Arquivo Histórico: Declaração Espartaquista à III Conferência do Comitê Internacional

Declaração Espartaquista à Conferência Internacional

Apontamentos feitos durante a discussão do Relatório político de Cliff Slaughter na Conferência do Comitê Internacional pelo camarada Robertson em 6 de abril de 1966, em nome da delegação Espartaquista (com pequenas correções editoriais). Originalmente publicado em Spartacist número 6, junho/julho de 1966. A versão para o português foi realizada por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres em 2011 a partir da versão disponível no site do Reagrupamento Revolucionário.

Em nome do grupo Espartaquista, eu saúdo essa Conferência chamada pelo Comitê Internacional. Essa é a primeira participação internacional da nossa tendência; nós apreciamos profundamente essa oportunidade de ouvir e trocar concepções com camaradas do movimento mundial.

Portanto, nós sentimos que temos a responsabilidade de apresentar a vocês nossas visões específicas onde elas são ao mesmo tempo relevantes e distintivas, sem nos adaptarmos ou modificarmos estas em nome de uma falsa unanimidade que prestaria um desserviço a todos nós, já que nós, em nossa opinião, temos idéias relevantes a oferecer.

Nós estamos presentes nessa Conferência na base de um acordo fundamental com a Resolução Internacional do CI [Comitê Internacional]; além do mais, o relatório do camarada Slaughter foi para nós solidamente comunista, condizente em todo por uma determinação revolucionária.

1. O que é o Pablismo

O ponto central da Conferência é “A Reconstrução da Quarta Internacional, destruída pelo Pablismo”. Portanto, a questão, “O que é o pablismo?” foi apropriadamente bastante discutida. Nós discordamos que o pablismo seja meramente expressão de correntes orgânicas de reformismo e stalinismo, sem ter tido raízes dentro do nosso movimento. Nós também discordamos da visão do Voix Ouvriere [grupo francês que daria origem ao Lutte Ouvriere] de que o pablismo pode ser explicado simplesmente por referência à composição social pequeno-burguesa da Quarta, assim como não se pode explicar a natureza específica de uma doença somente por referência ao corpo enfraquecido no qual certos micróbios se instalam.

O pablismo é uma resposta revisionista a novos problemas colocados pelas expansões stalinistas após 1943. E o pablismo foi contraposto dentro do nosso movimento por uma má “ortodoxia” representada até os últimos anos pelo exemplo de Cannon. Nós devemos responder a novos desafios de uma maneira verdadeiramente ortodoxa: como Gramsci coloca, devemos desenvolver a doutrina através de sua própria extensão, e não buscar a absorção eclética de novos elementos estranhos, como o pablismo tem feito.

A pressão que produziu o pablismo começou em 1943, seguindo-se à falha da perspectiva de Leon Trotsky sobre a destruição da burocracia soviética e de novas revoluções de outubro no pós-guerra: esse fracasso resultou da inabilidade de forjar partidos revolucionários. Depois de 1950, o pablismo dominou a Quarta; apenas quando os frutos do pablismo já estavam maduros foi que uma seção da Quarta reagiu. Em nossa opinião, o movimento “ortodoxo” ainda deve enfrentar novos problemas teóricos que o tornaram suscetível ao pablismo em 1943-50 e deu origem a um racha parcial, imperfeito em 1952-54.

Luta Inevitável

A luta contra o pablismo é a forma histórica específica de uma luta necessariamente contínua contra o revisionismo e que não pode ser resolvida “definitivamente” dentro dos limites do capitalismo. Bernstein, Bukharin e Pablo, por exemplo, foram nossos antagonistas em fases particulares dessa luta, que é ao mesmo tempo necessária e inevitável, e não pode ser “resolvida”.

Essas são algumas das nossas visões sobre o pablismo; elas não são exaustivas, já que elas foram moldadas por aspectos particulares do pablismo que emergiram em nossa própria luta contra ele.

Nós começaremos com a noção de que a presente crise do capitalismo é tão aguda e profunda que um revisionismo trotskista é necessário para adestrar os trabalhadores, num caminho comparável ao da degeneração das Segunda e Terceira Internacionais. Tal estimação errada teria como ponto de partida uma enorme superestimação da nossa presente significância, e seria igualmente desorientadora.

Nós faríamos melhor se nos concentrássemos no que Lenin disse com relação às várias crises onipresentes que acontecem no imperialismo (um sistema essencialmente em crise desde antes de 1914); Lenin colocou que não há situação impossível para a burguesia, é necessário derrubá-la. Caso contrário, “crises” serão acontecimentos cotidianos num dia de trabalho dos mecanismos e agências do imperialismo, ao se arrastarem de um ano a outro. Precisamente agora, de fato, a sua tarefa se torna mais fácil após a terrível destruição do movimento dos trabalhadores indonésios; a isso se devem somar outros reveses que expõem a dependência dos revisionistas em camadas pequeno-burguesas e burocráticas, como a degeneração da URSS, o isolamento da China, a subjugação da Índia, a estabilização nítida da África, e Castro refém da Rússia e dos Estados Unidos.

A lição central desses episódios é a necessidade de construir partidos revolucionários da classe operária, ou seja, nossa habilidade de intervir na luta.

2. Táticas Anti-pablistas

Um camarada francês colocou muito bem: “não existe família do trotskismo”. Só existe o programa correto do marxismo revolucionário, que não é um guardachuva. No entanto, existem agora quatro correntes internacionais organizadas reivindicando serem trotskistas, e que são consideradas como “trotskistas” em certo sentido convencional. Esse estado de coisas deve ser resolvido através de rachas e fusões. A razão para a presente aparência de uma “família” é que cada uma das quatro tendências – “Secretariado Unificado”, “Tendência Marxista Revolucionária” de Pablo, “Quarta Internacional” de Posadas, e o Comitê Internacional – é, em alguns países, o único grupo organizado reivindicando a bandeira do trotskismo. Dessa forma, eles atraem todos aqueles que querem se tornar trotskistas em suas áreas e suprimem a polarização; não há luta e diferenciação, ganha-se alguns e expulsa-se outros para forçá-los a abandonar suas pretensões como revolucionários e trotskistas. Assim, quando vários camaradas Espartaquistas visitaram Cuba, nós descobrimos que o grupo trotskista de lá, parte da Internacional de Posadas, era composto em maioria de excelentes camaradas lutando com valor sob difíceis condições. Os discursos feitos aqui pelos camaradas dinamarqueses e ceilaneses, representando alas de esquerda do Secretariado Unificado, refletem tais problemas.

O racha parcial e exposição crua das forças do Secretariado Unificado – a expulsão de Pablo, a traição no Ceilão, a linha de colaboração de classe do SWP na guerra do Vietnã, Mandel se rastejando diante dos herdeiros da socialdemocracia belga – provam que foi-se o tempo em que a luta contra o pablismo poderia ser travada num plano internacional por dentro de um mesmo espectro organizativo. E a experiência particular de nossos grupos nos Estados Unidos, que foram expulsos meramente pelas opiniões que mantinham, sem direito de apelo, demonstram que o Secretariado Unificado mente quando ele diz quere incluir todos os trotskistas.

Devemos Fazer Melhor

Até agora, nós não conseguimos muitos sucessos, em nossa opinião, em esmagar os pablistas; o impacto dos eventos por si só, não importa quão favoráveis objetivamente ou devastadores para as doutrinas revisionistas, não farão isso por nós. Nos Estados Unidos, o racha da ala esquerda do SWP nos seus cinco anos de história, tem sido um grande presente para a liderança revisionista do SWP.

Atualmente, nossa luta contra os pablistas deve ser preponderantemente por fora das suas organizações; no entanto, em muitos países, um período de frentes únicas e penetração organizativa nos agrupamentos revisionistas permanece necessário com o objetivo de consumar a luta pela verdadeira reconstrução da Quarta, culminando num congresso mundial para refunda-la.

3. Clarificação Teórica

A experiência dos processos argelino e cubano, cada um por si, são muito importantes pela luz que eles lançam sobre a distinção decisiva entre o ganho da independência nacional numa base burguesa, e revoluções do tipo chinês, que levam a um rompimento real com o capitalismo, embora confinados dentro dos limites de uma camada dirigente burocrática.

Dois elementos decisivos estiveram em comum em toda a série de levantes sob lideranças de tipo stalinista, como na Iugoslávia, China, Cuba, Vietnã: (1) uma guerra civil de variante guerrilha-camponesa, que primeiro arranca o movimento do controle imediato do imperialismo e substitui uma liderança pequeno-burguesa; e então, se vitorioso, toma os centros urbanos e em seu tempo esmaga as relações de propriedade capitalistas, nacionalizando a indústria sob a nova liderança bonapartista que se consolida; (2) a ausência da classe operária como um competidor pelo poder social, em particular, a ausência de sua vanguarda revolucionária: isso permite um papel excepcionalmente independente para as seções pequeno-burguesas da sociedade que não sofrem, então, a polarização que ocorreu na revolução de outubro, na qual as seções pequeno-burguesas mais militantes foram arrastadas pela classe operária revolucionária.

Apesar disso é evidente que uma revolução política suplementar é necessária para abrir a estrada para um desenvolvimento socialista, ou, em seus estágios iniciais, como no Vietnã hoje, a intervenção ativa da classe trabalhadora para ganhar hegemonia na luta nacional-social. Apenas aqueles como os pablistas, que acreditam que (pelo menos algumas) burocracias stalinistas (por exemplo, Iugoslávia, China ou Cuba) podem ser uma liderança socialista revolucionária devem ver nessa compreensão uma negação da base proletária para a revolução social.

Pelo contrário, precisamente, o campesinato pequeno-burguês, sob as mais favoráveis circunstâncias históricas concebíveis, não foi capaz de atingir nenhuma terceira via, que não fosse nem capitalista nem proletária. Ao invés disso, tudo em que resultou da China e de Cuba foi um Estado da mesma ordem daquele resultante da contra-revolução política de Stalin na União Soviética, a degeneração da revolução de outubro. É por isso que nós somos levados a definir Estados como estes como Estados operários deformados. E a experiência desde a Segunda Guerra Mundial, entendida apropriadamente, não oferece nenhuma base para um abandono revisionista da perspectiva e necessidade de um poder operário revolucionário, mas ao contrário, é uma grande justificação da teoria marxista e suas conclusões sob circunstâncias novas e previamente inesperadas.

Fraqueza e Confusão

Muitas declarações e posições do CI mostram fraqueza teórica ou confusão a respeito desta questão. Assim, a declaração do CI sobre a queda de Ben Bella afirmou:
“Onde o Estado toma uma forma bonapartista em nome de uma burguesia frágil, como na Argélia ou em Cuba, então o tipo de ‘revolta’ que ocorreu em 19-20 de junho em Argel está na agenda.”
 Newsletter, 26 de junho de 1965
Enquanto a nacionalização, na Argélia chega agora a cerca de 15 por cento da economia, a economia cubana é, em essência, totalmente nacionalizada; a China provavelmente tem mais vestígios da sua burguesia. Se a burguesia cubana está de fato “fraca”, como o CI afirma, pode-se observar que deve ser por estar cansada de ter nadado até Miami, Flórida.

A atual resolução do CI, “Reconstruindo a Quarta Internacional”, entretanto, põe a questão muito bem:

“Da mesma forma, a Internacional e seus partidos são a chave para o problema da luta de classes nos países coloniais. Os líderes nacionalistas pequeno-burgueses e seus colaboradores stalinistas restringem a luta ao nível da libertação nacional ou, na melhor das situações, a uma versão do ‘socialismo num só país’, sustentado pela subordinação às políticas de coexistência da burocracia soviética. Dessa forma, todas as conquistas da luta dos trabalhadores e camponeses, não apenas no mundo árabe, Índia, Sudeste da Ásia, etc., mas também na China e em Cuba [ênfase do grupo Espartaquista], ficam confinadas dentro dos limites da dominação imperialista, ou expostas à contra-revolução (o bloqueio contra a China, a crise dos mísseis cubana, a guerra do Vietnã, etc.).”

Aqui, Cuba é abertamente equiparada com a China, não com a Argélia.

O documento oferecido pela seção francesa do CI há muitos anos atrás sobre a revolução cubana sofre, do nosso ponto de vista, de uma fraqueza central. Ele enxerga a revolução cubana como análoga à experiência espanhola dos anos 1930. Essa analogia não é meramente defeituosa: ela enfatiza precisamente o que não é comum aos processos na Espanha e em Cuba, ou seja, a autêntica revolução operária na Espanha que foi esmagada pelos stalinistas.

Superando o Método Errado 

Os pablistas foram fortalecidos contra nós, em nossa opinião, por esse reflexo simplista do CI, que parece precisar negar a possibilidade de uma transformação social liderada pela pequeno-burguesia para poder defender a validade e a necessidade do movimento marxista revolucionário. Esse é um método errado: no fundo, ele iguala os Estados operários deformados com o caminho para o socialismo; é o erro pablista virado de cabeça para baixo, e uma profunda negação da compreensão trotskista de que a casta burocrática dirigente é um obstáculo que deve ser derrubado pelos trabalhadores se eles pretendem seguir adiante.

A análise teórica Espartaquista com relação às porções periféricas do mundo fortalece, em nossa estima, as posições programáticas que temos em comum com os camaradas do CI internacionalmente.

4. Construindo a seção nos Estados Unidos

O aspecto principal da nossa tarefa que pode ser obscuro para camaradas estrangeiros é a imediatamente, criticamente e unicamente importante questão negra. Sem uma aproximação correta para os jovens militantes e trabalhadores negros nós seremos incapazes de traduzir para condições americanas o enraizamento de nossa seção entre as massas.

Nós temos lutado duramente para adquirir um conhecimento teórico no curso de nossa luta no SWP contra esquemas de nacionalismo negro que desintegram uma perspectiva revolucionária – fizemos isso defendendo a posição de que os negros nos Estados Unidos são uma casta de cor oprimida concentrada principalmente na classe operária como uma camada super-explorada. E nós temos adquirido uma considerável experiência, visto o nosso pequeno tamanho e apesar de uma composição que ainda é apenas 10 por cento de negros. Nós temos um núcleo no Harlem, Nova Iorque. Nós intervimos de inúmeras formas nas explosões de fúria dos guetos negros nos verões de 1964 e 65, adquirindo uma valiosa experiência.

[O restante dos apontamentos não foram escritos antes da apresentação; eles estão transcritos como reconstruído a partir das notas rascunhadas. A questão de propaganda e agitação não foi feita significantemente no relatório, mas está no rascunho Espartaquista sobre as tarefas concretas que foi discutido na noite antes de o relatório oral ter sido feito, portanto a porção relevante desse rascunho também está citada abaixo.]

Nossa resolução rascunhada diante de vocês declara a respeito do nosso trabalho no Sul que: “Talvez nosso mais importante sucesso até agora tenha sido a construção de inúmeros comitês organizativos da SL no extremo Sul, incluindo Nova Orleans. Esse é um passo suficientemente modesto em termos absolutos e não nos dá mais do que um ponto de partida para um trabalho sistemático. O que é impressionante é que nenhuma outra organização reivindicando ser revolucionária tem qualquer base que seja no extremo Sul atualmente.”

Negro e Branco

A questão racial nos Estados Unidos é diferente do caso da Inglaterra. De fato, ela está no meio do caminho entre a situação na Inglaterra e aquela na África do Sul. Assim, cerca de 2 por cento da população britânica é de cor; na África do Sul mais de dois terços das pessoas são negras. Nos Estados Unidos, cerca de 20 por cento da população é negra ou de fala hispânica, contando com que estejam incluídos na classe operária, dada a esmagadora concentração de brancos nas classes superiores, eles compreendem algo em torno de 25 ou 30 por cento. O que isso significa é que na Inglaterra a intensidade de exploração se distribui de maneira desigual, porém de maneira mais suave através de uma classe operária essencialmente homogênea. No outro extremo, na África do Sul, os trabalhadores brancos com rendas dez vezes maiores que os dos negros, vivem em grande parte do trabalho dos negros, impondo assim uma barreira quase insuperável para ações de classe comuns (vejam-se as relações dos trabalhadores muçulmanos e europeus na Argélia). Nos Estados Unidos, o fardo qualitativamente mais pesado dentro da classe é suportado pelos trabalhadores negros. Em tempos de calmaria, eles tendem a estar divididos dos trabalhadores brancos como nos níveis baixos de lutas de classe que prevalecem hoje. Portanto, a juventude negra nos Estados Unidos é a única equivalente hoje ao tipo de juventude militante branca de base operária encontrada nos Jovens Socialistas britânicos.

Unindo a Classe

Entretanto, nós estamos perfeitamente cientes que em certo ponto da luta de classes os principais destacamentos de trabalhadores, como tais, ou seja, negros e brancos em organizações de classe comuns como os sindicatos, se tornam fortemente envolvidos. Toda greve mostra isso. Em preparação para as massivas lutas de classe à frente nós começamos a construir frações em certas seções-chaves acessíveis da classe operária. Mas hoje, ganhar jovens militantes negros é um atalho para ganhar quadros proletários também; virtualmente todos estes militantes são parte da classe operária.

Finalmente, nós sabemos que sob as condições específicas dos Estados Unidos, construir um partido genuinamente revolucionário irá exigir uma composição em suas fileiras e liderança de uma grande proporção, talvez uma maioria, dos mais explorados e oprimidos, os trabalhadores negros.

Um Grupo de Propaganda Combativo

As teses rascunhadas do grupo Espartaquista declaram: “O objetivo tático da SL no próximo período será construir um grupo de propaganda suficientemente grande capaz de intervenção agitativa em todas as lutas sociais nos EUA como um passo necessário na construção de um partido revolucionário. Para tal intervenção, nós buscamos um aumento pelo menos dez vezes maior das nossas forças. Da nossa pequena força de aproximadamente 100, nós nos movemos em direção ao nosso objetivo em três linhas paralelas de atividades: rachas e fusões com outros grupos, envolvimento direto na luta de classes, e o fortalecimento e educação política de nossa organização”.

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Declaração Final da Delegação Espartaquista à Conferência de Londres de 1966

Camaradas: Nós acreditamos que é uma violação da prática leninista exigir que um camarada afirme aos seus próprios companheiros aquilo que ele não acredita. Eu disse substancialmente inúmeras vezes que se eu soubesse da regra eu teria certamente seguido-a. Eu quero garantir aos camaradas que minha ação não teve nenhuma intenção de constituir uma violação aos procedimentos que regem a conduta dos indivíduos participantes da Conferência. Entretanto, isso não foi considerado bom o suficiente. Ao invés disso, a guisa de disciplina, a organização Espartaquista foi sujeita a uma série de ataques caluniosos, apesar do nosso acordo político básico sobre a necessidade de lutar contra o revisionismo. Essa é uma tentativa de substituir o centralismo democrático da seção norte-americana por um mecanismo não de consciência e disciplina, mas de medo e obediência. Dessa forma um incidente sem significado de violação não intencional do protocolo foi exclusivamente destacado e inflado até se transformar numa acusação de arrogância pequeno-burguesa e chauvinismo imperialista norte-americano. Se os camaradas forem em frente e nos excluírem desta Conferência, nós pedimos apenas aquilo que nós pedimos antes – estudem os nossos documentos, incluindo o presente rascunho sobre o trabalho nos EUA diante de vocês agora, e o nosso trabalho pelos próximos meses e anos. Nós faremos o mesmo, e uma unificação das forças trotskistas apropriadas será atingida, apesar deste trágico retrocesso.
Documentos Relacionados

Terceira Conferência do Comitê Internacional: 
Derrota para o Trotskismo Mundial
Junho de 1966

Carta de Rompimento de Sam Trachtenberg com a Liga Espartaquista

Entendendo a Rússia Direito

A carta a seguir foi distribuída em um evento do Comitê de Defesa Partidário [grupo de defesa de presos políticos estimulado pela Liga Espartaquista] em Nova Iorque em dezembro de 1994 e foi reimpressa em “1917” [revista da Tendência Bolchevique Internacional] número 16, em 1995. É uma versão expandida da intervenção planejada por Samuel Trachtenberg (sua intervenção não foi aceita) no debate público entre Joseph Seymour (SL) e Ernest Mandel (SU) dois meses antes. A versão em português foi realizada em julho de 2011 por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres a partir da versão disponível no site do Reagrupamento Revolucionário.

9 de Dezembro de 1994
Ao Comitê Editorial de Workers Vanguard [jornal da Liga Espartaquista]

Caros camaradas,

A Liga Espartaquista argumenta num livreto recentemente publicado (Iugoslávia, Europa Oriental e a Quarta Internacional: A Evolução do Liquidacionismo Pablista, escrito por Jan Norden) que um dos precedentes históricos que levou à ascensão do revisionismo de Ernest Mandel foi a incapacidade da Quarta Internacional de compreender as transformações sociais na Europa Oriental do pós-guerra. Entretanto, mais de três anos desde agosto de 1991, a SL ainda não é capaz de dizer quando a URSS deixou de ser um Estado operário.

A SL diz que Ieltsin realizou uma “consolidação gradual de um Estado capitalista” (WV número 564). Na prática isso poderia significar que a Rússia era 80% Estado operário e 20% Estado capitalista, depois 40% Estado operário e 60% Estado capitalista, etc. Isso é ridículo! Revolução e contra-revolução não são processos graduais. Dizer isso vai contra os ensinamentos marxistas sobre o Estado. Somente uma classe pode deter o poder de Estado por vez. A classe capitalista ou a classe operária. A SL costumava entender isso: em “A Gênese do Pablismo” ela escreveu, sobre a teoria de Ernest Mandel da revolução, que “a ‘revolução’ foi implicitamente redefinida como um processo metafísico de duração contínua e progredindo inevitavelmente em direção à vitória, ao invés de uma confrontação brusca, e necessariamente limitada no tempo, sobre a questão do poder de Estado, cujo resultado irá moldar todo o período histórico subsequente” (Spartacist, número 21, outono de 1972).

Nos anos 1960, Joseph Hansen e os pablistas disseram que os países como a Argélia tinham “governos operários e camponeses” presidindo acima de Estados burgueses, que iriam, eles formulavam, gradualmente se transformar em ditaduras proletárias. Nos anos 1980, o Partido dos Trabalhadores Socialistas [SWP norte-americano] usou essa formulação para descrever a Nicarágua. Anos antes, Jim Robertson [dirigente da SL] corretamente observou: “nós deveríamos ser claros sobre o que significa um governo dos trabalhadores. Não é nada além da ditadura do proletariado” (“Sobre a Frente Única”, Boletim Jovem Comunista número 3, 1976). Agora a SL está implicando que, num modelo similar, a URSS sob Ieltsin era inicialmente um Estado operário com um governo burguês, que foi gradualmente transformado num Estado burguês em algum ponto posterior desconhecido?

Se, como a SL diz, programa gera teoria, que programa teria gerado a teoria da “contra-revolução gradual” na URSS? Trotsky teria denunciado isso como “reformismo ao contrário”. A resposta é que em agosto de 1991, quando a contra-revolução realmente triunfou, a SL se absteve do confronto entre Ieltsin e os golpistas stalinistas, ou seja, não apoiou nenhum dos lados militarmente. A sua teoria tenta encobrir isso negando o significado da vitória de Ieltsin, mas eles próprios escreveram no documento de sua recente conferência internacional: “Os eventos de agosto de 1991 (‘golpe’ e ‘contragolpe’) parecem ter sido decisivos na direção dos desenvolvimentos na União Soviética”, adicionando “mas apenas aqueles que estão sob o ritmo da ideologia capitalista teriam sido apressados para chegar a essa conclusão” (Spartacist número 47-48, inverno de 1992-93). Isso significa que a SL sabe que está errada, mas se recusa a admitir isso. O que torna tão difícil que a SL admita ter errado é o fato de que um dos seus principais adversários no movimento operário, a Tendência Bolchevique Internacional, estava certa ao estar do mesmo lado do golpe stalinista em defesa das conquistas de Outubro, e ao reconhecer sua derrota como a morte do Estado operário soviético. Trotsky chamou esse tipo de política da SL de “política de prestígios”. Qualquer organização que ponha o prestígio de sua liderança acima de dizer a verdade para a classe trabalhadora perdeu o seu propósito revolucionário.

Qual foi a base para esse erro? No livreto citado acima sobre a Iugoslávia e a Quarta Internacional, Jan Norden argumenta corretamente que, enquanto era uma tarefa estratégica importante para o movimento trotskista defender a União Soviética, sua linha estratégica era revolução socialista mundial. A ideia de que a linha estratégica do movimento operário deveria ser a defesa da URSS é uma concepção pablista ou stalinista. No entanto, essa concepção implícita da divisão do mundo entre dois blocos tendeu a colorir a visão da SL durante a maior parte dos anos 1980. A partir disso, eles tiraram a conclusão, como foi colocado numa edição recente de Spartacist Canada (número 100) que o que existia era um “mundo bipolar – polarizado entre o mundo imperialista e o bloco soviético”. Essa polarização, entretanto, era apenas um reflexo da luta de classes global entre trabalhadores e capitalistas, e não a substituía. A SL, no entanto, começou a ver virtudes revolucionárias na burocracia stalinista. Isso se mostrou quando, por exemplo, eles se autoproclamaram a “Brigada Yuri Andropov” e depois escreveram um poema para Yuri Andropov [chefe do Partido Comunista da União Soviética entre 1982-84], carrasco da revolução húngara de 1956, dizendo, entre outras coisas, que ele “não cometeu nenhuma traição aberta em nome do imperialismo” (WV número 348, fevereiro de 1984).

Enquanto reconhecia o caráter dual da burocracia stalinista, e rejeitava a visão de que ela era absolutamente contrarrevolucionária, a SL rejeitou também na prática a análise de Trotsky de que a casta burocrática stalinista era “em essência representante de uma tendência em direção à restauração do capitalismo” (“Contra o Revisionismo Pablista”, citado no documento de Norden). A concepção da SL sobre a burocracia stalinista estava evoluindo em direção a vê-la como comunistas subjetivos com um programa insuficiente. Na verdade, a burocracia era, na maior parte, um bando de carreiristas cínicos que defendiam a União Soviética apenas para defender os seus privilégios, não por crença baseada em princípios numa sociedade igualitária e sem classes. A estratégia da SL era orientada nem tanto para a classe trabalhadora, mas para a “Fração Reiss” dentro da burocracia stalinista, que ela pensava que iria emergir espontaneamente. Assim, na RDA (Alemanha Oriental), eles procuravam uma seção da burocracia stalinista para liderar uma “revolução política” inexistente, levantando o slogan de “unidade com o SED [Partido Socialista Unificado, de orientação stalinista]”. Quando, ao invés de serem o baluarte do defensismo soviético, os stalinistas por toda a Europa Oriental, ou participaram, ou capitularam sem luta diante da restauração do capitalismo, a SL se sentiu traída. As ações dos stalinistas não deveriam ter vindo como uma surpresa para marxistas genuínos. Afinal de contas, o próprio Trotsky escreveu que “uma restauração do capitalismo provavelmente teria que expurgar menos pessoas (do aparato de Estado) do que um partido revolucionário” (citado em Como o Estado Operário Soviético Foi Estrangulado). Quando, em agosto de 1991, uma seção da burocracia stalinista finalmente se levantou em defesa dos seus privilégios, a SL se absteve.

Enquanto eu estive no Clube Juvenil Spartacus [organização de juventude da Liga Espartaquista], membros da SL me disseram em resposta a alguns dos meus argumentos, que “consolidação gradual” do poder de Estado não tinha a intenção de ser um prognóstico histórico, mas meramente descrevia o que aconteceu. Pode ser que isso faça lembrar aqueles trotskistas nos anos 1950 que tinham a descrição teoricamente incorreta de que o stalinismo era absolutamente contrarrevolucionário. Sob circunstâncias históricas diferentes, eles acabaram no lado errado das barricadas da Guerra Fria. Da mesma forma, sob circunstâncias históricas diferentes, o erro teórico da SL poderia levá-la a começar a falar sobre “reformas estruturais” [no Estado burguês], assim como Ernest Mandel. Se não corrigida ao longo do percurso, uma teoria errada leva a um programa errado.

Apesar do que disseram Michel Pablo, Joseph Hansen e Ernest Mandel, não existem marxistas inconscientes. A crise da humanidade é a crise de liderança revolucionária, mas a ICL [Liga Comunista Internacional, organização internacional dirigida pela Liga Espartaquista] não é capaz de ser a base para essa liderança. Como ex-membro do Clube Juvenil Spartacus, eu agora apoio a Tendência Bolchevique.

Pelo Renascimento da Quarta Internacional,

Semeon G. [Samuel Trachtenberg]

Resolução da Tendência Revolucionária Sobre o Movimento Mundial

Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional

PROJETO DE RESOLUÇÃO SOBRE O MOVIMENTO MUNDIAL submetida à Convenção do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) norte-americano em 1963 pela Tendência Revolucionária. A versão para o português foi realizada por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres em julho de 2011.

Introdução

1. Nos últimos quinze anos o movimento fundado por Leon Trotsky sofreu uma profunda crise teórica, política e organizativa. A manifestação superficial dessa crise foi o desaparecimento da Quarta Internacional como uma estrutura significativa. O movimento consequentemente foi reduzido a um grande número de pequenos grupos, formalmente filiados a três tendências: o “Comitê Internacional”, o “Secretariado Internacional de Pablo” e o “Secretariado Internacional de Posadas”. Políticos superficiais esperam superar a crise por uma fórmula organizativa – “unidade” de todos pequenos grupos que queiram se unir em torno de um programa de denominador comum. Essa proposta obscurece, e na verdade agrava, as causas políticas e teóricas fundamentais dessa crise.

2. A ascensão do revisionismo pablista apontou para a raiz fundamental da crise do nosso movimento: o abandono de uma perspectiva revolucionária da classe trabalhadora. Sob a influência de uma relativa estabilização do capitalismo nos Estados industriais do Ocidente e de um sucesso parcial dos movimentos pequeno-burgueses ao derrubar o poder imperialista em alguns países periféricos, a tendência revisionista dentro do movimento trotskista desenvolveu uma orientação que se distanciava do proletariado e se dirigia às lideranças pequeno-burguesas. A conversão do trotskismo em um satélite de esquerda das lideranças operárias e coloniais existentes, combinada com uma ortodoxia verbal centrista clássica, foi tipificada por Pablo – mas de maneira alguma ficou confinada a ele ou sua fração organizativa. Pelo contrário, as revoluções cubana e argelina constituíram testes ácidos ao provar que a tendência centrista também prevalece entre certos grupos que originalmente se opuseram à fração de Pablo.

3. Há uma lógica óbvia e forte nas propostas para reunificação apressada dos grupos centristas dentro do movimento trotskista. Mas “reunificação” na base de políticas centristas não significa o restabelecimento da Quarta Internacional. A luta pela Quarta Internacional é a luta por um programa que seja a encarnação da perspectiva revolucionária do marxismo para a classe operária. É verdade que as doutrinas básicas do nosso movimento, formuladas abstratamente, ainda não foram formalmente negadas. Mas em seu abandono de uma perspectiva revolucionária, os revisionistas concretamente desafiam as bases programáticas do nosso movimento.

4. A essência do debate dentro do movimento trotskista é a questão da perspectiva do proletariado e dos elementos de sua vanguarda revolucionária em relação às existentes lideranças pequeno-burguesas do movimento operário, nos Estados operários deformados e nas revoluções coloniais. O coração da perspectiva revolucionária do marxismo é na luta pela independência de classe dos trabalhadores de todas as forças não-proletárias; a linha política orientadora e o critério teórico é a democracia operária, da qual a expressão suprema é o poder operário. Isso se aplica a todos os países onde o proletariado se tornou capaz de realizar sua política de maneira independente – na qual apenas as formas variam de país para país. Essas formas, é claro, determinam a intervenção prática dos marxistas.

Europa

5. A recuperação e prosperidade prolongada do capitalismo europeu não produziu, como todos os tipos de revisionistas proclamam, um movimento operário conservador. Na realidade, a força, coesão, nível cultural e combatividade potencial do proletariado europeu são hoje maiores do que nunca. A derrota de De Gaulle pelos mineiros franceses e o persistente, e atualmente acelerado, giro à esquerda nos países democrático-burgueses da Europa (mais notavelmente Itália, Grã-Bretanha, Alemanha) ilustram esse fato.

6. As tentativas dos trabalhadores europeus de irem além de lutas econômicas parciais até a transformação socialista da sociedade tem sido frustradas pela resistência e traição da burocracia operária. Os quatro anos de reação na França seguidos à tomada de poder por De Gaulle mostram o terrível preço, entretanto imposto pela tolerância nesses líderes incompetentes. A greve geral belga mostrou mais uma vez que os burocratas “de esquerda” como Renard também farão tudo em seu poder para bloquear ou desmobilizar um movimento capaz de ameaçar o poder capitalista. Mas as experiências de ambas França e Bélgica provam um desejo espontâneo dos trabalhadores de entrar em luta contra a classe capitalista – se levantando frequentemente a um confronto aberto com o sistema.

7. A tarefa dos trotskistas no movimento operário europeu é a construção, dentro das organizações de massas existentes (sindicatos e, em certas instâncias, partidos) de uma liderança alternativa. Os marxistas devem, em todas as ocasiões, reter e exercer independência política e programática dentro do contexto da forma organizativa envolvida. Apoio às tendências dentro da burocracia operária, quando elas defenderem interesses essenciais da classe trabalhadora ou reflitam aspectos da luta de classes dentro do movimento operário, é correto e mesmo obrigatório; mas esse apoio é sempre condicional e crítico. Quando, como é inevitável, a luta de classes atinge um estágio em que os burocratas “de esquerda” desempenham um papel reacionário, os marxistas devem se opor a eles aberta e imediatamente. O comportamento da tendência centrista ao redor do jornal belga La Gauche (A Esquerda) [1] de retirar durante a greve geral a palavra de ordem correta de uma marcha sobre Bruxelas, com o objetivo de evitar um racha com Renard, é o oposto da atitude marxista com relação à burocracia operária.

