

Numa polêmica que chamou a atenção da maior parte da esquerda, o PSTU (através de Eduardo Almeida Neto, seu principal dirigente político) acusa a Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI), de criar “manobras” para, corretamente, não apoiar a luta dos bombeiros:
“A primeira é que, como os policiais não são trabalhadores, é errado apoiar suas greves. Evidentemente os policiais não são partes do proletariado, e trabalham em uma instituição repressora do Estado burguês, uma superestrutura a serviço da classe dominante. Entretanto, essa é só uma parte da realidade. A outra parte é que, por serem recrutados no proletariado, os policiais também vendem sua força de trabalho e sofrem com a péssima qualidade de vida como qualquer outro trabalhador, pois recebem baixos salários, pegam ônibus e metrôs lotados, moram nas periferias.”

Antes de tudo, o próprio PSTU disse inúmeras vezes ao longo de muitos anos que os policiais eram trabalhadores. Ele aceita sindicatos policiais na central sindical que dirige (a CSP-Conlutas) e sempre levanta, em protestos, a palavra de ordem dirigida aos policiais “Você aí fardado, também é explorado”. Por exemplo, num texto de 2007, o PSTU diz com todas as letras:
Esta é realidade de todas as categorias (policiais, professores/as, trabalhadores/as da saúde, da universidade, do transporte, operários/as, etc.) que formam uma única classe. O nosso desafio está em nos unirmos, nossa luta é uma só. Por isto, damos todo o apoio aos/às trabalhadores/as da segurança pública que se encontram no estado de Santa Catarina paralisados/as por melhores condições de trabalho (…)

O primeiro trecho de Eduardo Almeida é interessante porque ele nega que os policiais sejam trabalhadores numa tentativa de se manter na ortodoxia formal (renegando o próprio passado das formulações do PSTU),  apenas para “aparecer bem” na polêmica. No entanto, logo Eduardo Almeida conclui que, apesar de não serem trabalhadores, os policiais são praticamente a mesma coisa: são recrutados do proletariado, pegam metrô lotado, etc. De fato, para Eduardo Almeida, teríamos que olhar num microscópio para achar uma diferença entre um metalúrgico, professor ou terceirizado e um policial. Para Trotsky, a questão era bem diferente:
“O fato de que os agentes de polícia tenham sido recrutados em grande parte entre os operários social-democratas não quer dizer absolutamente nada. Aqui também a existência determina a consciência. O operário que se torna um policial a serviço do Estado capitalista é um policial burguês, não um operário”.

A Revolução Alemã e a Burocracia Stalinista, Leon Trotsky, 1932, citado na resposta da LER-QI
Nenhum outro “trabalhador”, a não ser os policiais (inclusive, nesse caso, os bombeiros também) podem ser usados para reprimir uma greve, uma passeata ou uma ocupação de fábrica. Nenhuma outra “categoria” é tão condicionada material e ideologicamente para a atividade de obedecer às ordens de atirar, espancar e bater em trabalhadores, pobres e negros.

Não é preciso lembrar as lições de séculos da classe operária, aprendidas pelos verdadeiros revolucionários: muitos militantes do PSTU sofrem repressão da polícia frequentemente. No entanto, mesmo com a resposta bem diante do seu nariz, os líderes do PSTU surfam na onda da popularidade das greves policiais, ao invés de aproveitar estas oportunidades para lembrar aos trabalhadores (inclusive os mais combativos, que são presos, recebem golpes e gás de pimenta) que não podem contar com a polícia para nada de positivo.

O PSTU costuma dizer que, apesar de a polícia ser repressora, os movimentos da base dos policiais são progressivos, pois colocam os policiais “tipo trabalhador” contra os seus superiores. Essa é uma concepção absolutamente irracional, que imagina que uma luta de alguém que ganha menos contra alguém que ganha mais é sempre positiva, em qualquer situação. Será que Eduardo Almeida e os demais líderes do PSTU já pensaram qual é o resultado de uma luta vitoriosa dos policiais por “melhores salários” ou “melhores condições de serviço”? É claro que já, e há muito tempo, mas preferem continuar reproduzindo sua posição para se manterem adaptados ao que pensa a maior parte da população (e a maior parte dos trabalhadores, por sinal): que a polícia é igual a eles. Acontece que, mantendo o atual nível de consciência dos trabalhadores, nenhuma revolução socialista será possível, com a possível exceção de uma “revolução de fevereiro” [4] que nada mude na condição essencial dos explorados e oprimidos.

Se os policiais recebem mais verbas públicas, para melhorar suas “condições de trabalho” isso significa mais dinheiro para os mecanismos de repressão (carros, armas, munição, bombas, serviço de espionagem e inteligência). Salários mais altos para os policiais (como proposto pela PEC 300) significa que mais e mais proletários se sentirão pressionados a se tornarem elementos de repressão da burguesia, e também, logicamente, o aumento de fardados para reprimir os trabalhadores, oprimidos e a esquerda (inclusive o próprio PSTU)! Eduardo Almeida e os outros líderes de PSTU não devem conseguir dormir tranquilamente a noite ao pensarem que a sua política pode, e irá, se os policiais forem bem sucedidos, resultar em mais repressão ou até mesmo prisões de militantes dentro do seu próprio partido (como aconteceu na visita de Obama no Rio, no final de março).

Outro argumento que os dirigentes do PSTU sempre levantam quando questionados é que as lutas dos policiais acontecem junto às dos “demais trabalhadores públicos”. Essa é uma situação real, embora não tão comum como o PSTU pressupõe. Isso porque a maioria dos cortes no setor público acontece sempre nos setores que são necessários à população, como saúde e educação, enquanto as áreas fundamentais para a burguesia, como a de segurança, justiça ou o parlamento, dificilmente sofrem cortes. Mas e quando os policiais parecem estar lutando contra os mesmos ataques que os trabalhadores? Mesmo nessas situações, o papel dos revolucionários deve ser de buscar separar os trabalhadores dos seus carrascos. Devemos dizer “Eles estão aqui hoje para nos reprimir melhor amanhã!” Diferente dos setores públicos que são úteis para os trabalhadores, uma situação melhor para os policiais significa uma situação mais difícil para os trabalhadores na luta por sua emancipação. O mesmo vale para os policiais que se organizam em “sindicatos” para lutar por melhores condições. Os revolucionários devem fazer ouvir a palavra de ordem de Policiais para fora das centrais sindicais! Nenhum reconhecimento aos inimigos organizados da classe trabalhadora.

É preciso notar que essas ilusões na polícia estão presentes mesmo naqueles grupos que se reivindicam os mais ortodoxos. Um desses casos é o Movimento Negação da Negação (MNN), centrado em São Paulo, e que busca ser parte do Comitê Internacional liderado por David North. Uma notícia publicada no site do MNN em 12 junho compara explicitamente os bombeiros e policiais com “outras categorias” de trabalhadores.
A revolta dos bombeiros, que culminou na ocupação do quartel da corporação, ganhou o apoio de uma multidão de cerca de 30 mil pessoas hoje na orla de Copacana, no Rio de Janeiro. Além de, no meio da última semana ter tido manifestações de apoio de outros estados e outras categorias. Na quarta-feira, por exemplo, os policiais militares do Rio também aderiram ao movimento. O movimento recebeu manifestações de apoio desde sindicatos até deputados.”

O Comitê Internacional faz inúmeras críticas à corrente histórica do PSTU, fundada por Nahuel Moreno (e por isso apelidada de “morenista”). No entanto, o grupo de David North acaba, ao menos no seu apoio às “greves” e “lutas” dos policiais, trilhando o mesmo caminho que os seguidores de Nahuel Moreno, e um caminho diferente daquele de Trotsky.

Talvez alguns membros do MNN (que traduziram grade parte da seção em português do site do Comitê Internacional) ignorem o fato que o apoio a esses tipos de movimentos policiais de conteúdo reacionário é uma tradição da organização americana do Comitê Internacional, a Workers League (Liga dos Trabalhadores), precursora do atual SEP (Partido da Igualdade Socialista) norte-americano. Em 1971, a Workers League deu apoio a uma enorme “greve” policial em Nova Iorque, considerando que os policiais seriam aliados da luta dos trabalhadores contra a prefeitura da cidade [5].

Mais do que nunca é essencial que os militantes honestos (dentro ou fora destas organizações) encarem de frente a verdadeira natureza da polícia, que os seus próprios dirigentes parecem ignorar, confiando que a luta dos policiais pode se unir a dos trabalhadores numa perspectiva socialista. Somente com uma vanguarda que desmascare brutalmente a polícia diante das massas é possível que os trabalhadores criem consciência dos seus interesses de classe e se revoltem contra a ordem e a ideologia da burguesia.

As “manobras” do PSTU e a proposta incoerente da LER-QI

Na já citada polêmica entre o PSTU e a LER-QI, é impossível não perceber que a LER-QI, ao menos na maior parte dos argumentos colocados, levou a melhor. Ela respondeu à maioria das formulações pseudo-ortodoxos do PSTU e mostrou corretamente que os aprendizes de Nahuel Moreno, como Eduardo Almeida, abandonam qualquer tipo de estratégia revolucionária para seguir conforme a música dos bombeiros e dos policiais. É sintomático de organizações centristas, como o PSTU, tentar manter a pose revolucionária enquanto a natureza de sua posição é absolutamente reformista, adaptada aos limites do capitalismo. No entanto, o PSTU tentou fazer passar uma série de “argumentos” falaciosos, tentando mostrar que a política da Terceira Internaconal Comunista e do trotskismo com relação ao aparato repressivo burguês era semelhante à sua própria. Esses argumentos são os mais nocivos e deseducativos para a vanguarda.
“O partido bolchevique sempre defendeu uma estratégia de luta pelo poder que incluía uma faceta militar que começava com o objetivo de dividir as forças armadas burguesas antes da insurreição. Essa tarefa preparatória é fundamental para que no momento da crise revolucionária a vitória militar seja possível.”