8. As expectativas objetivas para o desenvolvimento de um movimento trotskista na Europa são extremamente favoráveis. Grandes números dos melhores jovens militantes em todos os países, rejeitando a rotina cínica e carreirista dos burocratas stalinistas e socialdemocratas, estão procurando ardentemente por uma perspectiva socialista. Eles podem ser ganhos por um movimento capaz de convencê-los, de maneira prática e teórica, de que ele oferece tal perspectiva. As mudanças estruturais causadas pela integração europeia colocam a linha da democracia operária e da independência política e econômica dos órgãos da classe trabalhadora como uma alternativa ao controle estatal do movimento operário – e a estimular a classe trabalhadora a novas e crescentemente significativas batalhas de classe. Se, sob essas condições objetivas, os trotskistas da Europa Ocidental falharem em crescer numa taxa rápida, será em razão de eles próprios adotarem uma instância revisionista de satélite da liderança trabalhista, em oposição à perspectiva de luta ao redor do programa da democracia operária.

Bloco Soviético

9. Desde a Segunda Guerra Mundial, os países da Europa Oriental se transformaram em modernos Estados industriais. Enquanto o proletariado dos Estados operários deformados cresce em número e aumenta o seu padrão de vida e nível cultural, cresce também o irrepreensível conflito entre a classe trabalhadora e a totalitária burocracia stalinista. Apesar da derrota da revolução dos trabalhadores húngaros, o proletariado do bloco soviético obteve reformas significativas, alargando substancialmente sua amplitude de pensamento e ação. Essas reformas, entretanto, não significam um “processo de reformas” ou um “processo de desestalinização” [2]: elas foram concedidas apenas de malgrado pela irreformável burocracia, estão sob ataque perpétuo por parte da fração dos “herdeiros de Stalin”, e permanecem em perigo enquanto o poder burocrático stalinista prevalecer. Essas concessões são historicamente significativas apenas porque elas ajudam o proletariado a se preparar para a derrubada da burocracia. Desestalinização real só pode ser bem sucedida pela revolução política.

10. Uma nova liderança revolucionária está ascendendo entre o jovem proletariado do bloco soviético. Inspirado por duas fontes gêmeas – a inextinguível tradição leninista e as necessidades diretas e tangíveis da sua classe – a nova geração está formulando e implementando na luta o programa da democracia operária. Notável nesse sentido é o argumento colocado recentemente por um participante de longa data do cotidiano estudantil soviético. Considerando o caráter fundamental de muitos na difundida oposição entre a juventude russa, foi afirmado que “Por ser marxista-leninista, o estudante soviético é muito mais radicalmente insatisfeito do que se fosse um pragmatista anglo-saxão”. (David Burg para o New York Times). Os trotskistas, continuadores diretos do estágio anterior, tem uma contribuição indispensável para fazer a essa luta: o conceito de um partido internacional e de um programa de transição necessário para levar adiante a revolução política. Apoio ao desenvolvimento de uma liderança revolucionária no bloco soviético através de contato pessoal e ideológico é uma atividade prática primária de qualquer liderança internacional que meça receber esse nome.

Revolução Colonial

11. O significado programático da democracia operária é maior nas áreas periféricas, antes coloniais, do mundo: é precisamente nesse setor que o programa da democracia operária oferece a mais clara demarcação possível entre tendências revolucionárias e revisionistas. Em todos esses países a luta por direitos democrático-burgueses (liberdade de imprensa, direito de greve e de organização, eleições livres) é de grande importância para a classe trabalhadora porque ela cria a base para a luta avançada por democracia proletária e poder operário (controle operário da produção, poder de Estado baseado em conselhos de operários e camponeses).

12. A teoria da Revolução Permanente, que é básica para o nosso movimento, declara que no mundo moderno a revolução democrático-burguesa não pode ser completada a não ser pela vitória e extensão da revolução proletária – a consumação da democracia operária. A experiência de todos os países coloniais tem confirmado essa teoria e colocado de maneira explícita as contradições internas manifestas que continuamente impedem uma conclusão do presente estado de revolução colonial contra o imperialismo. Precisamente naqueles Estados onde os objetivos burgueses da independência nacional e reforma agrária foram mais amplamente atingidos, os direitos políticos democráticos dos trabalhadores e camponeses não foram realizados, quaisquer que sejam os ganhos sociais. Isso é particularmente verdadeiro naqueles países onde a revolução colonial levou ao estabelecimento de Estados operários deformados: China, Vietnã do Norte e Cuba. O resultado, até o momento, foi um sucesso contraditório, seja essencialmente vazio, como nas neocolônias do modelo africano, ou profundamente deformadas e limitadas, como no exemplo chinês. Esse resultado presente é a consequência da predominância de forças de classe específicas nos levantes coloniais, e de formas relacionadas a essas classes empregadas nas lutas. Essas formas foram, em toda a sua variedade, impostas sobre as lutas exclusivamente “de cima”, ou seja, desde formas parlamentares até formas militares-burocráticas. E as forças de classe envolvidas foram, é claro, burguesas e pequeno-burguesas. Uma contraposição de classe se desenvolve em razão do complexo de antagonismos resultantes da falha em realizar a revolução democrático-burguesa. As lideranças pequeno-burguesas com suas formas burocráticas e seus métodos empiristas são lançadas contra a participação dos trabalhadores como classe na luta. O envolvimento da classe operária é necessariamente central para obter a democracia operária e exige a liderança da vanguarda proletária revolucionária com consciência programática de sua missão histórica. Conforme a classe operária ganha ascensão na luta e leva a reboque as camadas mais oprimidas da pequena-burguesia, a Revolução Permanente será levada adiante.

13. A Revolução Cubana expôs as várias infiltrações do revisionismo em nosso movimento. Sob o pretexto de defender a Revolução Cubana, por si própria uma obrigação para o nosso movimento, apoio incondicional e acrítico foi dado à liderança e ao governo de Castro, apesar de sua natureza pequeno-burguesa e comportamento burocrático. No entanto, as evidências da oposição do regime aos direitos democráticos dos trabalhadores cubanos são claras: cassação burocrática dos líderes democraticamente eleitos do movimento operário e sua substituição por lacaios stalinistas; supressão da imprensa trotskista; proclamação do sistema de partido único; e muito mais. Essas evidências se colocam lado a lado com as enormes conquistas sociais e econômicas iniciais da Revolução Cubana. Assim, os trotskistas devem ser os defensores mais militantes e incondicionais contra o imperialismo, tanto da Revolução Cubana quanto do Estado operário deformado ao qual ela levou. Mas os trotskistas não podem dar confiança e apoio político, nem mesmo crítico, a um regime governante hostil aos mais elementares princípios e práticas da democracia operária, mesmo se nossa aproximação tática não for a mesma que com relação a uma casta burocrática endurecida.

14. O que é verdade com relação à análise dos revisionistas sobre o regime de Castro é ainda mais aparente com relação ao regime de Ben Bella, que agora governa a Argélia sob o programa da revolução “socialista” em cooperação com o imperialismo francês. A natureza anti-operária desse grupo pequeno-burguês ficou claro para todos, a não ser aqueles que não querem encarar a realidade, pela sua tomada de controle forçada sobre o movimento operário e sua supressão de todos os partidos de oposição. Mesmo a difusão das nacionalizações e desenvolvimento de comitês de gerenciamento, vistos no contexto da expropriação dos direitos políticos da classe operária e da orientação econômica de colaboração com a França não podem dar à Argélia o caráter de Estado operário, mas a caracteriza, pelo contrário, como uma sociedade capitalista periférica com um alto grau de estatização. Como revolucionários, nossa intervenção em ambas as revoluções, como em cada Estado existente, deve estar de acordo com a posição de Trotsky: “Nós não somos o partido do governo; nós somos o partido da oposição irreconciliável” (Em Defesa do Marxismo). Isso só pode deixar de se aplicar em relação a um governo genuinamente baseado na democracia operária.

15. A experiência desde a Segunda Guerra Mundial demonstrou que guerrilhas armadas de base camponesa com lideranças pequeno-burguesas não podem levar a nada além de regimes burocráticos anti-operários. A criação de tais regimes se tornou possível sob as condições combinadas de decadência do imperialismo, desmoralização e desorientação causada pelas traições stalinistas, e a ausência de uma liderança marxista revolucionária na classe trabalhadora. A revolução colonial pode ter um significado inegavelmente progressivo apenas sob a liderança do proletariado revolucionário. Portanto, se os trotskistas incorporassem em sua estratégia um revisionismo sobre a liderança proletária da revolução, isso seria uma profunda negação do marxismo, não importa o quão boas sejam as intenções expressas de, ao mesmo tempo, “construir partidos marxistas revolucionários nos países coloniais”. Os marxistas devem resolutamente se opor à aceitação aventureira do caminho de guerrilha camponesa para o socialismo – historicamente associado ao programa de táticas dos Social-Revolucionários e que Lenin combateu. Essa alternativa seria um curso suicida para os objetivos socialistas do movimento, e talvez para os aventureiros fisicamente.

16. Em todos os países periféricos onde o proletariado existe como classe, o princípio fundamental do trotskismo é a independência da classe operária, seus sindicatos, e seus partidos, em oposição intransigente ao imperialismo, a qualquer burguesia nacional liberal, e a governos e partidos pequeno-burgueses de todos os tipos, incluindo aqueles professando o “socialismo” e até mesmo o “marxismo-leninismo”. Somente dessa forma o terreno pode ser preparado para a hegemonia da classe operária em uma aliança revolucionária com as camadas pequeno-burguesas oprimidas, particularmente o campesinato. Similarmente, se um partido da classe operária num país capitalista avançado violar a solidariedade de classe com os trabalhadores de um país periférico ao endossar politicamente um governo colonial pequeno-burguês é um sinal absoluto de oportunismo centrista, tal qual a recusa em defender a revolução colonial em razão do caráter não-proletário de sua liderança é um sinal de sectarismo ou pior.

17. A inter-relação entre as lutas democrático-burguesas e democrático-proletárias na revolução colonial permanecem como formulado no programa de fundação da Quarta Internacional, uma formulação que retém a sua completa validade:

“É impossível rejeitar pura e simplesmente o programa democrático: é necessário que as próprias massas ultrapassem este programa na luta. A palavra de ordem de Assembleia Nacional (ou Constituinte) conserva todo seu valor em países como a China ou a Índia. É necessário ligar, indissoluvelmente, esta palavra de ordem às tarefas de emancipação nacional e da reforma agrária. É necessário, antes de mais nada, armar os operários com esse programa democrático. Somente eles poderão levantar e reunir os camponeses. Baseados no programa democrático e revolucionário é necessário opor os operários à burguesia ‘nacional’. Em certa etapa da mobilização das massas sob as palavras de ordem da democracia revolucionária, os sovietes podem e devem aparecer. Seu papel histórico em determinado período, em particular suas relações com a Assembleia Constituinte, é definido pelo nível político do proletariado, pela união entre eles e a classe camponesa e pelo caráter da política do partido proletário. Cedo ou tarde os conselhos devem derrubar a democracia burguesa. Somente eles são capazes de levar a revolução democrática até o fim e, assim, abrir a era da revolução socialista.”

“O peso especifico das diversas reivindicações democráticas na luta do proletariado, suas mútuas relações e sua ordem de sucessão estão determinados pelas particularidades e pelas condições próprias a cada país atrasado, em particular pelo grau de seu atraso. Entretanto, a direção geral do desenvolvimento revolucionário pode ser determinado pela fórmula da Revolução Permanente, no sentido que lhe foi definitivamente dado pelas três revoluções na Rússia (1905, fevereiro de 1917, outubro de 1917).”

(A Agonia Mortal do Capitalismo e as Tarefas da Quarta Internacional).
Conclusões

18. A tarefa do movimento marxista revolucionário internacional hoje é restabelecer sua própria existência real. Falar de “conquista das massas” como uma guia geral internacional é um exagero qualitativo. As tarefas diante da maioria das seções trotskistas e grupos atuais partem da necessidade de clarificação política na luta contra o revisionismo, no contexto de um nível de trabalho de uma natureza geral preparatória e propagandista. Uma parte indispensável da nossa preparação é o desenvolvimento e o fortalecimento de raízes dentro do mais amplo movimento operário, sem o qual os trotskistas ficariam condenados a um isolamento estéril ou a degeneração política nos períodos de luta de classes crescente e, de qualquer forma, incapazes de seguir em frente em nossa tarefa histórica de liderar a classe trabalhadora ao poder. Acima de tudo, o que pode e deve ser feito é a construção de um partido mundial firmemente baseado em seções nacionais fortes, a reunião de uma coluna de quadros militantes da classe trabalhadora ganhos e testados no processo da luta de classes e sob a base sólida da perspectiva revolucionária da Quarta Internacional, o programa para realizar a democracia operária – culminando no poder operário. Uma declaração fundamental que expande essa perspectiva, em oposição ao pablismo, e sua relevância nos Estados Unidos se encontra no documento da minoria “Em Defesa de uma Perspectiva Revolucionária” (publicado no Boletim de Discussão Interna do SWP, Volume 23, número 4, julho de 1962).

19. “Reunificação” do movimento trotskista na base centrista do pablismo em qualquer das suas variantes seria um passo que afastaria, ao invés de aproximar, o genuíno renascimento da Quarta Internacional. Se, entretanto, a maioria dos grupos trotskistas atualmente existentes insistem em seguir em frente com tal “reunificação”, a tendência revolucionária do movimento mundial não deve virar suas costas para esses quadros. Pelo contrário: seria vitalmente necessário passar por esta experiência com eles. A tendência revolucionária entraria nesse movimento “reunificado” como uma fração minoritária, com a perspectiva de ganhar uma maioria para o programa da democracia operária. A Quarta Internacional não irá renascer através da adaptação ao revisionismo pablista: somente com uma luta teórica e política contra todas as formas de centrismo é que o partido mundial da revolução socialista pode finalmente ser estabelecido.

14 de Junho de 1963

Notas da Tradução

[1] Publicado pela seção do Secretariado Internacional pablista e editado por Ernest Mandel.
[2] Como foi formulado pelo Secretariado Internacional pablista em ocasião de inúmeras revoltas operárias no Leste Europeu.

Um Conto de Fadas sobre o Liquidacionismo

O Xamã e o Pântano

Por “S. Aesop”

Originalmente publicado em abril de 1957 no “Boletim da Ala Esquerda”, pelo Núcleo da Ala Esquerda da Liga Socialista Jovem (YSL), grupo de juventude da Liga Socialista Independente (ISL) norte-americana. O Núcleo da Ala Esquerda se opôs ao plano do líder do partido, Max Schachtman, de dissolvê-lo, junto com seu grupo de juventude, na Socialdemocracia norte-americana, que apoiava a Guerra Fria. Posteriormente, os membros do Núcleo foram ganhos para o Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) norte-americano e alguns deles dariam origem, em 1962, à Tendência Revolucionária, precursora da Liga Espartaquista. A versão para o português foi realizada julho de 2011 por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres.

Era uma vez, há muito pouco tempo atrás, uma grande nação, não muito distante, onde viviam dois grupos de pessoas, muito diferentes.

Um era chamado Homens Vermelhos, ninguém sabia bem por quê; os outros se chamavam os Outros, porque eles eram. Os Homens Vermelhos eram muito poucos, mas havia montes e mais montes de Outros. Não tinha sido sempre esse o caso, dizia-se, e os escritos tribais falavam de uma época em que montes (mas nunca montes e mais montes) de Outros eram Homens Vermelhos. Isso havia sido há muito tempo.

Os Homens Vermelhos eram bastante briguentos, por menores que fossem, e não viviam juntos. Eles viviam em tribos separadas, cada uma sendo a verdadeira tribo de Homens Vermelhos, e quando Homens Vermelhos de duas tribos diferentes se encontravam, eles às vezes discutiam de maneira barulhenta. Eles só concordavam, todos eles, que um dia, o Grande Poder iria resolver isso de forma que todos seriam Homens Vermelhos. E eles, ou a maioria deles, tentavam invocar o Grande Poder de tempos em tempos, mas nunca haviam conseguido muito bem.

Apesar disso, entre brigas e mudanças de tribo, os Homens Vermelhos pensavam muito sobre o Grande Poder e realizavam muitos rituais e faziam encantamentos poderosos para aproximar o seu dia. Cada tribo tinha seu próprio ritual e às vezes vários – já que apesar de pequenas, as tribos tinham muitas visões e de vez em quando uma tribo se dividia em clãs, cada um com seu próprio ritual.

Certa vez aconteceu que todos os Homens Vermelhos começaram a debater sobre uma nova idéia. Essa idéia era a de que todos os Homens Vermelhos deveriam se juntar e fazer uma pequena tribo maior ao invés de várias pequenas tribos menores.

Parece que essa idéia havia surgido da maior das tribos de Homens Vermelhos – que não era de verdade uma tribo de Homens Vermelhos, mas apenas dizia que era – porque o Grande Curandeiro havia morrido e o novo Xamã não podia mais esconder quão mal feito era o seu ritual. Era um ritual realmente muito, muito ruim mesmo e verdadeiros Homens Vermelhos começaram a deixar essa tribo.

Chegou então um dia em que cada uma das pequenas tribos (exceto por uma que vivia num alto planalto e outra que vivia em um pântano) queriam que esses Homens Vermelhos viessem viver com eles, ou melhor ainda, como declararam, que todos os Homens Vermelhos viessem viver juntos e formassem uma pequena tribo maior.

Uma dessas pequenas tribos ficou muito entusiasmada. Seu clã mais forte era liderado por um tipo de Homem Vermelho que era chamado de Grande Xamã. Ele era o chefe porque tinha feito seu próprio ritual, conseguia fazer incríveis encantamentos, e principalmente porque, apesar das muitas tribos às quais ele havia pertencido, ele próprio tinha construído esta.

A tribo do grande Xamã era pequena e antiga, mas ela vivia bem perto de uma tribo mais jovem e mais forte. Essa tribo mais jovem curvou-se diante do grande Xamã e usou seu ritual e fez do seu sobrinho, Pequeno Xamã, o chefe, porque o Pequeno Xamã conhecia o ritual realmente bem e podia fazer quase tanto barulho quanto o Grande Xamã.

Os Homens Vermelhos na tribo do Pequeno Xamã ficaram ainda mais entusiasmados com a unidade tribal e falavam sobre ela o tempo todo.

Mas o Grande Xamã tinha uma estranha idéia que guardava só para ele. Em suas peregrinações, ele havia certa vez vivido com a tribo no pântano e ele sempre se arrependera de ter saído de lá. Ele havia ouvido que uma outra tribo (de Homens Vermelhos muito pálidos, por sinal) estava voltando para viver no pântano e torná-lo ainda melhor para aqueles que gostavam de viver nele.

Mas não se deve pensar que o pântano não era um lugar bom e seguro para os Homens Vermelhos viverem. Ele era. No pântano, um Homem Vermelho podia mergulhar bem embaixo na lama quentinha até o pescoço e quase ninguém iria saber que ele era um Homem Vermelho se ele não contasse.

Além do mais, no pântano um Homem Vermelho estaria seguro dos Outros. Os Outros (ou alguns deles) eram às vezes muito maus com os Homens Vermelhos e não deixavam eles caçarem ou pescarem em certos lugares e até coisas piores. Mas não no pântano. No pântano os Outros não faziam coisas más com os Homens Vermelhos, e se a tribo do pântano se comportasse bem (o que eles eram muito bons em fazer) e beijassem os pés dos Outros, e adotassem partes da religião dos Outros no ritual da tribo (o que eles faziam), então eles tinham a permissão de caçar e pescar por todo aquele espaço.

Bom, o Grande Xamã decidiu que ele estava solitário para viver no pântano e chamou junto o seu Conselho de Líderes. Alguns dos curandeiros bruxos do Conselho de Líderes pensaram que a lama e o lodo estavam muito fundos, mas eles foram vaiados pelos mais velhos, que continuavam pensando quão quentinho e seguro e confortável seria.

Então aconteceu que o Grande Xamã chamou o Pequeno Xamã e disse a ele para preparar a tribo mais jovem para marchar em direção ao pântano. O Pequeno Xamã voltou para sua tribo e fez um encantamento longo e alto. Os outros líderes do seu clã finalmente aceitaram porque ele os fez pensar que a verdadeira razão de ir para o pântano era tirar toda a lama de lá e construir uma poderosa e bela tribo que iria ganhar muitos Outros.

Alguns dos irmãos tribais do Pequeno Xamã se rebelaram, entretanto, e formaram um novo clã. Eles mostravam o pântano e os infelizes moradores dele, e também diziam não querer desistir do seu ritual e substituí-lo por aquele do pântano. Eles chamaram por uma nova tribo maior de todos os Homens Vermelhos, incluindo os infelizes moradores do pântano, em terra firme e seca e com um bom ritual.

O Grande Xamã e o Pequeno Xamã e seus chefes menores ficaram muito tristes por causa disso. Eles espalharam uma história de que o novo jovem clã não era leal ao ritual e era feito de traidores e espiões de uma tribo inimiga.

Isso era uma grande mentira, mas assustou muitos dos membros indecisos da tribo do Pequeno Xamã e alguns deles pararam de pensar pensamentos de revolta e voltaram a sentar placidamente aos pés do Grande Xamã.

Eles perceberam, entretanto, que os pés do Grande Xamã emanavam um estranho odor e eram cobertos de argila e lodo, devido às suas explorações no pântano.

Muitos deles simplesmente não conseguiam suportar o fedor e eles foram para o novo clã e o tornaram mais forte.

Finalmente, os Xamanistas não conseguiam mais suportar a terra seca e eles reuniram seus seguidores e, após pedir a permissão dos mais enlameados moradores do pântano, se jogaram para lá viver.

Eles acharam tão agradável, que a maioria deles foi até o fundo da lama e se enterrou tão profundamente que depois de um certo tempo ninguém, nem Homens Vermelhos e nem Outros, ouviu mais falar deles de novo.

Documento Principal da Tendência Revisionista do Coletivo Lenin

Originalmente publicado como um documento de discussão interna de Paulo Araújo e posteriormente aprovado (com pequenas ressalvas) pela maioria do Coletivo Lenin, este texto é a base de suas futuras posições políticas degeneradas. Nossa tendência, enquanto éramos parte do Coletivo, assim como o Reagrupamento Revolucionário, rejeita as suas principais premissas teóricas e conclusões políticas. 

Documento de discussão interna
08 de Março de 2011
Paulo Araújo

A TEORIA DA DECADÊNCIA E A CRISE DA TERCEIRA E DA QUARTA INTERNACIONAIS


I. A teoria leninista da revolução europeia

A premissa econômica da revolução proletária já alcançou há muito o ponto mais elevado que possa ser atingido sob o capitalismo. As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material.
                                                                                   (Programa de transição)

            Trotsky não era um presepeiro que quisesse usar essas formulações somente com o propósito de chocar. Toda a concepção da revolução mundial que foi defendida pela Internacional Comunista está por trás dessa frase.
            Ao estudar a crise que destruiu a Quarta Internacional, a maioria das correntes estuda todo um longo período, de 1951 até hoje, onde houve as rupturas. Mas a Quarta Internacional surgiu apenas dezenove anos depois da fundação da Terceira – aliás, a IC passou para as mãos da burocracia stalinista cerca de seis anos após a sua fundação! – e é muito melhor e metodologicamente mais certo estudar todo o período de 1919 a 1938 como se fosse um só. Afinal, do ponto de vista da história, dezenove anos são muito pouco. Se, como temos dito desde 2007, o pablismo não surgiu do nada, e que a sua base foram as avaliações erradas de Trotsky, não só sobre a sobrevivênvia do stalinismo mas, principalmente, sobre a perspectiva do capitalismo, já que ele pensava que o sistema estava em sua “agonia mortal” (o nome do programa de transição é A agonia mortal do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional), isso significa que muitos dos elementos que levaram a Quarta Internacional à crise já existiam na Terceira.
            Queremos analisar aqui o que o leninismo-trotskismo deve a essa concepção da decadência do capitalismo, e como isso afeta a nossa concepção de partido. E qual é a nova estratégia que surge de mudarmos esses fundamentos, e substituí-los por uma teoria mais exata e científica da evolução do sistema.
            Na primeira parte do artigo, seguiremos muitas das análises do (então) comunista espanhol Fernando Claudin, em sua obra A Crise do Movimento Comunista, obviamente sem concordar com todas as conclusões a que ele chegou.

I. 1 A importância do quadro geral de “capitalismo agonizante”

            Simplesmente é impossível entender as tarefas a que a IC se propôs sem entender a visão geral que a sua direção tinha sobre o ritmo da revolução mundial.
            Poderíamos ficar citando aqui milhões de relatórios e documentos mas, para nós, o principal se resume a duas coisas, que determinariam a iminência da revolução na Europa e que, por isso, mudariam toda a forma de construção e funcionamento da IC:
            a) em primeiro lugar, a IC acreditava que o capitalismo estava em sua agonia final e que, para o tiro de misericórdia ser dado, não precisaria esperar por mais nenhum desenvolvimento econômico, era somente questão de arrancar os trabalhadores da influência do oportunismo:

De tudo o que dissemos sobre a essência econômica do- imperialismo deduz-se que se deve qualificá-lo de capitalismo de transição ou, mais propriamente, de capitalismo agonizante. (…) Quando uma grande empresa se transforma em empresa gigante e organiza sistematicamente (…), quando a distribuição desses produtos se efetua segundo um plano único a dezenas e centenas de milhões de consumidores (…) percebe-se que as relações de economia e de propriedade privadas constituem um invólucro que não corresponde já ao conteúdo, que esse invólucro deve inevitavelmente decompor-se se a sua supressão for adiada artificialmente, que pode permanecer em estado de decomposição durante um período relativamente longo (no pior dos casos, se a cura do tumor oportunista se prolongar demasiado), mas que, de qualquer modo, será inelutavelmente suprimida.(Imperialismo, etapa superior do capitalismo)

            Plataforma da Internacional Comunista, 1° Congresso:

Uma nova época nasceu. Época de desagregação do capitalismo, de sua derrocada interior. Época da revolução comunista do proletariado.
O sistema imperialista desaba. Problemas nas colônias, fermentação entre as pequenas nacionalidades até o momento privadas de independência revoltas do proletariado, revoluções proletárias vitoriosas em vários países, decomposição dos exércitos imperialistas, incapacidade absoluta das classes dirigentes de conduzir doravante os destinos dos povos – tal é o quadro da situação atual no mundo inteiro.
A humanidade, cuja cultura foi totalmente devastada, está ameaçada de destruição. Apenas uma força é capaz de salvá-la, e esta força é o proletariado. A antiga “ordem capitalista” morreu. Não pode mais existir. O resultado final dos processos capitalistas de produção é o caos, – e este caos só pode ser vencido pela maior classe produtora, a classe operária. Ela é que deve instituir a ordem verdadeira, a ordem comunista. Ela deve vencer a dominação do capital, tornar as guerras impossível, anular a fronteiras entre os países, transformar o mundo numa vasta comunidade que trabalha para si mesma, realizar a solidariedade fraternal e a libertação dos povos.

            Resolução sobre a Tática da IC, 4° Congresso:

II. O PERÍODO DA DECADÊNCIA DO CAPITALISMO

Após a análise da situação econômica e mundial, o 3º Congresso pode comprovar com absoluta precisão que o capitalismo, depois de haver realizado sua missão de desenvolver as forças produtivas, caiu em contradição irredutível não somente com as necessidades da evolução histórica atual, mas sim também com as condições mais elementares da existência humana. Esta contradição fundamental se refletiu particularmente na última guerra imperialista e foi agravada por esta guerra que comoveu, de modo mais profundo, o regime de produção e de circulação. O capitalismo, que desse modo sobreviveu em si mesmo, entrou em uma fase em que a ação destruidora de suas forças desencadearam a ruína e a perda das conquistas econômicas criadoras e realizadas pelo proletariado em meio as cadeias da escravidão capitalista.
O quadro geral da ruína da economia capitalista não é atenuado em absoluto pelas flutuações inevitáveis próprias do sistema capitalista, tanto em sua decadência como em sua ascensão. As tentativas realizadas pelos economistas nacionais burgueses e sociais democráticos por apresentar um melhoramento verificado na segunda metade de 1921 nos EUA e em menor medida no Japão e Inglaterra, em parte também na França e outros países, como um indício do restabelecimento do equilíbrio capitalista se baseia na vontade de alterar os feitos e na falta de perspicácia dos lacaios do capital. O 3º Congresso, bem antes do começo da expansão industrial atual, havia previsto que no futuro mais ou menos próximo, com a precisão possível, como uma onda superficial sobre o fundo da destruição crescente da economia capitalista. Já é possível prever claramente que se a expansão atual da indústria não é suscetível (não pode receber modificações), a não ser em um futuro distante, restabelecendo o equilíbrio capitalista de sanar as feridas abertas provocadas pela guerra, a próxima crise cíclica, cuja ação coincidirá com a linha principal da destruição capitalista não fará se não agudizar todas as manifestações desta última, e em conseqüência, em grande medida elevará a uma situação revolucionária.
Até sua morte, o capitalismo será presa de suas flutuações cíclicas. Só a tomada do poder pelo proletariado e a revolução mundial socialista poderá salvar a humanidade desta catástrofe permanente provocada pela persistência do capitalismo moderno.
Atualmente, o capitalismo está vivendo sua agonia. Sua destruição é inevitável.

            É bom notar que essa resolução é do 4° Congresso, ou seja, depois do reconhecimento da “estabilização relativa”, no 3° Congresso. Aqui matamos todo argumento de que a IC, depois do período inicial, passou a uma estratégia baseada na hipótese de uma longa duração do capitalismo.  A estabilização era “relativa”, mas dentro de um quadro geral de colapso do sistema.
            Toda a concepção da IC estava baseada numa ideia de iminência da revolução mundial. Mesmo Rosa Luxemburgo, cuja teoria concretamente mostrava que o capitalismo ainda iria sobreviver algumas décadas, acreditava que o acirramento das suas contradições iria levar a classe operária à revolução antes do esgotamento total do sistema:

Quando mais violentamente o capital empreende a destruição de todos os estratos não-capitalistas, em casa e no mundo externo, mais ele rebaixa o padrão de vida dos trabalhadores como um todo, também maior é a mudança na história cotidiana do capital. Ele se torna uma cadeia de desastres e convulsões políticas e sociais e, sob essas condições, pontuadas por crises ou catástrofes econômicas periódicas, a acumulação não pode continuar mais.
Mas, mesmo antes que esse impasse econômico natural criado pelo próprio capital seja atingido, se torna uma necessidade para a classe operária internacional se revoltar contra o seu domínio.
(A Acumulação do Capital)

b) por isso, a revolução seria uma tarefa imediata, e toda a construção dos partidos e da IC teria que ser feita o quanto antes. No 2° Congresso:

II – Em que Deve Constituir a Preparação Imediata da Ditadura do Proletariado

5.O desenvolvimento atual do movimento comunista internacional é caracterizado pelo fato que em grande número de países capitalistas o trabalho de preparação do proletariado para o exercício da ditadura não acabou e em muitos deles sequer começou de forma sistemática. Disso não decorre que a revolução proletária seja impossível num futuro próximo; ela é, ao contrário, tudo o que há de mais possível, a situação política e econômica apresenta-se extraordinariamente rica em materiais inflamáveis e em causas suscetíveis de provocar sua agitação inopinada; um outro fator da revolução, fora do estado de preparação do proletariado, é notadamente a crise geral em que se encontram todos os partidos governantes e todos os partidos burgueses. Mas resulta do que foi dito que a tarefa atual dos Partidos Comunistas consiste em acelerar a revolução, sem todavia provocá-la artificialmente, sem haver antes uma preparação suficiente; a preparação do proletariado para a revolução deve ser intensificada pela ação. De outra parte, os casos acima assinalados na história de muitos partidos socialistas obrigam a velar para que o reconhecimento da ditadura do proletariado não seja puramente verbal.
Por essas razões, a tarefa principal do Partido Comunista, do ponto de vista do movimento proletário internacional, é, presentemente, o agrupamento de todas as forças comunistas dispersas; a formação, em cada país, de um Partido Comunista único ou o fortalecimento e renovação dos partidos já existentes a fim de decuplicar o trabalho de preparação do proletariado para a conquista do poder sob a forma da ditadura do proletariado. A ação socialista habitual dos grupos e partidos que reconhecem a ditadura do proletariado está longe de ter sofrido alguma modificação fundamental; essa renovação radical é necessária, porque nela se reconhece a ação como sendo comunista e como correspondendo às tarefas da ditadura do proletariado.

            Logicamente, existia uma pergunta que não queria calar: se a situação era essa, porque então a maioria da classe operária seguia os reformistas? Lênin respondeu a isso recolhendo citações de Engels sobre a aristocracia operária inglesa, e formulando a partir daí a concepção de que uma parte da classe trabalhadora dos países imperialistas tinha sido “comprada” com parte dos superlucros da exploração colonial. No segundo capítulo desse artigo, mostraremos como essa teoria é falsa. Por enquanto, só é preciso entender uma questão: essa parte seria grande o suficiente para impedir a revolução? 

A base econômica do oportunismo e do social-chauvinismo é a mesma: os interesses de uma ínfima camada de operários privilegiados e da pequena-burguesia, que defendem a sua situação privilegiada, o seu ‘direito’ às migalhas dos lucros obtidos pela ‘sua’ burguesia nacional com a pilhagem de outras nações, com as vantagens da sua situação de grande potência etc.
                                                                                 (O Socialismo e a Guerra)

            Claramente, portanto, Lênin achava que a grande maioria dos trabalhadores europeus via o seu nível de vida piorar, e que essa era a base material para os novos partidos comunistas. Já que a influência do oportunismo sobre esses trabalhadores era somente ideológica, pois Lênin e a IC achavam que não havia uma melhora histórica no nível de vida deles, a tarefa dos partidos comunistas seria somente “bater de frente” com os reformistas, para mostrar às massas a disposição de luta revolucionária. 