“Nas instruções da III existiam propostas concretas de como desenvolver esse tipo de trabalho que incluíam ‘Reivindicações a serem levadas no domínio dos direitos e condições materiais dos soldados: 1) Elevação dos soldos; 2) Melhoria da alimentação; 3)Comissões de orçamento do pessoal; 4)Abolição das penas disciplinares… ’ (O trabalho militar revolucionário sobre as forças armadas da burguesia, IOSSIF S. UNSCHLICHT).”
Não há a menor dúvida de que seja necessário dividir as forças armadas da burguesia. No entanto, nesse caso dividir significa desmobilizar, desarticular, com o objetivo de destruir tais forças. É esclarecedor perguntar: qual foi a política do PSTU para “dividir” as forças da burguesia no motim dos bombeiros e nas últimas greves policiais? Pelo contrário, a sua política tem sido de dar “total apoio” e de “unir” os trabalhadores e a polícia. O objetivo dos revolucionários deve ser de esfacelar as forças de repressão (inclusive ganhando setores das forças armadas, nos períodos de crise revolucionária, para lutar ao lado do proletariado) ao mesmo tempo em que as denuncia diante dos trabalhadores, não de “melhorar” a estrutura da polícia ou fazer dela equivalentes fardados dos trabalhadores.

O PSTU cita, inadvertidamente, um teórico da Terceira Internacional dizendo que é necessário levantar demandas pela melhoria das condições dos soldados. Em primeiro lugar, o documento a qual se refere o PSTU, do teórico militar Iossif Unszlicht, foi produzido pela Terceira Internacional já sob domínio stalinista, em 1928. Apesar disso, o texto contém uma série de aspectos corretos, que o PSTU ignora, ou melhor, esconde. As várias melhorias que o PSTU levanta estão alocadas como segundo ponto das reivindicações que, segundo Unszlicht, os revolucionários devem agitar nas forças armadas da burguesia. Elas podem ser úteis para desmobilizar os soldados recrutados por obrigação dependendo de outras demandas e, principalmente, do contexto. Ao ler o texto de Iossif, Eduardo Almeida parece ter “esquecido” o que diz o texto com respeito às tropas profissionais e voluntárias (como é o caso da polícia):
Reivindicações a serem levantadas no domínio da organização das forças armadas: (1) Dissolução das forças armadas mercenárias, tropas de quadros e comandos profissionais; (2) Desarmamento e dissolução da polícia civil, da polícia militar e de outras tropas especiais de guerra da burguesia (…)”

Já que o texto de Iossif parece ao PSTU uma boa inspiração, então ele pelo menos deveria ser mais honesto na hora de explicar as suas lições, e não esconder as partes que estão em total desacordo ao que o partido tem defendido. Depois dessa “manobra”, levantam-se algumas outras acusações contra a LER-QI:

“O outro equívoco completo é atribuir às polícias militares uma composição social diferente das Forças Armadas. A LER esboça uma avaliação de que se pode dividir o Exército porque inclui soldados não profissionais, pelo serviço militar obrigatório. Isso é um erro grave.”

Nisso só podemos congratular a LER-QI por ter sanidade o suficiente para perceber que o exército (sobretudo em períodos de crise revolucionária ou guerra) é composto por jovens recrutados da classe trabalhadora e outros setores oprimidos, sem treinamento militar ou lavagem cerebral ideológica e que são recrutados por obrigação (e não por escolha, como a polícia) para dar o sangue em troca dos interesses mesquinhos da burguesia. Se o PSTU ignora essa diferença e acredita que, numa situação propícia, o trabalho dos revolucionários pode acontecer igualmente na polícia como no exército ou marinha, então vamos torcer para nunca chegar o dia em que o PSTU fará esse tipo de trabalho, pois as suas consequências serão absolutamente desastrosas. Em História da Revolução Russa, Trotsky escreveu:

“Enquanto isso, o desarmamento dos “faraós” [apelido dos policiais russos] se tornou uma palavra de ordem universal. A polícia é o inimigo cruel, implacável, odiado e odiante. Ganhá-los está fora de questão. (…) É diferente com os soldados: a multidão faz todo o esforço para evitar encontros hostis com eles; pelo contrário, procura meios de dispô-los a seu favor, convencer, atrair, fraternizar e se fundir com eles”

História da Revolução Russa, Capítulo 7, 1930
Nos momentos de crise revolucionária, destruir as forças armadas da burguesia inclui rachar o exército para lutar ao lado dos proletários. Sem isso, dificilmente uma revolução poderá obter sucesso. Nessas situações, junto às demandas de destruição das forças armadas é correto chamar os soldados a combater do mesmo lado dos esquadrões operários, mas ao mesmo tempo em que o exército e a polícia são combatidos e não “apoiados” pelos trabalhadores. Os revolucionários devem ter em mente que isso exige uma situação de crise revolucionária, que isso não irá acontecer sem que os trabalhadores tomem a dianteira e formem a suas forças organizadas. Rachar um setor da polícia, que opta pela sua função e que é composto em absoluto por repressores profissionais, é uma tarefa que dificilmente será bem sucedida, mesmo em situações assim. As armas da burguesia não são iguais – e os revolucionários não devem ser indiferentes a isso em suas táticas.

Em nenhum momento esse é o conteúdo da política do PSTU. O partido acha que, em qualquer conjuntura, pode (dando “total apoio”) “dividir” a polícia. Quem protagonizaria esse racha, para nossa surpresa, não seriam os operários, demonstrando sua força através dos seus destacamentos, mas ele partiria, aparentemente, das próprias forças da burguesia. É cômico que o PSTU acuse a LER-QI de ter uma estratégia “esponteneísta” (por não apoiar a luta dos bombeiros) quando em nenhum momento esse partido levantou a demanda das autodefesas ou destacamentos de trabalhadores.Isso é espontaneísmo: esperar que sem o papel ativo e protagonista dos trabalhadores, a polícia se divida.

Se muitos dos argumentos da resposta da LER-QI ao PSTU foram corretos, a postura da primeira também conteve uma proposta bastante incoerente. Num outro texto sobre os bombeiros, ao mesmo tempo em que apontava a posição errada do PSTU, a LER-QI escreveu que:
O PSTU e a Conlutas devem tomar a dianteira para organizar a luta contra a exploração capitalista e a repressão estatal, o que exige não defender as instituições repressivas, mas combater pela dissolução de todos os órgãos de repressão, pois sua função essencial é defender a propriedade privada e eliminar a possibilidade de luta dos trabalhadores e das massas exploradas. Os militantes que se consideram combativos do PSOL devem dar um passo adiante para encarar essas tarefas, e isso exige romper com este partido que cada vez mais avança a passos largos para ser um partido da ordem.

Nenhum apoio ao repressor Sergio Cabral nem ao motim dos bombeiros, site da LER-QI, 5 de junho (ênfase nossa)
Por tudo que foi aqui demonstrado (e também pelo que a própria LER-QI argumentou), é no mínimo curioso que os representantes brasileiros da Fração Trotskista (organização internacional da LER-QI, liderada pelo PTS argentino) chamem o PSTU a liderar uma luta que vai no sentido oposto à própria política do partido. Talvez uma explicação das razões ocultas dessa determinação que a liderança da LER-QI tem para que o PSTU “tome a dianteira” fosse uma tentativa de ganhar os militantes honestos do PSTU contra a política da direção do mesmo partido. Mas isso não foi em momento algum colocado.

Os revolucionários não são indiferentes ao fato de que as organizações centristas (como o PSTU), e mesmo partidos reformistas, possuem contradições internas, muitas à esquerda, e que podem ser resolvidas ganhando largas frações de tais grupos para uma política revolucionária. Mas essa ruptura precisa se dar em algum momento e somente os revolucionários podem cumprir o papel de separar os militantes honestos que são atraídos inadvertidamente para organizações engessadas e aqueles que já estão conscientemente presos a políticas centristas ou ao aparato burocrático do partido. Esse trabalho sem dúvida alguma precisa ser realizado frente ao PSTU e pode ser consideravelmente importante nos primeiros passos da construção de um partido revolucionário, dado o peso e a sua pose aparentemente ortodoxa. Mas o PSTU em si, como partido que existe hoje, afasta os militantes honestos das concepções genuinamente revolucionárias, ao invés de aproximá-los delas. Estes militantes caem numa armadilha ao ver um partido que se diz trotskista e se veste de vermelho, mas cujas políticas são, por inúmeras vezes, descaradamente reformistas.

A liderança da LER-QI possui sérias ilusões no PSTU (e em sua direção) se compreende que esse partido pode ser influenciado por ela e simplesmente passar a cumprir um papel progressivo na luta pela construção da vanguarda comunista. Como em todas as épocas, os revolucionários devem saber separar os elementos mais avançados daqueles que simplesmente se adaptaram ao ritmo ou ao aparato conservador dos partidos centristas. Poderia-se argumentar que pode ser sectário chamar os membros do PSTU a romper com seu partido. Mas inegavelmente esse deve ser o objetivo dos trotskistas diante dos partidos centristas e é preciso explicar pacientemente, e em cada ocasião, o programa degenerado que domina esses grupos. Além do mais, a própria LER-QI chama, no trecho citado, os militantes combativos do PSOL a romperem, dizendo que, em seu caso, “é preciso dar um passo adiante”. Será que não é urgentemente necessário que os “militantes combativos” do PSTU também dêem “um passo adiante”?