I. 2 As consequências na organização da IC: o ultimatismo e o dogmatismo

            A partir daí, a IC criou uma metodologia para separar rapidamente as alas comunistas dos partidos socialdemocratas. Isso era exatamente o contrário do que era preciso fazer, ou seja, um longo e paciente trabalho de convencimento da base dos reformistas, que ainda não viam a necessidade da revolução mundial (nenhuma situação revolucionária na França, Inglaterra, EUA e Holanda, um curto período na Itália, isolamento dos revolucionários na Espanha e Alemanha etc), que levasse à diferenciação dentro dos partidos da Segunda Internacional, e ao seu racha posterior em cima de diferenças políticas concretas.
            Essa metodologia errada tinha várias faces. A primeira era uma dogmatização da experiência bolchevique, sem levar em conta nem as experiências nem as condições sociais totalmente diferentes dos outros países. Os partidos eram convidados a copiar os russos:

Atualmente já possuímos uma experiência internacional bastante considerável, experiência que demonstra, com absoluta clareza, que alguns dos aspectos fundamentais da nossa revolução não têm apenas significado local, particularmente nacional, russo, mas revestem-se, também, de significação internacional, E não me refiro à significação internacional no sentido amplo da palavra: não são apenas alguns, mas sim todos os aspectos fundamentais – e muitos secundários – da nossa revolução que têm significado internacional quanto à influência que exercem sobre todos os países. Refiro-me ao sentido mais estrito da palavra, isto é, entendendo por significado internacional a sua transcendência mundial ou a inevitabilidade histórica de que se repita em escala universal o que aconteceu no nosso país, significado que deve ser reconhecido em alguns dos aspectos fundamentais da nossa revolução.
                                                  (Esquerdismo, doença infantil do comunismo)

            Nem é preciso falar como isso impediu o desenvolvimento de direções com teorias próprias dentro da IC (por exemplo, a direção do KPD alemão foi constantemente vista com desconfiança, por causa de sua associação com as posições de Rosa Luxemburgo).
            Além disso, a formação dos partidos se conduziu da maneira mais sectária possível, simplesmente impondo condições para rachar os partidos socialdemocratas e a central sindical reformista “na marra”, cortando assim os laços com o movimento de massas orientado ao reformismo, e permitindo que os partidos já nascessem sob o signo do aventureirismo e do dogmatismo.
            A síntese dessa metodologia são as 21 condições, formuladas de propósito para romper qualquer ligação com os reformistas e centristas. Um resumo delas:

1) toda propaganda e agitação cotidiana devem ter caráter efetivamente comunista e dirigida por comunistas;
2) toda organização desejosa de aderir à IC deve afastar de suas posições os dirigentes comprometidos com o reformismo;
3) em quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes se mantém no período de guerra civil. Os comunistas não podem, nessas condições, se fiar na legalidade burguesa. É de seu dever criar, em todo lugar, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino;
4) o dever de propagar as idéias comunistas implica a necessidade absoluta de conduzir uma propaganda e uma agitação sistemática e perseverante entre as tropas;
5) uma agitação racional e sistemática no campo é necessária;
6) todo partido desejoso de pertencer à IC tem por dever não só o de denunciar o social-patriotismo como o seu social-pacifismo, hipócrita e falso;
7) todos os partidos desejosos de pertencer à IC devem romper completamente com o reformismo e a política do centro. A IC exige, imperativamente e sem discussão, essa ruptura, que deve ser feita no mais breve de tempo;
8) nas colônias, os partidos devem ter uma linha de conduta particularmente clara e nítida;
9) todo partido desejoso de pertencer à IC deve realizar uma propaganda perseverante e sistemática nos sindicatos, cooperativas e outras organizações das massas operárias;
10) todo partido pertencente à IC tem o dever de combater com energia e tenacidade a Internacional do sindicatos amarelos de Amsterdã;
11) todos os partidos desejosos de pertencer à IC devem rever a composição de suas frações parlamentares;
12) os partidos pertencentes à IC devem ser construídos com base no princípio do centralismo democrático;
13) os partidos comunistas, onde são legais, devem ser depurados periodicamente para afastar os elementos pequeno-burgueses;
14) os partidos desejosos de entrar na IC devem sustentar, sem reservas, todas as repúblicas soviéticas nas suas lutas com a contra-revolução;
15) os partidos que ainda conservam os antigos programas socialdemocratas têm o dever de revê-los e, sem demora, elaborar um novo programa comunista adaptado às condições especiais de seu país e no espírito da IC;
16) todas as decisões do Congresso da IC e de seu Comitê Executivo são obrigatórias para todos os partidos filiados à IC;
17) todos os partidos aderentes à IC devem modificar o nome e se intitular “Partido Comunista”. A mudança não é simples formalidade e, sim, de uma importância política considerável, para distingui-los dos partidos socialdemocratas ou socialistas, que venderam a bandeira da classe operária;
18) todos os órgãos dirigentes e da imprensa do partido são importados do Comitê Executivo da IC;
19) todos os partidos pertencentes à IC são obrigados a se reunir, quatro meses após o II congresso da IC, para opinar sobre essas 21 condições;
20) os partidos que quiserem aderir, mas que não mudaram radicalmente a sua antiga tática, devem preliminarmente cuidar para que 2/3 dos membros de seu comitê central e das instituições centrais sejam compostos de camaradas que, antes do II Congresso, tenham se pronunciado pela adesão do partido à IC;
21) os aderentes partidários que rejeitam as condições e as teses da IC devem ser excluídos do partido. O mesmo deve se dar com os delegados ao Congresso Extraordinário

            Também é importante ver, nas 21 condições, a visão da revolução iminente mesmo nos EUA, Inglaterra e França (condições 3 e 4), e a imposição do centralismo leninista, mesmo onde não fosse necessário tal nível de centralização (em 1923, Paul Lévi foi expulso da seção alemã por criticar publicamente o partido, enquanto Kamenev e Zinoviev sequer foram sancionados pelo Partido Bolchevique por denunciarem publicamemte o planejamento da tomada do poder).
            Depois, já no 5° Congresso, controlado pela fração stalinista, houve a política da “bolchevização”, que foi a conclusão lógica de tudo, com uma depuração maior ainda das seções e a imposição, em todos os detalhes, do regime do PC russo na época (sendo que não seria aceito mesmo um regime como o do mesmíssimo partido antes de 1921, quando se proibiram as frações).
            Os partidos socialdemocratas eram encarados como inimigos, como se vê ainda no 1° Congresso:

        II – RELAÇÕES COM OS PARTIDOS “SOCIALISTAS”

8 – A II Internacional se dividiu em três grupos principais: os social-patriotas declarados que, durante toda a guerra imperialista dos anos de 1914-1918, sustentaram sua própria burguesia e transformaram a classe operária em carrasco da revolução internacional; o “centro” cujo dirigente teórico atualmente é Kautsky, que representa uma organização de elementos constantemente oscilantes, incapazes de seguir uma linha determinada, constituindo-se, muitas vezes em verdadeiros traidores; e, enfim, a ala esquerda revolucionária.
9 – Com relação aos social-patriotas que, por toda parte, nos momentos críticos, se recusaram a pegar em armas para a revolução proletária, só a luta implacável é possível. Com relação ao “centro” – a tática de esgotamento dos elementos revolucionários, crítica implacável e desmascaramento dos chefes. Em certa etapa do desenvolvimento, a separação organizativa dos elementos do centro é absolutamente necessária.

            Ainda, na “Resolução sobre a posição em relação às correntes socialistas e à Conferência de Berna”:

A conferência socialista de Berna, em fevereiro de 1919, foi uma tentativa de galvanizar o que restava da Segunda Internacional.
A composição da Conferência de Berna demonstrou que o proletariado revolucionário de todo o mundo nada tem em comum com esta conferência.
O proletariado vitorioso da Rússia, o proletariado heróico da Alemanha, o proletariado italiano, o partido comunista do proletariado austríaco e húngaro, o proletariado suíço, a classe operária da Bulgária, Romênia, Sérvia, os partidos operários de esquerda suecos, noruegueses, finlandeses, o proletariado ucraniano, letão, polonês, a Juventude Internacional, a Internacional de Mulheres, recusaram-se ostensivamente a participar da Conferência de Berna dos social-patriotas (= as seções da IC!).

            Não é por acaso que quando, no 3° Congresso, se votou a política de frente única operária, houve a oposição dos comunistas de esquerda (KAPD alemão, Grupo Tribuna holandês e a corrente de Amedeo Bordiga na Itália), insistindo que não era possível nenhuma colaboração com tamanhos traidores, num momento em que o capitalismo estava às vésperas da morte. A posição dos esquerdistas, portanto, era coerente com a análise feita pela IC, o que também significava que era ainda mais fora da realidade, já que os dirigentes da Internacional pelo menos tentavam conciliar essa análise errada com a necessidade de “recuos”, como a frente única (que também era entendida sectariamente, como um expediente para denunciar a Segunda Internacional, e não também como um instrumento real para a luta pelas reivindicações).
            A partir daí, foi votada imediatamente a retirada da Conferência de Zimmerwald (que agrupava todos os socialistas que tinham sido contra a guerra) e a formação imediata da IC, com 5 corretas abstenções (a seção alemã).

            I. 3 Resumindo

            Existem muitos temas ainda que deveriam ser discutidos num balanço da IC, como a identificação entre ditadura do proletariado e ditadura do partido (principalmente em Esquerdismo, de Lênin, mas recorrente em toda a prática bolchevique nos sovietes), a posição mechevique da IC nos países coloniais, expressa na política de alianças com a burguesia nacional (que foi criticada por Trotsky a partir de 1927, quando ele generalizou a teoria da revolução permanente), que levou aos massacres do comunistas turcos (sob o silêncio da IC) nas mãos de Mustafá Kemal em 1921, a discussão sobre a questão negra etc.
            Mas o que interessa nesse artigo é mostrar que a IC partiu, na teoria, de uma concepção segundo a qual o capitalismo estava literalmente acabando nos próximos meses, e que essa concepção levou a uma política ultimatista para a formação dos PCs, com um tipo de centralismo e uma forma de intervenção política que, no final, foi incapaz de mobilizar as massas dos países imperialistas no rumo da revolução.
            Nos próximos capítulos, mostraremos que é impossível formular uma estratégia certa para a revolução mundial sem uma análise correta da decadência do capitalismo, e que essa estratégia é bem diferente da concepção leninista-trotskista de pequeno grupo que se torna, combatendo o reformismo das direções traidoras, um partido de quadros que mobiliza as massas através de reivindicações transitórias rumo ao poder. Ao mesmo tempo, veremos como a Quarta Internacional foi destruída não pelo revisionismo pablista, mas sim pela sua incapacidade de superar a herança da estratégia leninista e sua visão sobre a revolução mundial iminente.      

II. A teoria da decadência do capitalismo

            Assim expira o mundo,
            Não com uma explosão, mas com um suspiro.

            (T. S. Eliot, Os Homens Ocos, 1925)

            Como vimos, a IC partia do pressuposto de que o capitalismo havia entrado em sua crise terminal, onde a vida dos trabalhadores só poderia piorar, e as contradições do sistema se acirravam cada vez mais, levando a guerras interimperialistas. Sobre esses pressupostos, era construída toda uma linha de criação imediata de partidos comunistas, rompendo com a socialdemocracia, com a tarefa de construir sovietes na Europa para lutar pelo poder num período de curto (semanas e meses) a médio (alguns anos) prazo.
            Então, toda a crítica das concepções da IC só pode partir de uma comparação entre as previsões que ela fez e o que realmente aconteceu com o capitalismo desde 1919. Essa comparação deve fornecer as bases para a formulação de uma teoria alternativa sobre as perspectivas do capitalismo. É o que  tentaremos fazer a partir de agora.
            Existem dezenas de teorias sobre as mudanças no capitalismo, principalmente as que aconteceram desde 1945. Enquanto elas fornecem elementos muito importantes para uma análise das formas concretas do capitalismo atual, não é necessário rever todas elas em detalhe qaui (o que, além do mais, é impossível). Para o nosso objetivo, o que interessa saber são três fatores na dinâmica do sistema em escala mundial:

            a) se o capitalismo realmente está passando por uma fase de decadência
            b) se o nível de vida da classe trabalhadora tende a piorar
            c) se as contradições do sistema tendem a se acirrar  

            Vamos ver um por um.

            II. 1 Existe mesmo um período de decadência?

            Obviamente, qualquer marxista deve saber que, se o capitalismo conseguir manter um crescimento constante, que permita mesmo uma melhora gradual do nível de vida da classe trabalhadora, não é possível falar em revolução. O capitalismo seria o sistema definitivo que poderia desenvolver as forças produtivas indefinidamente, e o socialismo poderia até mesmo ser uma ideia possível e melhor na prática, mas a estrutura das relações de classe iria impedir que houvesse interesse objetivo pela destruição do capitalismo. Ou seja, o socialismo seria apenas mais uma utopia.
            Marx e Engels levavam muito a sério essa ideia, quando disseram, em A Ideologia Alemã, que “o comunismo não é uma ideia, e sim o movimento real que supera a ordem existente”.      
            Portanto, a primeira tarefa seria descobrir se existe um período histórico no qual o capitalismo deixa de ser viável.
            Segundo Marx, na sua Introdução à Crítica da Economia Política:

No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a um ponto em que nascem forças produtivas e meios de circulação que só podem ser nefastos no quadro das relações existentes, e que não são mais forças produtivas, e sim forças destrutivas…

            Assim, temos que saber se a realidade demonstrou a existência desses limites absolutos, onde o desenvolvimento passa a ser destrutivo para o sistema (lógico que através de provas indiretas, da mesma forma que a teoria da relatividade de Einstein foi provada com a comprovação da curvatura das ondas de luz do Sol).
            Pelo que sabemos, até agora o capitalismo não acabou mas, mesmo entre os economistas e sociólogos burgueses, se faz um contraste entre os “trinta anos gloriosos” (1945-1975), e o período posterior, onde houve uma série de fenômenos sociais, como o crescimento do setor de serviços (e até mesmo desindustrialização, em alguns casos), desemprego em massa fora dos períodos de crise, financeirização da economia, queda geral na taxa de lucro etc. Todos os dados mostram que o capitalismo está vivendo (pelo menos) uma fase de crescimetno muito mais lento, contrastado com o período anterior. Seria possível associar esses “sintomas” com uma alteração secular no capitalismo? Essa fase seria reversível, num momento futuro?
            Para citar, por exemplo, o keynesiano americano Alvin Hansen:

Particularmente significativa, mas ainda muito escassamente considerada pelos economistas, é a profunda mudança que estamos atualmente sofrendo no que se refere à taxa de expansão extensiva. É importante integrar estreitamenteo aumento da população com os outros fatores sobre os quais se baseia a expansão, incluídos a expansão territorial e o progresso tecnológico. Com efeito, dificilmente se poderá colocar em discussão o fato de que um aumento contínuo da população, à taxa experimentada no séxulo XIX, apresentaria dentro em breve problemas insolúveis. Isso, naturalmente, deve-se ao fato de que não temos mais a rápida expansão territorial extensiva por todo o mundo que tínhamos anteriormente. A coisa mais importante a notar é o declínio da expansãoextensiva, a qual implicava tanto um aumento da população quanto uma expansão territorial.
            (Política Fiscal e Ciclos Econômicos)
             
            Obviamente, as próprias condições mostradas por Hansen são praticamente irreversíveis, e portanto se trata da fase final do capitalismo, e não de algo que possa ser corrigido (lógico que, por exemplo, se houver um aumento exponencial da população, é possível uma nova fase de crescimento, mas seria ecologicamente insustentável).
            Dentro do marxismo, existem duas teorias principais que argumentam de que existem limites econômicos absolutos para a manutenção do sistema.
            A primeira delas (e a mais famosa) é a baseada na queda tendencial da taxa de lucro. Foi defendida principalmente por Henryk Grossman, em sua obra A Lei da Acumulação e o Colapso do Sistema Capitalista, de 1929. Segundo essa teoria, a queda da taxa de lucro, provocada pela diminuição constante do valor da força de trabalho (que é quem produz o lucro) em relação ao valor dos equipamentos e matérias-primas gastos na produção, terminaria destruindo qualquer incentivo para a acumulação do capital.
            Não discutiremos essa teoria aqui, não porque ela não seja importante, mas porque ela reforçaria os nossos argumentos, baseados na teoria de Rosa Luxemburgo (mesmo que numa forma modificada), como mostraremos no final do capítulo.
            É importante lembrar que o debate marxista entre declínio da taxa de lucros e esgotamento dos mercados prosseguiu após a Segunda Guerra, com nomes como Paul Mattick e Hillel Ticktin em defesa da primeira tese, e toda a corrente ao redor da Monthly Review, dos EUA, ao redor de Paul Sweezy, além de nomes como István Meszáros, François Chesnais e David Harvey na defesa da segunda, combinando-a, às vezes, com teses subconsumistas (como é o caso de Sweezy).  

            II. 1. 1 A Acumulação do Capital, segundo Rosa Luxemburgo

            A segunda teoria, que adotamos desde a fundação do CCI, é a formulada por Rosa Luxemburgo, em seu livro, de 1912, A Acumulação do Capital, e se baseia na impossibilidade de realização da mais-valia (ou seja, a transformação do trabalho excedente criado na produção em lucro real, no mercado) se o capitalismo não estiver se expandindo para outras sociedades ainda não capitalistas.
            Como também veremos a seguir, alguns críticos de Rosa, como Paul Sweezy e Ernest Mandel, também usam argumentos semelhantes ao dela.  
            Rosa Luxemburgo tem sido chamada de “subconsumista” pelos seus críticos, dentro e fora do marxismo. Na verdade, ela defendeu posições subconsumistas (por exemplo, não acreditava no aumento relativo dos salários da classe trabalhadora no regime capitalista, e baseou grande parte da sua crítica ao Livro 2 do Capital nessa tese), mas elas não comprometem o fundamental do seu argumento.
            E o fundamental é o seguinte: o produto (o total das mercadorias produzidas) da sociedade pode ser dividido (fisicamente e em valor) em

            C + V + M

            onde C é o capital constante (gastos com equipamentos e matérias-primas), V é o capital variável (gasto em salários) e M a mais-valia (as mercadorias que os trabalhadores produziram acima do necessário para trocar pelas bens que podem comprar com o salário).
            Obviamente, os trabalhadores só podem comprar o valor igual ao que recebem em salários. Os capitalistas, se comprassem em bens de consumo toda a mais-valia, iriam absorver ela toda, mas não haveria investimentos para fazer o capitalismo crescer.
            Então, todo o investimento deve ser comprado por alguém que não seja nem os capitalistas nem os trabalhadores (nem, por exemplo, os funcionários públicos e militares, que são pagos por impostos extraídos dos salários e do lucro – a nossa definição sobre quais são os componentes da classe trabalhadora, e quais formam as camadas médias urbanas está no artigo do CCI, Quem é a classe trabalhadora?). Ele deve comprado por mais alguém que, no caso, não pode estar dentro das relações capitalista de produção. 
            Rosa viu esse “mais alguém” nos camponeses, que formavam a grande maioria da população mundial em sua época. Ela via o capitalismo se expandindo ao absorver as sociedades camponesas, que começavam sendo os compradores de mercadorias produzidas nos países capitalistas, e depois se tornavam trabalhadores assalariados, quando a produção capitalista dominava os seus países.
            Para Rosa, quando acabassem as sociedades não-capitalistas, o sistema entraria em colapso. Na verdade, pelos mesmo argumentos de Rosa, ele poderia sobreviver, mas crescendo apenas de acordo com o aumento da população – o que, para o capitalismo, seria uma catástrofe.           
            A grande maioria dos países do  mundo se tornou predominantemente capitalista durante o período entre 1945 e 1991 (no casos dos antigos países governados pela burocracia stalinista) e, como diria Carmem Miranda, “o mundo não se acabou”. De acordo com as previsões de Rosa, isso tornaria impossível vender as mercadorias que materializassem a mais-valia, levando a um colapso da taxa de lucro (mas, como vimos antes, ela achava que o capitalismo acabaria muito antes disso, por causa do acirramento das suas contradições).
            Porque isso não aconteceu?
           
            II. 2 Acirramento ou deslocamento das contradições?

            Rosa chegou perto da resposta, no último capítulo de seu livro, quando analisa o papel da produção bélica como campo de realização da mais-valia. Seria cansativo repisar o tema aqui, mas o importante é que a produção de armas serve para absorver uma parte dos investimentos, sem necessidade de ampliação do mercado, pois o consumidor é o próprio Estado.
            A realidade mostrou, e isso é reconhecido até pelos economistas burgueses keynesianos, que a dificuldade de realização da mais-valia levou à criação de vários mercados para escoar a produção, como a produção bélica e os gastos estatais em geral, o setor de serviços (que absorve as mercadorias sem produzir) e os mercados financeiros.
            A tese de Keynes cabe como uma luva nas formulações de Kautsky sobre a “depressão crônica”, que ligam explicitamente o problema à questão dos mercados:

Conforme a nossa teoria, esse desenvolvimento é uma necessidade que se confirma pelo simples fato de que o modo de produção capitalista tem os seus limites, que não pode ultrapassar. Deve chegar uma época, e talvez essa época se encontre muito próxima, a partir da qual se torne impossível o mercado mundial, mesmo que só transitoriamente, se expansa mais rapidamente que as forças produtivas sociais, com o que, em todas as nações industriais, a superprodução se torna crônica.  
(Teorias das Crises)

            Por outro lado, Sweezy, em sua Teoria do Desenvolvimento Capitalista, mesmo criticando a teoria de Rosa, mantém que, por causa do subconsumo em relação à produção, o capitalismo tende para a depressão crônica, e que o excedente (a mais-valia na teoria de Rosa) deve ser absorvido para evitá-la. Depois, em Capitalismo Monopolista, ele mostra como o excedente é absorvido no caso dos EUA. 
            Ou seja, no capitalismo do pós-Segunda Guerra, diferente do que Rosa pensava, a maior parte da mais-valia que não poderia ser investida na produção foi consumida improdutivamente, seja pelo Estado, seja transformada em capital fictício nos mercados financeiros (as ações significam apenas direitos de propriedade sobre as empresas, e a valorização delas é paga com parte dos lucros), seja colocada no setor de serviços (onde muitas empresas – por exemplo, lojas de shopping center, call centers, salões de beleza etc – não produzem nenhuma mercadoria, e o lucro delas é tirado do salário dos trabalhadores) ou em patentes (também são direitos de propriedades que aumentam o preço real das mercadorias. Esse consumo improdutivo é que impediu a ocorrência do desemprego em proporções ainda maiores, e manteve a taxa de lucro num nível aceitável.
            Além disso, dentro da própria produção, existe uma mistura entre trabalho produtivo e improdutivo. Por exemplo, os custos de marketing levam as mercadorias a serem produzidas com o uso de parte do trabalho somente para diferenciar um produto da outra (caso dos modelos de carros), algumas mercadorias são produzidas propositalmente para terem curta duração (isso é chamado pelo marxista húngaro István Meszáros de obsolescência planejada), entre outros fenômenos. Tudo isso torna ainda mais difícil determinar o quanto dos lucros é realmente usado na acumulação real. 
            Ou seja, as contradições do capitalismo não se acirraram nos países imperialistas (e mesmo em muitos dependentes), mas sim foram deslocadas, e parcialmente exportadas para os países semicoloniais. Isso é um dos grandes fatores que permitiram a estabilidade do capitalismo desde 1945, e impediram o surgimento de situações revolucionárias nos países imperialistas.
            Diante do crescimento do setor de serviços, alguns economistas e sociólogos burgueses, com Daniel Bell, Domenico de Masi e John Kenneth Galbraith, argumentraram que ele expressaa transformação do capitalismo numa sociedade “pós-industrial”, onde a indústria começou a perder o peso porque a grande maioria das necessidades materiais já foi satisfeita, e que o setor de serviços existe para suprir as necessidades sociais das pessoas.
            Em resposta a essa concepção apologética, lembramos que
            a) grande parte do setor de serviços é simplesmente parasitário (publicidade, gastos comerciais, despesas estatais e administrativas, mercado de luxo etc), representado um escoadouro inútil da mais-valia;
            b) o desenvolvimento desigual do capitalismo faz com que, mesmo nos países em que o setor de serviços se tornou maior que a produção industrial, isso acontece antes que as necessidades materiais dos trabalhadores tenham sido satisfeitas. No Brasil hoje, por exemplo, com 60% da população empregada no setor de serviços, uma parte significativa da população não tem saneamento básico, ruas asfaltadas etc;
            c) principalmente, como a economia continua capitalista, o crescimento do setor de serviços “suga” parte dos lucros gerados na produção (já que ele não cria mercadorias para incorporar o lucro, e os serviços são pagos com parte dos salários e lucros), fazendo com que a acumulação do capital (mesmo o investido em serviços) diminua, sendo que isso é tanto pior quanto mais o setor cresce.
            É logico é que o resultado, a longo prazo, dessas formas de deslocamento das contradições, já que a produtividade da indústria continua a crescer, é que as condições sociais são pioradas progressivamente com a desindustrialização, e que é preciso recorrer cada vez mais ao consumo improdutivo para manter o capitalismo. Pelo que sabemos, o primeiro autor que combinou a teoria de Rosa com a teoria sobre a generalização do trabalho improdutivo e a queda da taxa de lucro foi o alemão Robert Kurz, em seu artigo A Ascensão do Dinheiro aos Céus.
            É uma morte lenta e indolor.

            II.3 A situação dos trabalhadores vai piorar cada vez mais? ou Decadência e luta de classes

            Essa morte lenta seria sentida de imediato se fosse acompanhada de uma súbita queda do nível de vida da classe trabalhadora. E, talvez essa seja a “variável” mais importante a examinar se a gente quiser determinar as perspectivas para a revolução social. Ou seja, a clássica questão: o marxismo fala em pauperização absoluta ou relativa da classe trabalhadora?
            Trotsky não tinha dúvidas. Em seu artigo Os Noventa Anos do Manifesto Comunista, ele diz:

Atacaram violentamente a proposição do Manifesto referente à tendência do capitalismo baixar o nível de vida dos trabalhadores, e ainda reduzir-los à pobreza. Padres, professores, ministros, jornalistas, teóricos socialdemocratas e dirigentes sindicais saíram a enfrentar a chamada “teoria da pauperização”. Invariavelmente, encontravam sinais de crescente prosperidade entre os trabalhadores, faznedo a situação da aristocracia operária passar como a de todo o proletariado, ou tomando como perdurável alguma tendência momentânea. Enquanto isso, até o desenvolvimento do capitalismo mais poderoso do mundo, o dos EUA, converteu milhões de trabalhadores em mendigo mantidos às expensas da caridade federal, municipal ou privada.

            Como vimos, a IC. mesmo rejeitando a pauperização absoluta para o período anterior à Primeira Guerra Mundial, acreditava que a crise terminal do capitalismo a impunha.
            Pois bem, Mandel provou em A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx, que não existe uma só passagem da obra de Marx que defenda a tese da pauperização absoluta (ou seja, que os salários reais dos trabalhadores diminuem cada vez mais no capitalismo), embora o Manifesto Comunista tenha algumas formulações ambíguas, que são rechaçadas na seção VI do Livro I do Capital, sobre os salários. Pelo contrário, Marx polemizou longamente, como na obra Salário, Preço e Lucro, contra as teses do socialista alemão Ferdinand Lassale, que defendia que as greves são inúteis porque o nível de vida dos trabalhadores não pode melhorar no capitalismo.
            Mesmo nos países semicoloniais, é óbvio que os trabalhadores têm acesso a bens que não podiam consumir (ou que não existiam) no tempo de Trotsky. Isso é fácil de entender: com o aumento da produtividade, o valor (medido em tempo de trabalho) dos salários dos trabalhadores representa uma quantidade cada vez maior de mercadorias. Por isso, mesmo na favela as pessoas têm Internet, a mortalidade infantil diminuiu em praticamente todos os países, as possibilidades de alimentação melhoraram historicamente (mesmo que as crises possam reverter – em parte – isso), a alfabetização aumentou no mundo inteiro etc.
            Portanto, o nível de vida dos trabalhadores dos países imperialistas é mais alto em consequência da maior produtividade do trabalho, e não porque eles são pagos com “migalhas” da exploração imperialista. Aliás, a teoria impressionista de Lênin sobre a aristocracia operária é antimarxista, por imaginar que uma parte da classe trabalhadora em vez de ser explorada., ainda ganhe uma parte dos lucros.
            Estudos, como o da marxista americana Shane Mage e do canadense Murray Smith, entre outros, provam que houve manutenção ou ligeira diminuição da parte do Produto Interno Bruto dos seus respectivos países que corresponde aos salários (ou seja, houve uma leve pauperização relativa) desde a Segunda Guerra. Além disso, o neoliberalismo levou, desde a década de 1980, a uma piora no nível de vida da classe trabalhadora no mundo todo. Mas, mesmo assim, a realidade está muito longe das perspectivas catastrofistas imaginadas pela IC.
            Isso não quer dizer que a decadência não afeta a vida da classe operária e a suas condições de luta de classes. O grande ataque às condições de vida na classe trabalhadora nos últimos trinta anos, sob o neoliberalismo,não teve somente uma base ideológica (o discurso de “fim do socialismo” após a destruição da URSS), e sim também um fundamento material: com a revolução tecnológica na informática, nas comunicações e nos transportes, que começou na década de 1960, mas só se generalizou no final dos anos 1970, foi possível às empresas reduzirem o tamanho das suas plantas industriais, integrando elas através dos novos meios de comunicações e transportes.
            Isso levou à destruição do “operário-massa” que existia nas fábricas gigantes, à transferência das empresas para países sem tradição sindical, e a um controle maior da produção pelas gerências e chefias, além da tercerização generalizada, através da integração entre as empresas no mesmo processo de produção. Todas essas condições tornam mais difícil a organização sindical, e permitem à burguesia a série de ataques aos trabalhadores, ainda mais numa condição de deslocamento das contradições do capitalismo para setores onde émuito mais difícil organizar a luta de classes (capital financeiro, produção bélica, comércio e serviços pessoais, trabalho informal, doméstico etc).
            Aliás, Rosa Luxemburgo previu genialmente as consequências da exaustão dos mercados do mundo sobre a luta de classes, em Reforma ou Revolução?

Quando o desenvolvimento da indústria atingir o seu apogeu e o mercado mundial iniciar a fase descedente, a luta sindical tornar-se-á difícil: 1º, porque as conjunturas objectivas do mercado serão desfavoráveis à força do trabalho, a procura da força de trabalho aumentará mais lentamente e a oferta mais ràpidamente, o que não é o caso actual; 2º, porque o próprio capital para se compensar das perdas sofridas no mercado mundial, se esforçará por reduzir a parte do produto pertencente aos operários. A redução dos salários não é, em resumo, segundo Marx, um dos principais meios de travar a baixa das taxas de lucro? (ver Marx, Capital, livro III, cap. XIV, 2, Tomo X, p, 162). A Inglaterra oferece-nos o exemplo do princípio do segundo estádio do movimento sindical. Nessa fase, a luta reduz-se necessàriamente e cada vez mais à simples defesa dos direitos adquiridos e mesmo isso é cada vez mais difícil. Esta é a tendência geral da evolução cuja contrapartida deve ser o desenvolvimento da luta de classe política e social.

Depois disso, não cabem mais comentários… 

          II. 4 Crises

            O marxista alemão Fritz Steinberg provou que as crises da primeira metade do século XIX foram tão graves porque combinavam as características de crise capitalista com o efeito, ainda em curso, da proletarização do campesinato. Foi o caso na maioria dos países semicoloniais até a década de 1980. Depois dessa fase inicial, as crises capitalistas tendem a se estabilizar em efeitos mais “suaves”.
            Como as crises econômicas, tipicamente, reduzem a produção e os salários em 8 a 12%, é muito difícil que uma crise, sozinha, ou seja, sem estar combinada com outros fatores políticos ou sociais (guerras e catástrofes ecológicas de larga escala, situações raciais ou nacionais explosivas etc), consiga gerar uma situação revolucionária nos países centrais.
            Por tudo isso, devemos ter em mente, ao analisar as mudanças no programa comunista geradas pelo curso do capitalismo, que foi diferente do previsto pela IC, que o capitalismo não é tão frágil como foi imaginado, e que a sua longa decadência progride piorando num rito muito lento, não as condições de vida da classe operária, mas as condições sociais mais gerais, o que dificulta uma ação organizada de combate.
            Mesmo assim, os fatos mostram que existe realmente uma incapacidade crescente de funcionamento do sistema, que podemos associar com o fim do crescimento extensivo dos mercados, que havia marcado o capitalismo até a década de 1970. A teoria da queda tendencial da taxa de lucro mostra não só a própria existência de uma acumulação cada vez mais lenta, como também que esse processo não é explosivo, e que não depende de uma queda absoluta dos salários (pelo contrário, se houvesse aumento dos salários, a taxa de lucro cairia ainda mais rápido).
            A teoria de Rosa Luxemburgo fornece uma explicação para o processo, e a corrente keynesiana faz uma análise que tem vários pontos de contato com ela, além de colocar o consumo improdutivo e desvio da acumulação real como o recurso para a manutenção do sistema, o que não pode ser feito pela teoria da queda da taxa de lucro.  
            É importante deixar bem claro que entendemos decadência como um período histórico em que o capitalismo destroi lentamente as suas próprias bases materiais (diminuindo o trabalho assalariado, desindustrializando a economia, jogando grande parte da mais-valia no consumo improdutivo, criando desemprego permanente etc).
            Assim, somente no período de decadência é viável substituir, em escala mundial, o capitalismo pelo socialismo, porque a decadência permite a “quebra” do capitalismo (não pelas crises cíclicas, que são um mecanismo interno do sistema, mas sim pela combinação delas com outras circunstâncias sociais, como guerras, a destruição de setores precapitalistas na economia, estagnação econômica provocada pelo imperialismo etc) em países localizados, e a produção pode ser revolucionada de uma forma em que possa competir com o capitalismo (claro que isso nos países imperialistas, no caso da URSS não havia base material para superar o capitalismo e, portanto, a revolução russa não poderia avançar até o socialismo sem a ajuda de outras revoluções na Europa, como Trotsky demonstrou).
            É ainda mais importante dizer isso porque nós, desde o tempo do CCI, temos insistido erradamente em generalizar certos elementos reais de retrocesso (extermínio da população excedente por epidemias e drogas, relações de produção atrasadas que voltam a existir, como a escravidão etc) como a perspectiva para toda a sociedade no período de decadência. Essas formas de retrocesso são reais, e são frutos da decadência, mas são elementos marginais do processo, que continua sendo dominado pelas mudanças que acontecem na produção industrial.
           