Os revolucionários podem resumir em dois os seus ensinamentos. Eles confiam na capacidade da classe trabalhadora de derrubar o capitalismo e inaugurar uma nova etapa na história da humanidade (e, portanto, em sua capacidade de superar seu próprio atraso de consciência) e eles confiam a si próprios o papel de lutar ativamente para vencer a barreira da ideologia burguesa entre os trabalhadores, motivo pelo qual devem combater todos os “traidores da classe” na burocracia sindical governista, nos partidos reformistas e centristas do movimento operário. Numa definição brilhante sobre o revisionismo pablista, a Tendência Revolucionária (precursora da Liga Espartaquista dos EUA) afirmou:
“A ascensão do revisionismo pablista apontou para a raiz fundamental da crise do nosso movimento: o abandono de uma perspectiva revolucionária na classe trabalhadora. Sob a influência de uma relativa estabilização do capitalismo nos Estados industriais do Ocidente e de um sucesso parcial dos movimentos pequeno-burgueses ao derrubar o poder imperialista em alguns países periféricos, a tendência revisionista dentro do movimento trotskista desenvolveu uma orientação que se distanciava do proletariado e se dirigia às lideranças pequeno-burguesas.

Da mesma forma, os revolucionários hoje devem ter como sua audiência favorita a classe trabalhadora e os militantes honestos dentro e fora das organizações de esquerda que também tem essa perspectiva. Em nenhum momento devem se orientar para os aparatos de repressão da burguesia e nem para as lideranças conservadoras dos partidos pseudo-revolucionários que habitam a esquerda.

Notas

[1] Imediatamente após o fim do Estado Novo, através do Decreto de Lei 8660, de janeiro de 1946, os estados da federação receberam autonomia para organizar militarmente os bombeiros e de incorporá-los às suas forças policiais. Já na Ditadura Militar tal incorporação foi aprofundada através do Decreto Lei 667, de julho de 1969, cujo Artigo 26, Parágrafo Único, aplica aos bombeiros militares as mesmas disposições que aos policiais militares.

[2] Declaração feita por José Mariano Beltrame, Secretário Estadual de Segurança do Rio de Janeiro em Brasília em março de 2009, de acordo com o site G1.

[3] Para saber mais, leia nossa carta de ruptura O Coletivo Lenin é Destruído pelo Revisionismo.

[4] Como formulado por Nahuel Moreno, uma “revolução de fevereiro” seria uma revolução “socialista” onde as massas são lideradas por partidos não-revolucionários e não possuiriam consciência marxista. Para os morenistas, grande parte da sua tarefa é empurrar os partidos oportunistas para cumprirem tal função, ao invés de lutarem para desmascarar tais líderes traiçoeiros das massas e ganhar os trabalhadores para uma perspectiva revolucionária. Isso leva os morenistas a uma série de adaptações às lideranças existentes no movimento e a verem transformações “revolucionárias” onde elas não aconteceram. Entre algumas das “revoluções de fevereiro” supostamente vitoriosas no Brasil, o PSTU inclui o movimento “Diretas Já!” e o “Fora Collor”, que precisamente pelas suas direções adaptadas ao sistema, apesar das grandes radicalizações, mantiveram a estrutura estatal burguesa intacta. As obras de Nahuel Moreno Teses de Atualização do Programa de Transição e Revoluções do Século XX estão entre as que apresentam tal perspectiva estratégica.

[5] Na edição de 15 de fevereiro de 1971, o periódico da Workers League (Bulletin) escreveu sobre a “greve” policial na Cidade de Nova Iorque:
“O significado de tudo isso é a importância de localizar a recente greve policial de Nova Iorque dentro do panorama geral do movimento da classe trabalhadora e ao mesmo tempo buscar entender o que está por trás deste movimento da classe. Quando o próprio braço repressivo da classe dominante vai à greve, isso não é um fenômeno isolado, mas um reflexo de um movimento muito grande, geral e profundo da classe trabalhadora”
“Nós vamos ver apenas o lado da polícia como braço repressivo do Estado, mas ao mesmo tempo não compreender que os policiais também são empregados do Estado?”

Bulletin, 15 de fevereiro de 1971 (traduzido a partir da versão citada no artigo Police Militancy vs. Labor, da Liga Espartaquista)

LRP e ISL sobre a revolução na Palestina e em Israel

LRP e ISL Sobre a Revolução na Palestina e em Israel
Adoradores do Fato Consumado
Os apontamentos seguintes, reconstruídos a partir de notas, foram feitos para o público de uma reunião da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA) em 18 de agosto de 2009 em Nova Iorque, intitulada “A Crise do Sionismo e as Possibilidades de Revolução no Oriente Médio” e que teve a presença de cerca de 40 pessoas. O palestrante da reunião foi Yossi Schwartz da Liga Socialista Internacional (ISL/Palestina Ocupada e Israel) com quem a LRP parece ter atingido acordo político comum. Os apontamentos e comentário posterior lidam primeiramente com o fato de os dois grupos descartarem a possibilidade de ganhar uma maioria dos trabalhadores israelitas judaicos para uma luta comum com as massas palestinas contra o Estado sionista de Israel. Nós esperamos postar no futuro polêmicas que lidem mais amplamente com outros pontos da posição da LRP e de seus colaboradores na questão do sionismo e da luta palestina. A versão para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em 2011.

Os revolucionários defendem os palestinos e obviamente se opuseram à fundação do Estado de Israel. Mas depois de seis décadas, seria preciso ser cego para não reconhecer que uma nação de origem israelita judaica (que no atual estágio não pode ser simplesmente classificada como uma ocupação colonizadora) passou a existir e cujos trabalhadores nós devemos ganhar como aliados dos palestinos para podermos travar qualquer luta bem sucedida para derrubar o Estado sionista. Isso só pode ser feito chamando os trabalhadores judaicos a superarem a sua consciência nacional em favor de seus interesses de classe comuns com os trabalhadores palestinos, e não negando os direitos nacionais daqueles. A LRP e a ISL parecem reconhecer isso implicitamente em muitos aspectos, mas a partir da sua insistência em negar esses direitos aos trabalhadores israelitas, eles são forçados a chegar a conclusões completamente derrotistas.

Nos anos 1960, sob circunstâncias nas quais a classe trabalhadora dos Estados Unidos parecia ser permanentemente conservadora, e quando, durante um breve momento, uma maioria dela parecia se opor aos direitos civis, aos movimentos de liberação da mulher e anti-guerra, a Nova Esquerda a descartou (assim como a classe trabalhadora nos países economicamente desenvolvidos como um todo) como permanentemente vendida. Eles chamavam uma minoria a “abandonar os seus privilégios de pele branca” e projetavam que a maioria se aliaria à reação. E hoje as coisas parecem similarmente sombrias, sem dúvida, com relação à classe trabalhadora israelita para a LRP e a ISL. Os partidários da Nova Esquerda na época abandonaram qualquer perspectiva de uma revolução socialista nativa e adotaram a visão utópica maoísta de que o imperialismo dos Estados Unidos seria derrubado externamente pelas lutas do Terceiro Mundo.


Nas palavras da LRP, ela defende na sua mais recente declaração “Após os Massacres de Gaza: O Futuro da Palestina”, de 2 de julho de 2009, que “mais provavelmente, infelizmente, uma minoria” dos trabalhadores israelitas judeus podem ser ganhos para a revolução já que “muitos israelitas judeus prefeririam lutar pela defesa de seus privilégios temporários” reconhecendo que “os palestinos sozinhos não tem sido e não serão capazes de derrotar Israel” e concluindo que “Nós não podemos prever exatamente que formas as lutas revolucionárias vão tomar no Oriente Médio”. Em outras ocasiões e contextos (talvez antes de ganhar colaboradores israelitas cuja existência eles precisariam justificar) a LRP foi menos ambígua ao declarar que o Estado sionista será derrubado externamente por uma ou várias revoluções socialistas regionais vitoriosas, provavelmente lideradas pela classe trabalhadora egípcia.

Enquanto uma revolução socialista nativa feita pelos trabalhadores israelitas e palestinos seja preferível, deve-se reconhecer que é uma possibilidade, de fato, que uma revolução socialista que derrube o Estado sionista tenha que ser, por fim, imposta de fora sem o apoio da maioria dos trabalhadores judaicos. Não devemos nos opor se for esta a saída no final.

Mas reconhecer que isso é uma possibilidade, ao mesmo tempo em que não diz aos revolucionários palestinos e israelitas o que eles devem fazer nesse meio tempo, a não ser talvez esperar passivamente que os trabalhadores árabes em seus países venham ao seu resgate? (E o chamado da LRP e da ISL por uma “Revolução dos Trabalhadores Árabes” deixa de fora não apenas os israelitas judeus, mas também os curdos, berberes, armênios e muitos outros grupos não-árabes na região). Está faltando nesse esquema qualquer tipo de estratégia revolucionária ativa.

Comentário Posterior

Desesperança sobre as capacidades revolucionárias da classe trabalhadora nos países capitalistas economicamente avançados foi a base política não apenas da Nova Esquerda, mas também do abandono stalinista da revolução mundial para construir o “socialismo num só país” e de todas as suas traições que daí partiram. Essa também foi a base política implícita do pablismo, que por vezes também descartou a classe trabalhadora dos países do Terceiro Mundo nesse processo, baseado em noções similares. Às vezes esse raciocínio se tornava mais explícito, como num artigo da Quarta Internacional de maio-junho de 1962, escrito por Michel Pablo, que cita Frantz Fanon de maneira aprovadora, dizendo que o proletariado do Terceiro Mundo

“‘(…) está entre as camadas mais protegidas do regime colonial. O proletariado embrionário das cidades é relativamente privilegiado. Ele representa uma fração do povo colonizado necessário e insubstituível para o funcionamento eficiente do aparato colonial – condutores de trens, motoristas de taxi, mineiros, estivadores, intérpretes, trabalhadores da saúde, etc. Esses são os elementos que constituem a camada mais leal dos partidos nacionalistas e que, do lugar privilegiado que ocupam no sistema colonial, constituem a fração ‘burguesa’ do povo colonizado.’”

Pablo comenta que

“A análise que Fanon faz do papel do proletariado urbano pode parecer exagerada para um marxista europeu; mas com restrições, ela se ‘encaixa’ bem àqueles países com um fraco desenvolvimento industrial.”

É claro que a LRP e a ISL argumentariam que se opõem ao stalinismo, à Nova Esquerda e ao pablismo. Eles argumentariam que não descartam a classe trabalhadora dos Estados Unidos ou a classe trabalhadora dos países capitalistas avançados, e que a sua análise é específica para a classe trabalhadora de Israel. Mas eles também tendem a resumir o que é, em última instância, um apoio autodestrutivo da classe trabalhadora israelita ao sionismo, a questões de privilégio econômico (sendo um tanto cegos com relação a outros fatores envolvidos, como o trauma histórico devido à opressão passada e os horrores do holocausto, o medo de uma represália nacionalista árabe, a desesperança a respeito da solidariedade internacionalista com base na história das traições stalinistas, etc.). Mas enquanto é verdade que a classe trabalhadora israelita é significativamente privilegiada em relação aos palestinos, a classe trabalhadora dos EUA é significativamente mais privilegiada do que a classe trabalhadora israelita, e do que a da maior parte dos países por sinal. No artigo escrito em uma das suas muitas encarnações políticas anteriores, o camarada Schwartz corretamente percebeu que:

“É possível, é claro, culpar a classe trabalhadora judaica, sustentar que é interesse dos trabalhadores servir ao sionismo. Mas nós dizemos que a classe trabalhadora judaica, assim como todas as outras frações da classe trabalhadora, tem apenas um interesse: revolução proletária.”

“Sobre a Primeira Guerra Árabe-Israelense”
Workers Vanguard (jornal da Liga Espartaquista), janeiro de 1974

Ao invés de resumir o apoio judeu ao sionismo a privilégios (que sem dúvida é um, mas apenas um dos fatores), o seu artigo ecoava a declaração de Trotsky, no Programa de Transição, de que em última análise “a crise histórica da humanidade se reduz à crise de liderança proletária”:

“A explicação para o controle sionista não está nos interesses da classe trabalhadora judaica, mas na sua posição organizativa, sua falta de qualquer preparação ou lutas independentes. E a responsabilidade por essa situação pertence ao Partido Comunista [stalinista].”

De um ponto de vista um pouco variado e em graus diferentes, é claro, a rejeição da ênfase de Lenin e Trotsky na centralidade da liderança revolucionária, a “questão do partido”, é de fato um dos elementos que a LRP e a ISL tem em comum com os pablistas. Ambas a LRP e a ISL rejeitam explicitamente o argumento de Lenin em “O que Fazer?” de que a consciência revolucionária/marxista deve se infiltrar através de uma luta para dentro da classe trabalhadora, contra a enorme quantidade de ideologias falsas/burguesas existentes, via um partido de vanguarda. Os neo-economicistas e movimentistas contemporâneos preferem embelezar a realidade em favor de uma imagem admitidamente mais consoladora e impaciente de uma classe trabalhadora espontaneamente revolucionária. Embelezar a trágica realidade da atual consciência atrasada dos trabalhadores israelitas judaicos é, obviamente, algo muito mais difícil de fazer (para não mencionar que atrapalha uma adaptação oportunista ao que é, atualmente, uma consciência árabe nacionalista, não marxista, ainda que certamente mais receptiva). Mas um dos fatores por trás da necessidade de um partido revolucionário é precisamente o fato de que as lutas das várias camadas das massas oprimidas tendem a ser setoriais (quer seja ao fazer uma greve contra um patrão em particular, ou se organizar contra a brutalidade racista da polícia numa comunidade específica, ou travando lutas contra um tipo imediato de opressão, etc.) e a sua consciência política e compreensão tendem, portanto, a ser setorialistas, refletindo os seus interesses mais imediatos, em oposição aos seus interesses históricos, internacionalistas e classistas.

Unir as lutas dos variados setores da classe trabalhadora e oprimidos (nacionalmente e internacionalmente) é o trabalho do partido revolucionário, infiltrando a compreensão de seu interesse comum em atacar a raiz capitalista da sua opressão. Essa compreensão teórica necessária sobre o funcionamento da sociedade capitalista (o tema central de “O que Fazer?” é que não pode haver movimento revolucionário sem teoria revolucionária, ou seja, marxista) e os meios necessários para derrubá-la, de fato, não surgem espontaneamente.

Mas se a classe trabalhadora não pode entrar numa batalha bem sucedida pelo poder espontaneamente, ela pode desde que exista uma liderança revolucionária. A rejeição desse entendimento só pode levar a um fatalismo objetivista, geralmente pessimista, embora às vezes de uma variante “otimista” baseada em seguir as massas. Ambas as atitudes impedem a possibilidade de uma luta bem sucedida da classe trabalhadora pelo poder.

Em A Revolução Traída, Trotsky descreveu aqueles com atitudes fatalistas como “adoradores do fato consumado”, notando que “quem quer que cultue o fato consumado é incapaz de se preparar para o futuro”. Tendo desesperança a respeito da atual consciência recuada dos trabalhadores israelitas judaicos, a LRP e a ISL se esquecem do bordão de Marx sobre a realidade, de que “a questão é transformá-la”.

Descartar efetivamente a possibilidade de liderar os trabalhadores palestinos e judaicos numa luta conjunta pelo poder de Estado põe grandes contradições para a ISL em relação ao seu propósito declarado de existência. James P. Cannon também descreveu o dilema da ISL em Os Primeiros Dez Anos do Comunismo Americano:

“A stalinização do partido foi na verdade o resultado final de um processo de degeneração que começou durante o longo boom dos anos 1920. A prosperidade prolongada daquele período, que foi tomada como se fosse permanente pela grande massa do povo norte-americano e todas as classes, não deixou de afetar o próprio Partido Comunista. Ela amaciou os quadros de liderança do partido e minou a sua confiança original nas perspectivas de uma revolução neste país. Isso os preparou, no fim, para uma aceitação fácil da teoria stalinista de ‘socialismo num só país’.”

“Para aqueles que aceitaram essa teoria, a Rússia, como o ‘país escolhido’ da revolução vitoriosa, se tornou um substituto para a revolução norte-americana”
(…)
“O que aconteceu com o Partido Comunista aconteceria sem dúvida a qualquer outro partido, incluindo o nosso próprio, se ele abandonasse sua luta por uma revolução social neste país como uma perspectiva realista para nossa época, e se degenerasse ao papel de um simpatizante de revoluções em outros países.”

A lógica de tal perspectiva pode levar a ISL a percorrer o caminho e se tornar uma versão israelita do lamentável e recentemente morto Movimento Internacionalista Maoísta (embora sem dúvida bem mais inteligente e menos psicótica), se não a categoria mais comum de ativista de solidariedade reformista ou economicista sindical como os Partidos Comunistas. Na palestra, os apoiadores da LRP e da ISL responderam que eles não defendiam construir o “socialismo em um só país”. De fato, ninguém pode construir o socialismo num só país, seja ele Israel ou qualquer outro. A vitória das lutas revolucionárias numa escala mundial é um pré-requisito para isso. Mas isso que faz a LRP é confundir a questão de construir o “socialismo num só país” com a necessidade de liderar a classe trabalhadora numa luta para tomar o poder de Estado em escala nacional, no contexto de um enfrentamento pela revolução mundial.

Trotsky resumiu o dilema da ISL bem ao resumir a perspectiva dos “adoradores do fato consumado” em A Revolução Traída:

“Na realidade, nossa disputa com os Webbs não é sobre a necessidade de construir fábricas na União Soviética e empregar fertilizadores minerais nas fazendas coletivas, mas se é ou não necessário preparar uma revolução na Grã-Bretanha e como isso deve ser feito. Sobre esse assunto, os experimentados sociólogos respondem: ‘Nós não sabemos’.”

Sobre Marxismo e Feminismo

Sobre Marxismo e Feminismo
 

O seguinte artigo foi originalmente publicado pelo Reagrupamento Revolucionário em março de 2009, com o título Sobre Feminismo e “Feminismo”. Sua tradução para o português foi realizada por Marcio Torres e Icaro Kaleb em julho de 2011.

Introdução

Esse mês, enquanto adicionávamos materiais sobre opressão às mulheres na seção de Documentos Históricos de nosso site, vimos necessidade de escrever uma introdução para clarificar a confusão com a qual leitores desse tipo de artigo costumam se deparar no que diz respeito às críticas que eles contêm ao “feminismo”. Tais artigos não foram escritos por nós, mas pela Liga Espartaquista [SL/EUA] e pela Tendência Bolchevique Internacional [TBI] no tempo em que tais organizações, mesmo possuindo falhas, eram capazes de auxiliar no avanço do programa marxista. Enquanto os artigos como um todo defendem uma visão revolucionária sobre a opressão às mulheres, hoje em dia nós os teríamos escrito de forma diferente, ao menos quanto ao problema em questão.

Os artigos (e os grupos que os escreveram) visaram defender a causa da libertação feminina, apesar de muita confusão ter sido, e ainda ser, desnecessariamente causada pela rígida insistência deles em definir o feminismo de uma maneira que é diferente daquela da maior parte dos leitores de esquerda. Enquanto a maior parte das pessoas define feminismo como a simples afirmação da igualdade entre os sexos, sem necessariamente ligar a isso um programa mais elaborado ou uma análise de como atingir tal situação (“a teoria da igualdade política, econômica e social entre os sexos”, como descrito pelo Dicionário Online Merriam Webster), os artigos rigidamente insistiram que o termo designa um programa específico e uma teoria contraposta à luta pelo socialismo. Um artigo escrito por um militante da TBI em 1997, abordando a questão de forma estabanada, afirma:

“Feminismo e socialismo são coisas diferentes. Feminismo não pode ser simplesmente resumido à luta pelos direitos das mulheres. Ele invoca a ideologia nociva de que mulheres de classes diferentes podem lutar contra a opressão a partir de uma base comum – e, portanto, automaticamente confina a luta aos limites do capitalismo.”
 