III. A teoria da decadência e o racha na Quarta Internacional

            A Quarta Internacional, quando rachou em 1952-1953, não foi por motivos diretamente relacionados com o tema que estamos analisando. O que aconteceu foi a controvérsia do pablismo, ou seja, qual deveria ser a política da IV diante da expansão do stalinismo e da expropriação da burguesia na Europa Oriental. Não cabe aqui falar sobre essa difícil questão. O que é importante é que a discussão sobre a perspectiva do capitalismo foi mais “lenha na fogueira” do debate, e que quase todas as correntes trotskistas instintivamente voltaram a discutir a teoria da decadência, como parte da avaliação das diferenças entre elas.
            Portanto, aqui, o nosso objetivo não é explicar a destruição da IV Internacional, e sim mostrar como cada uma das suas correntes principais se posicionou diante das mudanças no capitalismo, que desmentiram todas as previsões de Lênin e Trotsky. Na seção seguinte, vamos discutir mais a fundo as consequências programáticas do reconhecimento dessas mudanças.
            Estamos estudando o caso do trotskismo porque, fora dele (e de pequenos grupos vindos do bordiguismo), o stalinismo destruiu a reflexão marxista sobre o capitalismo. Os partidos stalinistas se dividiram entre os partidos de massa reformistas, que várias vezes combinavam o marxismo e o keynesianismo dentro de um programa de reformas estruturais (sendo que a escola da regulação, de Michel Aglietta e Robert Boyer, foi uma expressão teórica dessa adaptação ao capitalismo, depois da crise do keynesianismo), e os grupelhos sectários maoístas e “marxistas-leninistas”, que apenas reciclaram o catastrofismo da IC. 

            III. 1 O SU e o neocapitalismo/capitalismo tardio

            A corrente que dirigiu o Secretariado Internacional após o racha, e que depois formou o Secretariado Unificado (SU) contava com Ernest Mandel, que se tornou, com o tempo, um respeitado economista. As posições do SU se identificaram com as de Mandel, a tal ponto que a corrente é chamada por muitos, hoje em dia, como mandelista.
            As obras mais importantes de Mandel, o Tratado de Economia Marxista e Capitalismo Tardio, foram escritas a pedidos da direção do SWP americano, para analisar as transformações sofridas no sistema desde a Segunda Guerra.  Além do SU, o SWP americano (que hoje formou outra corrente internacional) e a já extinta corrente dirigida por Michel Pablo (que fundiu com o SU em 1995) também defendem essa teoria. Os morenistas também, mas a tentativa de fusão com a corrente lambertista, em 1980, os fez aceitar a concepção da OCI.
            As posições de Mandel podem se resumir assim:

Nós definiremos o neocapitalismo como o último estágio no desenvolvimento do capitalismo monopolista, em que uma combinação de fatores – inovação tecnológica acelerada, economia de guerra permanente, expansão da revolução colonial – transferiram a fonte principal de lucros monopolistas dos países coloniais para os próprios países imperialistas, e fizeram as corporações gigantes mais independentes e mais vulneráveis.
Mais independentes, porque a enorme acumulação de superlucros monopolistas permite a essas corporações, através de mecanismos de investimentos por preços e autofinanciamento, e com a ajuda da manipulação dos custos de venda, distribuição e despesas de pesquisa e desenvolvimento, se libertarem do controle estrito pelosbancos e pelo capital financeiro, que caracterizava os monopólios da épocadeLênin e Hilferding. Mais vulneráveis, porque o encurtamento do ciclo do capital fixo, o fenômeno crescente da capacidade ociosa, o declínio relativo dos consumidores em meios não-capitalistas e, não menos importante, o desafiocrescente das forças não-capitalistas no mundo (os assim chamados países socialistas, a revolução colonial e, pelo menos potencialmente, a classe operária nas metrópoles) semearam até nas menores flutuações e crises a semente de perigosas explosões e do colapso total.
(Os trabalhadores sob o Neocapitalismo)

            Mandel reconheceu um núcleo de verdade na teoria de Rosa, sem aceitar que ela pudesse provar o colapso automático do sistema (e nisso ele está certo), e a generalizou para incluir não só as trocas entre o capitalismo e países semi ou não-capitalistas, como entre colônias internas (como o Sul da Itália e o Nordeste brasileiro), e a troca tecnológica (o que nos parece um caso de absorção da mais-valia excedente, pela obsolescência que as inovações provocam no capital de tecnologia mais antiga).
            Além disso, ele reconheceu que essas modificações levam a consequências programáticas. No mesmo artigo:

A questão que foi posta: O papel da classe operária não mudou fundamentalmente nesse ambiente modificado? O alto nível de emprego a longo prazo e o aumento dos salários reais não cortam qualquer potencial revolucionário da classe operária? Elanão estámudando a sua composição, se divorciando cada vez mais do processo produtivo, como resultado da automação crescente? As suas relações com outros setores da sociedade, como os trabalhadores de escritório, técnicos, intelectuais, estudantes, sofrem modificações básicas? (…) 
O capitalismo clássico educou os trabalhadores para lutarem por saláriosmaiores e menos horas de trabalho na fábrica. O Neocapitalimo educa o trabalhador para questionar a divisão da renda nacional e a orientação do investimento no nível superior da economia como um todo.
A lógica de todas essas tendências coloca o problema do controle operário no centro da luta de classes.

    Na próxima parte, mostraremos outras consequências políticas de teoria do neocapitalismo/capitalismo tardio.
            O que podemos criticar na teoria é que ela subestima o grau de adaptação da classe trabalhadora dos países centrais ao sistema. Como o marxista Herbert Marcuse notou em A Esquerda Sob a Contrarrevolução, o nível de consumo muda as condições sociais de existência da classe trabalhadora e, portanto, a sua consciência. Mas Mandel está certo em mostrar que a classe trabalhadora dos países imperialistas ainda mantém seu papel potencialmente revoucionário, o que o próprio Marcuse veio a admitir depois.

          III.2 O Comitê Internacional

            O Comitê Internacional, formado em 1953 como oposição à direção da QI, os acusou de serem revisionistas do trotskismo. A polêmica começou em torno da política em relação ao stalinismo, mas é óbvio que a teoria aceita pelo SU, que mudava vários dos pressupostos leninistas sobre o capitalismo, viraria um alvo fácil das acusações de revisionismo feita pelo CI. Com algumas citações, veremos como cada componente do CI tentou evitar de admitir a realidade das mudanças no capitalismo.

            III.2 . 1 O lambertismo

            A OCI (Organização Comunista Internacionalista) francesa, dirigida por Pierre Lambert, achou necessário manter todo o Programa de Transição na íntegra, para evitar o revisionismo. Por isso, os lambertistas defendem até hoje que as forças produtivas pararam de se desenvolver, e que o empobrecimento da classe trabalhadora é crescente. Sobre a questão das forças produtivas, escrevemos em A Tragédia do Lambertismo. Faremos uma longa citação das Teses para a Atualização do Programa de Transição, escritas com Nahuel Moreno:

A inexistência de uma crise como a de 1929 no pós-guerra – ou seja, umchoque que comova todo o mundo capitalista, do centro até a periferia – o boom econômico dos países imperialistas (a partir pelo menos de 1950), mais a combinação desses elementos com um espetacular desenvolvimento tecnológico, levaram o revisionismo a levantar uma nova concepção econômica antimarxista.
Ela sustenta, em primeiro lugar, que uma nova etapa se abriu, a neocapitalista ou neoimperialista, que se diferencia da imperialista, definida por Lênin como de decadência total, de crise crônica da economia capitalista. Generalizando abusivamente estes novos fatos, essa nova corrente teoricopolítica aceita tanto a teoriadoseconomistas burgueses como a da burocracia, e a transporta para as nossas fileiras como uma teoriaeconômica a serviço da sua capitulação aos aparatos burocráticos.
A segunda revisão – a principal – é a afirmação de que, nessa suposta nova etapa, as forças produtivas vivem um desenvolvimento colossal, graças ao enorme progresso tecnológico. É uma concepção anticlassista e antihumana, e justamente abase de sustentação dos ideólogos do imperialismo.
Para os marxistas, o desenvolvimento das forças produtivas é uma categoria formada por trêselementos: o homem, a técnica e a natureza. E a principal força produtiva éo homem: concretamente, a classe operária, o campesinato e todos os trabalhadores. Por isso, consideramos que o desenvolvimento técnico não é o desenvolvimento das forças produtivas se não permite o enriquecimento do homem e da natureza, ou seja, um maior domínioda natureza por parte do homem e deste sobre a sua sociedade .
A técnica – como também a ciência e a educação – são fenômenos neutros que se transformam em produtivos ou destrutivos de acordo com a utilização classista que se dê a eles. A energia atômica é uma colossal descoberta científica e técnica, mas transformada em bomba atômica é uma grande tragédia para a humanidade, nada tem a ver com o progresso das forças produtivas, e sim com o das forças destrutivas. A ciência e a técnica podem originar o enriquecimento do homem – desenvolver as forças produtivas – ou a decadência e a destruição do homem. Depende da sua utilização, e a sua utilização depende da classe que as tenha em mãos. Atualmente, o desenvolvimento das forças produtivas não só está freado pela existência do imprialismo e da propriedade privada capitalista, como também pela existência dos estados nacionais, entre os quais incluímos todos os estados operários burocratizados. Na época da agonia do capitalismo, esses estados nacionais cumprem o mesmo papel nefasto que os feudos no período de transição do feudalismo ao capitalismo.
Nesse pós-guerra, vimos o desenvolvimento colossal da indústria armamentista, ou seja, das forças destrutivas da sociedade, e também um desenvolvimento da técnica que levou a um empobrecimento do homem, a uma crise da humanidade, a guerras crescentes, e a um começo de destruição da natureza. Oatual desenvolvimento da economia capitalista e burocrática tem uma tendência crescente à destruição do homem e da natureza humanizada. A análise revisionista nesse ponto é árcial e analítia, porque não define nem as consequências do desenvolvimento nem suas tendências.
Se o revisionismo tivesse razão, as suas concepções significariam que entramos em uma época reformista em que se trata de se obter a maior parte possível a favor dos trabalhadores dentro desse processo de desenvolvimento progressivo. Se fosse assim, toda a concepção do Programa de Transição estaria errada. Mas a atualetapa docapitalismo produz miséria crescente para as massas. O domínio da economia mundial pelo imperialismo é uma trava ao desenvolvimento das forças produtivas. E o marxismo, o leninismo e o trotkismo estão mais vigentes do que nunca, porque são a única ciência que explica porque se abre uma etapa revolucionária: porque o deenvolvimento das forças produtivas é travado pelo regime social dominante, até o grau que provoca uma decadência, uma crise no desenvolvimento das mesmas.
A terceira revisão é consequência da anterior: se as forças produtivas se desenvolvem sob o neocapitalismo, os trabalhadores melhoram constante e sistematicamente seu nível de vida em escala mundial. O grave problema para as massas deixa de ser a miséria, já que, ao consumir cada vez mais, se alienam.
Os fatos foram tão categóricos contra essa teoria revisionista que, hoje em dia, de forma envergonhada, eles tratam de ocultá-la. Mas essa era a posição oficial do revisionismo na década de sessenta: a miséria das massas é relativa, já que sempremelhoram seu nível de vida, e não absoluta, como assegura o marxismo para a época imperialista. Os fatos e a concepção marxista ortodoxa sustentam que se abre uma etapa revolucionária quando a vida se torna insustentável para as massas, quando há desemprego, miséria crescente, queda do salário etc. A economia capitalista e imperialista, tanto quanto a burocrática, em sua etapa de crise definitiva, de putrefação e enfrentamento com a revolução socialista mundial, é a etapa da miséria crescente do movimento de massas em seu conjunto. O revisionismo tomou, como referência para formular a sua teoria, a situação da classe operária nos países avançados durante o boom, e não todas as massas.
 A quarta revisão é a que sustenta que desapareceram as cirses econômicas do tipo de 1929 no imperialismo, o qual, ao contrário, vive um boom econômico sustentado. Essa concepção ignora que o boom é excepcional e conjuntural e, em consequência, os fatos que assim o explicam. A suposta nova etapa não é, na verdade, outra coisa que a da economia capitalista em sua crise definitiva, de putrefação, deenfrentamento com a revolução socialista mundial. A atual economia imperialista , incluido seu boom, só pode ser entendida como parte dependente do político e do social, ligada ao processo total daluta entre a revolução socialista internacional e a contrarrevolução no mundo. A política dominou a economia nessa época, e com o método revisionista de separação não se pode entender nada.
São so grandes acontecimentos políticos de pós-guerra que exolicam a falta deuma crise como a de 1929, e não o automatismo económico por si só. Todos os fenômenos econômicos “anormais”, em última instância, têm a ver com a política contrarrevolucionária do Kremlin e do stalinismo no mundo. Sem essa política consciente, não teria havido o boom econômico, nem o Plano Marshall, nem o levantamento da economia alemã e japonesa, nem da europeia em seu conjunto, e teríamos presenciado crises muito superiores à do ano de 1929 nos países capitalistas avançados. O fato de que não tenha sido assim não tem a ver com as tendências mais poderosas da economia capitalista em seu estado de putrefação, ou seja, não surge de um fenômeno econômico, e sim de fenômenos políticos tais como, por exemplo, que o Kremlin tenha ordenado aos partidos comunistas ocidentais que apoiassem o restabelecimento da economia capitalista devastada pelasegunda guerra imperialista, fazendo com que a classe operária se sacrificasse para levantar essas economias capitalistas. 

                        III. 2. 2. O healysmo

            A SLL (Liga Trabalhista Socialista) inglesa buscou fugir da análise concreta da realidade com o recurso à pseudo-filosofia. Para eles, o boom era apenas uma “forma de aparência”:

O sistema capitalista, para sobreviver, só coloca uma perspectiva à frente da humanidade: o da queda na barbárie. O imperialismo não pode desenvolver as forças produtivas, porque a propriedade dos meios de produção continua em mãos privadas, com aeconomiamundial dividida em uma série deestados-nação rivais.
Essas contradições básicas e inescapáveis estiveram sempre presentes durante o boom relativo que o capitalismo experimentou depois da última guerra, mesmo que essas contradições não se revelassem abertamente “na superfície”.
Nossa perspectiva em economia deve partir, portanto, da natureza da presente época, caracterizada porum sistema social, o capitalismo, em crise, em que a crise de direção da classe é a questão principal. O capitalismo sobreviveu neste século, não por causa de sua força inerente, mas somente porque a classe trabalhadora foi incapaz de resolver essa crise de direção e tomar partido da série de crises econômicas e sociais que abalaram o sistema capitalista no curso desse século. O período desde 1945 não foi exceção a essa caracterização.

Tom Kemp, membro do WRP, escreveu em seu livro Capital, de Marx, hoje:

A marca do revisionismo de Mandel é que ele não consegue fazeruma análise da crise que se aproxima, e pode apenas repetir como um papagaio que 1929-1932 nunca vai se repetir… Como osrevisionistas antes dele, Mandel não vê tendências dominantes no modo de produção capitalista para o colapso. (…) Enquanto Mandel e seus colegas, os economistas burgueses e stalinistas, estudam o modo de produção capitalista com preocupação, as suas contradições, esclarecidas por Marx, estão levando à depressão, guerra e revolução socialista.

            III. 2. 3 O espartaquismo

            A Spartacist League americana, para evitar o debate, recorreu, em vez de negar as teorias, a atacar as suas supostas conclusões políticas:

Não, a origem da teoria das ondas longas de Mandel é política, não econômica. É um meio desonesto e objetivista de se desculpar pelo fato de que, durante os anos 1960, ele descartou a classe trabalhadora dos países imperialistas como força revolucionária. Nesse tempo, ele não se referia a “capitalismo tardio”, e sim “neocapitalismo”, baseado na “terceira revolução industrial” da automação eenergia nuclear. No seu livro Uma Introdução à Teoria Econômica Marxista, Mandel declara que: “A fase neocapitalista que estamos testemunhando agora é a de uma expansão a longo prazo no capitalismo”. Isso contradiz diretamente a tese leninista de que a época imperialista é a da decadência das forças produtivas – “a agonia mortal do capitalismo”, como Trotsky pôs no título do programa de fundação da Quarta Internacional.
E quais são as implicações dessa expansão de longo prazo? Mandel escreve:

“O ciclo de longo prazo que começou com a Segunda Guerra Mundial, e em que ainda estamos… tem, ao contrário, sido caracterizado pela expansão e, por causa dessa expansão, a margem de negociação entre a burguesia e a classe trabalhadora se alargou. Se criou a possibilidade de fortalecer o sistema na base da garantia de concessões aos trabalhadores… a colaboração próxima entre ums a burguesia expansiva e as forças conservadoras do movimento operário é sustentada fundamentalmente pela tendência ascendente no nível de vida dos trabalhadores.”
—Uma Introdução à Teoria Econômica Marxista

Tente apresentar esta linha para o meio radical pequeno-burguês hoje! Ririam de Mandel na palteia. Mas, na época, era um tema popular entre todas as teorias da “nova classe operária” e, sempre, nosso economista “marxista” pegou o que estava na moda e elaborou uma teoria que se encaixasse na impressão superficial.

            O politicismo dessa corrente é declarado diretamente na sua concepção de que o programa (ou seja, as posições políticas) produz a teoria.Na discussão da Tendência Revolucionária do SWP, entre James Robertson e Tim Wohlforth:

A teoria é uma simplificação suficiente da realidade, que pode entrar na nossa cabeça e nos dar uma compreensão ativa como participantes do que está acontecendo – ou seja, o que temos na nossa cabeça também é um fator. O programa gera a teoria. Oque é decisivo são as questões programáticas. Os bolcheviques e Lênin tinham uma teoria incorreta, uma teoria suficiente mas não correta mas, no momento supremo, eles tiveram a conclusão política correta de não fazer alianças com os liberais.

            Portanto, a forma que o “trotskismo ortodoxo” teve para manter o modelo de revolução da IC foi negar, de uma forma ou outra, o que acontecia diante dos próprios olhos.
            Por fora da QI, duas correntes trotskistas desenvolveram análises econômicas.
            Uma delas é a corrente conhecida pela sua seção inglesa, a Tendência Militante do Partido Trabalhista (e que hoje se dividiu em CMI e CWI), dirigida por Ted Grant. Ted Grant escreveu importantes artigos criticando o catastrofismo da Quarta Internacional, como Perspectivas Econômicas para 1946 e Haverá uma Depressão? (1960), mas a sua produção foi mais nas análises de conjuntura, sem tentar criar uma teoria do capitalismo do pós-Segunda Guerra. Por isso, ele não tem muito interesse para o tema desse artigo.
            A outra corrente é o Socialismo Internacional, dirigida por Toni Cliff, que ficou mais famosa por defender que a URSS era uma forma de capitalismo de Estado. O Socialismo Internacional criou a teoria da “economia armamentista permanente”, que corretamente via que estava havendo uma expansão do capitalismo no pós-guerra, mas insistia unilateralmente no fato do consumo improdutivo militar como fator de estabilização do sistema. Não conhecemos a teoria muito bem (pedimos até a ajuda dos companheiros da Revolutas nisso), mas ela teve o mérito de apontar uma das raízes parasitárias do “crescimento” do capitalismo decadente, e o distanciamento da perspectiva de crise geral na época. 

IV. Consequências políticas

            O trotskismo foi a única corrente que manteve uma organização internacional revolucionária depois da Segunda Guerra Mundial (em vários países, houve outras correntes revolucionárias – no caso do Brasil, a POLOP, a LSI e o PCBR – mas elas nãose coordenaram internacionalmente). Por organização revolucionária, queremos dizer uma corrente lutando pelo governo operário através de conselhos ou asembleias, e com uma estratégia que coloque a classe trabalhadora no centro da luta por isso, criando uma organização com democracia interna para corrigir os erros cometidos na luta por essa estratégia.
            Mesmo assim, o trotskismo (assim como as outras correntes de esquerda) foi incapaz de dirigir até a vitória uma revolução socialista num país capitalista. O objetivo desse artigo foi mostrar como as concepções da IC impediam que os marxistas tivessem uma compreensão correta das tarefas, já que a evolução do processo de decadência do capitalismo foi totalmente diferente do previsto pela IC.
            Nós, que surgimos reivindicando o “trotskismo ortodoxo”, precisamos entender o que deve ser reformulado no programa marxista, a partir da crítica da teoria por trás da estratégia da IC. Só isso vai nos permitir sair do círculo vicioso dos pequenos grupos trotskistas que vegetam no movimento dos trabalhadores, disputando para ver quem representa corretamente as concepções de 1938, que fundaram a Quarta Internacional.
            Para nós, a discussão sobre a “continuidade do trotskismo”, como é feita pelas correntes que vieram do Comitê Internacional, é apenas uma ideologia criada para dizer que determinada corrente é a única trotskista do mundo, e todas as outras são revisionistas. Além do sectarismo, o pior é que esse tipo de ideologia vai na contramão da resolução da crise do trotskismo: o que temos que fazer não é ver quem foi mais “fiel” ao programa da QI, e sim que conseguiu se livrar das consequências políticas da teoria errada sobre o capitalismo, herdada da IC, formulando um programa adequado às reais condições da luta de classes no sistema.
            Essa tarefa é análoga ao “rearmamento” feito por Lênin nas Teses de Abril, quando ele abandonou o programa de ditadura democrática do campesinato e do proletariado,baseado na teoria errada da imaturidade do capitalismo russo para a revolução socialista. O “rearmamento”, que é a condição necessária para a verdadeira luta pelo socialismo nos países capitalistas dependentes e imperialistas, não é uma tarefa exclusiva dos trotskistas, e sim de toda a esquerda revolucionária que rompa com o etapismo stalinista e lute pela democracia operária como forma da ditadura do proletariado.

IV.1 A Crise de Direção ainda é válida?

            Na luta pelo reamarmento, devemos entender os limites do que éo eixo da política “trotskista ortodoxa”: a crise de direção. Se a concepção de crise de direção já tinha um problema na época da fundação da Quarta Internacional, porque poderia dar a entender que a “traição” da direção da IC tinha sido abandonar os pressupostos (errados) da sua fundação, ela se tornou depois uma paródia de si mesma.
            Em primeiro lugar porque foi aplicada às próprias correntes que se reivindicavam trotskistas,depois do racha de 1951-1953. Depois, porque o movimento operário, depois da Segunda Guerra, e muito mais depois da destruição da União Soviética (que foi um fôlego para o capitalismo, lhe permitindo reconquistar um terreno econômico gigantesco, e desacreditou para as massas a própria noção de socialismo, para não dizer a Revolução Russa) não tem mais como objetivo a luta pelo socialismo. Ele, devido à confusão feita pelo stalinismo entre socialismo e ditadura da burocracia, perdeu o horizonte político, e tem se limitado, quase sempre, a lutar por dentro do sistema, sem nenhuma perspectiva de superar o capitalismo. 
            Por isso, não se trata mais de lutar contra uma direção reformista pela linha revolucionária. O próprio reformismo mudou. Ele, que garantia uma transição pacífica para o socialismo, passou a defender reformas dentro do capitalismo e, agora, nem isso. Os grandes partidos do movimento operário (como o PT brasileiro, o Partido Trabalhista inglês e a socialdemocracia europeia), hoje, tentam se mostrar para os trabalhadores como uma alternativa mais “suave” de gestão do capitalismo.
            Diante disso, a nossa tarefa não é mais combater a estratégia reformista dentro do movimento. É reorientar o movimento, para que ele possa novamente ter uma estratégia. Isso significa que parte da nossa tarefa é reconstruir o movimento socialista e operário, ensinando à vanguarda a necessidade da estratégia revolucionária.
            Isso não significa que a luta contra as direções traidoras tenha perdido o sentido, ela continua como uma tarefa específica dentro de uma estratégia maior (o rearmamento e a reorientação do movimento operário). É importante dizer isso, porque algumas correntes que defendem uma concepção semelhante de “crise de subjetividade”, “crise de credibilidade do socialismo”, ou crise de alternativa socialista” acabam negando ou diminuindo a importância da agitação e da propaganda das palavras de ordem revolucionárias e da luta contra o oportunismo. Esse é o caso do SU e de outras correntes nacionais, como o PCB.     

            IV. 2 Proletários e Comunistas

            Dentro dessa discussão, é importante reavaliar o papel do leninismo, já que muitas críticas dizem que a forma de organização leninista só era válida na Rússia, porque não havia maioria de trabalhadores no país e, portanto, não era correto criar partidos de massa.
            Para nós, esse argumento é mecanicista. Se a influência das outras classesnum país atrasado é muito grande, a influência da própria burguesia imperialista é maior ainda. A maior prova disso é a grande dificuldade na construção das organizações revolucionárias nos países imperialistas de maioria ou grande peso da classe trabalhadora. Por isso, a forma leninista de organização, baseada na separação entre os elementos revolucionários e os reformistas da classe, permanece válida. Sobre isso, recomendamos a leitura do nosso artigo Leninismo, Frentes Únicas e Blocos de Propaganda
            Mas isso não pode ser confundido com duas coisas:
            Primeiro, não é válido manter determinadas formas organizativas que só se justificam em situações de guerra civil. No caso, se trata principalmente da manutenção de aparatos clandestinos permanentes, trabalho dentro das forças armadas e restrição ao direito permanente a tendências e debates públicos.
            As duas primeiras medidas são aceitas pela maioria das correntes (com a exceção dos sectários mais loucos). Já o debate público e o direito às tendências são muito mais controversos. Nós achamos que o critério correto a seguir seria o mesmo do bolchevismo de 1902 e 1921, ou seja, o debate político entre as tendências e frações pode ser público, a menos que envolva riscos para a segurança física da organização.
            Em segundo lugar, o fato da organização existir separadamente das correntes reformistas não significa que esteja excluído intervir dentro dos partidos reformistas e centristas. Como mostramos, a decadência do capitalismo se processa através do deslocamento das contradições, e não de forma explosiva. Por isso, as diferenciações que podem levar á formação de correntes revolucionárias são muito lentas, na escala de décadas.
            Por isso, a política de “entrismo sui generis” dentro de organizações reformistas é perfeitamente válida, desde que o programa revolucionário não seja sacrificado para manter o entrismo.Na verdade, toda a polêmica contra o entrismo sui generis feita pelo Comitê Internacional, além de ser totalmente hipócrita (a seção inglesa e a argentina faziam entrismo sui generis, e o entrismo feito pelos pablistas nunca significou liquidar a organização trotskista, e sim colocar uma parte dela dentro dos partidos reformistas), estava baseada na concepção de explosão iminente do reformismo, assim como os pablistas a baseavam na hipótese da Terceira Guerra Mundial. Era um debate em que ambas as posições se baseavam no catastrofismo da IC.    
            Por isso, qualquer ideia de que o partido revolucionário deve ser produzido por uma corrente “com a política certa”, que esteja por fora do movimento de massas (e de suas organizações reformistas) não passa de espontaneísmo, que deveasua base ao catastrofismo. O processo da formação dos partidos e da Internacional revolucionária de massas se dará por dentro da reorientação do movimento operário, enão através da descoberta ou manutenção do programa que vai resolver todas as questões de construção.   
           
IV. 3 Por um programa democrático e transitório

            Para terminar, devemos pensar em outro aspecto da relação entre o partido (ou seu embrião) e a classe trabalhadora. É a grande acusação feita pelos sociólogos burgueses e muitos reformistas contra o marxismo revolucionário. Podemos resumir assim: como construir um partido revolucionário se a classe, na maior parte do tempo, é reformista, e se, quando ela entra numa situação revolucionária, carrega toda a bagagem reformista aprendida durante décadas?
            Em primeiro lugar, devemos reafirmar claramente que, nos países imperialistas, a maioria da classe trabalhadora tem um nível de vida aceitável, que é a base material da consciência reformista de massa.
            Isso leva à conclusão lógica de que o foco da construção de partidos revolucionários nos países imperialistas deve ser o trabalho entre os trabalhadores imigrantes e de minorias raciais ou nacionais, com as suas demandas específicas, e a luta para que o movimento geral abrace elas.
            Mas isso não é o suficiente: os trabalhadores superexplorados são apenas uma minoria da classe trabalhadora dos países imperialistas. Como explicamos em movimento operário ou movimento de cidadãos?, a maioria dos processos de lutas de massas acontece sob hegemonia da ideologia burguesa. Os vários setores em luta se organizam cada um segundo seus métodos, e acabam se coordenando através de instituições burguesas. O caso recente da Líbia, com o Conselho Nacional Provisório, é só mais um. Essa situação só pode ser revertida através de uma luta consciente pela hegemonia proletária, ou seja, para que a coordenação do movimento se dê através das formas do movimento operário, para estabelecer um programa anticapitalista.
            Na tradição trotskista, as reivindicações transitórias servem como uma ponte entre a situação prerrevolucionária e a consciência reformista da classe. No Programa de transição:

A tarefa estratégica do próximo periodo – período pré-revolucionário de agitação, propaganda e organização – consiste em superar a contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e de sua vanguarda (confusão e desencorajamento da velha geração, falta de experiência da nova). É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.
A social-democracia clássica, que desenvolveu sua ação numa época em que o capitalismo era progressista, dividia seu programa em duas partes independentes uma da outra: o programa mínimo, que se limitava a reformas no quadro da sociedade burguesa, e o programa máximo, que prometia para um futuro indeterminado a substituição do capitalismo pelo socialismo. Entre o Programa mínimo” e o Programa máximo” não havia qualquer mediação. A social-democracia não tem necessidade desta ponte porque de socialismo ela só fala nos dias de festa.
A Internacional Comunista enveredou pelo caminho da social-democracia na época do capitalismo em decomposição, quando não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas, quando a burguesia retoma sempre com a mão direita o dobro do que deu com a mão esquerda (impostos, direitos alfandegários, inflação, deflação”, carestia da vida, desemprego, regulamentação policial das greves, etc.), quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressista da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês.

Obviamente, esse programa deve mudar quando nem um dos dois elementos está presente.
            Com isso, não queremos dizer que o uso das reivindicações transitórias seja errado. Em todas as situações, os comunistas devem levantar palavras de ordem que apontem para a superação do capitalismo.
            Por exemplo, no Programa do Partido Operário francês, escrito por Marx em 1880, as reivindicações continham:

            – abolição do exército e armamento geral do povo
            – administração do Estado pelas Comunas
            – imposto progressivo
            – controle operário nas fábricas públicas
           
            No Programa de Erfurt, de 1890, do SPD, revisado por Engels, havia as palavras de ordem de:

            – eleição dos magistrados pelo povo
            – milícias em vez de exército
            – assistência social sob controle operário

            Isso já mostra que a separação entre “programa mínimo” e “programa máximo”, de que Trotsky fala, era uma consequência da degeneração da Segunda Internacional. Na verdade, ela começa, no caso do SPD, no Congresso de 1925. 
            Com esses exemplos, vemos que, em situações não-revolucionárias, os marxistas devem combinar as reivindicações transitórias com a luta por reivindicações imediatas e políticas.
            Dentro do movimento trotskista, a corrente de direita do SWP americano, conhecida como Tendência Morrow-Goldmann, defendeu justamente esse tipo de programa democrático e transitório (e o entrismo nos partidos socialdemocratas), entre 1943 e 1946, quando viram que, na Europa, a derrota do fascismo ia levar a um longo período de estabilização do capitalismo.
            Esse programa incluía palavras de ordem políticas (como a abolição da monarquia na Itália e Inglaterra), corrigindo um problema residual da IC. Como a revolução era vista como sendo causada pelo colapso econômico imediato do capitalismo, as palavras de ordem políticas eram colocadas em segundo plano como “reformistas”, e a luta contra as imaginadas catástrofes econômicas iminentes era colocada no centro.   
            Mas como um programa democrático e transitório não pode se tornar simplesmente reformista? Isso foi o que aconteceu com Feliz Morrow e Albert Goldmann, do SWP. Eles acabaram abandonando a perspectiva de revolução na Europa, chegaram a apoiar a Constituição francesa de 1947, e terminaram no WP de Max Schachtman, que já estava caminhando a passos largos para o reformismo.
            Bem, não acreditamos que exista um programa que impeçaos desvios reformistas. Mas, como linha geral, acreditamos que as lutas por reivindicações democráticas deva ser orientada contra o Estado, nunca formulando demandas que possam ser conquistadas sem uma luta de massas, e sempre em combinação e luta concreta por palavras de ordem transitórias, para reforçar o movimento.
             Algumas correntes internacionais realmente incorporam essas palavras de ordem. Acreditamos que um estudo da história do trotskismo mostra facilmente que os grupos que se tornaram partidos trabalharam combinando as palavras de ordem democráticas e transitórias. o que nãoquer dizer que, em grande parte dos casos, esses partidos não tenham se adaptado ao reformismo, como tem sido o caso do SWP inglês e do NPA.
            Mas acreditamos que a luta por um programa democrático e transitório dentro dos sindicatos e no movimento de massas (assim como o trabalho político revolucionário nas correntes reformistas e centristas), e a restauração de todas as normas democráticas do leninismo, e a priorização do trabalho político nos setores superexplorados da classe, são elementos importantes para o rearmamento do movimento revolucionário. E que só através do rearmamento político e teórico poderemos criar partidos revolucionários e a Internacional comunista revolucionária.

Documento Principal da “Tendência Coletivo Lenin”

Este documento foi originalmente publicado como um boletim interno da “Tendência Coletivo Lenin” em junho de 2010. Ele é um dos principais documentos que nos diferenciou da tendência revisionista que se apoderou do Coletivo Lenin antes de nossa ruptura para formar o Reagrupamento Revolucionário.