Censura Sexual e Direitos Femininos
Boletim Marxista 4, outubro de 1997
 
Tradição marxista
 
Historicamente o movimento marxista desenvolveu o uso de uma terminologia extremamente específica para suas elaborações teóricas, mas que nem sempre esteve em sincronia com o desenvolvimento geral do resto da sociedade e seu entendimento acerca de tais termos. Mas, na busca por avançar (e desenvolver) as concepções e entendimentos políticos daqueles que vieram antes, cada geração de revolucionários é frequentemente forçada a adaptar suas convenções terminológicas (mantendo o sentido original subjacente), por necessidade de se dirigir a audiências contemporâneas mais largas, e com o propósito de se manter atualizado com as concepções populares por detrás de tais termos.
 
Nos EUA, marxistas frequentemente se deparam com confusões envolvendo as diferenças entre os termos “socialista” e “comunista” quando falando com grandes públicos. Apesar de trotskistas normalmente usarem tais termos de maneira alternada, enquanto sinônimos, a confusão tende a surgir do fato de existir um vago entendimento entre os leitores de que, em certos contextos, “Socialista” (especialmente com S maiúsculo) indica um reformista socialdemocrata, enquanto “Comunista” (especialmente com C maiúsculo) indica um stalinista.
 
Marx e Engels foram confrontados por um dilema semelhante, antes mesmo da ascensão do reformismo socialdemocrata e do stalinismo contemporâneos. Em sua introdução de 1890 à edição alemã do Manifesto Comunista, Engels comentou:
 
 em 1887 o socialismo continental era quase exclusivamente a teoria proclamada no Manifesto. Assim, até certo ponto, a história do Manifesto reflete a história do movimento operário moderno desde 1848. Atualmente, é sem dúvida o de maior circulação, o mais internacional produto de toda a literatura socialista, o programa comum de muitos milhões de trabalhadores de todos os países, da Sibéria à Califórnia.”
 
“Contudo, quando ele apareceu, não podíamos chamá-lo um manifesto socialista. Em 1847, dois tipos de pessoas eram considerados socialistas. De um lado estavam os adeptos de vários sistemas utópicos, notadamente os seguidores de Owen na Inglaterra e de Fourier na França, ambos os quais já haviam, à época, minguado a meras seitas, morrendo gradualmente. Já do outro lado, os mais variados charlatães sociais, que com as suas diversas panaceias e com toda a espécie de remendos queriam eliminar os males sociais sem ferir o capital e o lucro. Em ambos os casos: pessoas que estavam fora do movimento operário e que, ao invés, procuravam apoio junto das classes ‘cultas’. Em contrapartida, aquela parte dos operários que estava convencida da insuficiência de meras revoluções políticas, [e] exigia uma reconfiguração profunda da sociedade, essa parte chamava-se então comunista. Era um comunismo mal formado, instintivo, por vezes grosseiro; mas ainda assim era suficientemente poderoso para engendrar dois sistemas do comunismo utópico, na França o “icário” de Cabet, na Alemanha aquele de Weitling. Em 1847, socialismo significava um movimento burguês, comunismo um movimento operário. O socialismo, pelo menos no Continente, era algo respeitável, já o comunismo era precisamente o contrário. E como já nessa altura éramos muito decididamente da opinião de que ‘a emancipação dos operários tem de ser obra da própria classe operária’ [citado das Regras Gerais da Internacional], nem por um instante podíamos estar na dúvida sobre qual dos dois nomes escolher. E desde então nunca nos passou pela cabeça rejeitá-lo.”
  
Nas notas de rodapé de 1922 daquela que é tida por muitos como a edição definitiva do Manifesto Comunista, D. Ryazanoff também discutiu a evolução histórica de muito da terminologia utilizada nos escritos de Marx e Engels, por exemplo:
 
“’Proletário’ agora significa aquele cujo único meio de sobrevivência é a venda da sua força de trabalho. Seu significado original, na forma latina proletarius, significava aquele cujo único bem eram seus descendentes, sua cria (prole) (…) Há pouco em comum entre esses proletários romanos e os proletários europeus sem-terra e sem-teto de nossos próprios dias, salvo apenas o nome (…). A palavra proletariado para descrever a classe dos assalariados não entrou em uso corrente até a primeira metade do século dezenove (…).
 
Está claro que a principal preocupação de Marx e Engels era ter suas idéias entendidas corretamente pelos outros. Compreendendo que eles não poderiam arbitrariamente ditar a mudança no entendimento popular das palavras, eles não estavam inclinados (exceto às vezes em seus escritos mais estritamente científicos e teóricos, nos quais a precisão exata era necessária para clarificação) a teimosamente se dedicar a argumentações infrutíferas sobre definições ou significados inéditos se não fosse necessário à transmissão de suas idéias.
 
Em um âmbito um pouco diferente, quando membros negros do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP dos Estados Unidos) nos anos 1940 protestaram contra o uso da palavra “niggardly” [avarento] na literatura do partido, ao invés de se apegar teimosamente ao dicionário e insistir que, formalmente, a palavra não possuia nenhuma relação com o epíteto racial [“nigga”, algo como o termo pejorativo “crioulo”], o movimento trotskista abandonou o uso da palavra para não causar nenhum tipo de desentendimento ou confusão desnecessários.
           
As Origens e Consequências do anti-“feminismo”
 
Um antigo texto espartaquista que postamos previamente argumenta:
 
“O existente movimento pela libertação feminina, tanto o liberal quanto o radical, tende a ver o sexo como a básica ‘divisão de classe’ na sociedade. Esse baixo nível de desenvolvimento teórico significa uma oportunidade para os marxistas intervirem com uma linha classista. Porém, nós tornaremos nossa intervenção inútil se nos apegarmos a uma análise muito simplificada de que a única forma de opressão é a opressão de classe, e confinarmos nosso interesse à super-exploração econômica das mulheres trabalhadoras.”
 
“A questão de classe é o ponto decisivo na sociedade de classes. Porém, outros tipos de opressão também existem – por exemplo, opressão racial, opressão nacional, opressão contra a mulher. Negar que os revolucionários marxistas não devem dar atenção a essas questões é sectarismo e flagrantemente anti-leninista. É vital que os revolucionários participem dessas lutas. A base dessa participação deve ser a compreensão de que a questão de classe é decisiva e, portanto, qualquer movimento que falhe em identificar-se com a luta da classe trabalhadora contra a classe capitalista está fadado a ser tomado por utopias, excentricidade, ilusões liberais e – em última instância – irrelevância.”
 
A Luta Pela Libertação das Mulheres (1969)
 
Enquanto apresentando essa compreensão política correta, o artigo em questão não possui nenhum ataque ou mesmo menção ao “feminismo”. A explicação para a subsequente mudança na política quanto a isso é apresentada em uma das primeiras edições de “Woman and Revolution” [periódico da Liga Espartaquista voltado para questões da luta das mulheres trabalhadoras]:
 
“A defesa do SWP-YSA [Socialist Workers Party – Young Socialist Alliance] contra as tentativas das feministas de atacá-los têm sido fracas. Eles tentam minimizar suas diferenças políticas com as feministas alegando serem feministas e socialistas. Feminista foi certa vez o termo que socialistas utilizaram para descrever mulheres que lutavam por sua libertação. Mas, por um período de 50 anos, o termo passou a designar aqueles para quem a divisão fundamental na sociedade é entre homens e mulheres, e que lutam pela supremacia das mulheres (…)”
 
“As visões socialista e feminista são claramente contrapostas. Assim como Lenin, que certa vez reivindicou orgulhosamente ser um Socialdemocrata se desagradaria de ser chamado assim após as traições da ‘Socialdemocracia’, também Clara Zetkin não se reivindicaria uma feminista hoje em dia.”
 
SWP-YSA ENTRA EM CENA, mesmos truques, novo território
Woman and Revolution 2, setembro/outubro de 1972
           
O líder espartaquista Jim Robertson reafirmou essa explicação alguns anos depois, em um discurso feito em 27 de agosto de 1974 sobre James P. Cannon:
 
“Aliás, Rose [Krasner, companheira de Cannon] era uma militante socialista feminista dos anos 1910 e 1920. ‘Feminista’ significava outra coisa naquela época – além de outros significados, que casamento era uma abominação: significava se ajoelhar e colocar correntes ante um homem e o Estado.”
 
“James P. Cannon”
Reimpresso em Spartacist, inverno de 1986
 
Se, teoricamente, à época o significado popular de “feminismo” realmente estivesse caminhando na direção alegada (e no momento não estamos convencidos de que estava), então a mudança de atitude teria feito sentido. Mas deixando de lado essa questão de análise histórica, é bem claro que hoje em dia o equivalente a gritar “Abaixo o feminismo!” é obviamente uma abordagem pobre, tido que a Liga Espartaquista e a Tenência Bolchevique Internacional estão usando uma dada definição de “feminismo”, e a maior parte da esquerda e da população vêem a palavra com um significado (mais geral e vago) diferente. Em vez de esclarecer, tal abordagem apenas gera ruído e deixa tais grupos abertos a suspeitas desnecessárias de que eles talvez sejam hostis ou indiferentes à libertação das mulheres (em alguns aspectos, similar à reação de muitos militantes negros do SWP ao uso da palavra “niggardly”), quando eles estão, na verdade, argumentando que a mesma só pode ser atingida em uma sociedade socialista.
 