Documento de Declaração de Tendência
Maio e Junho de 2011
Leandro Torres e Rodolfo Kaleb

TENDÊNCIA COLETIVO LENIN
PELA CONTINUIDADE REVOLUCIONÁRIA!
Quando, em novembro do ano passado, convocamos o II Congresso (Extraordinário) do Coletivo Lenin para julho deste ano, nossa intenção original era estudar nossas deficiências e avançar sobre elas, além de também estudar a tradição espartaquista na qual baseamos nosso programa e práticas, para entender o porque da degeneração das principais organizações provenientes da mesma. Esse balanço crítico da tradição espartaquista também incluiria reavaliarmos nosso documento programático, adaptado daquele da TBI (“Pelo Trotskismo!”), com o objetivo de analisarmos quais seriam as posições fundamentais de serem mantidas (portanto, o que é questão de princípios) e quais poderíamos abrir mão de ter em nosso programa formal, mesmo que defendendo em artigos e etc. Essa era uma discussão importante, pois estava colocada na ordem do dia a perspectiva de discussão com outros grupos visando processos de fusão, o que encarávamos, seria a principal tarefa do CL no próximo período e para a qual esse II Congresso nos armaria.
Porém, nos últimos meses, o companheiro Paulo tomou o rumo político de abandonar o programa essencial do espartaquismo, negando assim também os pontos fundamentais que definem nossa organização, construída em cima dessa tradição. Assim, infelizmente, não poderá ser dada prioridade a um estudo que nos faria avançar programaticamente, e sim o combate ao recuo de consciência e o profundo revisionismo formulado pelo camarada em questão. Deixar claro qual é essa base revolucionária do nosso programa e contrapô-la às posições do Paulo é o principal objetivo da tendência que estamos lançando. Aqueles que possuírem acordo conosco, estão desde já convidados para integrarem a Tendência Coletivo Lenin, que terá no presente documento sua base principal.
É preciso ficar claro que a escolha do nome “Coletivo Lenin” para nossa tendência não foi à toa. Acreditamos que o modelo de partido e a estratégia que o camarada em questão vem propondo são não só divergentes, como opostos aqueles sob os quais se baseia nossa organização. Assim, adotá-los seria o mesmo que destruir o Coletivo Lenin. Como acreditamos que a base de unidade de nossa organização não é a amizade ou o coleguismo que há entre nós, mas sim o nosso programa, o nosso modelo de organização e os nossos objetivos estratégicos, nos colocamos intransigentemente em defesa destes contra a tentativa destruidora e liquidacionista de tal camarada. Nos colocamos, portanto, em defesa da continuidade revolucionária do programa bolchevique contra o imenso revisionismo do camarada Paulo. Antes de discutirmos o que entendemos por continuidade revolucionária, entretanto, faz-se necessária uma importante observação.
           O camarada Paulo vem nos acusando de tentar rachar o Coletivo Lenin. Como dissemos em um recente e-mail (de 09 de maio de 2011), os rachas são parte da tradição bolchevique, baseada no princípio da disputa pela consciência da classe trabalhadora. Sempre que um setor oposto ao programa revolucionário se desenvolveu no seio das organizações bolcheviques, foi necessária uma batalha interna para convencê-lo do programa correto e, esgotadas as possibilidades de convencimento, removê-lo da organização. Isso ocorre porque não há como se disputar a consciência do proletariado se dentro do instrumento que nos permite fazê-lo (o partido) existem dois ou mais programas opostos. Já que o camarada Paulo gosta de referências bíblicas, conforme Mateus 25:12, “Todo reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda cidade ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”. Nesse sentido, não é vergonha alguma querer rachar uma organização, desde que o objetivo seja a manutenção de seu programa revolucionário. A vergonha está é do lado daqueles que visam destruí-la, apagando por completo seus princípios fundadores. E mais vergonhoso ainda seria se maquiássemos a realidade e tentássemos criar uma paz artificial entre setores extremamente opostos, tornando nossa organização nada mais do que uma massa amorfa, unida por princípios oportunistas e apolíticos. Dizemos abertamente que preferimos infinitamente rachar nosso pequeno Coletivo do que vê-lo transformado em algo completamente diferente do que aquilo para o qual fomos recrutados e tanto temos nos esforçados nos últimos anos para construir. Sugerimos aos camaradas, caso ainda reste algum tipo de receio quanto à questão da convivência de dois setores opostos em uma mesma organização bolchevique ou sobre a questão do racha, a leitura do pequeno texto As Frações e a Quarta Internacional, de Leon Trotsky (1935). Esse texto é exemplar ao tratar dessas questões e representa bem a tradição que nossa organização reivindica.


1. O que significa “continuidade” para os revolucionários?

No I Congresso Nacional do Coletivo Lenin, realizado em agosto do ano passado, tomou forma um importante debate dentro de nossa organização, motivado pelo sectarismo da TBI em buscar relações/fusões apenas com organizações que fossem cópias em miniaturas dela mesma (o que mais tarde viríamos a descobrir, não passava de uma forma de evitar o surgimento de vozes dissidentes que ameaçassem a posição de seus dirigentes burocratas). Confrontados com essa posição sectária, tivemos que dar uma resposta para a pergunta: o que significa um programa representar a continuidade da teoria e da prática revolucionária?
Para nós, o texto Continuidade Revolucionária e o Racha na Quarta Internacional, escrito em 1986 pela então revolucionária TBI (posteriormente apresentaremos um estudo sobre o porquê da sua degeneração), apresenta uma corretíssima definição de continuidade:

Nós não vemos ‘continuidade’ enquanto um tipo de verdade metafísica depositada em mãos capazes de garantir a sucessão apostólica do trotskismo autêntico. E nem ela consiste em simplesmente repetir as respostas dadas para os desafios de ontem quando diante dos novos problemas que surgem hoje.(Revolutionary Continuity & the Split in the Fourth International – TBI, 1986)

Ou seja, defender a continuidade revolucionária não significa nem buscar uma “linhagem genética” que comece em Marx e acabe no Coletivo Lenin (ou no espartaquismo), muito menos transportar mecanicamente o programa de uma organização do passado para nossa realidade atual.
As ideias do marxismo revolucionário não caem do céu. Elas foram sistematizadas por políticos revolucionários ao longo de décadas de lutas de classe. O marxismo se desenvolveu através dos programas que nasceram da intelectualidade revolucionária através de um atento estudo teórico e da participação ativa no movimento dos trabalhadores. Nesse sentido as ideias do marxismo são sempre um resgate, uma negação e um desenvolvimento original a partir de um programa previamente existente. Estes três elementos sempre estão presentes em qualquer virada importante do marxismo. Enquanto o leninismo negou a adaptação da Socialdemocracia diante da burocracia sindical e da democracia burguesa, ele resgatou vários pontos do conteúdo revolucionário dessa mesma Socialdemocracia e desenvolveu um novo programa para dar resposta aos novos problemas impostos pela luta de classes na era imperialista.
Quando dizemos que o leninismo é a continuidade revolucionária da Socialdemocracia, não estamos dizendo que a Socialdemocracia era perfeita até o momento em que os Bolcheviques racharam, nem que eles se dedicaram a repetir o que os socialdemocratas pregavam antes de 1914 (o momento do racha definitivo). Queremos dizer é que ele filtrou o legado da socialdemocracia (“separando o joio do trigo”) e a desenvolveu numa direção que nós consideramos acertada. Continuidade é uma questão de escolha programática, não de repetição de fórmulas.
A Socialdemocracia era uma árvore que poderia se ramificar em muitos caminhos diferentes, dependendo das escolhas programáticas dos seus membros diante dos testes das lutas de classe. E foi isso que de fato aconteceu. Toda organização pode dar origem a diferentes grupos. O Stalinismo é uma negação de muitas das práticas democráticas do leninismo e do cerne do seu programa (que coloca a classe operária no centro das revoluções coloniais), é um resgate de algumas práticas antidemocráticas do Partido Comunista da União Soviética e um desenvolvimento que adaptou o bolchevismo às necessidades da burocracia segundo a lógica do “socialismo em um só país”. Isso é muito diferente, portanto, da concepção do camarada Paulo, para quem o stalinismo é a “conclusão lógica” do leninismo:

Também é importante ver, nas 21 condições [da Internacional Comunista], a visão da revolução iminente mesmo nos EUA, Inglaterra e França (condições 3 e 4), e a imposição do centralismo leninista, mesmo onde não fosse necessário tal nível de centralização (…).
Depois, já no 5° Congresso, controlado pela fração stalinista, houve a política da ‘bolchevização’, que foi a conclusão lógica de tudo, com uma depuração maior ainda das seções e a imposição, em todos os detalhes, do regime do PC russo na época (sendo que não seria aceito mesmo um regime como o do mesmíssimo partido antes de 1921, quando se proibiram as frações). (A Teoria da Decadência e a Crise da III e IV Internacionais, p. 6 – DDI, ênfase nossa).

O trotskismo, por sua vez, é uma sistematização das experiências da luta de classes durante os primeiros anos da Internacional Comunista, que levou ao desenvolvimento da Teoria da Revolução Permanente, resgatou o centralismo democrático e o cerne do bolchevismo e negou a política de adaptação diante das burguesias nacionais e da burocracia.
Quando dizemos que o trotskismo é a continuidade do leninismo, também é como se estivéssemos dizendo que concordamos com as opções programáticas e posições políticas da Oposição de Esquerda e da Quarta Internacional. A Quarta, por sua vez, nunca foi desprovida de erros, problemas e deficiências. Mas acreditamos que ela foi quem deu respostas de forma acertada às questões políticas mais importantes da época. É nesse sentido que nós acreditamos que a Liga Espartaquista foi a continuidade revolucionária do SWP americano depois que este caminhou em direção ao pablismo.
Por fim, queremos dizer que também o Coletivo Lenin precisa ser não repetido, mas melhorado a partir das nossas discussões. Como já dissemos, acreditamos que grande parte da nossa tarefa é resgatar o programa que está sendo atacado pelo camarada Paulo. Porém, outras práticas do CL precisam ser negadas – dentre elas a forma frouxa com que todos fomos recrutados (sem estudar intensamente os documentos históricos importantes e nem a tradição espartaquista, ou mesmo as teorias do subimperialismo e da decadência, que reivindicamos apenas formalmente) e as nossas falhas sobre a questão religiosa (não termos um documento interno de referência sobre isso e o fato de termos sido negligentes com o camarada C.). Assim, também diante de nós se coloca uma questão de escolha programática. Queremos chamar os camaradas o quanto antes a se dedicarem ao estudo de nossas polêmicas para que possam tomar uma postura ativa nesse debate e não serem arrastados pelo fluxo dos acontecimentos.

2. As origens do espartaquismo

            Pois bem, indicamos aquilo que achamos necessário melhorar em nossa organização e criticamos a concepção de “paz kautskista” por trás das acusações do Paulo à cerca da questão do racha, que devido à sua frágil posição de defesa de um programa revisionista, finge ser possível a convivência de suas atuais concepções com o programa do CL. Cabe agora deixarmos claro aquilo que defendemos da tradição espartaquista (e, portanto, do programa do CL) contra o revisionismo de tal camarada.
            Como foi mostrado em nosso livreto O Pablismo e a Crise na Quarta Internacional, houve um grande debate nas fileiras da Quarta sobre as tarefas no pós-Segunda Guerra. Através da sua ativa participação nos processos de resistência ao nazismo na Europa, o stalinismo saiu da guerra consideravelmente fortalecido. Além disso, a conjuntura radicalizada e a polarização impostas pela Guerra Fria levaram a algo que os trotskistas consideravam extremamente improvável: que os stalinistas (ou outras forças não-revolucionárias) levassem às últimas consequências um processo revolucionário e expropriassem a burguesia, criando um Estado operário. A essa nova conjuntura surgiram duas respostas principais, uma revisionista e outra que, apesar de combater o revisionismo, tinha falhas profundas.
            A primeira, e que conseguiu maior expressão nas fileiras da Quarta, foi aquela defendida por Michel Pablo e encampada pela maioria do Secretariado Internacional: considerar que a conjuntura do pós-Guerra forçaria os stalinistas a tomarem o poder em diversos locais, empurrados por “forças objetivas” e que a tarefa dos trotskistas frente a isso seria realizar um “entrismo de tipo especial” nos PCs e movimentos nacionalistas de esquerda para “surfar com a onda”. Como fica claro pelo documento apresentado pela Comissão Austríaca ao III Congresso da Quarta, entretanto, esse “entrismo” (sui generis) nada tem a ver com o que o camarada Paulo diz ser:

A atividade de nossos membros dentro do PS será governada pelas seguintes diretivas: A) Não vir a público como trotskistas com nosso programa completo; B) Não levantar diferenças programáticas e de princípio (…)” (Citado em O Pablismo e a Crise da Quarta Internacional – Coletivo Lenin, novembro de 2010).

O camarada Paulo realiza então uma falsificação histórica ao dizer que:

(…) a política de ‘entrismo sui generis’ dentro de organizações reformistas é perfeitamente válida, desde que o programa revolucionário não seja sacrificado para manter o entrismo. Na verdade, toda a polêmica contra o entrismo sui generis feita pelo Comitê Internacional, além de ser totalmente hipócrita (a seção inglesa e a argentina faziam entrismo sui generis, e o entrismo feito pelos pablistas nunca significou liquidar a organização trotskista, e sim colocar uma parte dela dentro dos partidos reformistas), estava baseada na concepção de explosão iminente do reformismo, assim como os pablistas a baseavam na hipótese da Terceira Guerra Mundial. Era um debate em que ambas as posições se baseavam no catastrofismo da IC.(A Teoria da Decadência…, p. 31 – DDI, ênfase nossa).

            E não podemos ser inocentes a ponte de achar que tal falsificação é gratuita. Pelo contrário, ela está a serviço de seu profundo revisionismo, pois o mesmo defende a tática de “entrismo profundo” nos partidos centristas e reformistas, já que encara que a revolução não está mais no horizonte (essa questão iremos explorar mais adiante). Daí fica a dúvida: se os interesses do camarada Paulo ao defender um entrismo “de tipo especial” fossem legitimamente revolucionários (entrar para rachar a outra organização, sem deixar de colocar o programa revolucionário em toda a sua extensão a todo momento), para que então realizar tal falsificação?
Acreditamos ter ficado claro que o pablismo pressupõe a submissão política dos revolucionários ao stalinismo (stalinofilia) e demais direções de massas do movimento. Portanto, o pablismo não passa de uma variante do nosso velho conhecido, o centrismo, que coloca em segundo plano não só a independência política do partido revolucionário, como por vezes o próprio papel protagonista da classe trabalhadora. Para nós, da Tendência Coletivo Lenin, por outro lado, citando a anedota presente no texto Programa Revolucionário vs. “Processo Histórico”, existem dois “dogmas” definitivos dentro do bolchevismo, derivados do que há de mais básico na teoria marxista: reconhecer o papel protagonista da classe trabalhadora, e reconhecer que esta deve atuar consciente de seu papel histórico (portanto, alicerçada em um programa e em um partido revolucionário).

            Já a segunda resposta à conjuntura inusitada do pós-Guerra foi aquela dada pelos setores que vieram a romper com a Quarta em 1953, resistindo à adaptação dos pablistas à burocracia soviética e ao stalinismo (como na greve geral francesa de 1953 e na revolta em Berlim Oriental no mesmo ano). Esses setores, ao romperem, criaram o Comitê Internacional, encabeçado pelo SWP norte-americano e integrado por alguns dos outros “anti-pablistas”, como a maioria de seção francesa (PCI). Como sempre reconhecemos, a batalha política do Comitê Internacional foi extremamente falha e incompleta:

A luta do CI tinha falhas profundas, tanto na sua elaboração política como em sua execução. Mesmo assim, em última análise, o impulso do CI para resistir à dissolução dos quadros comunistas dentro dos partidos stalinistas e socialdemocratas (como foi proposto por Pablo), e a sua defesa da necessidade de um fator consciente na história, os fizeram qualitativamente superiores aos liquidacionistas do SI.(Programa Político do Coletivo Lenin – Janeiro de 2009).

Porém, é necessário reconhecermos que em grande parte o combate ao pablismo derivou de uma concepção errada, a stalinofobia: as seções do CI se recusavam a reconhecer que o stalinismo tivesse dirigido revoluções e, empurrado por condições muito específicas, criado novos Estados operários (burocraticamente deformados). Isso fica claro quando vemos que algumas de suas seções de maior peso aplicavam a nível nacional a mesma lógica centrista que está na base do pablismo, ou seja, de confiar a tarefa do partido revolucionário a direções reformistas com influência de massas. É o caso da corrente de Nahuel Moreno com o peronismo argentino e de Gerry Healy com o Labour Party britânico.
Então, se ambos os lados abrigavam correntes centristas, teria sido essa polarização SI x CI algo meramente artificial? Acreditamos que não. A diferença principal entre esses setores era seu posicionamento à respeito dos novos Estados operários que surgiram (Leste Europeu, Vietnã do Norte, Coréia do Norte e China). As correntes do SI, em sua capitulação ao stalinismo, defendiam que estes eram Estados operários que durariam por séculos e que suas direções (stalinistas) iriam realizar a transição do mundo ao socialismo. Já o CI (sobretudo a sua seção mais importante, o SWP) não tinha uma caracterização precisa destas formações sociais, mas criticava os dirigentes stalinistas à frente delas e mantinha a necessidade de revolução política e da criação de partidos revolucionários nos novos Estados.
Foi apenas no início dos anos 1960, com a Revolução Cubana (1959) e os indicativos de reunificação do SWP e algumas outras seções do CI com o SI, que viria a originar em 1963 o Secretariado Unificado (SU), que a continuidade revolucionária, até então fragilizada, foi reerguida. Foi nesse período, entre 1960-63, que se formou no interior do SWP a Tendência Revolucionária (RT), lançada por membros de uma colateral estudantil captados alguns anos antes do partido do antigo dirigente do SWP, Max Schachtman.
Respondendo com firmeza às principais capitulações da maioria da direção do SWP, que estava tratando Cuba como um Estado operário são e aderindo progressivamente às teses pablistas, logo em sua origem a RT tomou posições mais do que acertadas: defendeu uma política de entrismo no SU (ou seja, entrar para polarizar seus setores de esquerda e rachá-los para criar um embrião de internacional revolucionária, e não se dissolver dentro do mesmo), se opôs ao centrismo dos pablistas e das seções do CI e desenvolveu uma teoria acertada à cerca dos novos Estados operários que haviam surgido.
Expulsa do SWP em 1963 por criticar sua direção majoritária, a RT logo tentou implementar sua tática de entrismo no SU, que foi abortada pelos líderes pablistas ao impedir a aceitação da sua filiação. Impedida de disputar por dentro possíveis setores de esquerda do SU, a RT buscou se aproximar do que havia restado do CI, mas o burocratismo de Gerry Healy (dirigente da SLL britânica, que assumiu o comando do CI com a saída do SWP) logo se viu ameaçado pelo programa revolucionário dela e também forçou o grupo americano ao isolamento.
Nascia assim a Liga Espartaquista, uma jovem organização que resgatou a luta pelos princípios trotskistas contra o pablismo que o SWP encabeçou durante certo período, e que avançou onde esse falhou: na elaboração de uma teoria para os novos Estados operários que surgiram no pós-Guerra.
Após essa breve exposição da história da SL, que encaramos ter sido necessária para desmentir algumas distorções que o camarada Paulo vem fazendo (expostas em seu DDI 9 Teses Sobre a Spartacist League e sua Herança, de 2 de fevereiro de 2011) e de certa forma potencializadas pela maneira frouxa com que o CL realizou a maior parte das captações, iremos sistematizar a herança dessa corrente que é não só o programa da nossa pequena organização, como também sua principal base de unidade. Mais para frente, publicaremos um documento em resposta às “9 Teses” do camarada Paulo, respondendo às suas falsificações factuais e realizando um balanço crítico do processo de degeneração da principais organizações espartaquistas.

3. A tradição espartaquista e o programa do CL

            A seguir apresentamos ponto a ponto o que consideramos ser os pilares fundacionais do CL, que são também os pilares da tradição espartaquista. Para nós, tal tradição consiste no resgate do que há de fundamental no leninismo e no trotskismo, somado a contribuições (avanços) originais da SL.
São esses pontos a seguir a base de unidade da nossa Tendência e também da nossa organização. São eles que o camarada Paulo pretende rasgar e jogar pela janela e em defesa dos quais nos colocamos de forma intransigente e convidados os demais camaradas a fazer o mesmo. Aqueles que defendem a continuidade revolucionária do espartaquismo e do Coletivo Lenin, juntem-se a nós nessa luta central!

3.1 O resgate do leninismo

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder intelectual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção intelectual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção intelectual.(A Ideologia Alemã – K. Marx & F. Engels, 1845-6, ênfase do original)

Como corretamente apontou o marxista francês Louis Althusser, Marx nunca se dedicou a criar uma teoria à cerca da ideologia (ou ao menos, se o fez, nunca o colocou no papel de forma sistematizada). Althusser se dedicou, então, a sistematizar uma teoria à cerca da ideologia a partir daquilo que está aplicado nas obras de Marx. Mas não precisamos ir muito além da citação acima e de um certo conhecimento histórico para entender que as classes dominantes se mantêm no poder não só graças à sua posição dentro de um modo de produção determinado, mas também (e muitas vezes, principalmente) graças à sua dominação ideológica sobre o conjunto das outras classes. Basta vermos a forma como a maioria dos trabalhadores reproduzem ideologias opressivas que nada tem a ver com seus interesses materiais, como o machismo ou o racismo, ou mesmo a forma como normalmente se expressa inicialmente uma luta operária qualquer: na forma de uma reivindicação legal, por dentro do sistema; reformista.
A partir desse preceito, Lenin concluiu que não basta existirem condições materiais contraditórias para que as classes dominadas se levantem contra seus opressores e tomem o poder. É necessário que elas façam isso de forma consciente de sua posição enquanto classe, portanto, que coloquem em pauta a questão do poder de Estado. É disso que Lenin fala em O Que Fazer (1903). E é nisso que se baseia a concepção trotskista de “crise de direção” e que, de certa forma, não deve ser entendida enquanto um momento pontual da história da luta de classes do proletariado, mas sim da sua própria condição enquanto classe: ausência de um elemento dirigente que se contraponha à ideologia dominante e seja capaz de manter uma influência de massas.
Quando Trotsky fala de uma “crise de direção”, portanto, ele está levantando uma acusação da traição da Socialdemocracia e da Terceira Internacional, e não caracterizando um momento histórico específico ou único na existência do proletariado. Como, em seu estado “normal”, a classe trabalhadora terá sempre uma orientação ideológica de caráter burguês, não-revolucionário, podemos dizer que até que uma organização revolucionária surja e obtenha expressão, a classe trabalhadora estará passando por uma “crise de direção”, já que estará na mão de traidores e conciliadores de todo o tipo (defensores de programas reformistas ou mesmo inferiores).
Para nós, já há muito tempo estão dadas as condições objetivas (materiais) necessárias para que a revolução socialista ocorra mundialmente. O elemento que está faltando é justamente o subjetivo (consciência), do qual depende em grande parte a existência de um partido revolucionário, que “explique pacientemente às massas” a necessidade da tomada do poder. É disso que se trata toda a discussão sobre “crise de direção”.
O camarada Paulo, entretanto, alega que passamos hoje por um patamar de consciência muito inferior ao que existiu em um mítico passado no qual o movimento supostamente lutava pelo socialismo (mesmo que via reformas):

(…) o movimento operário (…) não tem mais como objetivo a luta pelo socialismo. Ele, devido à confusão feita pelo stalinismo entre socialismo e ditadura da burocracia, perdeu o horizonte político, e tem se limitado, quase sempre, a lutar por dentro do sistema, sem nenhuma perspectiva de superar o capitalismo.
Diante disso, a nossa tarefa não é mais combater a estratégia reformista dentro do movimento. É reorientar o movimento, para que ele possa novamente ter uma estratégia. Isso significa que parte da nossa tarefa é reconstruir o movimento socialista e operário, ensinando à vanguarda a necessidade da estratégia revolucionária.”
Isso não significa que a luta contra as direções traidoras tenha perdido o sentido, ela continua como uma tarefa específica dentro de uma estratégia maior (o rearmamento e a reorientação do movimento operário). (A Teoria da Decadência…, p. 29 e 30 – DDI, ênfase do original).

Paulo usa o falso conceito de “crise de perspectiva” enquanto um patamar de consciência que estaria “abaixo” da crise de direção com o objetivo único de defender o rebaixamento do programa revolucionário – logo, defende a secundarização da disputa pela consciência do proletariado – alegando que temos que deixar o Programa de Transição em segundo lugar frente à luta por reformas democráticas (porque supostamente nem mais reformista o movimento seria). Mais à frente voltaremos aos ataques que Paulo faz ao método leninista de disputa da consciência que Trotsky sintetizou no Programa de Transição.
É importante deixar claro que não negamos que, principalmente com o impacto internacional causado pela destruição contrarrevolucionária da URSS e demais Estados operários do Leste Europeu, abriu-se um período de grande refluxo em termos de consciência do proletariado. Mas a saída desse refluxo não está, de forma alguma, em rebaixarmos nosso programa e adotarmos como palavras de ordem centrais as “democráticas”, secundarizando as transitórias. Muito pelo contrário, agora mais do que nunca se faz necessária a disputa da consciência via utilização do programa transitório.

Após a discussão apresentada sobre consciência e ideologia dominante, fica claro que, mesmo que as previsões econômicas feitas pela Terceira Internacional tenham se mostrado falhas em alguns aspectos e que sua teoria econômica geral (da qual derivou muitas de suas práticas e posições programáticas) esteja errada, como acredita o camarada Paulo, a simples aplicação à realidade do que há de mais simplório na teoria marxista já é suficiente para defender a existência de uma organização centralizada e que não secundarize a disputa pela consciência do proletariado para um programa de transição ao socialismo. Porém, tal camarada joga fora a teoria econômica da IC junto com o modelo leninista de organização e seus princípios mais básicos, e o faz com a mesma tranquilidade com a qual alguém joga fora uma blusa velha. Nós encaramos que tal teoria está correta em muitos pontos, como na análise da economia monopolista e da necessidade de expansão territorial como forma de realizar exportação de capitais.
Já segundo a “teoria” econômica do camarada Paulo, apenas a partir dos anos 1970 é que teriam surgido as condições objetivas para a destruição do capitalismo a nível mundial (ou seja, o esgotamento da sua capacidade de avançar produtivamente), o que o faz descartar muitos dos princípios que levaram à vitória dos Bolcheviques e o que nos faz questionar: será que a Revolução Russa foi então uma grande perda de tempo? Se para o camarada Paulo o modelo de partido e a estratégia dos Bolcheviques era decorrência exclusiva da concepção de imperialismo enquanto etapa final do capitalismo e de “revolução na esquina”, para nós eles são derivados dos pilares do próprio marxismo.
Assim como os Bolcheviques, encaramos que, para vencer a “barreira ideológica” imposta pela burguesia ao proletariado, é essencial a existência de um rígido núcleo de revolucionários, que atuem segundo uma única linha pública, para poder bater mais forte e romper tal barreira. Não vemos como tornar públicas divergências internas (como defende o camarada Paulo) poderia fortalecer a luta dos revolucionários, tanto em 1917, quanto mais em um momento tão delicado de reagrupamento de forças como esse pelo qual passamos em escala mundial. Porém, afirma o camarada Paulo:

(…) Nós achamos que (…) o debate político entre as tendências e frações pode ser público, a menos que envolva riscos para a segurança física da organização.(A Teoria da Decadência…, p. 30 – DDI, ênfase nossa).

Para nós, ao se opor intransigentemente ao pablismo (e qualquer outra variante de centrismo) o que a Liga Espartaquista fez foi resgatar o princípio básico do leninismo, de disputar a consciência do proletariado através de um programa revolucionário. E, ligado à defesa de tal princípio, está ligada a necessidade de não ser adotar nenhum tipo de ação/prática que atrapalhe tal tarefa essencial, submetendo o programa revolucionário a algum tipo de programa alheio aos interesses históricos do proletariado. Foi justamente esse tipo de submissão que o que os pablistas fizeram com o stalinismo e o que qualquer centrista faz com outras organizações não-revolucionárias.
E, assim como os pablistas, o camarada Paulo também submete o programa revolucionário à direções e propostas alheias aquelas do proletariado: faz isso perante o CNT na Líbia (a quem atribui a garantia de direitos democráticos), perante as Frentes Populares nos mais diversos casos (que supostamente defenderiam o proletariado da direita golpista/reacionária) e, talvez o pior de todos, perante o contrarrevolucionário e restauracionista Solidariedade na Polônia. Isso para nós é centrismo puro:

Centrismo é o nome aplicado àquela política que é oportunista na essência e que procura aparecer como revolucionaria na forma. Oportunismo consiste na adaptação passiva diante da classe governante e ao regime existente. Incluindo, é claro, aos limites ao Estado. O centrismo divide completamente esse traço com oportunismo, mas ao adaptar-se aos operários insatisfeitos, o centrismo se cobre de discursos radicais. (Leon Trotsky – citado em Boletim Trotskista 3, TBI, 1988).

A defesa por parte da SL desse princípio de não submissão à direções/programas estranhos também se expressou de forma muito acertada na sua prática sindical. Como constatamos no artigo Em Defesa do Leninismo, de março de 2010:

(…) Lenin defendeu que o partido que luta pela revolução socialista não deve se limitar às demandas econômicas, mas sim disputar a consciência da classe trabalhadora através de uma intervenção metódica e permanente nos espaços de debate e militância. Resumindo: a consciência revolucionária não é algo que existe per se, mas sim que deve ser construído ao longo do tempo, vindo portando ‘de fora’. (Em Defesa do Leninismo – Coletivo Lenin, março de 2010)

Foi baseada nessa concepção que a SL atuou no movimento sindical (até o momento de sua degeneração) através de colaterais programáticas que iam além das demandas econômicas dos trabalhadores e disputavam sua consciência através de reivindicações transitórias, que apontavam a incapacidade do capitalismo de solucionar algumas de suas necessidades mais básicas. Ao mesmo tempo, se negavam a integrar blocos com outra correntes, por entender que seria isso em nada ajudaria em tal disputa. Mas para o camarada Paulo:

A formulação da linha sindical da SL já reflete a sua degeneração. Desde 1973 (…), já existe uma crítica às posições do SWP nos anos 1930, sobre a necessidade de formar blocos com outras correntes que tivessem acordo programático. As posições sindicais da SL vão ficando cada vez mais sectárias, até que levam ao abstencionismo que a TBI denunciou [dissolução do trabalho nos sindicatos], mas que é uma consequência lógica dessas mesmas posições.(9 Teses Sobre a Spartacist League – DDI, ênfase nossa).

Diferente do que Paulo afirma em suas “9 Teses”, não encaramos que a negação por parte da SL de integrar blocos com outras correntes seja resultado de sua degeneração. Muito pelo contrário, é sinal de que, nessa época, eles ainda se mantinham firmes na defesa dos princípios leninistas de intransigente disputa pela consciência do proletariado. Afinal,

Como forma de ‘compensar’ a pouca influência dos revolucionários ante a classe trabalhadora, algo típico na maior parte de sua existência, os centristas buscam se dissolver em grupos maiores, que defendam um programa relativamente avançado, na esperança de que tal ato de união programática de forças possa contribuir para o avanço da consciência do proletariado. (…) Acontece que diluir o programa revolucionário em um Bloco de Propaganda/Frente Única Estratégica é justamente negar os princípios do leninismo e encarar que outras tendências programáticas além da revolucionária podem cumprir um papel positivo no desenvolvimento da consciência de classe do proletariado.(Leninismo, Frentes Únicas e Blocos de Propaganda – Coletivo Lenin, setembro de 2010)

Por último, se é verdade que algumas das características do modelo de partido defendido pela Terceira Internacional em suas 21 Teses eram extremamente influenciadas pela sua concepção de revolução iminente (posteriormente corrigida em seu III Congresso), e não devem ser adotadas mecanicamente por nós na atual conjuntura, o centro da concepção leninista de partido permanece extremamente válido. Características como a defesa de trabalho nas Forças Armadas e de manutenção de um aparato clandestino são desnecessárias no atual momento, e até mesmo poderiam vir a atrapalhar nossa tarefa central de reagrupamento de forças revolucionárias, mas o centralismo democrático (manutenção do caráter interno das polêmicas) e a negação de integrar todo e qualquer tipo de bloco programático com outras organizações são princípios que se mantêm válidos e extremamente necessários para as tarefas que nos propomos realizar. Acreditamos que esses princípios leninistas estão fortemente presentes na tradição espartaquista, tendo sido forjados na luta da RT e da SL contra a degeneração pablista do SWP.

3.2 O resgate do trotskismo

Mas a Liga Espartaquista (assim como o CL) não seria uma organização revolucionária se fosse apenas pela sua forma (centralismo democrático, princípio de não rebaixar o programa integrando blocos programáticos com outros grupos, utilização de colaterais programáticas no movimento sindical). Obviamente, o conteúdo é parte essencial da disputa pela consciência.
Portanto, ao resgatar a forma revolucionária do modelo leninista de organização, a SL também resgatou o conteúdo revolucionário da Quarta Internacional, que, como já comentamos, era ao mesmo tempo um resgate e um avanço em relação ao programa leninista da Terceira. É impossível separarmos uma análise programática da Quarta de uma análise história da sua luta contra a degeneração da Terceira. Foi através dessa luta, contra as sucessivas capitulações e traições do stalinismo, que se forjou a tradição trotskista e seus principais pilares.
         Um dos marcos principais do trotskismo era o binômio defensismo revolucionário / revolução política em relação à URSS. Ou seja, a defesa incondicional da URSS contra ataques externos e internos que colocassem em risco as conquistas da revolução (entendendo que a mais importante delas o caráter de classe do Estado, e não meramente sua propriedade estatizada). A esta defesa estava sempre combinado a tarefa de derrubada da casta stalinista e o reestabelecimento da democracia de tipo soviética.
         Sobre esse ponto, recomendamos fortemente aos camaradas a atenta leitura do livreto O Defensismo Revolucionário e o Fim dos Estados do Leste. Estamos também dedicando um documento exclusivo para esse tema, em resposta às posições expressas pelo Paulo. Por isso, não iremos nos aprofundar nesse assunto no momento.

         Outra grande herança do trotskismo são sua acertadíssimas posições frente às diferentes reações da IC em relação à ascensão do nazismo. Foi a luta contra essas posições erradas, inclusive, que levou à transformação da Oposição Internacional de Esquerda (tendência externa da IC) em uma Internacional propriamente dita (através do reconhecimento que a IC havia atingido um ponto sem volta).
         Como os camaradas sabem, em um primeiro momento, a IC se recusou a convocar frentes únicas com a Socialdemocracia como forma de resistir aos ataques ideológicos do nazismo e à violência anti-operária de seu braço armado, as SA. Encarando que o nazismo era uma tendência pequeno burguesa e que nunca conseguiria penetração no proletariado alemão, a IC orientou o PC local a se limitar à política de “frente única pela base” (ou seja, sem nenhuma outra corrente). Mais do que isso, a análise da IC igualava programaticamente a Socialdemocracia (uma corrente reformista) com o contrarrevolucionário nazismo.        Tal política esquerdista acabou sendo repassada para todas as seções da IC.
         A resposta da OIE para o esquerdismo stalinista foi a política de Frente Única Antifascista. Ou seja, suas seções foram orientadas a buscar alianças táticas e pontuais com todas as correntes dispostas ao enfrentamento com as ascendentes tendências fascistas. Um uso exemplar da política de FUA foi aquele implementado pela seção brasileira da Oposição, a Liga Comunista. Através de uma aliança tática e não-programática com organizações anarquistas, a LC foi capaz de suprimir o avanço dos integralistas em São Paulo.
         Com a chegada ao poder do nazismo na Alemanha, entretanto, a IC stalinista teve que fazer um balanço da sua política e acabou por realizar seu famoso “giro de 180º”. De uma sectária política de não fazer nenhum tipo de aliança com outras organizações contra o nazismo alemão e o fascismo em geral, a IC passou para o resgate de um antigo tipo de bloco político e deu a ele novo nome, surgindo assim a Frente Popular.
         A política da Frente Popular tinha como objetivo impedir a chegada das tendências fascistas ao poder e seu método era a aliança programática, baseada no menor denominador comum, com as grandes correntes do movimento operário ou mesmo partidos “liberais” da burguesia e pequeno burguesia. Ou seja, a FP era (e ainda é) uma Frente Única Estratégica, um bloco de propaganda entre stalinistas, socialdemocratas e burgueses liberais que não tinham interesse econômico ou ideológico na ascensão ao poder do fascismo. Tal política degenerada mata na raiz a disputa pela consciência do proletariado, o único agente realmente capaz de impedir a ascensão fascista, através de seus métodos próprios de luta (greves, ocupações de fábrica, autodefesa operária, etc.).
         Tal política, entretanto, não era novidade para os revolucionários. Sua “antecessora”, o chamado Bloc des Gauches (Bloco das Esquerdas), havia sido duramente criticado no passado. Tanto por Lenin, na introdução de O Que Fazer (1903), polemizando com Bernstein e o dirigente francês Millerand, que buscava um uso reformista do Parlamento. Quanto por Trotsky, em A Questão da Frente Única (1922, intervenção em uma reunião da IC), polemizando com a ala direita da seção francesa, liderada L. Frossard e Victor Merric, e que defendia apoiar politicamente o Bloco nas eleições parlamentares.
         Frente à nova posição da IC, os trotskistas se mantiveram firmes na defesa da tática de Frente Única Antifascista. Eles compreenderam que integrar blocos programáticos com correntes traidoras não impediria o avanço do fascismo, ao menos não sem pagar um grande preço: disputar o proletariado para um nível rebaixado de consciência, que impediria que este tomasse o poder no futuro. E esse foi justamente o papel que as FPs cumpriram na Europa, antes e depois da Segunda Guerra Mundial: o nazismo e o fascismo foram derrotados, mas a ordem burguesa foi mantida, às custas da exploração e opressão de um proletariado que havia sido ganho pelos PCs para defenderem a política de “união nacional pela paz e prosperidade”. E pensar que o camarada Marcos defende a política de criação de Frentes Populares para combater o fascismo (ao menos no caso Alemão, conforme declarado na reunião sobre FPs)!
         Compreendendo o papel histórico desempenhado pelas FPs, o de impedir a revolução no Ocidente e garantir assim a “coexistência pacífica” da burocracia soviética com o imperialismo norte-americano, a SL realizou uma intransigente defesa das posições trotskistas de não dar nenhum apoio político a esse bloco podre. Seja ele nas ruas ou nas urnas.
         Para nós, mesmo após o fim da URSS, as FPs continuam desempenhando um importante papel histórico, e por isso é fundamental termos a posição acertado em relação a elas. Após a onda reacionária que abalou profundamente o movimento operário ao longo dos anos 1990, o movimento operário começou a dar lentos sinais de reorganização. Nesse momento, a burguesia ressuscitou velhas direções operárias e as colocou no poder sob sua tutela como forma de abortar tal processo de reorganização. Na América Latina vemos isso com clareza: o PT no Brasil, a FSLN na Nicarágua, a FMLN em El Salvador, Evo na Bolívia, Chávez e o PSUV na Venezuela e por aí vai. E tudo indica que essa política já bate às portas da Europa, onde os trabalhadores tem se levantado agressivamente contra seus patrões. Certamente o que veremos nas próximas eleições em Portugal, na Espanha, Grécia e França será a chegada ao poder de FPs, com o objetivo único e exclusivo de segurar o avanço do movimento operário e garantir estabilidade à burguesia.
         Assim, está claro como água que as Frentes Populares são hoje a política preferencial da burguesia para lidar com a radicalização do proletariado. Votar nesses blocos podres na atual conjuntura histórica significa nada menos do que auxiliar os patrões em seus planos de abortar a reorganização do movimento operário, desviando-o para a institucionalidade e amordaçando-o.
         Para um aprofundamento na questão das Frentes Populares recomendamos aos camaradas a leitura dos DDIs Teses Sobre Frentes Populares (19 de março de 2011) e Diferenças Sobre a Frente Popular (2 de março de 2011). Recomendamos também a leitura da primeira parte do artigo Estatismo, a doença reformista da esquerda brasileira (outubro de 2010), que faz uma análise histórica da questão.

         Por último, o terceiro pilar do trotskismo resgatado pela SL é o Programa de Transição. Conforme dissemos no ponto anterior (3.1), a concepção central por trás do conceito de “crise de direção” era de que as condições objetivas para uma revolução já estavam dadas, porém o proletariado mundial, liderado pelas mais diversas correntes traidoras e conciliadoras, não possuía uma consciência de classe. Ou seja, os trabalhadores ainda não possuíam um nível de consciência que os fizesse entender sua capacidade de tomada e controle do poder em seu próprio interesse.
         Aí entram as mais diversas táticas para ganhar a consciência do proletariado. No ponto anterior discutimos a principal, que é a utilização de um partido centralizado. Mas diversas outras complementam a existência do partido. Um bom exemplo é a tática de Frente Única, utilizada para se aproximar das bases das outras organizações e jogá-las contra suas direções, demonstrando na prática a limitação programática destas.
         Mas como podem os revolucionários mostrarem a limitação das outras correntes ou mesmo do capitalismo de modo geral? É aí que entra uso das palavras de ordem transitórias. Concebidas desde cedo, n’O Manifesto do Partido Comunista (1848), o objetivo por trás de utilizar essas palavras de ordem era justamente fazer avançar tal nível de consciência, demonstrando para os trabalhadores a incapacidade do capitalismo de resolver problemas essenciais como o desemprego em massa, a restrição da educação de qualidade, de um bom sistema de saúde, etc.
         Da forma como foi formulado pelos trotskistas, o Programa de Transição visava superar uma deficiência histórica da Socialdemocracia: a separação entre o programa de reivindicações mínimas e o programa de reinvindicações máximas. As palavras de ordem transitórias, portanto, tem por objetivo criar uma ligação entre as demandas imediatas dos trabalhadores e aquilo que é o central para o leninismo, a questão do poder político. Portanto, os trotskistas nunca utilizaram as palavras de ordem transitórias como algo separado das reivindicações democráticas. Se fosse assim, eles nada mais teriam sido do que uma corrente sectária, incapaz de dialogar com o baixo nível de consciência do proletariado e fazê-lo avançar.
         Porém não é isso que pensa Paulo:

Na tradição trotskista, as reivindicações transitórias servem como uma ponte entre a situação prerrevolucionária e a consciência reformista da classe.
Obviamente, esse programa deve mudar quando nem um dos dois elementos está presente.” (A Teoria da Decadência…, p. 32 – DDI, ênfase nossa).

         Paulo primeiro nega esse papel do Programa de Transição, dando a entender que ele é algo separado das reivindicações democráticas, para depois dizer que é necessário um novo tipo de método:

Com esses exemplos, vemos que, em situações não-revolucionárias, os marxistas devem combinar as reivindicações transitórias com a luta por reivindicações imediatas e políticas.
Dentro do movimento trotskista, a corrente de direita do SWP americano, conhecida como Tendência Morrow-Goldmann, defendeu justamente esse tipo de programa democrático e transitório (e o entrismo nos partidos socialdemocratas), entre 1943 e 1946, quando viram que, na Europa, a derrota do fascismo ia levar a um longo período de estabilização do capitalismo.(A Teoria da Decadência…, p. 33 – DDI, ênfase do original).

         Primeiro, nos parece muito estranho que Paulo “reafirme” a necessidade da combinação de palavras democráticas com palavras transitórias através da negação de uma suposta tradição trotskista que só existe na cabeça dele. Segundo, ao apontar como referência a Tendência Morrow-Goldmann do SWP, que secundarizava as palavras transitórias, colocando as democráticas em primeiro plano, acreditamos ter uma ideia melhor do que pretende Paulo. Essa possibilidade fica mais clara quando retomamos a concepção de “crise de perspectiva” por ele defendida e a suposta necessidade de fazer o movimento “novamente ter uma estratégia”, pois hoje nem mais reformista ele seria. Fora que, assim como tal Tendência, Paulo acredita que passamos por um período (de fim indefinido) de estabilidade do capitalismo. O foco nas questões democráticas seria derivado dessa conjuntura, visando “dialogar” com a baixa consciência do proletariado objetivamente imposta pela estabilidade do sistema.
         Resumindo: há fortes indícios que R pretende abandonar o Programa de Transição e focar a atuação em palavras democráticas, como forma de superar esse suposto nível ultra-rebaixado de consciência (que vai contra os ascensos que temos visto desde o início do ano na Europa e no mundo árabe). Citando Trotsky:

Isto não significa, evidentemente, que a IV Internacional rejeite as palavras de ordem democráticas. Ao contrário, elas podem em certos momentos ter um enorme papel. Mas as fórmulas da democracia (liberdade de reunião, de associação, de imprensa etc.) são, para nós, palavras-de-ordem passageiras ou episódicas no movimento independente do proletariado (…). A partir do momento em que o movimento tomar qualquer caráter de massas, as palavras-de-ordem transitórias misturar-se-ão às palavras-de-ordem democráticas (…). (O Programa de Transição, p. 29 – Leon Trotsky, 1938)

Os três princípios aqui discutidos, o defensismo revolucionário, a negação em dar qualquer tipo de apoio político a Frentes Populares e a utilização das palavras de ordem transitórias como instrumento de disputa da consciência são pilares do trotskismo que a Liga Espartaquista resgatou, nadando contra a maré de degeneração centrista que tomou a QI. Tais princípios também sempre guiaram e orientaram a prática do CCI e do CL desde suas fundações. Podemos adicionar ainda, o programa da Revolução Permanente, também forjado pelo trotskismo através da luta contra o stalinismo e sua política traidora de “socialismo em um só país”. Acreditamos que todos os camaradas tenham acordo com o mesmo e por isso não vemos necessidade de discuti-lo aqui.

3.3 Os avanços do espartaquismo

Como dissemos anteriormente, a questão da continuidade revolucionária não se resume a um resgate de posições corretas que em determinado momento foram abandonadas por um setor da vanguarda proletária. Ela também inclui algo tão importante quanto: avanços programáticos e teóricos, resultantes da aplicação da teoria marxista a novos problemas da luta de classes, ou mesmo a reavaliação de posições passadas à luz de novas informações e acontecimentos.
Portanto, se dissemos que a Liga Espartaquista, até o momento da sua degeneração total, representou a continuidade do programa revolucionário e que sua tradição representa um ponto de partida para a reorganização de forças revolucionárias nos dias de hoje, é porque ela também foi capaz de realizar avanços significativos. Ao realizar tais avanços, dos quais falaremos a seguir, a SL demonstrou na prática não ser uma seita, baseada na repetição dogmática dos princípios leninistas e trotskistas. Ao realizá-los, ela demonstrou ser capaz de compreender a teoria marxista e adaptá-la a novas circunstâncias, algo essencial para uma organização revolucionária. Conforme o CCI afirmou em um artigo de 2007:

Apesar de alguns erros episódicos, consideramos que a SL foi a continuidade política do trotskismo até o fim dos anos 1970. Esta herança se manifestou (…) na sua avaliação do programa de transição, separando o seu núcleo (as reivindicações transitórias) dos erros em sua análise da etapa (a questão das forças produtivas, principalmente); na sua sistematização de um programa transitório para a luta das mulheres, negros e homossexuais, a partir da experiência dos movimentos pelos direitos civis nos EUA; e, principalmente, na sua política defensista em relação aos Estados Operários.(Pelo Renascimento da Quarta Internacional, p. 5 – CCI, 2007, ênfase nossa).

           Muitas das correntes que ainda reivindicam o trotskismo caem no erro de reafirmar a análise do Programa de Transição de que as forças produtivas pararam de se desenvolver. Para muitas delas, a defesa dessa análise acaba não tendo consequências práticas (fica como algo meramente formal), porém essa afirmação pode ser usada como uma forma de argumentar que é possível liderar a classe operária para acabar com o capitalismo apenas com demandas imediatas, sem um programa transitório. É o caso do lambertismo, que afirma que atualmente nenhuma reforma é possível de ser atendida pelo capitalismo e que, portanto, algo como uma campanha salarial ou uma reivindicação democrática acabaria assumindo caráter anticapitalista e, portanto, transitório (já que não pode ser atendida pelo sistema). Isso faz com que as correntes lambertistas defendam um programa extremamente rebaixado. Para uma análise mais completa dessa questão recomendamos aos camaradas a leitura do artigo A Tragédia do Lambertismo, de novembro de 2010.
         O Programa de Transição também faz a previsão incorreta sobre a iminente perda de influência do stalinismo após a Segunda Guerra. Trotsky partia da previsão de que o período do pós-guerra seria marcado por fortes levantes do movimento operário (o que se mostrou verdadeiro) e o comprometimento do stalinismo com a manutenção da ordem capitalista (para preservar a burocracia soviética) colocaria tal corrente à direita do movimento de massas, levando-a a trair todas as lutas por vir. Isso abriria a possibilidade de a Quarta crescesse de influência com esse movimento e, progressivamente, faria com que o stalinismo se tornasse uma corrente marginal dentro do movimento de massas. Obviamente não foi isso que ocorreu. Não só a IV foi destruída organizativamente ao longo da guerra e nos anos seguintes, como o stalinismo foi levado a dirigir alguns processos importantes devido a circunstâncias excepcionais, reforçando seu prestígio frente às massas europeias e abrindo caminho para a traidora política das Frentes Populares em uma nova fase.
         De certa forma, o pablismo representou uma resposta (equivocada até a medula) a essa avaliação errada e à necessidade dos trotskistas se rearmarem para a nova conjuntura do pós-guerra. A SL foi capaz de preparar tal rearmamento mantendo um programa transitório e a perspectiva de criar partidos bolcheviques que não se sujeitassem a tentar “empurrar” o stalinismo, o nacionalismo ou a socialdemocracia para a esquerda. Abrindo mão de tal avaliação errada, mas sem cair no impressionismo pablista para o qual o stalinismo tomaria o poder em todo o globo, a SL foi capaz de manter a prática revolucionária de utilizar palavras de ordem transitórias para dialogar com o baixo nível de consciência do proletariado, buscando elevá-lo a um patamar revolucionário. Mais do que isso, deu a resposta correta aos ascensos vistos na Europa e Ásia e que então (década de 1960) se expandia para a África e para as Américas. Não capitulou ao stalinismo e o combateu no movimento operário através da construção de colaterais programáticas.
        Diferente da SL, que foi capaz de separar as avaliações conjunturais erradas de Trotsky de seu método transitório, Paulo utiliza uma crítica às análises econômicas da III e IV Internacionais (críticas essas que de novas nada têm) para atacar o núcleo programático de tais organizações, afastando-se delas por completo. Para uma análise mais profunda da crítica espartaquista à avaliação da estagnação das forças produtivas, recomendamos aos camaradas a leitura da Introdução feita pela TBI à sua edição de 1998 do Programa de Transição.
         Outro avanço importantíssimo da SL foi a formulação de uma política revolucionária para a condição de casta oprimida e sobre-explorada das mulheres e negros. Nos anos 1960, sob a onda da chamada “Nova Esquerda”, ganhou um importante destaque a questão dessas castas. Enquanto a maior parte da esquerda se dedicou à construção de movimentos policlassistas, paralelos ao movimento sindical, como forma de responder às demandas desses setores, a SL formulou a política de integrar estas questões políticas à luta cotidiana dos trabalhadores, oposto à prática setorialista de lutar por estas questões separadas do movimento operário. A política da SL, como os camaradas bem sabem, consiste em levantar as demandas desses setores oprimidos dentro do próprio movimento sindical, integrando-as a partir de um corte de classe. Mas além de integrar as lutas setoriais com as lutas operárias, a SL deu a elas um conteúdo revolucionário, formulando palavras de ordem transitórias para responder às demandas desses setores de forma a fazê-los avançar em sua consciência. Talvez o maior exemplo que tenhamos até hoje da aplicação de tal política seja a atuação da SL no movimento pelos “Direitos Civis” dos negros nos EUA, na década de ’60.
Porém, mais do que responder de forma revolucionária às novas demandas surgidas com a mobilização dos setores oprimidos, a SL foi capaz de formular uma estratégia revolucionária para tal setor. Enxergando a necessidade do sistema capitalista de criar castas super-exploradas no seio da classe trabalhadora como uma das várias medidas para diminuir a queda da taxa de lucros, a SL compreendeu que tais castas cumprem papel central em qualquer luta anticapitalista, pois sua exploração diferenciada é um dos pilares de sustentação do sistema, além de estarem muitas vezes presentes em setores chaves da economia.
Em grande parte a estratégia da SL foi derivada dos estudos realizados por Richard “Dick” Fraser, membro do SWP na época de formação da RT. Fraser estudou a situação dos negros na história dos EUA e concluiu que estes não eram uma “nação oprimida”, e que os trotskistas não deveriam defender a formação de um “Estado negro”, como formulava o SWP. Fraser defendia sua plena integração à sociedade norte-americana, o que por motivos estruturais só seria possível com a superação do capitalismo. A RT não só herdou essa posição de Fraser para a questão negra nos EUA, como concluiu que seria necessário mobilizar esse setor da classe trabalhadora através de métodos diferenciados, já que a opressão ideológica que sofrem os torna menos dispostos à mobilização. Tais métodos e estratégia são o que conhecemos por “integracionismo revolucionário”. Assim, a priorização da mobilização desses setores, combinado com a estratégia do integracionismo revolucionário é sem dúvida alguma um poderoso instrumento nas mãos dos comunistas de hoje em dia, sem o qual uma revolução dificilmente será vitoriosa.
Desde que teve início sua onda de documentos e declarações revisionistas, Paulo tentou minimizar a ligação do integracionismo revolucionário com a herança espartaquista como maneira de “provar” que a SL nunca produziu “nenhuma análise séria da sociedade americana” (como ele mesmo diz). Porém, é impossível separar a reivindicação dos estudos de Fraser das políticas da SL para as opressões específicas. A SL, desde os seus primeiros anos, produziu inúmeras análises da questão negra na formação da sociedade capitalista norte-americana, como o texto Vermelho e Negro – Estrada de Luta de Classes para a Liberdade dos Negros (escrito em 1965).

Outro avanço central mencionado no artigo do CCI citado acima diz respeito à resposta que a SL deu aos novos Estados surgidos no pós-guerra, através de revoluções encabeçadas por correntes stalinistas e pequeno-burguesas. Se considerarmos como critério essencial para se definir uma organização revolucionária ela tomar as posições acertadas frente aos grandes eventos de seu tempo, então sem dúvida alguma a análise que a SL fez desses Estados é sua maior herança. Herança essa que foi carregada adiante pela TBI quando do processo de degeneração burocrática da SL.
Para nós, tanto as análises da SL sobre os Estados, quanto o posicionamento da TBI frente às contrarrevoluções ocorridas no Leste Europeu são pontos essenciais para a construção de um embrião revolucionário nos dias de hoje. Já para o Paulo, tais análises são fruto de mero “politicismo” (conforme ele afirma nas suas 9 Teses, alegando que a SL não dá importância à teoria) e tais posições, simples “questões táticas”, sem importância histórica ou programática (conforme ele afirma na sua recente Proposta de Programa, de maio de 2011). Essas posições sozinhas já seriam mais do que suficientes para que ele fosse afastado de qualquer organização revolucionária, imaginem então se combinadas com todas as outras!
Diferente das acusações do Paulo sobre a SL ter sido em sua época saudável uma corrente “politicista”, a sua pioneira análise dos Estados operários surgidos no pós-guerra permanece ainda hoje enquanto um importante referencial teórico, não tendo sido equiparado pelas análises de outras correntes. Conforme o próprio Paulo reconheceu na época do CCI:

(…) Diante disso [o surgimento do Secretariado Unificado, baseado na caraterização de Cuba como um Estado operário pleno], e da posição sectária de Healy e Lambert, em não considerá-la um Estado Operário, a TR foi a primeira corrente do mundo a dizer que Cuba era um Estado Operário deformado, uma posição que rompia ao mesmo tempo com a capitulação à burocracia e com a stalinofobia. (…)”. (Pelo Renascimento da Quarta Internacional, p. 5 – CCI, 2007, ênfase nossa).

Assim como estamos nos dedicando a preparar um documento sobre a questão do defensismo revolucionário, também estamos preparando um sobre a teoria da SL sobre os Estados operários surgidos no pós-guerra. Por isso, não iremos adentrar nesse tópico no momento. Basta dizermos que tal teoria é um dos pilares fundacionais do CCI e do CL, e que Paulo tem feito o máximo possível para esconder suas novas e degeneradas posições à cerca da mesma, como o camarada Leandro demonstrou em seus comentário sobre a Proposta de Programa.

4. Conclusão

            Como afirmamos ao longo de todo o documento, acreditamos que as posições aqui apresentadas enquanto base programática e teórica da Liga Espartaquista, do Coletivo Comunista Internacionalista e do Coletivo Lenin são a base necessária para guiar a tarefa central de reagrupamento de forças revolucionárias.
Um partido centralizado; uma prática sindical baseada em colaterais programáticas e na defesa intransigente da independência política e organizativa; a diferenciação entre frentes únicas e frentes únicas estratégicas; a negação de qualquer tipo de apoio a frentes populares; o reconhecimento da situação de crise de direção da classe trabalhadora e o uso de palavras transitórias como forma principal de superá-la; o defensismo revolucionário dos Estados operários; a teoria da SL sobre os Estados operários deformados; e a política do integracionismo revolucionários para as opressões específicas; e o reconhecimento do programa da SL enquanto a continuidade do trotskismo. Abrir mão de qualquer uma dessas posições significa nada menos do que tentar conciliar o programa revolucionário com forças alheias aos interesses históricos do proletariado. É nessa posição que nos mantemos firmes e que defendemos intransigentemente contra toda e qualquer tentativa liquidacionista ou revisionista, como é dever de qualquer bolchevique.

Programa Político do Coletivo Lenin 2009-2011

Este documento foi baseado no texto “Pelo Trotskismo!” da Tendência Bolchevique, e foi adotado originalmente como a base para a fusão, em 1987, entre ela e a Tendência Trotskista de Esquerda na América do Norte. O texto sofreu modificações pelo Coletivo Lenin ao longo dos seus primeiros meses de existência, sendo primeiramente adotado em fevereiro de 2009 como programa político da organização. Posteriormente, o documento foi ligeiramente editado até chegar a esta versão, que vinha sendo utilizada pelo grupo (em seu site) até o momento de nossa ruptura em junho de 2011. Ele permanece como uma importante codificação das diferenças essenciais entre o centrismo e a política revolucionária.

PROGRAMA POLÍTICO

“Encarar a realidade de frente; não buscar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelos seus nomes; falar a verdade às massas, não importa o quão amarga ela seja; não temer os obstáculos; ser verdadeiro nas pequenas coisas como nas grandes; basear seu programa na lógica da luta de classes; ser ousado quando a hora da ação chegar – essas são as regras da Quarta Internacional”

Partido e programa
            A classe operária é a única classe completamente revolucionária na sociedade moderna, a única classe com a capacidade de terminar com a demência do regime capitalista internacional. A tarefa fundamental da vanguarda comunista é cristalizar na classe (sobretudo em seu componente mais importante, o proletariado industrial) a consciência de seu papel histórico. Nós rechaçamos explicitamente todo estratagema que seja apresentado por centristas, reformistas e setorialistas, que vêem, em uma ou outra seção da população não proletária, um veículo mais viável para o progresso social.
            A libertação do proletariado e, com isso, a eliminação da base material de todas as formas de opressão social, depende da sua direção. O inventário das direções “socialistas” em potencial pode se reduzir, em última análise, a dois programas: reforma ou revolução. Pretendendo oferecer uma estratégia “prática” para a melhora gradual das injustiças das classes sociais, o reformismo trata de conciliar a classe operária com os requisitos do capital. Em contraste, o marxismo revolucionário está baseado no antagonismo entre capital e trabalho, e na conseqüente necessidade da expropriação da burguesia, por parte do proletariado, como pré-condição de qualquer progresso social importante.
            A hegemonia da ideologia burguesa, em suas várias formas, no proletariado, representa o baluarte mais poderoso do regime capitalista. A distinção chave entre uma organização revolucionária e uma centrista ou reformista não está tanto em declarações abstratas sobre metas finais e objetivos, mas sim nas posições que cada uma avança nas situações concretas postas pela luta de classes. Os reformistas e centristas costuram a sua resposta programática a cada novo acontecimento de acordo com as ilusões e preconceitos da sua audiência. Mas o papel de um revolucionário é dizer aos trabalhadores e oprimidos o que eles ainda não sabem.
            Procuramos enraizar o programa comunista na classe trabalhadora através da construção de colaterais programáticas nos sindicatos. Tais formações devem participar ativamente de todas as lutas por reformas parciais e melhoras na situação dos trabalhadores. Elas também devem ser os melhores defensores das tradições militantes de solidariedade de classes, por exemplo, dizendo que “Os Piquetes Querem dizer Não Cruze!”. Ao mesmo tempo, elas devem procurar recrutar os trabalhadores politicamente mais conscientes para uma perspectiva universal, que transcenda a militância local na base, e ponha as questões políticas mais urgentes, de forma a apontar para a necessidade de eliminar a anarquia da produção voltada para o lucro, substituindo-a pela produção planificada racionalmente e controlada pelos próprios trabalhadores, para atender às necessidades humanas.
            Nossa intervenção nas organizações de massa do proletariado é baseada no Programa de Transição, adotado pela Conferência de Fundação da Quarta Internacional, em 1938. Num certo sentido, não pode haver, para um marxista, algo como um “programa acabado”. É necessário levar em conta os desenvolvimentos históricos nas cinco décadas passadas, e a necessidade de dar resposta a problemas postos por lutas específicas de setores oprimidos e/ou da classe, com que o esboço de 1938 não lida. Não obstante, em seu essencial, o programa sobre o qual a Quarta Internacional foi fundada mantém toda a sua relevância, porque propõe soluções socialistas aos problemas objetivos enfrentados pela classe trabalhadora hoje, no contexto da necessidade imutável do poder proletário. Assim, entendemos o dito “trotskismo” (ou “bolchevismo-leninismo”, como o próprio Trotsky descrevia) como a continuidade do programa revolucionário nos dias atuais.

A Revolução permanente
            Nos últimos quinhentos anos, o capitalismo atingiu a hegemonia da ordem econômica mundial, com uma divisão internacional do trabalho. Vivemos na época do imperialismo – época do declínio capitalista. A experiência deste século demonstrou que as burguesias nacionais do mundo neocolonial são incapazes de completar as tarefas históricas da revolução democrático-burguesa, como reforma agrária. Não há, em geral, nenhum caminho aberto para o desenvolvimento capitalista independente nestes países.
            Nos países neocoloniais, as realizações das revoluções burguesas clássicas só podem ser conquistadas através do esmagamento das relações capitalistas de propriedade, separando-os dos tentáculos do mercado mundial imperialista, e estabelecendo a propriedade da classe trabalhadora (ou seja, coletivizada). Só uma revolução socialista – uma revolução realizada contra a burguesia nacional e os latifundiários – pode levar a uma expansão qualitativa das forças produtivas, como ocorreu na União Soviética.
            Uma das características mais importantes de quase todos os países dependentes é a existência de um campesinato dependente, preso a formas de exploração pré-capitalistas ou semi-capitalistas. No Brasil, a revolução não é possível sem a aliança operária e camponesa, e a solução da questão da terra através da revolução agrária – a tomada de terras pelos que nela trabalham – combinada com o controle operário no latifúndio de exportação. Rejeitamos a estratégia de “reforma agrária”, do MST e outras correntes, que significa uma luta pela terra por dentro da legalidade, apostando no apoio de um Governo de frente popular. Na luta pela terra, defendemos a imediata organização de autodefesas pelo movimento camponês. Nas comunidades indígenas e quilombolas, defendemos a autonomia regional, e que os sistemas de saúde e educação respeitem a sua identidade cultural e linguística.
            Rejeitamos a estratégia etapista menchevique-stalinista, de subordinação do proletariado aos supostos “setores progressistas” da burguesia, e a “frente única antiimperialista”, que é uma versão ligeiramente diferente, defendida pelos loristas e altamiristas. Defendemos a independência política completa e incondicional do proletariado em cada país. Sem exceção, as burguesias nacionais do ”Terceiro Mundo” são agentes da dominação imperialista, e seus interesses são, num sentido histórico, muito mais próximos daqueles dos banqueiros e industriais da metrópole do que dos seus povos explorados.
            Os comunistas oferecem apoio militar, mas não político, a movimentos nacionalistas pequeno-burgueses (e inclusive a regimes burgueses) que entrem em conflito com o imperialismo, em defesa da soberania nacional. Em 1935, por exemplo, os trotskistas defenderam a vitória militar dos etíopes sobre os invasores italianos. No entanto, os leninistas não podem determinar automaticamente a sua posição numa guerra entre dois regimes burgueses a partir de seu nível relativo de desenvolvimento (ou subdesenvolvimento). Na sórdida guerra das Malvinas, de 1982, em que a defesa da soberania da Argentina nunca esteve em jogo, os trotskistas defenderam que tanto os trabalhadores argentinos como os ingleses “apontassem as suas armas para seus próprios governos”, ou seja, o derrotismo revolucionário de ambos os lados.
            Países como o Brasil, a Índia, a Rússia e a África do Sul são dependentes do imperialismo, mas têm uma autonomia relativa. O nível da sua acumulação interna de capital, e a fusão deste capital nacional com o capital imperialista define o seu caráter como subimperialista. Geralmente, eles estão envolvidos, de forma dependente e associada, com o imperialismo, na exportação de capital em suas regiões (no caso do Brasil, a América do Sul e a África lusófona). Nestes casos de opressão subimperialista, defendemos a derrota militar do Brasil, como no Haiti, e a expropriação de seus investimentos, como no setor petroleiro boliviano. Nos casos de conflito com o imperialismo (muito improváveis, devido à cooperação antagônica com as metrópoles), defendemos os países subimperialistas, porque são nações dependentes.

Luta Armada
            A nossa tática para a revolução é a insurreição proletária urbana, apoiada numa greve geral. Para isso, é necessária a criação de um partido revolucionário e a formação, pelo partido, de um aparato militar clandestino nas periferias. Ao mesmo tempo, defendemos no movimento camponês e popular a formação de autodefesas armadas, assim como no movimento sindical, sempre que se derem as condições políticas. Rejeitamos o social-pacifismo dos morenistas, que ignoram a necessidade de preparar a classe para os confrontos armados da luta pelo poder com ações defensivas.
            Rejeitamos o foquismo ou guevarismo como orientação estratégica (embora reconhecendo que, às vezes, as guerrilhas podem ter valor tático suplementar), porque relega politicamente a classe operária organizada e consciente ao papel de espectadora passiva perante um “exército popular”. Um movimento guerrilheiro baseado no campesinato e dirigido por intelectuais de esquerda pequeno-burgueses não pode estabelecer o poder político da classe trabalhadora, independente da intenção subjetiva de sua direção.
            Em várias ocasiões, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foi demonstrado que, em determinadas circunstâncias objetivas favoráveis, tais movimentos podem ter êxito em expropriar a propriedade capitalista. Mas, como eles não são baseados na mobilização da classe trabalhadora organizada, estas lutas, no máximo conseguem estabelecer regimes burocráticos nacionalistas qualitativamente idênticos ao produto da degeneração stalinista da Revolução Russa (como a Iugoslávia, a Albânia, a China, o Vietnã e Cuba).