Algumas vezes isso foi também desorientador para os próprios grupos em questão, tanto em sua compreensão histórica quanto em sua compreensão da realidade contemporânea. Assim, um panfleto (que no restante está correto) que postamos anteriormente da Tendência Bolchevique [predecessora da TBI] argumenta:
 
“Quer se apresente sobre o nome de feminismo ou ‘feminismo socialista’, a lógica dessa análise é guerra dos sexos tão certamente quanto a lógica do marxismo é guerra de classes.”
 
Chega de Cabides de Arame! (sem data, final dos anos 1980)
 
A não ser por uma minoria localizada nos extremos, a maioria das pessoas que se consideram “feministas” (e muito menos pessoas que se consideram “feministas socialistas”) não defendiam no passado e não defendem hoje a “guerra dos sexos”. Um antigo artigo histórico de Woman and Revolution notou que:
 
“Contrariamente a uma opinião ainda restrita a certos círculos, o feminismo moderno não nasceu inteiramente do fértil útero da Nova Esquerda, mas é de fato uma cria ideológica do igualitarismo utópico do início do século vinte, que por sua vez era fruto da revolução democrática da burguesia.”
 
“Feminismo vs. Marxismo: Origens do Conflito”
W&R número 5, outono de 1974
 
Verdade, porém os marxistas não renunciam alguns dos ainda progressivos ideais do Iluminismo, mas defendem que sua realização para a maioria da raça humana pode se dar apenas através da extinção da sociedade de classes. Assim, ao mesmo tempo em que não nos referimos a nós mesmos enquanto democratas, humanistas ou feministas, não denunciamos a democracia, o humanismo ou o “feminismo”. Ao invés disso, nos opomos à democracia burguesa, ao humanismo liberal, ao feminismo liberal e a todas as ideologias de aliança de classe, separatistas e setorialistas em geral.
 
No mesmo sentido, Leon Trotsky ficou bastante nervoso por seu livro Terrorismo e Comunismo ter recebido o título Ditadura versus Democracia na tradução em inglês, uma vez que isso poderia levar apenas à confusão entre vários leitores e distorceu a relação entre socialismo e democracia.
 
Indiferença Sectária
 
Tal crescente indiferença quanto a ser claramente entendido é geralmente um sinal de que um grupo está se transformando em uma seita despolitizada, dominada por uma liderança geriátrica e crescentemente longe do contato com a realidade política e social contemporânea. Tendo ficado muito limitados ao computador e à mesa de escritório ao longo de muitos anos de suas vidas políticas, se dedicando a questões internas de administração e trabalhando com literatura política, tais “líderes” permanentes têm poucos escrúpulos em mandar seus militantes de base mundo afora para fazerem papel de tolos em eventos políticos ao defenderem formulações estúpidas. A passividade dos militantes de base frente a tal realidade pode ser reflexo de insegurança, medo, indiferença política, e, para aqueles dedicados à adoração de sua liderança, uma genuína ausência de pensamento para com tal forma esclerótica de agir.
 
Em contraste com tais práticas, ao escrever sobre a necessidade de se diferenciar a posição marxista da stalinista na defesa da URSS, Trotsky comentou:
 
“Para que essas duas variantes de ‘defesa da URSS’ não se tornem confusas na consciência das massas é necessário saber de forma clara e precisa como formular palavras de ordem que correspondam à situação concreta.”
 
Em Defesa do Marxismo (1942)
 
Em seus melhores períodos, a SL e a TBI demonstraram uma atitude semelhante, ao menos em relação a outras questões. Em uma discussão sobre “Formalismo Sectário”, uma publicação da TBI afirmou:
 
“Por exemplo, nós acreditamos que a palavra de ordem ‘Libertem todos os presos políticos!’ é uma formulação muito ruim. Nós não queremos que bandidos fascistas ou assassinos em massa de campos de concentração sejam libertados. Mas seria tolo nos excluirmos de uma campanha que lute ostensivamente para ‘Libertar todos os presos políticos!’. Acontece que frequentemente o verdadeiro significado da campanha é, de fato, para libertar as vítimas do capitalismo. Nós desejaríamos aderir a uma campanha assim, ao mesmo tempo em que deixaríamos claras as nossas criticas quanto a inadequação dessa palavra de ordem. Nós racharíamos, é claro, se a campanha de fato tentasse mobilizar esforços para libertar Rudolph Hess [membro do alto escalão do Partido Nazista durante os primeiros anos do regime]. É uma questão de qual é o verdadeiro conteúdo do bloco de ação.”
 
Construindo o Partido Revolucionário e Táticas de Frente Única (1992)
 
Semelhante apreciação do “verdadeiro conteúdo” do que o “feminismo” significa para a maioria das pessoas parece ser necessária. A posição da TBI, que foi herdada de forma acrítica da SL, se encaixa muito bem na definição de “formalismo sectário”.
 
Em um discurso proferido em 11 de novembro de 1972, o líder espartaquista Jim Robertson explicou parte da motivação pro detrás de se levantar a palavra de ordem “Por um governo dos trabalhadores!” enquanto algo popular:
 
“Nós lutamos por um governo dos trabalhadores, nos sindicatos, nas fábricas, e em nossa educação e abordagem a estudantes com a concepção do poder proletário. A ditadura do proletariado é uma formulação que sofre de alguns problemas. Um entendimento popular da ditadura do proletariado é que os trabalhadores serão colocados em campos de concentração, vocês sabem, como na Rússia. Se você fala de algum tipo de socialismo, você se depara com a imagem da alegre Suécia mantendo seus altos indicies de alcoolismo e suicídios, se mantendo vitoriosamente fora de duas guerras mundiais. [Risos] Mas o que deveria ficar claro em todos os sentidos, sobre todos os tipos de questões, é que os trabalhadores precisam de um governo próprio (…)”
 
“Uma Conversa sobre a Questão do Partido Trabalhista”
Boletim Comunista Jovem, número 3
 
De forma semelhante, comentando no mesmo discurso sobre as razões por detrás da reformulação da tradicional defesa trotskista de um “Partido Trabalhista” nos Estados Unidos para a de um “Partido dos Trabalhadores”:
 
“Se alguém fala sobre um movimento trabalhista ou um Partido Trabalhista agora – há uma boa razão para entender isso no significado mais incrustado, aristocrático, racista, chauvinista ao estilo George Meany [líder sindical norte-americano, conservador e de grande projeção nacional entre os anos 1950 e 1980]. Isso é extremamente importante, e uma das razões para a palavra de ordem ‘Abaixo os burocratas! Por um Partido dos Trabalhadores.’ Não há nenhuma diferença de concepção entre um ‘Partido dos Trabalhadores baseado nos sindicatos’ e um ‘Partido Trabalhista baseado nos sindicatos’, exceto que a terminologia projeta uma concepção um pouco diferente.”
 
Se os revolucionários justamente não querem confundir as pessoas por projetarem-se incorretamente como defensores da criação de um Partido Trabalhista Britânico para os trabalhadores dos Estados Unidos, também estamos preocupados em não confundir as pessoas projetando-nos incorretamente como socialistas ao estilo Archie Bunker [personagem fictício do seriado dos anos 1970 “Tudo em Família” – extremamente reacionário e conservador] que são hostis à libertação da mulher.
 
O Reagrupamento Revolucionário se mantém firme quanto ao conteúdo dos documentos postados e continuará a postar sobre essa questão na seção Documentos Históricos do nosso site. Nós nos distanciamos de uma política falha, não estamos alterando o programa ou princípios fundamentais sobre a opressão às mulheres. Esta é uma mudança necessária na política, no entanto. Vamos no futuro criticar correntes políticas feministas específicas, ao contrário de denunciar o termo como tal.
 
De forma mais abrangente, como apontamos em nossa introdução aos Documentos Históricos como um todo:

“Enquanto buscamos dar continuidade ao trabalho e construir sobre as contribuições daqueles que vieram antes de nós, não defendemos dogmaticamente os erros do passado que possivelmente foram cometidos de forma inevitável. Portanto, nossa postagem desses documentos reflete uma concordância geral, e não uma adesão acrítica a cada argumento ou formulação secundária.”
 
30 de março de 2009

Reagrupamento Revolucionário Número 1

Reagrupamento Revolucionário # 1
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Nota do Coletivo Lenin sobre o Racha

Resposta ao racha dos camaradas Leandro e Rodolfo
Nota sobre o racha no Coletivo Lênin 

Esta nota foi copiada do blog do Coletivo Lenin (coletivolenin.blogspot.com). Leia aqui a nossa resposta. 

No dia 23/06, dois militantes do setor estudantil, depois de meses de discussão onde tentamos evitar esse final, romperam com o CL. Eles ainda não escreveram a sua declaração de ruptura (que publicaremos no nosso blog e criticaremos) mas, como eles já estão falando sobre o racha com simpatizantes do CL, achamos melhor publicar nossa declaração sobre o fato.


Um racha sem motivo político com os fatos internacionais e nacionais recentes 

A primeira coisa que surpreende negativamente no racha é que ele não reflete nenhuma tendência da luta de classes. Para explicar melhor: em todos os rachas normais são provocados por algum acontecimento na luta de classes, que leva setores da organização a terem respostas políticas tão diferentes que não podem ser conciliadas.

Mesmo que tenha havido sim uma diferença política (os companheiros defenderam a dupla derrota na Líbia antes da invasão, negando que houvesse um movimento progressivo contra a ditadura de Khadafi no inicio dos protestos em fevereiro na Líbia), os próprios companheiros negam que esse tenha sido o motivo do racha.

Então, qual foi o motivo? 

O dogmatismo! 

Desde a nossa ruptura com a TBI, em novembro, o CL decidiu que iria fazer um balanço da tradição que a TBI reivindica, o espartaquismo, para determinar se existem elementos do próprio programa espartaquista que facilitaram a degeneração de todas as correntes que o reivindicam (LCI, IG e TBI). A nossa caracterização sobre a degeneração das correntes espartaquistas está na nossa declaração de ruptura com a TBI.