Opressões específicas: A Questão Negra, a Questão da Mulher
            A classe trabalhadora hoje é profundamente dividida em torno de linhas raciais, sexuais, nacionais etc. Mas o racismo, o chauvinismo e o machismo são comportamentos programados social, e não geneticamente. Não importa qual seja o seu nível de consciência atual, os trabalhadores do mundo têm uma algo crucial em comum: eles não podem melhorar, fundamentalmente, a sua situação como classe sem destruírem a base social de toda a opressão e exploração de uma vez por todas. Esta é a base material para a afirmação marxista de que o proletariado tem como sua missão histórica a eliminação da sociedade de classes e a erradicação de todas as formas de opressões “específicas”.
            No Brasil, a luta pelo poder dos trabalhadores está inextricavelmente ligada à luta pela libertação negra. Os negros brasileiros são uma casta de cor, segregada nos setores mais inferiores da sociedade e se concentram, sobretudo, na classe operária, particularmente nos setores estratégicos do proletariado industrial e no exército industrial de reserva (a massa de desempregados). O racismo, historicamente, foi o maior obstáculo para a ação política dos setores mais oprimidos da classe, em todos os movimentos. Considerados responsáveis pelo atraso do país, pela ideologia do branqueamento, as lutas do proletariado negro têm um potencial revolucionário decisivo. A luta pela libertação negra – contra a brutalidade racista da vida cotidiana na América capitalista – é central para a construção de uma vanguarda revolucionária no Brasil.
            Um aspecto da questão negra muito em evidência recentemente é a opressão religiosa sofrida pelos seguidores de cultos africanos e afro-brasileiros. Como marxistas, defendemos a completa separação entre Estado e religião e mantemos a posição comunista de defesa do materialismo e da ciência, assim como do combate ao uso da religião para aumentar o conformismo entre os oprimidos. Porém, defendemos, inclusive militarmente, os locais de culto e os seguidores das religiões oprimidas.
            A opressão das mulheres é enraizada materialmente na existência da família nuclear, a unidade básica e indispensável da organização social burguesa. A luta pela igualdade social completa para as mulheres é de importância estratégica em todos os países do globo. Ela inclui a luta pela socialização do trabalho doméstico, que só pode ser realizada numa economia planificada, pelos direitos democráticos da mulher, incluindo a legalização do aborto, e pela integração das mulheres no movimento operário.
            Uma forma de opressão especial relacionada ao machismo é a que é experimentada pelos homossexuais, que são perseguidos por não conseguirem se adaptar aos papéis sexuais ditados pelo ”estado normal” da família nuclear. A questão homossexual não é estratégica como a da mulher, mas a vanguarda comunista deve defender os direitos democráticos dos(as) homossexuais e opor-se a todas e quaisquer medidas discriminatórias contra eles(as).
            Nos sindicatos, os comunistas devem defender o acesso igual a todos os empregos; programas, organizados pelos sindicatos, para recrutar e melhorar a situação das mulheres e minorias em campos “não-tradicionais”, salário igual para trabalho igual e trabalho para todos. É responsabilidade histórica da vanguarda comunista lutar para unir a classe trabalhadora pelos seus interesses comuns de classe, superando as divisões artificiais promovidas pela sociedade capitalista.
Os setores oprimidos da população não podem se libertar sem a revolução proletária, numa estrutura social que originou e perpetua a sua opressão. Como Lênin apontou em O Estado e a Revolução:
            “Só o proletariado em virtude do papel econômico que joga na produção em larga escala é capaz de ser o líder de todas as massas trabalhadoras que a burguesia explora, oprime e esmaga, frequentemente não menos que ele, mas que são incapazes de empreender uma luta independente pela sua emancipação”.
            Vivemos numa sociedade de classes, e o programa de cada movimento social deve, em última análise, representar os interesses de uma das duas classes com o potencial governar a sociedade: o proletariado ou a burguesia. Nos sindicatos, a ideologia burguesa toma a forma do economicismo estreito; nos movimentos dos oprimidos, manifesta-se como setorialismo. O que o nacionalismo negro, o feminismo e outras formas de ideologia setorialista têm em comum é que localizam a raiz da opressão em algo que não é o sistema capitalista e a propriedade privada. Já problema do economicismo, é que encara as reformas como um fim em si mesmo e não vão além de reivindicações que visam construir um “capitalismo mais humano”.
            A orientação estratégica da vanguarda marxista em relação às organizações setorialistas ”independentes” (ou seja, policlassistas) dos oprimidos deve ser a de ajudar na sua diferenciação interna em torno de seus componentes de classe. Isto implica uma luta para ganhar tantos indivíduos quanto for possível para a perspectiva da revolução proletária e a consequente necessidade de um partido de vanguarda integrado.

A Questão Nacional e os “Povos Interpenetrados”
            “O marxismo não pode ser reconciliado com o nacionalismo, nem mesmo na sua forma ‘mais pura’, ‘mais justa’ e ‘mais refinada’ e ‘civilizada’. Em lugar de todas as formas de nacionalismo, o marxismo avança o internacionalismo.” – V. I. Lênin, “Comentários Críticos sobre a Questão Nacional.”
            O marxismo e o nacionalismo são duas visões de mundo fundamentalmente contrapostas. Sustentamos o princípio da igualdade entre as nações, e nos opomos a quaisquer privilégios para qualquer nação. Ao mesmo tempo, os marxistas rejeitam todas as formas de ideologia nacionalista e, nas palavras de Lênin, aceitam “todo o tipo de assimilação entre as nações, exceto os fundados na força e no privilégio”. O programa leninista sobre a questão nacional é principalmente negativo, feito para tirar a questão nacional da agenda, cortando o apelo dos nacionalistas pequeno-burgueses, para poder colocar melhor a questão de classe.
            Em casos “clássicos” de opressão nacional (por exemplo, o Québec), nós defendemos o direito à autodeterminação, sem necessariamente advogar o seu exercício. Nos casos mais complexos, de povos interpenetrados num mesmo território geográfico (Chipre, Irlanda do Norte, Palestina/Israel) o direito abstrato de cada um à autodeterminação não pode ser exercido eqüitativamente dentro da estrutura de relações de propriedade capitalistas. Ainda assim, em nenhum destes casos, os povos opressores podem ser comparados com os brancos na África do Sul ou os colonos franceses na Argélia; ou seja, uma casta colonizadora privilegiada/aristocracia operária, baseada na super-exploração do trabalho nativo para manter um padrão de vida qualitativamente mais alto do que o da população oprimida.
            Tanto a população protestante irlandesa como os israelenses de fala hebraica são povos com diferenciações de classe. Cada um tem uma burguesia, uma pequena burguesia e uma classe trabalhadora. Diferente dos moralistas burgueses com sentimento de culpa, os leninistas não apóiam simplesmente o nacionalismo dos oprimidos (nem as formações políticas pequeno-burguesas que o apóiam). Fazer isso, ao mesmo tempo, impede as possibilidades de explorar as contradições de classe reais nas fileiras dos povos opressores, e assegura a hegemonia do nacionalismo sobre os oprimidos. Os proletários dos povos ascendentes não podem ser ganhos por uma perspectiva nacionalista de simplesmente inverter a atual relação desigual. Uma seção significativa deles pode ser ganha para uma perspectiva de classe contra classe, não sectária, porque ela está de acordo com os seus interesses objetivos.
            A lógica de capitulação ao nacionalismo pequeno-burguês levou grande parte da esquerda a apoiar os governantes árabes (a encarnação da assim chamada “Revolução Árabe”) contra os israelenses nas guerras do Oriente Médio em 1948, 1967 e 1973. Em essência, estas foram guerras inter-capitalistas, em que os trabalhadores e oprimidos da região não tinham nada a ganhar com a vitória de qualquer um dos lados. A posição leninista era, portanto, o derrotismo de ambos os lados. Tanto para os trabalhadores árabes como para os hebreus, o inimigo principal estava em casa. A guerra de 1956 foi uma questão diferente, naquele conflito, a classe trabalhadora tinha um lado: com Nasser, contra as tentativas dos imperialismos francês e britânico (ajudado pelos israelenses) de se reapropriarem do Canal de Suez, recentemente nacionalizado.
Embora se oponham ao nacionalismo por uma questão de princípio, os leninistas não são neutros nos conflitos entre os povos oprimidos e o aparato estatal opressor. Na Irlanda do Norte, nós exigimos a retirada imediata e incondicional das tropas britânicas, e defendemos os ataques que o Exército Republicano Irlandês (IRA – hoje dissolvido) realizou contra tais alvos imperialistas, como a Força Policial Real de Ulster ou Exército Britânico. Do mesmo modo, nós apoiamos militarmente a Organização pela Libertação da Palestina contra as forças do Estado de Israel. Em nenhum caso defendemos atos terroristas dirigidos contra as populações civis, mesmo sendo claro que o terrorismo criminoso do Estado Sionista contra os palestinos, assim como o do exército britânico e seus aliados protestantes contra os católicos da Irlanda do Norte, é muitas vezes maior que os atos de terror dos oprimidos.

Imigração/emigração
            Os leninistas apóiam o direito democrático básico de qualquer indivíduo emigrar para qualquer país no mundo. Como no caso de outros direitos democráticos, isto não é nenhum tipo de imperativo categórico. Nós não defenderíamos, por exemplo, a emigração de qualquer indivíduo que significasse uma ameaça à segurança militar dos Estados Operários degenerados ou deformados. O direito de imigração individual, se exercido numa escala suficientemente larga, pode entrar em conflito com o direito à autodeterminação de uma nação pequena. Portanto, os comunistas não levantam a bandeira de “Abrir as Fronteiras” como uma exigência programática geral. Na Palestina, por exemplo, durante as décadas de 1930 e 1940, o imenso influxo de imigração sionista criou a base para a expulsão forçada do povo palestino de sua própria terra. Nós não reconhecemos o “direito” de migração ilimitada dos Han ao Tibete, nem de cidadãos franceses à Nova Caledônia.
            Opomos-nos a todas as cotas de imigração, todas as prisões e todas as deportações de trabalhadores imigrantes. Nos sindicatos, nós devemos lutar pela concessão imediata e incondicional de plenos direitos de cidadania a todos trabalhadores nascidos no estrangeiro.

Frentes populares
            O frente-populismo (ou seja, um bloco programático entre organizações de trabalhadores e representantes da burguesia, formado normalmente para disputar o poder governamental) é traição de classe. Os revolucionários não podem dar nenhum apoio, nem mesmo “crítico”, a participantes de frentes populares, como as formadas pelo PT desde 1989.
            Já a tática de apoio eleitoral crítico a partidos operários reformistas é baseada na contradição, inerente em tais partidos, entre seu programa burguês (reformista) e sua base operária. Tal contradição permite a um partido revolucionário disputar as bases de organizações como essa, como ficou claro nas experiências de entrismo nos Partidos Socialistas levada a cabo pelos trotskistas. Porém, quando um partido social-democrata ou stalinista entra numa coalizão ou bloco eleitoral com formações burguesas ou pequeno-burguesas, esta contradição é efetivamente suprimida durante a duração da coalizão. Um membro de um partido operário reformista que concorre às eleições na chapa de uma coalizão de colaboração de classes (ou frente popular) é, de fato, o representante de uma formação política burguesa. Assim, a possibilidade de aplicação da tática de apoio crítico é excluída, porque a contradição que se procura explorar é suspensa. Em vez disso, os revolucionários devem ter como condição para o apoio eleitoral a ruptura da coalizão: “Abaixo os Ministros Capitalistas!”.

Frentes Únicas e “Frentes Únicas Estratégicas”
            A frente única é uma tática com que revolucionários procuram se aproximar de formações reformistas ou centristas para “jogar a base contra a direção”, quando há uma necessidade sentida e urgente de ação unida por parte das bases. É possível entrar em acordos de frente única com formações pequeno-burguesas ou burguesas, onde há um acordo episódico sobre um assunto particular, e onde é do interesse da classe trabalhadora (por exemplo, os bolcheviques fizeram frente única com Kerensky contra Kornilov). A frente única é uma tática que não só é projetada para realizar o objetivo comum, mas também demonstrar, na prática, a superioridade do programa revolucionário, e assim ganhar mais influência e aderentes para a organização de vanguarda. Para tal, deve ser mantida como forma de princípio a independência política e financeira da organização revolucionária dentro da frente, seguindo a máxima “bater juntos, caminhar separados”. Em um ato, por exemplo, é imprescindível que os revolucionários possuam material próprio e que denunciem o programa das demais organizações que compõem a frente.
            Os revolucionários nunca empenham a sua responsabilidade como direção revolucionária a uma aliança de longo prazo (nem “frente única estratégica”) com forças centristas ou reformistas, como é o caso da Frente de Esquerda entre o PSOL, o PSTU e o PCB. Os comunistas nunca fazem propaganda comum – declarações conjuntas de perspectiva política geral – com os revisionistas. Tal prática é tanto desonesta (porque inevitavelmente envolve calar sobre as diferenças políticas que separam as organizações) quanto liquidacionista. A “frente única estratégica” é a manobra favorita dos oportunistas que, desesperados com a sua própria pequena influência, procuram compensá-la pela sua dissolução num bloco mais amplo, com um programa de maior denominador comum.

Democracia Operária e Linha de Classe
            Os marxistas revolucionários, que se distinguem pelo fato de que contam a verdade aos trabalhadores, só podem beneficiar-se com o confronto político aberto entre as várias correntes que competem na esquerda. Não é assim com os reformistas e centristas. Os stalinistas, social-democratas, burocratas sindicais e outras direções traidoras da classe trabalhadora atacam a crítica revolucionária e procuram impedir a discussão e o debate políticos com gangsterismo e exclusões.
Somos contra a violência e o exclusionismo dentro da esquerda e do movimento operário, ao mesmo tempo em que defendemos o direito de todos à autodefesa. Também somos contra a violência “suave” – ou seja, as calúnias, que andam juntas com (ou prepara o caminho para) os ataques físicos. A calúnia e a violência dentro do movimento operário são completamente estranhas às tradições do marxismo revolucionário, porque são usadas, principalmente, para destruir a consciência, que é a condição prévia para a libertação do proletariado.

O Estado e a Revolução
            A questão do Estado ocupa um lugar central na teoria revolucionária. O marxismo ensina que o Estado capitalista (em última análise, “os corpos especiais de homens armados comprometidos com a defesa da propriedade burguesa”) não pode ser assumido e usado para servir aos interesses da classe trabalhadora. O poder da classe trabalhadora só pode ser estabelecido pela destruição da maquinaria burguesa de Estado atual, e sua substituição por instituições comprometidas com a defesa da propriedade proletária, ou seja, coletivizada.
            Nós somos terminantemente contra a intervenção do Estado burguês, em qualquer de suas formas, nos assuntos do movimento operário, inclusive a arbitragem de greves. Os marxistas são contra quaisquer “reformadores” sindicais que procurem corrigir a corrupção burocrática através das cortes capitalistas. Os trabalhadores devem limpar a própria casa! Nós também defendemos a expulsão, do movimento sindical, de todos os policiais e guardas de prisão. Os mesmos não representam uma fração da classe trabalhadora, mas sim parte do aparato repressor necessário ao Estado burguês.
            O dever dos revolucionários é ensinar à classe trabalhadora que o Estado não é um árbitro imparcial entre interesses sociais conflitantes, e sim uma arma usada contra ela pelos capitalistas. Assim, os marxistas são contra as exigências reformistas/utópicas de que o Estado burguês “proíba” a existência de fascistas, por exemplo. Tais leis, invariavelmente, serão usadas muito mais agressivamente contra o movimento operário e a esquerda do que contra a escória fascista, que constitui as tropas de choque da reação capitalista. A estratégia comunista de luta contra o fascismo não é fazer apelos ao Estado burguês, e sim mobilizar o poder da classe trabalhadora e dos oprimidos, pela ação direta, para esmagar os movimentos fascistas em seu nascedouro, antes que possam crescer. Para isso, se faz necessário educar a classe a respeito da importância das autodefesas armadas, submetidas aos órgãos da classe, para não haver ilusões na polícia burguesa quando surgir um momento de  enfrentamento.
            Os leninistas rejeitam totalmente a idéia de que tropas imperialistas possam ter um papel progressivo em qualquer lugar: seja “protegendo” a população do Haiti ou “mantendo a ordem” no Oriente Médio. Nem pressionamos as diplomacias a “boicotarem” os países imperialistas. Em vez disso, nos apoiamos nas mobilizações das massas trabalhadoras e seus métodos, como greves e piquetes.

Defensismo e a Questão Russa
            Nos colocamos na defesa incondicional das economias coletivizadas dos Estados Operários Deformados do Vietnã, China, Coréia Norte e Cuba, contra a restauração capitalista. Mas nós não perdemos de vista nem um momento o fato de que somente revoluções políticas proletárias, que derrotem os burocratas anti-operários e traidores que governam estes Estados, podem defender as conquistas existentes e abrir o caminho para o socialismo.
            A vitória da fração stalinista na União Soviética, nos 1920, sob a bandeira do “Socialismo num só País”, foi consolidada com o extermínio físico dos principais quadros do partido bolchevique, tanto devido à guerra civil, quanto aos Processos de Moscou. Os usurpadores stalinistas subvertem decisivamente tanto a defesa da União Soviética quanto a revolução mundial. A perspectiva de uma insurreição proletária para restabelecer o domínio político direto da classe trabalhadora, portanto, não é contraposta, e sim indissoluvelmente ligada à defesa das economias coletivizadas.


            Após o fim da URSS, os Estados Operários que sobraram precisaram recorrer a uma política semelhante à NEP, abrindo as suas economias para o capital imperialista. Por isso, China, Cuba e Vietnã destruíram a planificação econômica, que era a maior conquista da revolução. Mesmo assim, o fato do aparelho de Estado nesses países não ser controlado pela burguesia, e sim pela burocracia (uma casta pertencente à classe trabalhadora), faz com que ele seja um ponto de apoio para a volta de uma economia planificada e para a luta contra a recolonização pelo imperialismo. Por isso, continuamos a defender incondicionalmente esses Estados contra a restauração do domínio da burguesia.
            Já a questão russa se trata de três acontecimentos que dividiram a esquerda entre uma minoria que se manteve fiel aos princípios do marxismo e do leninismo e uma esmagadora maioria que capitulou ao chamado “vendaval oportunista”, degenerando em correntes reformistas ou centristas. Tais acontecimentos foram: a supressão do Solidariedade polonês, em 1981, a intervenção do exército soviético no Afeganistão e a tentativa de golpe do Comitê de Emergência, em 1991, na URSS (o “bando dos oito”).
            Nas três situações nós defendemos a aliança militar com os stalinistas. Isto não implica que os burocratas stalinistas tenham qualquer papel histórico progressivo a desempenhar, muito pelo contrário. Porém, defendemos ações como essa porque eles são forçados a defender as formas de propriedade operárias.

Centralismo democrático
            Defendemos como forma de organização aquela do partido bolchevique e da Terceira Internacional, a única em toda a História que foi capaz de dirigir a classe trabalhadora na tomada do poder. Tal forma consiste no estrito centralismo, com os organismos superiores tendo plena autoridade para dirigir o trabalho dos demais organismos e membros inferiores. A organização deve ter o monopólio político sobre a atividade política pública de seus membros.
            Ao mesmo tempo, a militância deve ter o direito garantido à plena democracia fracional (ou seja, o direito de, a qualquer momento, conduzir luta política interna para mudar a linha e/ou substituir a direção vigente). A democracia interna não é um enfeite decorativo – nem meramente uma válvula de segurança de uma panela de pressão para a base – é uma necessidade crítica e indispensável para a vanguarda revolucionária, se esta quer lidar com os desenvolvimentos complexos da luta de classes. É também o meio principal pelo qual os quadros revolucionários são criados. O direito à democracia fracional interna, ou seja, o direito de lutar contra o revisionismo dentro da vanguarda, é a única “garantia” contra a degeneração política de uma organização revolucionária.
            As tentativas de encobrir diferenças importantes e apagar linhas de demarcação política interna só podem enfraquecer e desorientar um partido revolucionário. Uma organização cuja coesão é mantida por diplomacia e consenso no máximo denominador comum tem como consequência a ambigüidade programática (em vez de acordo programático e de princípios, e luta pela clareza política). Uma organização desse tipo está apenas esperando a primeira prova séria posta pela luta de classes para acabar rachando.
            Por outro lado, as organizações em que a expressão de diferenças é proscrita – seja formal ou informalmente – são destinadas a se fossilizarem em seitas rígidas, hierárquicas e sem vida, crescentemente divorciadas do movimento real dos trabalhadores, e incapazes de reproduzir os quadros necessários para executar as tarefas de uma vanguarda revolucionária.


Pelo Renascimento da Quarta Internacional! Pela construção do Partido Revolucionário dos trabalhadores!
            O marxismo revolucionário do nosso tempo é a teoria política derivada da experiência destilada de mais de um século e meio de luta da classe operária pelo comunismo. Foi comprovado pela positiva durante a Revolução de Outubro de 1917, o acontecimento mais importante da história contemporânea e, desde então, pela negativa.
            Depois do estrangulamento burocrático do partido bolchevique e da Internacional Comunista pelos stalinistas, a tradição do leninismo, a prática e o programa da revolução russa, foi levada adiante somente pela Oposição de Esquerda.
            O movimento trotskista nasceu na luta pelo internacionalismo revolucionário, contra o conceito reacionário/utópico do “Socialismo num só país”. A necessidade de uma organização revolucionária em nível internacional é derivada da própria organização da produção capitalista. Os revolucionários em cada terreno nacional devem ser guiados por uma estratégia de dimensão internacional – e que seja elaborada através da construção de uma direção internacional da classe trabalhadora. Ao patriotismo da burguesia e de seus lacaios, social-democratas e stalinistas, o trotskistas opõem a palavra de ordem imortal de Karl Liebnecht: “O pior inimigo está em casa”. Nós nos baseamos nas posições programáticas básicas adotadas pela conferência de fundação da Quarta Internacional, em 1938, e nas tradições revolucionárias de Marx, Engels, Lênin, Luxemburgo e Trotsky.
            Os dirigentes da Quarta Internacional fora da América do Norte foram, na sua maioria, aniquilados e dispersos durante a Segunda Guerra Mundial. A internacional foi definitivamente destruida politicamente pelo revisionismo pablista nos anos 50. Nós não somos neutros em relação à divisão que ocorreu em 1951-53 – estamos do lado do Comitê Internacional (CI) contra o Secretariado Internacional pablista (SI). A luta do CI tinha falhas profundas, tanto na sua elaboração política como em sua execução. Mesmo assim, em última análise, o impulso do CI para resistir à dissolução dos quadros comunistas dentro dos partidos stalinistas e social-democratas (como foi proposto por Pablo), e a sua defesa da necessidade de um fator consciente na história, os fizeram qualitativamente superiores aos liquidacionistas do SI.
            O morenismo é apenas uma forma de pablismo adaptada às condições da América Latina. Ao rejeitar a idéia de que somente em casos muito excepcionais as direções oportunistas podem ser levadas a estabelecer um Estado Operário (deformado), o morenismo aposta que o reformismo é capaz de liderar revoluções socialistas “de fevereiro”. Por isso, quase todas as correntes morenistas hoje no Brasil estão envolvidos ou com a construção do PSOL ou com uma “frente única estratégica” com ele.
            Dentro do CI, a seção mais importante era o Socialist Workers Party americano (SWP). Também era a seção mais forte na época de fundação da internacional. Havia se beneficiado da colaboração direta de Trotsky e tinha quadros na sua direção que remontavam aos primeiros anos do Comintern. O colapso político do SWP como organização revolucionária, assinalado pelo seu entusiasmo acrítico em relação ao castrismo nos anos 60, e culminando com a sua unificação com os pablistas em 1963, foi um golpe enorme para todos os comunistas.
            Nós somos solidários com a luta da Tendência Revolucionária do SWP, que defendeu o programa revolucionário contra o objetivismo centrista da maioria. Nós nos baseamos nas posições trotskistas defendidas e elaboradas pela Liga Espartaquista revolucionária nos anos seguintes. Mesmo assim, sob a pressão de anos de isolamento e frustração, a SL se degenerou qualitativamente em uma seita burocrática cada vez mais abstencionista diante da luta de classes, e que tem demonstrado um impulso consistente de capitular sob pressão. A LQI, formada em 1996 por um setor da direção da Liga Espartaquista, por não ter feito autocrítica de mais de quinze anos de degeneração, acaba reproduzindo os mesmos erros, mas com um tom ainda mais stalinofílico e sectário.
            O PCI francês, o outro componente principal do CI, manteve as suas posições revolucionárias até o início dos anos 1970 quando, capitulando à política de frente única antiimperialista do POR boliviano, passou a se desviar cada vez mais à direita, o que terminou por levá-lo a adotar um programa social-democrata de entrismo sui generis nos partidos reformistas.
Por isso, consideramos que a Tendência Bolchevique Internacional, que resistiu ao processo de degeneração da Liga Espartaquista, e combateu seus desvios abstencionistas e sua capitulação ao stalinismo desde os anos 1980, é a depositária do programa espartaquista nos dias de hoje, e a peça fundamental para a luta pela refundação da Quarta Internacional.
            No Brasil, a luta pela refundação da Quarta Internacional passa pela criação do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. No Brasil, nunca houve um partido revolucionário. O PCB já nasceu com uma estratégia etapista (a “revolução pequeno-burguesa” dirigida pelos camponeses e pelos tententes). A primeira corrente da Oposição de Esquerda no país, a LCI, tinha um profundo desvio centrista, além de ignorar a questão camponesa. Ela foi destruída ao ser ganha para o antidefensismo nos anos 1940. Após ela, os vários grupos posteriores foram criados como seções de uma QI ou de correntes internacionais já centristas, com a única exceção da OSI, nos anos 1970, que depois foi cooptada pelos lambertistas.
        No setores que romperam parcialmente com a concepção stalinista, a POLOP e o PCBR deram algumas contribuições para a formação do programa comunista para o país, respectivamente com a teoria do subimperialismo e com a análise do escravismo colonial. Infelizmente, não chegaram a cristalizar uma corrente internacionalista e revolucionária, em parte devido á repressão da ditadura militar. Com a formação do PT, todas as correntes se adaptaram à sua concepção social-democrata. Por isso, ainda está pendente a tarefa de, através de fusões e rupturas, cristalizar uma vanguarda comunista, com um programa marxista revolucionário, formando uma organização com maioria de mulheres e negros – os setores mais oprimidos da classe. Essa é a maior tarefa do Coletivo Lênin.

Coletivo Lenin rompe relações com a IBT

Declaração
Coletivo Lenin rompe relações com a Tendência Bolchevique Internacional (IBT)

Através da presente declaração, originalmente publicada em dezembro de 2010, o Coletivo Lenin rompeu publicamente relações com a Tendência Bolchevique Internacional (IBT) e estabeleceu relações fraternais com o Reagrupamento Revolucionário, um racha da IBT de 2008. Reproduzimos este documento para atestar o programa e as concepções do Coletivo Lenin na época, em contraste com a sua atual degeneração.

I – As origens de nosso contato com a IBT
 
O Coletivo Comunista Internacionalista (CCI – precursor do Coletivo Lenin) foi fundado em outubro de 2006, no Rio de Janeiro. Éramos um grupo trotskista de alguns poucos militantes, que tinham certeza de uma coisa: não poderíamos nos limitar a ser uma organização nacional. Para nós trotskistas, é necessário que uma organização revolucionária pertença a um partido internacional, ou lute para construir um. Assim, realizamos uma séria pesquisa com o objetivo de estudar as diferentes correntes politicas que reivindicavam o legado do trotskismo. Analisamos 27 organizações originadas da Quarta Internacional, estudando seus documentos disponíveis na internet e também nos reunindo com aquelas que possuíam seções no Brasil. Buscávamos integrar uma organização cuja linha política fosse a mais próxima da nossa. Naquela época, nossos três critérios principais eram:
 

1) Que a corrente considerasse a destruição da União Soviética e demais Estados operários deformados do Leste Europeu como derrotas contrarrevolucionárias. Consequentemente, seria necessário que ela defendesse a participação temporária em frentes militares com as frações da burocracia stalinista que se opusessem à restauração do capitalismo, em todo lugar em que estas demonstrassem resistência.

2)  Que a corrente reconhecesse a importância estratégica para o sucesso de uma revolução socialista de se combater todas as formas de opressões específicas (tais como machismo, racismo e homofobia). Que a corrente, portanto, priorizasse o recrutamento de trabalhadores vítimas de tais opressões, que sob o sistema capitalista costumam integrar as camadas mais exploradas da classe trabalhadora.
3)  Que a corrente rejeitasse a noção de que as forças produtivas haviam cessado de se desenvolver sob a época imperialista, uma vez que apenas através de tal rejeição é possível se estabelecer uma análise coerente do capitalismo contemporâneo.
Descobrimos que as correntes cuja origem se remetia à Liga Espartaquista dos EUA (SL) eram as que mais se aproximavam de tais critérios. Elas eram a própria Liga Espartaquista (e seus colaboradores internacionais da Liga Comunista Internacional – LCI) e dois de seus rachas – a Tendência Bolchevique Internacional (IBT) e o Grupo Internacionalista (IG). Ao analisarmos seus documentos, suas diferenças politicas pareceram pequenas, porém estes também apresentavam uma série de questões completamente novas para nós.
 
Vimos que a SL havia assumido uma série de posições estranhas a partir de fins dos anos 1970.  Em 1979, paralelamente à posição correta de defender a aliança tática com o Exército Vermelho contra os fundamentalistas islâmicos apoiados pela CIA, eles também levantaram a palavra de ordem acrítica de “Viva o Exército Vermelho no Afeganistão!”, quando da ocupação do país. Outras adaptações pró-stalinistas muito semelhantes se seguiram a essa, com a organização de uma coluna em um ato nomeada “Brigada Yuri Andropov”, em homenagem ao líder da URSS na época e a resposta às críticas com a publicação de um poema em sua homenagem na primeira página de seu jornal, quando da morte do burocrata. Também ocorreram adaptações ao chauvinismo nacionalista norte-americano, como a negação, em 1983, em defender uma aliança tática com forças militares libanesas que então tentavam expulsar fuzileiros norte-americanos (“Marines”) que ocupavam seu país. Quando, durante o conflito, uma bomba explodiu em um quartel dos fuzileiros, a SL levantou a palavra de ordem de “Marines fora do Líbano, já e vivos!”. As críticas a essas posições foram primeiramente levantadas pela IBT. Já uma crítica levantada por ambos os rachas dizia respeito à degeneração organizativa da SL, que havia se consolidado no início dos anos 1980. A SL havia se transformado em uma organização com uma vida interna engessada; a liderança estava nas mãos de uma camarilha burocrática que havia suprimido as críticas internas e sufocado debates através de ameaças, intimidação e repressão. Através de tais métodos, todos aqueles militantes críticos foram forçados a se retirar ou mesmo expulsos.
 
Esses problemas nos fizeram descartar logo cedo a possibilidade de discussão com a SL, e nos aproximaram do IG e da IBT. Nessa altura, havíamos estabelecido relações com ambos os grupos com a intenção de estudar a degeneração da Liga Espartaquista, com cujas posições originais possuímos grande proximidade e acreditávamos (como continuamos a acreditar), fornecem uma importante contribuição programática para a refundação de uma Quarta Internacional revolucionária.
 
Travamos discussões através de reuniões pessoais e chats online com Bill Logan e alguns outros membros da IBT, assim como participamos de reuniões pessoais coma a Liga Quarta-Internacionalista do Brasil (LQB), os camaradas brasileiros do IG, seção da Liga Pela Quarta Internacional. Também participamos de algumas reuniões pessoais com o principal líder internacional do IG, Jan Norden. Após algum tempo, concluímos que as análises da IBT à cerca da degeneração da SL eram mais coerentes que aquelas do IG. Por exemplo, a IBT argumenta que a dissolução deliberada do trabalho sindical da SL no início dos anos ’80 era uma prova de que a liderança de tal organização estava mais preocupada em manter um rígido controle sobre seus membros do que em estabelecer uma sólida base na classe trabalhadora. O IG, por outro lado, argumenta que a degeneração da SL se consolidou apenas quando eles foram expulsos, em 1996. Os métodos organizativos através dos quais diversos dos futuros integrantes da IBT foram expulsos ou forçados a sair em fins dos anos 1970 e início dos 1980, são ignorados, negados ou defendidos em suas análises. Além disso, o IG também defende todas as posições da SL assumidas antes de sua expulsão (incluindo as posições quanto ao Afeganistão, a Yuri Andropov e ao Líbano).
 
Uma questão que o IG tentou levantar contra a IBT foi o escândalo envolvendo Bill Logan. Logan (que fora um proeminente dirigente dos espartaquistas na Nova Zelândia e Austrália durante os anos 1970) foi expulso da tendência Espartaquista internacional sob alegação de que este fosse um “psicopata sexual”, que suprimiu seus críticos internos e manipulou psicologicamente seus militantes de base. Nós estávamos cientes de que Logan, assim como diversos outros dirigentes espartaquistas, era culpado de abusos burocráticos e crimes organizacionais. Porém, também sabíamos que o IG estava explorando o escândalo que o envolvia com o objetivo de se esquivar de responder as críticas da IBT às suas posições. Infelizmente, à época acreditamos nas palavras da IBT de que esta não havia herdado nenhum dos métodos organizativos burocráticos da SL e que Logan pessoalmente havia mudado profundamente sua postura.
 
Como resultado da visita de Bill Logan ao Brasil, em outubro de 2007, nos decidimos por uma perspectiva de fusão com a IBT. Acreditávamos que nossas poucas diferenças e questões pendentes eram insuficientes para que continuássemos a ser dois grupos distintos por muito tempo. Esperávamos que, com o tempo, muitas dessas diferenças se resolveriam a partir de discussões e que estávamos dispostos a coexistir em um grupo comum enquanto camaradas disciplinados. O que se seguiu ao inteiro período posterior, entretanto, foi a frustração consciente de nossas tentativas de discussão com a liderança da IBT, cujas táticas de adiamento para discutir as nossas diferenças e ultimatos eram voltadas para nos desgastar e desmoralizar em completa submissão como o preço para a fusão. Começou a se tornar claro que a liderança da IBT não estava buscando fusões políticas com militantes que, mesmo compartilhando suas análises, possuíam diferenças políticas e táticas secundárias a serem internamente debatidas, mas sim buscando nos transformar em um grupo dócil e flexível, capaz se ser organizacionalmente absorvido por uma organização na qual seu controle absoluto estaria totalmente garantido de possíveis disputas.
 
Nossas relações com a IBT podem ser, em muitos sentidos, comparadas com aquelas travadas entre a jovem SL e o Comitê Internacional de Gerry Healy durante os anos 1960. Healy, de forma semelhante, fingiu interesse em uma fusão leal, enquanto na verdade se engajava em uma variedade de táticas inescrupulosas criadas para quebrar psicologicamente um grupo de jovens revolucionários. Assim como em nosso caso, junto a um acordo político substancial, os Espartaquistas também possuíam suas próprias apreciações de diferentes questões, e expressaram capacidade de se levantar e questionar a autoridade de Healy. Seguindo-se à ruptura de relações ocorrida em 1966, os Espartaquistas comentaram:
 
“A razão para o comportamento da SLL [organização de Healy] para com a delegação da SL não é difícil de se descobrir. Vocês obviamente desejam criar um movimento trotskista nos EUA que seja completamente subserviente à direção da SLL… Vocês não estavam interessados em criar um movimento unificado nas bases do centralismo democrático e com seções fortes, capazes de realizar contribuições teóricas ao movimento como um todo e de aplicar a teoria marxista de forma criativa às suas próprias arenas nacionais. Vocês queriam uma internacional à maneira do Comintern de Stalin, permeado de servilismo de um lado e autoritarismo de outro.”
— Healy “Reconstructs” the Fourth International
 
II – Três anos de enrolação e estagnação
 
Decidimos por terminar nossas relações com o IG em janeiro de 2008. Em nossa última discussão com eles, nos chocamos ao ouvir do próprio Jan Norden que o IG/LFI não só defendeu as adaptações da SL ao stalinismo e sua incapacidade de levantar um programa revolucionário quando da queda do bloco Soviético, como também intencionava repetir seu comportamento político caso a oportunidade surgisse no futuro. Também percebemos a natureza burocratizada de sua organização internacional, a Liga Pela Quarta Internacional. O IG, localizado nos EUA, é a liderança responsável por formular toda a política da organização, enquanto a seção brasileira, bem como as demais, se resume em aplicá-la. Isto é incompatível com nossa concepção de centralismo democrático leninista. Assim, nosso contato com a LQB e o IG de Jan Norden reforçou nossa decisão em buscar uma fusão com a IBT.
 