Como marxistas, sabemos que o ser determina a consciência. É impossível que uma seita que se recusa a intervir no movimento de massas, como a TBI, possa desenvolver e manter um programa correto para as lutas. Por isso, começamos a fazer um balanço do programa que tínhamos reivindicado até então. Chegamos á conclusão que as melhores contribuições do espartaquismo foi a intervenção no movimento negro nos EUA nos anos 60 e 70, e também o posicionamento correto contrário ao apoio à burocracia cubana, e até mesmo algumas posições defensistas que em alguns casos não eram stalinofílicas. Porém o auto-isolamento dessa corrente, o sua stalinofilia crescente desde o final dos anos 60 até o final dos anos 80 (onde substitui o papel da classe trabalhadora pela burocracia “anti-restauracionista” em incontáveis casos no leste europeu), a sua incapacidade de analisar a realidade imposta sem propor novas teorias (que como consequência levou ao pensamento absurdo e anti-marxista de que “programa gera teoria”); foram esses os principais fatores que levaram as três correntes espartaquistas dos dias de hoje à degeneração e a serem incapazes ou a se recusarem a intervir no movimento de massas e na luta de classes.

Porém, os companheiros que depois romperam se recusaram a aceitar qualquer crítica e qualquer modificação do programa, chamando de revisionistas e oportunistas todos os que propusessem isso.

Logicamente, isso acabou criando um clima insuportável na organização, já que qualquer discussão política era “aumentada” até virar um julgamento do “oportunismo” de quem divergia deles. 

E sectarismo… 

Isso por si só poderia ser resolvido. Mas acontece que o dogmatismo sempre vem acompanhado com o sectarismo. Em maio, na sua primeira contribuição ao nosso período de pré-congresso, os companheiros que romperam declararam que as diferenças políticas eram irreconciliáveis, e que só havia duas soluções possíveis: ou eles ficariam em minoria, e iam rachar, ou ganhariam a maioria, e expulsariam quem ficasse em minoria! 

Ou seja, eles deram o racha como fato consumado. Diante disso, tentamos organizar todos os temas da discussão para esclarecer o conjunto do CL sobre a natureza das divergências. Para nós, os companheiros poderiam ficar dentro do CL mesmo que em minoria, o que não aceitamos foi que eles defendessem a expulsão de membros da organização por causa da paranoia deles com o “oportunismo”. 

O papel do “Reagrupamento Revolucionário” 

Durante tudo isso, Sam Trachtenberg, que organiza o site Reagrupamento Revolucionário, e com quem tínhamos relações fraternais, entrou na campanha dos companheiros para rachar e destruir o CL, fazendo acusações pessoais totalmente sem fundamento (ele mora em Nova Iorque e nunca conheceu pessoalmente nenhum militante do CL).

Nisso, ele mostrou que aprendeu tudo com os burocratas da TBI, que tentaram rachar o CL sem motivos políticos em 2010, para ganhar militantes facilmente manipuláveis, como já denunciamos na nossa declaração de ruptura com a TBI. 

Diante do papel de Sam, declaramos desde já, nessa mesma nota, que rompemos as relações fraternais com ele. E aproveitamos para avisar a quem quiser discutir com ele: esse é o método de Sam Trachtenberg para fazer o “reagrupamento revolucionário”: rachar uma organização em cima de posições dogmáticas e sectárias, através de ataques pessoais, para criar uma “corrente internacional” com dois militantes num país e um em outro.

Com certeza ninguém vai reconstruir a Quarta Internacional assim! 

A luta continua! 

Depois que perceberam que suas posições foram rechaçadas, e que eles ficaram em minoria, eles romperam. Não sabemos ainda o que eles vão falar para “explicar” a sua derrota, já que não podem dizer que perderam o debate porque ninguém no CL aceitou o dogmatismo e o sectarismo deles.

Não vamos tapar o sol com a peneira: esse foi um dos piores problemas que o CL já sofreu. Como já dissemos, não queríamos que os companheiros rompessem. Apesar dos seus erros, eles são honestos e muito contribuíram para a construção do CL.

Mas essa derrota não vai fazer a gente desanimar! O CL continua nas suas trincheiras da luta de classes, construindo a FIST, o Movimento Hora de Lutar e a Oposição Classista. Ainda não tivemos como terminar o balanço do espartaquismo, mas em breve, todos verão a nossa avaliação e um novo programa está sendo construído para nossa organização.

Não vamos ficar isolados nacionalmente depois das péssimas experiências com a TBI e o “RR”. O balanço será usado para fundamentar nossas relações internacionais. Como leninistas marxistas-revolucionários, não acreditamos em uma organização que se limite a um só país, e paro nós o socialismo só pode ser construído a nível internacional.

Nesse momento, estamos retomando o fôlego para voltar com o nosso jornal, aumentar a nossa intervenção no movimento e nossas discussões com outras organizações revolucionárias. Sabemos que, dentro do movimento dos trabalhadores e no movimento estudantil, temos muitos militantes que simpatizam com o nosso árduo trabalho político (quem não tem sido em vão), nos apoiam e certamente vão rejeitar esse racha.
28 de junho de 2011

Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (1)

Tendência Vern-Ryan
Uma Carta sobre a Revolução Boliviana

[Publicamos a seguir o primeiro de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]


Sam Ryan, de Los Angeles

1 de junho de 1952

Ao Secretariado do SWP


Prezados camaradas,

Esta carta é um pedido de esclarecimento sobre o programa e a política do POR da Bolívia. Apresentou-se ao POR a oportunidade de liderar a revolução e, dessa forma, prestar um grande serviço ao nosso movimento internacional. Nosso movimento, e não menos o SWP, tem o dever de dar aos camaradas bolivianos toda a ajuda possível, ambas material e política. É apenas normal que nós nos Estados Unidos devamos estar extremamente ansiosos para que os camaradas bolivianos busquem uma política que lhes trará sucesso.

A entrevista com o camarada Guillermo Lora, publicada em The Militant [jornal do SWP] em 12 e 19 de maio levanta algumas questões sérias sobre o programa e a política do POR que, eu acredito, deveriam ser resolvidas o quanto antes. As questões levantadas na entrevista, e insatisfatoriamente respondidas pelo camarada Lora, incluem:

1. O caráter de classe do governo;
2. O caráter do MNR;
3. Nossa atitude com relação aos conciliadores;
4. O programa transitório revolucionário para a Bolívia.

Deixe-me comentar brevemente sobre a forma com a qual o camarada Lora parece responder a essas questões.

1. O caráter de classe do governo

Eu acho que é incontestável que o atual governo boliviano é um governo burguês, cuja tarefa e objetivo são defender por todos os meios disponíveis os interesses da burguesia e do imperialismo. Ele irá, se puder, controlar e desarmar a classe operária, esmagar a sua vanguarda revolucionária e reconstruir a ditadura da burguesia, que foi abalada, mas não destruída, pela primeira fase da revolução. Esse governo é, portanto, o inimigo mortal dos trabalhadores e camponeses, e especialmente do partido marxista.

O camarada Lora não levanta explicitamente a questão do caráter de classe do governo. O mais perto que ele chega é o seguinte:

“O governo de Paz Estenssoro, dominado por sua ala reacionária, mostra todas as características marcantes do Bonapartismo, operando entre o proletariado e o imperialismo”.

Isso implica o caráter burguês do governo? Talvez. Eu espero que sim. Mas essa é uma questão que terá de ser respondida, e não por implicação ou inferência, mas diretamente.

Uma coisa parece clara: o camarada Lora não considera esse governo como um inimigo da classe trabalhadora e do POR:

“Não se pode excluir a possibilidade”, ele diz, “de que a ala direita do governo, encontrando-se diante do aguçamento da luta de massas contra si, vá aliar-se com o imperialismo para esmagar o assim chamado ‘perigo’ comunista”.

Essa formulação é errada, muito errada! Esse é um erro que, se de fato representa a posição do POR, pode ter consequências trágicas para a própria existência física dos quadros do partido trotskista boliviano.

Este é o aviso que os líderes do POR devem dar à classe trabalhadora e acima de tudo aos seus próprios membros: Nós podemos esperar com absoluta certeza (não meramente “não excluir a possibilidade”) que o governo (e não apenas a sua ala direita) vai se aliar com o imperialismo e tentar esmagar o movimento de massas e, acima de tudo, a sua vanguarda, o POR, que é um verdadeiro (e não o “assim chamado”) perigo comunista.

“Está fora de dúvida”, conclui Lora, “que o novo governo está agora sujeito a uma enorme pressão da burguesia feudal (esse termo deve ter sido resultado de uma tradução mal feita) e do imperialismo, para fazê-lo capitular ou para destruí-lo. Sob essas condições, o POR defende o governo com toda a sua força, por meio da mobilização das massas… Hoje, longe de sucumbir à histeria de uma luta contra o MNR, que os proimperialistas batizaram de ‘fascista’, nós estamos marchando com as massas para fazer o movimento de 9 de abril o prelúdio para o triunfo de um governo dos operários e camponeses”.

Três questões separadas parecem se misturar aqui:

A. A oposição política dos marxistas a um governo burguês. Um governo que, em razão da sua fragilidade, é forçado a manobrar com a classe operária e parece não ter ainda “capitulado” à burguesia. O camarada Lora expressa aparentemente uma posição de imparcialidade.

B. A oposição  ao governo pelos mais abertamente proimperialistas, classificada como “fascista”. Essa oposição de direita tem o objetivo de fortalecer as bases do governo contra a classe trabalhadora, ou derrubar o governo, ou ambos. Essa oposição não tem nada em comum com a oposição marxista pela esquerda, e o camarada Lora é culpado de um sério erro ao confundir as duas quando ele diz que o POR está “longe de sucumbir à histeria de uma luta contra o MNR”.

C. A cooperação técnica e material e a ajuda que os marxistas deveriam dar a um governo do MNR contra um golpe do tipo Kornilov ou Franco. Isso deve ser angularmente diferenciado de apoio político, que nós jamais daríamos. Nós continuaríamos a lutar contra o governo – com meios apropriados à situação, naturalmente – mesmo enquanto estivéssemos combatendo juntamente com ele contra um levante militar contrarrevolucionário.

Essa confusão feita pelo camarada Lora de dois tipos diferentes de “oposição” e dois tipos diferentes de “apoio” parecem ser um paralelo da política potencialmente desastrosa dos Bolcheviques em março-abril de 1917 que, na ausência de Lenin, declararam seu apoio ao Governo Provisório contra a reação ou contrarrevolução. Mas ela não parece nem um pouco com a política de Lenin na luta contra Kornilov, quando ele escreveu:

“Seria o erro mais profundo imaginar que o proletariado revolucionário é capaz, por assim dizer, ‘para se vingar’ dos Socialistas-Revolucionários e Mencheviques, de se recusar a ‘apoiá-los’ contra a contrarrevolução… Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos, sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.

2. Qual é o caráter do MNR?

O camarada Lora responde a essa pergunta da forma como se segue: “O MNR é um partido pequeno-burguês que se baseia nas organizações das massas”. Eu acho que isso está errado, e que é a base para uma atitude conciliatória com relação ao MNR. O MNR é um partido burguês que explora politicamente as massas. A maioria dos seus membros, como em todos os partidos de massas, são sem dúvida trabalhadores e elementos de classe média; mas isso não determina o seu caráter de classe. Ele não é controlado por sua maioria, mas por sua ínfima minoria, e os controladores ausentes: a classe capitalista. De que outra forma seria possível explicar a composição do governo que, como diz o camarada Lora, “é maciçamente composto pelos elementos mais reacionários do MNR e particularmente os maçons… os mais efetivos agentes do imperialismo”?

É esse o tipo de governo que o POR defendia quando ele levantou o slogan “Que o MNR tome o poder”? A composição do governo está em completa conformidade com o caráter do MNR. Eu acredito que foi errado levantar esse slogan. A não ser que os nossos camaradas desfaçam seu erro reconsiderando a sua caracterização do MNR, eles irão inevitavelmente sofrer juntamente com o MNR quando as massas, por sua própria experiência, começarem a ver o verdadeiro caráter de classe desse partido burguês.

3. Nossa atitude com relação aos conciliadores

Com relação aos líderes operários no governo, o camarada Lora toma uma atitude inequívoca: ele os apoia, e não apresenta nenhuma crítica ao seu papel. “Os trabalhadores têxteis”, diz ele, “obrigaram o MNR a aceitar elementos da classe operária no gabinete”. O POR apoiou esta demanda? A suposição é forte de que sim. O camarada Breitman [do SWP] cita o New Leader, que diz que o camarada Lora é o secretário de Lechín, o principal líder sindical no governo do MNR; e Breitman não contradiz esse relato. Se for verdade, isso não posicionaria o POR como um membro subordinado de um governo burguês de coalizão? E mesmo se esse relato não for verdadeiro, a situação não é decisivamente diferente. Suponha que o POR tivesse força o suficiente para garantir a sua entrada no gabinete. E se, como todos esperamos e desejamos, o POR ganhasse mais apoio de massa no futuro, ele entraria então em um governo burguês de coalizão? Essa é a lógica da posição colocada pelo camarada Lora.

A atitude marxista sempre tem sido e continuará sendo de hostilidade com relação aos conciliadores; de chamá-los a romper com os políticos burgueses e formar um governo de trabalhadores e camponeses. De acordo com os informes mais recentes, Lechín está capitulando à ala direita do governo na questão da nacionalização das minas. Isso não deveria ser nenhuma surpresa para nós. Isso era inevitável. Quanto o POR não teria ganhado em confiança das massas se ele tivesse previsto essa capitulação? Quanto ele perdeu por seu apoio aos conciliadores?

É claro que o POR teria tido como consequência a perda da simpatia de Lechín. Mas Lechín é um simpatizante traidor e indigno de confiança. Lechín irá capitular de novo e de novo. Ele irá ajudar a desarmar os trabalhadores. Ele irá ajudar a tentar esmagar o POR, não importa o quanto este o apoie. E a traição de Lechín será facilitada se o POR continuar a apoiá-lo.

4. O programa de transição revolucionário

A independência do partido revolucionário é uma lei absoluta numa situação revolucionária. Mas isso não cai do céu. Ela surge a partir da teoria marxista e do programa do partido. As principais palavras de ordem levantadas por nosso partido, de acordo com o camarada Lora foram as seguintes:

“1. Restauração da constituição do país através da formação de um governo do MNR, que obteve maioria nas eleições de 1951.”
“2. Lutar pela melhoria de salários e condições de trabalho.”
“3. Lutar por direitos democráticos.”
“4. Mobilizar as massas contra o imperialismo, pela nacionalização das minas, e pelo cancelamento do acordo com as Nações Unidas.”

Os pontos 2 e 3 são claramente insuficientes para diferenciar nosso partido das outras tendências do movimento operário. Elas são genéricas demais. A forma com a qual nós levantamos a luta deve ser elaborada de tal forma que seja parte do programa de transição revolucionário.

A demanda pela nacionalização das minas é suficiente para diferenciar o programa marxista daquele de todas as outras correntes? Eu acredito que não. Ambas as alas de direita e de esquerda do MNR são a favor da nacionalização. E não existe razão para supor que o MNR não possa ser forçado a cumpri-la a um grau ou outro. Cárdenas, Mossadegh, Perón, todos realizaram nacionalizações sem perderem nem um centímetro do seu caráter burguês.

A nacionalização não muda o caráter de classe do Estado. A nacionalização em si só tem um caráter de classe de acordo com o governo que a realiza. É claro que nós não nos opomos a tais nacionalizações; nós as defendemos contra o imperialismo. Mas a questão decisiva permanece: qual classe possui o poder político e militar? O poder de Estado está nas mãos da burguesia ou do proletariado? E o poder burguês só pode ser removido pela revolução proletária.

O camarada Lora aparentemente não distingue essa linha marcante no caráter de classe do Estado. Por sua designação desse governo como “Bonapartista” operando entre o proletariado e o imperialismo, por sua caracterização do MNR como um partido pequeno-burguês, e por sua ênfase na nacionalização, ele parece considerar o presente regime como um regime transitório que não teria caráter de classe fixo.

“Agora é necessário”, diz o camarada Lora, “lutar pela nacionalização das minas, das indústrias principais, e da terra. Essa luta estará intimamente conectada com o desenvolvimento de um levante de massas, com o envolvimento dos novos setores da classe operária na luta, de tal forma que ela assuma um âmbito nacional, e finalmente a constituição de um governo de operários e camponeses”.

Uma aplicação dessa intenção obviamente resultaria na elaboração de um programa transitório. Portanto, eu espero que ele seja elaborado.

Mas como isso se adequa à demanda pela restauração da constituição burguesa? Eu me lembro muito bem o quanto os trotskistas franceses foram criticados (e muito corretamente) por votar a favor de uma constituição burguesa. Eles se defenderam apontando para o fato de que as organizações da classe trabalhadora a apoiavam, enquanto os reacionários eram contra. É essa a justificativa do POR? Isso tornaria a política marxista muito simples: veja o que a extrema direita está fazendo e faça o oposto.

As massas estavam lutando sob a palavra de ordem de restauração da constituição? Os marxistas podem participar da luta das massas sem levantar as palavras de ordem incorretas delas. É verdade que eles seriam então uma minoria; mas esse é o preço que devemos pagar por apontar as necessidades objetivas que as massas ainda não compreendem completamente. Os marxistas devem explicar pacientemente.

O camarada Lora menciona a influência que o POR ganhou na ala esquerda do MNR. Uma influência imprestável me parece, se ela foi obtida adotando o programa do MNR. Uma “frente única” com um partido burguês com o objetivo de estabelecer uma constituição burguesa e colocar o partido burguês no poder não é uma frente única, mas uma frente popular.

A frente única que os marxistas reivindicam tem o objetivo de unir operários e camponeses numa base de acordo mínima, incorporando um estágio do programa de transição revolucionário. Essa frente única, numa situação revolucionária, se transforma em sovietes de trabalhadores e camponeses. E mesmo nos sovietes a luta continua. Longe de aceitar o programa conciliador que possa ser imposto sobre os sovietes, os marxistas reivindicam seu próprio programa, chamando os sovietes a romper com a burguesia, seus partidos e seu governo, e a tomar completamente o poder, estabelecendo um governo operário e camponês.

Mas o camarada Lora não levanta a questão de romper com o governo burguês. O governo operário e camponês que ele reivindica parece ser uma conclusão última da mudança gradual de cargos no governo burguês, onde os direitistas seriam forçados a sair e o gabinete ganharia um tom cada vez mais para a esquerda.

Numa situação revolucionária, o slogan de governo operário e camponês não é um objetivo último, mas uma demanda imediata, inseparável de romper e destruir o governo burguês. O governo dos trabalhadores e camponeses pode ser atingido, na verdade, apenas como a ditadura do proletariado.

Esta carta, camaradas, se baseia em uma única entrevista com um líder do POR. Eu suponho – na verdade, espero ardentemente – que eu não tenha base o suficiente para caracterizar a política do POR. Eu, portanto, contive o tom das minhas críticas ao máximo. Mas há o perigo, ou ao menos a possibilidade de, no meio de uma grande luta, ser carregado pelo fluxo dos acontecimentos. Sem tentar impor aos camaradas bolivianos suas táticas específicas, os líderes do nosso partido devem ajudar o POR a basear suas táticas estritamente no programa marxista revolucionário, a única esperança para a vitória.

Eu espero que vocês vejam esta carta no espírito no qual ela é escrita: mais um questionamento do que uma crítica.

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