No curso de nossas relações com a IBT, fomos capazes de identificar e corrigir muitas de nossas falhas políticas e organizativas. Através da leitura de seus materiais, fomos capazes de estabelecer uma compreensão mais precisa da natureza da tática de frente única (vide nosso documento Leninismo, Frentes Únicas e Blocos de Propaganda, disponível em nosso site), desenvolver análises mais coerentes dos acontecimentos políticos no Brasil, e aprender a aplicar o Programa de Transição em nossa atividade política diária. Estudando a história do movimento trotskista expandimos nossa apreciação do significado histórico da SL em seus primórdios, que buscou reerguer o programa trotskista após a destruição política da Quarta Internacional e do Partido Socialista dos Trabalhadores norte-americano (SWP), causada pelo revisionismo pablista. Começamos a entender a natureza da perspectiva de propaganda para uma pequena organização revolucionária com nosso tamanho, que, além de engajar em trabalhos de massas exemplares, deve inicialmente crescer focando disputar a vanguarda politicamente consciente, a partir de nossas concepções programáticas e através da elaboração de polêmicas com outras correntes supostamente revolucionárias. O grosso de nossa direção política e teórica desde o início de 2008 tem sido informalmente baseado nas perspectivas e materiais históricos da IBT, nos fazendo acreditar que estávamos metodológica e programaticamente muito próximos.
 
Ao mesmo tempo, entretanto, também possuíamos nossa própria e única compreensão teórica de certas questões que sobre as quais potencialmente diferíamos da IBT. Tentamos discuti-la com eles uma vez que (conforme achávamos) estávamos realizando progresso em direção a se tornar sua seção brasileira. Nossas diferenças eram (e são) as seguintes: [*]
 
  1. Defendemos a teoria da acumulação do capital de Rosa Luxemburgo, com sua conclusão de que o capitalismo está levando a sociedade à barbárie. Essa posição, entretanto, nunca nos levou a nenhum tipo de discordância prática, mas simplesmente chamava a atenção para que discutíssemos o entendimento leninista do imperialismo.
 
  1. Reivindicamos as teorias do marxista brasileiro Ruy Mauro Marini. Encaramos países como Brasil, Índia, Israel, Rússia e África do Sul enquanto subimperialistas, ao invés de semicolônias dominadas. Nesses países, a fusão do capital nacional com o estrangeiro estabeleceu uma base para a exploração e o controle de outros países dentro de seus raios regionais de influência. Esse é o caso do Brasil em relação aos demais países da América do Sul, por exemplo. Assim, no caso hipotético de uma guerra entre o Brasil e a Bolívia, emblocaríamos militarmente com esta contra seu opressor regional, por entendermos que uma vitória brasileira elevaria consideravelmente o nível de exploração dos trabalhadores bolivianos. Também reconhecemos que países subimperialistas são, ao mesmo tempo, países dependentes e, assim, baseados no mesmo motivo, os defenderíamos de ataques imperialistas. Não negamos, entretanto que qualquer liberdade real em relação à opressão imperialista, seja para as semicolônias, seja para os países subimperialistas como o Brasil, só pode ser atingida através de uma revolução socialista.
 
  1. Assim como a maioria das organizações latinoamericanas, porém diferentemente da IBT e outros pequenos grupos de propaganda baseados em países economicamente mais desenvolvidos, aceitamos em nossas fileiras camaradas que possuem crenças religiosas. Como a entrada para a organização pressupõe acordo com suas posições políticas (incluindo a defesa da ciência, a separação entre igrejas e o Estado, a defesa dos direitos democráticos das mulheres, GLBTTs, e outras questões similares), relevamos possíveis contradições pessoais entre a teoria marxista e aspectos da crença religiosa, desde que o militante respeite a disciplina da organização. Enquanto marxistas, somos materialistas e defensores da ciência, reconhecemos o papel histórico que religiões organizadas cumprem em servir aos interesses das classes dominantes e lutamos para educar todos os nossos militantes nesse sentido.
 
  1. Apesar de defendermos que o Estado chinês permanece sendo um Estado operário deformado, também reconhecemos que largas porções da economia chinesa têm sido privatizadas através do aval de seus dirigentes stalinistas. Tais medidas prejudicaram consideravelmente e colocaram em cheque o caráter (burocraticamente) planejado de sua economia. Acreditamos que tais medidas impulsionadas pelos governantes burocratas criam largas aberturas e possibilitam a vitória de uma contrarrevolução capitalista. Também enxergamos fortes paralelos com o período da NEP, na União Soviética, durante os anos 1920. Lá, a combinação de uma pouco desenvolvida economia planejada, com a reintrodução temporária de formas capitalistas de produção, colocou em risco a natureza do modelo econômico dominante, porém, similarmente, não foi decisivo em determinar o caráter de classe do Estado.
 
  1. Acreditávamos que a IBT possuía um foco extremamente exagerado em continuar a explorar suas diferenças históricas com a SL, em detrimento daquilo que deve ser a principal tarefa de um grupo de propaganda trotskista, ou seja, buscar engajar aqueles grupos mais dinâmicos que estão dando um giro à esquerda ou possuem uma ativa vida interna, principalmente entre seus militantes de base, no que diz respeito a discussões, polêmicas, etc. Apesar de reconhecermos a importância história da Liga Espartaquista em seus primórdios, bem como a importância de educar nossos camaradas sobre seus feitos e formulações, a realidade é que a Liga Espartaquista de hoje em dia, assim como seus companheiros da Liga Comunista Internacional, tem sido já há muitos anos uma organização estagnada, que vem diminuindo em tamanho e que, além de estar se encaminhando cada vez mais para a direita, possui uma base militante extremamente despolitizada. Provavelmente baseados no mesmo motivo pelos quais busca continuar a perseguir suas diferenças históricas com a SL, a liderança da IBT planejava que mantivéssemos nosso foco em perseguir polêmicas com os seguidores de Jan Norden que, ao menos no Brasil, também visivelmente diminuíram e envelheceram ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, nos pareceu que a IBT possui pouquíssimo interesse em buscar polemizar com grupos mais dinâmicos e cujos militantes podem de fato cumprir algum papel na luta pela refundação de um movimento revolucionário. Em um primeiro momento, vimos isso enquanto uma diferença tática, provavelmente derivada do fato da liderança da IBT se encontrar presa em um momento político há muito ultrapassado, mas não tínhamos ainda compreendido plenamente as razões para tal passividade e rotineirismo.
 
A liderança da IBT continuou se esquivando de discutir tais questões conosco de maneira formal, através de documentos escritos e etc., pelos dois anos seguintes. Eles apenas deram um mínimo de atenção às mesmas em discussões online, misturadas com outros tópicos (e apenas devido a muita insistência de nossa parte). Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, eles levantavam a necessidade de clarificação política como precondição para uma fusão. Acreditávamos que essas diferenças táticas e teóricas não deveriam representar uma barreira para a unificação, uma vez que elas se apagavam consideravelmente frente às nossas áreas de importante concordância.
 
Quanto à teoria da acumulação de Rosa Luxemburgo e ao conceito de subimperialismo de Marini, a liderança da IBT demonstrou total falta de interesse em entender nossas formulações teóricas. Tentamos resumir nossa visão sobre essas teorias complexas e indicamos a eles textos para um estudo aprofundado, mas estes não fizeram nenhum esforço para viabilizar uma discussão séria. Quanto às questões táticas envolvendo o foco desmedido na SL e no IG e quanto à nossa visão sobre a China, a IBT reconheceu que, em princípio, elas não deveriam impedir uma fusão, ao mesmo tempo em que tomaram a “resolução” dessas questões enquanto uma precondição para que avançássemos em nossas relações. Quanto à questão de nossos membros religiosos, a IBT aparentou uma considerável falta de clareza, uma vez em que eles nunca defenderam a exclusão de membros religiosos enquanto um princípio, porém utilizaram tal questão enquanto uma barreira para que progredíssemos. Eles demonstraram total desinteresse em estudar a experiência de uma cultura política diferente na América Latina, onde membros de organizações autoaclamadas revolucionários têm sido historicamente permitidos a possuir crenças religiosas.
 
É importante reiterar que, durante todo esse período, estávamos dispostos a aceitar integrar as fileiras da IBT enquanto uma minoria disciplinada no que diz respeito a essas questões, uma vez que aparentávamos ter atingido um acordo substancial naquelas questões essenciais. Ao demandar a resolução prévia dessas questões, ao mesmo tempo em que barrava a concretização de tal resolução através da enrolação durante anos no que diz respeito a engajar em discussões por escrito, a IBT tornou o progresso em nossas relações completamente impossível na prática. Ao mesmo tempo, fomos mantidos no limbo a partir de constantes afirmações de que eles mantinham viva a perspectiva de fusão conosco.
 
Por cerca de três anos utilizamos uma adaptação do documento da IBT “Pelo Trotskismo!” enquanto nosso programa político formal. Nós considerávamos e declarávamos publicamente (até dois meses atrás) que a IBT representava a continuação programática do trotskismo, afirmação que podia ser constatada em nosso site e em materiais e intervenções apresentadas ao movimento operário e estudantil. Fomos nós que traduzimos todos os documentos presentes na seção em português do site deles. E apesar disso tudo, a IBT recusou declarar publicamente que mantinha relações conosco ou mesmo que existíamos (ao não nos creditar pelas traduções). Nessa época, consideramos tal postura extremamente estranha, uma vez que a declaração pública de relações fraternais é o primeiro passo dentro de uma perspectiva de fusão com outra organização.
 
Em dezembro de 2008 escrevemos uma carta à IBT exigindo uma séria discussão de nossas diferenças e requisitando que eles assumissem medidas práticas para facilitar a possibilidade de uma fusão no futuro. Naquele ponto começamos a desconfiar que a IBT, apesar de suas afirmações, não possuía interesse real em fundir com nossa organização. Que eles fundiriam apenas com grupos que abrissem mão de todas as suas diferenças e opiniões independentes. Tal tipo de “fusão” exigiria que antes fôssemos psicologicamente destruídos, cessando assim a possibilidade de sermos genuínos revolucionários.
 
No início de 2009 o CCI deu lugar ao Coletivo Lenin (CL), após fusão com um grupo de camaradas que haviam rompido com a organização pseudotrotskista PSTU. Isso representou um salto qualitativo para a capacidade de nossa organização. Com alguma orientação da IBT, estabelecemos prioridades organizativas mais perspicazes, melhoramos nossa organização financeira e tornamos nosso órgão de imprensa regular (na época, o jornal Hora de Lutar). Também elegemos uma Direção Nacional, uma vez que estávamos presentes em duas cidades (Rio de Janeiro e Juiz de Fora). Por último, também vimos necessidade de que a nova organização atuasse conjuntamente em um mesmo espaço para propiciar um crescimento e amadurecimento coletivo. A maneira que encontramos de fazer isso foi centrando nossas atividades no movimento sem-teto do Rio de Janeiro, através da atuação na Frente Internacionalista dos Sem-Teto (FIST). Era uma oportunidade de atuar lado a lado com militantes radicalizados da camada mais oprimida e explorada da sociedade brasileira.
 
A IBT respondeu a essa escolha tática de uma maneira ríspida e sectária. Eles aparentaram acreditar que um grupo de propaganda deveria focar seus esforços inteiramente em polemizar com outros grupos de esquerda, particularmente, no nosso caso, com a LQB, a ponto mesmo de excluir a possibilidade de atuação em outras arenas. Fomos falsamente acusados de sermos movimentistas e buscar recrutar pessoas com baixa formação política.
 
Em consequência, alguns dos nossos camaradas passaram a considerar que as diferenças com a IBT talvez fossem mais profundas do que aparentavam ser. A IBT pareceu ser extremamente passiva e conservadora, não apenas em relação a progredir nas nossas relações, mas também com relação a realizar qualquer tipo de trabalho de massas mais amplo. Por causa disso, escrevemos uma carta para a IBT em outubro de 2009, discutindo a recente reorganização de nosso trabalho e exigindo que eles fossem mais claros quanto às perspectivas de fusão entre nossas organizações e como proceder nessa direção. Outra carta de fevereiro de 2010 explicava de forma detalhada nosso trabalho na FIST e respondia às críticas e distorções sobre ele.
 
Essa carta pela primeira vez gerou uma resposta formal por parte da IBT, porém apenas porque nos recusamos a dar continuidade aos chats online até que obtivéssemos como resposta um documento escrito. Apesar da resposta deles ter apenas fortalecido nossas suspeitas de que eram dotados de atitudes passivas e organizativamente conservadoras frente à tarefa de construção de um partido, concordamos que enviassem um representante para nos visitar e participar de nosso I Congresso, em agosto de 2010. Apesar de tudo, ainda acreditávamos na possibilidade de uma fusão.
 
III – A postura da IBT em nosso Congresso: do conservadorismo às manobras burocráticas
 
Como parte do processo de consolidação de nossa organização, preparamos nosso primeiro congresso, com o objetivo de mapear as perspectivas do Coletivo Lenin para os dois anos seguintes. Como é comum para uma organização saudável e democrática, durante o período de pré-congresso três tendências internas se formaram no CL. No que tange nossas relações com a IBT, a maioria foi a favor de continuarmos a trabalhar para uma fusão, enquanto uma minoria, concluindo que a IBT era uma organização sectária e passiva/conservadora, se opôs a tal perspectiva. Seguindo o costume que havíamos estabelecido, compartilhamos com a IBT todos os nossos documentos internos e abrimos a eles nossa vida interna (algo que a IBT nunca respondeu de forma recíproca ao longo de toda a nossa relação). Como resultado, a IBT se tornou muito próxima de uma das três tendências internas.
 
Durante o Congresso (do qual o representante da IBT participou), duas das tendências internas e a maioria do CL apoiaram a perspectiva de fusão com a IBT. O Coletivo Lenin decidiu, então, continuar a buscar uma fusão e requisitou que à IBT que finalmente começasse a responder nossas diferenças (cuja solução eles sempre insistiram ser uma precondição para progredirmos em nossas relações) a partir do mês seguinte, uma vez que estávamos todos frustrados e ansiosos para progredirmos após três anos de estagnação em nossas relações. A nova Direção Nacional eleita era uma expressão dessa decisão: era composta por aqueles camaradas favoráveis à perspectiva de fusão com a IBT. Ao mesmo tempo, o CL decidiu por assumir uma atitude mais firme quanto a acabar com os três anos de inação por parte da IBT em desenvolver suas relações conosco. Pedimos por uma prova concreta da sinceridade deles em querer prosseguir em nossas relações: uma declaração reconhecendo publicamente a existência destas – o que a IBT acabou por não fazer.
 
A resposta imediata da IBT após nosso congresso chocou a todos. Após reportar à sua direção, o representante da IBT nos informou que a avaliação era de que o CL estava organizativamente instável e politicamente se afastando da IBT (e isso logo após termos aprovado uma moção pró-fusão!). Era verdade que uma minoria, que consistia em um camarada, estava se afastando da IBT, mas o comprometimento da maioria era firme. E quanto ao CL ser instável, nossa organização possuía (e ainda possui) uma vida interna na qual as diferenças emergem e são devidamente debatidas, como acreditamos que deve ser em uma organização bolchevique. Isso não significa que sejamos uma organização instável ou indisciplinada. Nós hoje sabemos que para a IBT (cuja última tendência interna data de meados de 1997), qualquer diferença interna séria em relação à Direção é tida como sinal de uma perigosa “instabilidade”. Assim, fundir conosco representaria um perigo para uma liderança burocrática cujo principal objetivo é possuir o controle absoluto da organização, ao invés de construir um grupo capaz de crescer, se desenvolver e atuar enquanto um instrumento para impulsionar a revolução da classe trabalhadora.
 
O pior, entretanto, ainda estaria por vir. Alguns dias após o congresso, enquanto ainda alegava desejar uma fusão, a IBT secretamente “convidou” alguns de nossos camaradas da tendência mais próxima a eles a romperem com o CL e se tornarem os representantes da IBT no Brasil. É importante analisarmos tal “convite” mais de perto. Primeiro isso nos indicou que todas aquelas diferenças que a IBT fingia encarar enquanto tão sérias (os tópicos anteriormente enumerados), eram na verdade insignificantes para eles, uma vez que os camaradas que foram “convidados” a rachar possuíam as mesmas posições que o resto da organização quanto a tais questões. Segundo, isto nos indicou o caráter inescrupuloso da liderança da IBT: ao mesmo tempo em que alegavam possuir relações fraternais e amistosas conosco, eles estavam secretamente tentando nos rachar, nos tratando na verdade enquanto um inimigo hostil. Em Terceiro lugar, isto demonstrou uma grande falta de confiança na sua própria organização e políticas, o que sem dúvida é reflexo de uma desmoralização ainda mais profunda, uma vez que, mesmo a maioria do CL não apenas desejando, como também ativamente cobrando uma fusão, eles optaram por tentar rachar nossa organização ao invés de avançar em suas relações conosco. Felizmente, os camaradas “convidados” negaram a oferta e a reportaram ao resto do Coletivo Lenin.
 
IV – O Reagrupamento Revolucionário
 
O impacto do burocratismo e da covarde deslealdade por parte da liderança da IBT só aumentou com o passar do tempo, uma vez que nossos camaradas buscaram compreender melhor os eventos à luz de toda a relação prévia com eles. A ação por parte deles deixou claro para nós que a IBT não buscava uma fusão com nossa organização, independentemente de eles afirmarem isso. Na verdade eles estavam apenas nos manobrando na perspectiva de recrutar nossos militantes mais jovens e inexperientes. Eles provavelmente assumiram que assim seria mais fácil absorver e assimilar tais camaradas dentro de sua cultura interna burocratizada e convencê-los de abandonar suas diferenças. Nós ainda estávamos confusos, entretanto, tentando compreender porque a IBT agiria de maneira tão diferente daquela política que dizia defender e, mais ainda, tendo em vista suas polêmicas anteriores com as organizações burocratizadas que reivindicavam o legado espartaquista.
 
Poucas semanas antes de nosso congresso, tivemos um primeiro contato com Sam Trachtenberg, do Reagrupamento Revolucionário, que havia rachado da IBT no outono de 2008. A IBT nunca nos informou da sua saída e decisão de montar uma organização concorrente. Trachtenberg nos deu uma explicação marxista do comportamento da IBT através de sua carta de ruptura, intitulada “A Estrada para Fora de Rileyville” (disponível em nosso site). Ele também desenvolveu um pouco dessa explicação no curso de breves correspondências que tivemos antes de nosso congresso. Nesse momento nós infelizmente não demos à análise o crédito suficiente que ela merecia, já que estávamos tão ansiosos em levar adiante uma fusão com um grupo cujas posições, no papel, pareciam tão próximas das nossas e com o qual havíamos investido três anos de trabalho. Um dos assuntos discutidos no congresso foi uma proposta de estabelecer relações com o Reagrupamento Revolucionário. A proposta foi rejeitada, mas sem dúvida também impactou a tentativa desesperada da liderança da IBT de inviabilizar nossa organização. Mas a análise (e algumas previsões futuras) que recebemos do Reagrupamento Revolucionário coube como uma luva em nossa experiência posterior com a IBT.
 
Como explicou o RR, a IBT se transformou ao longo dos anos em uma organização burocratizada controlada e manipulada por uma camarilha de “líderes permanentes”. Esses líderes colocam a habilidade de controlar a organização acima de suas afirmações formais de querer ver o grupo crescer e se tornar um instrumento para a revolução socialista. Atualmente a IBT é estritamente dominada por uma camarilha burocrática que consiste daqueles que também tinham antecedentes corruptos como líderes da SL antes de serem perseguidos pelos seus próprios burocratas. Com o passar do tempo, outros membros antigos (sem tais antecedentes corruptos), ou acabaram por deixaram o grupo ou foram forçados a sair, enquanto a liderança remanescente nunca foi substituída pelos camaradas mais jovens, tornando-se menor em composição e agindo como uma panelinha de autoproteção em sua relação com os membros de base.
 
Enquanto isso, após quase 30 anos de existência, muitos dos membros também envelheceram e se tornaram cansados e passivos diante da ausência de mudanças organizativas. Isso permitiu à liderança se sentir mais à vontade em sua habilidade de usar métodos corruptos inescrupulosos que haviam aprendido em suas carreiras como líderes da SL. Esses métodos, juntamente a outros novos que foram desenvolvidos, foram usados com os membros da IBT, grupos simpáticos e militantes simpatizantes com o propósito de manter o seu controle absoluto. Abandonando quaisquer esperanças de crescimento e inovações na luta de classes, a IBT (como seus pais na SL) optou, ao invés disso, por preservar a ordem interna e permitir a si mesma “morrer com dignidade”.
 
O principal objetivo da IBT é proteger e preservar os legados pessoais de sua liderança envelhecida (agora com seus sessenta anos) ao invés de buscar usar o grupo como um veículo para construir um partido revolucionário. Sob tais circunstâncias, qualquer expressão séria de diferenças dentro da organização é vista como uma ameaça à sua estabilidade e seu objetivo não-oficial, ao invés de uma oportunidade de corrigir erros e desenvolver teoricamente os seus membros. Uma fusão com o Coletivo Lenin, portanto, que tem cerca de um terço do tamanho atual da IBT e que seria eventualmente incluído na liderança após uma fusão, colocava-se como uma ameaça para o status imutável dos líderes da IBT. Nossa habilidade em apresentar diferenças também poderia ter tornado os membros mais politizados e criado um exemplo para outros dentro da IBT começarem a expor seus pensamentos. É por isso que a IBT decidiu por tentar fazer naufragar nosso grupo ao invés de fundir com ele.
 
Em sua carta de rompimento, Sam Trachtenberg argumentou: “Por mais formalmente correto que seu programa no papel possa estar no momento, a História mostrou que o tipo de organização no qual a IBT se tornou, um grupo estático, estagnado, dominado por uma liderança permanente entrincheirada e maquiavélica, nunca poderá fazer crescer os camaradas mais jovens, se desenvolver e assim prestar um pequeno papel no processo [de reconstrução da Quarta Internacional]”. A defesa (ou melhor, a preservação) da história e do programa da IBT se tornou uma questão em separado de uma expressão orgânica da aspiração revolucionária do grupo e foi usado como um mecanismo para transformá-lo em uma seita autoritária. Os líderes da seita se tornam “guardiões” do “programa” (ou melhor, dos seus próprios legados históricos). Assim como à IBT, isso já ocorreu com a Liga Espartaquista e outros grupos no passado. No previamente citado documento de 1966 do rompimento da SL com o Comitê Internacional de Gerry Healy, os Espartaquistas explicaram:
 
“Sob condições de pronunciado isolamento do movimento mundial da classe trabalhadora, os revisionistas abandonaram uma perspectiva operária revolucionária por uma orientação em direção a formações pequeno-burguesas como os burocratas stalinistas, burocratas socialdemocratas e lideranças nacionalistas nos países coloniais… Os líderes britânicos parecem ter respondido à ‘crise teórica, política e organizativa’ do trotskismo se escondendo na ‘ortodoxia’. Sua reação ao revisionismo parece ter sido aquela de um sumo sacerdote ao qual foi confiada a proteção das sagradas escrituras; assim ocorre o surgimento de uma liderança autoritária com punho de aço.”
 
V – Uma última tentativa
 
Em setembro, a recém-eleita Direção do CL, formada justamente por aqueles camaradas de nosso grupo que mais ardentemente desejavam uma fusão com a IBT, reagiu aos eventos mencionados convencendo outros camaradas da necessidade de se reestabelecer contato e abrir discussões com o RR. Nós não havíamos, entretanto, decidido fechar a porta para a IBT ainda. Nós desejávamos estar inteiramente seguros das decisões que iríamos tomar. Assim, continuamos a discutir com a IBT e comunicamos a eles nossas reações frente ao que fizeram por trás dos panos, esperando dessa forma exercer pressão para que reconhecessem seus erros e alterassem seus métodos em relação a nós. A resposta da IBT foi racionalizar seu comportamento prévio, negar de forma nada ingênua qualquer possível erro, e tentar nos convencer que estávamos agindo de maneira paranoica. Isso foi recebido por nossos militantes enquanto um insulto a nossa inteligência.
 
Em uma medida desesperada de tentar desviar nosso curso do RR, a IBT nos enviou uma seleção limitada de documentos internos envolvendo a ruptura de Trachtenberg. É importante frisar que a liderança da IBT parece segura o suficiente de seus métodos para acreditar que tais documentos os fariam parecer ter agido de maneira correta com o Trachtenberg. Mesmo que os documentos que nos foram enviados não abarquem toda a discussão que ocorreu internamente, eles foram o suficiente para percebermos o padrão geral do burocratismo criminoso que sofremos em nossa própria relação com eles. Nesses documentos, a liderança da IBT simultaneamente negava e explicitamente defendia o uso de procedimentos burocráticos contra críticas passadas e os militantes que as levantaram. Eles defenderam o fato de terem (secretamente) escondido informações internas de tais militantes (incluindo aqueles que formalmente ocupavam posições de liderança antes de saírem), bem como tentativas de impedir debates internos colocando o resto da organização sob disciplina informal para que não discutissem suas diferenças. Isso, é claro, tornou a liderança de tais camaradas em uma ficção. A liderança da IBT alegou que correto utilizar certos tipos de métodos desonestos para com militantes que eles avaliavam estar em um processo de “rápida mudança política”, além de grupos simpatizantes (para não mencionar outros na esquerda) que eles enxergariam enquanto oponentes ou organizações inimigas.
 
Os documentos internos mostraram a liderança defendendo seu “direito” de utilizar “sanções formais e informais” contra militantes que encarassem apresentar “posições oportunistas”. Excluindo-se o fato de que “políticas oportunistas” na verdade quer dizer o simples desacordo com a liderança ao invés de qualquer conduta organizativamente errada, o uso de “sanções informais” não passa da defesa implícita do “direito” da liderança burocrática de implementar tais “sanções” de maneira informal, sem nunca as ter discutido formalmente ou mesmo informá-las aos camaradas “sancionados”, como parte do esforço deles de ou quebrar os militantes ou forçá-los a se retirarem, sem deixar nenhum rastro oficial de conduta burocrática.
 
Os documentos também mostraram métodos similares sendo utilizados para pressionar Trachtenberg a se retirar, um dos últimos militantes remanescentes da IBT com algum passado de contestação da liderança em diversas questões (como a intenção inicial se levar a IBT a votar pela permanência de Hugo Chávez na presidência quando do plebiscito de 2004 na Venezuela). Até mesmo essa coletânea parcial e incompleta que nos enviaram demonstrou um padrão de tentativas de desmoralizá-lo e, assim como ocorreu com outros, tornar sua posição enquanto militante uma ficção, privando-o das discussões internas e etc. A liderança chegou mesmo a explorar seu histórico de depressão ao frequentemente aludir à possibilidade de suas críticas aos métodos burocráticos por ela utilizados serem frutos de “distúrbios mentais”.
 
A liderança da IBT declara para seus militantes que grupos, assim como o nosso, que decidem por encerrar suas relações com eles devido à existência de tais métodos burocráticos na verdade o fazem por discordâncias oportunistas não reveladas. A IBT chegou mesmo a tentar reescrever publicamente a história ao fazer alegações similares quanto a um grupo argentino que traduziu a maior parte dos documentos presentes na seção em espanhol do site deles:
 
“Um recuo menos público, porém mais significativo, foi nossa falha em conseguir fundir com um grupo de camaradas argentinos que aparentaram estar programaticamente muito próximos de nós. Isso se deveu parcialmente à dificuldades linguísticas, mas um fator mais importante era a distância em termos de cultura política expressa por eles à cerca das tarefas e prioridades de um micro-grupo de propaganda.”
 
 
Entretanto, os documentos que eles nos enviaram indicam que o grupo argentino rompeu relações devido às desonestidades “por trás das cortinas” do tipo que nós mesmos experimentamos, e conforme tais documentos demonstram, diversos outros grupos também. Não há razões para não supormos que esse mesmo tipo de “explicação” será dada pela liderança aos militantes da IBT sobre nosso afastamento. Apesar de termos sido informados por recentes ex-membros da IBT que seus militantes de base praticamente não receberam informações sobre nós por parte da liderança ao longo desses últimos três anos, é parte da responsabilidade deles encarar essa dura realidade e reconhecerem que nossa experiência com a IBT segue um padrão que continuará a se repetir.
 
VI – Conclusão
 
Não abandonamos nosso programa revolucionário! Continuamos a defender o legado politico da Liga Espartaquista e da Tendência Bolchevique Internacional até o momento de suas respectivas degenerações burocráticas. Não nos deixaremos desmoralizar por esta experiência! Não desenvolveremos falsas conclusões sobre a suposta impossibilidade de reconstruir uma Quarta Internacional revolucionária e menos ainda alteraremos nossa linha política, como a liderança burocrática da IBT certamente espera como forma de justificar nossa ruptura com tal organização. Apenas concluímos que a IBT já não pode mais contribuir com a reconstrução de um movimento revolucionário.
 
Continuaremos a analisar criticamente a história da IBT para melhor compreender as razões de sua degeneração, bem com a de seus predecessores. Continuaremos a procurar por grupos e camaradas interessados em resgatar as importantes contribuições de organizações que uma vez representaram a continuidade do trotskismo, ao invés de buscar defender os legados de líderes que muitas vezes cooperaram eles mesmos para a degeneração de suas organizações. Nosso objetivo é construir um partido capaz de liderar uma revolução – o que implica não ter medo de assumir riscos organizativos quando necessário, ao mesmo tempo em que mantemos uma vida interna saudável, na qual críticas sejam tratadas de maneira honestamente leal, e sejam capazes de desafiar ortodoxias de longa data sem que por isso sofram perseguições. Um partido que seja capaz de nadar contra a corrente e defender conquistas ideológicas por hora impopulares, bem como reavaliar posições antigas caso estas tenham se mostrado erradas.
 
Assim, declaramos nossas relações fraternais com o Reagrupamento Revolucionário. Convidamos aqueles militantes e ex-militantes da IBT que permanecem incorruptos pela sua experiência, bem como outros que concordem com nossos objetivos políticos, a debater com o Reagrupamento Revolucionário e com o Coletivo Lenin sobre como proceder e conquistar avanços na reconstrução da Quarta Internacional.
 
Saudações Comunistas!
 
Coletivo Lenin,
Dezembro de 2010.
[*] Nota do Reagrupamento Revolucionário: apesar de mantermos o que encaramos como os elementos centrais do programa do Coletivo Lenin, desde o primeiro momento a partir da nossa separação abandonamos a maior parte das posições descritas nos 4 primeiros pontos (à exceção da caracterização da China como Estado operário deformado, mas sem a comparação indevida com a NEP soviética). Mesmo dentro do CL, essas eram posições não consolidadas entre boa parte dos membros, refletindo certa frouxidão programática do grupo.

Polêmica com a LRP sobre o Fim da URSS

Uma Explicação Marxista sobre o Fim da URSS
As “Revisões de Teoria Básica” da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP)
  
A seguir está uma edição levemente atualizada de um rascunho não publicado feito por Samuel Trachtenberg. Originalmente escrito para ser distribuído como uma declaração da Tendência Bolchevique Internacional (IBT) no debate público da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP) com a Liga Espartaquista (SL) em 10 de maio de 2003, em Nova Iorque, ele foi feito como uma resposta a “Teorias do Colapso Stalinista”, publicado na edição do outono de 2002 de Proletarian Revolution. A não ser quando indicado, as citações da LRP foram retiradas deste artigo.


No curso da troca de polêmicas realizadas até seu debate com a LRP, a SL havia respondido a muitos dos desafios polêmicos propostos pela LRP sobre uma ampla variedade de questões. Um artigo da LRP ao qual eles não responderam, no entanto, foi uma polêmica sobre a questão russa, tradicionalmente uma questão central para a SL e um ponto chave separando os dois grupos. Observando a análise da SL sobre a vitória da contrarrevolução capitalista na URSS, o artigo afirma:

“Na URSS, o contragolpe de Ieltsin foi o evento chave no afastamento do Partido Comunista do poder. Nesse conflito entre alas da classe dominante capitalista burocrática, os stalinistas ‘linha-dura’, liderados pelo vice-presidente Gennady Yanaiev, tentaram tomar o poder só para si e pôr fim ao delicado equilíbrio de poder  mantido por Gorbachev, envolvendo eles e os privatistas mais firmes […]”

“Quando a revolta da ‘linha dura’ fracassou, a obra de equilíbrio de Gorbachev entrou em colapso e Ieltsin emergiu para o topo. O seu triunfo inaugurou um período indisfarçável de pilhagem capitalista que enriqueceu um punhado e empobreceu milhões. Embora o time de Yanaiev também estivesse dedicado às reformas de ‘livre mercado’, seu curso esperado era mais lento. Assim, qualquer um que sustentasse a teoria do Estado operário deformado deveria ter defendido o lado de Yanaiev, apesar de sua ameaça imediata de esmagar os trabalhadores – como uma questão de princípio, não apenas tática. No entanto, poucos o fizeram. A maioria apoiou Ieltsin em cima de dúbias bases democráticas, provando mais uma vez que sua teoria do Estado operário é fraseologia vazia […]”
  
“Os espartaquistas viveram um momento particularmente difícil decidindo quando o ‘Estado operário’ soviético tinha sido perdido. Eles anunciaram retroativamente no final de 1992 que a contrarrevolução havia vencido havia algum tempo, permanecendo obscuro exatamente quando. (Veja ‘Espartaquistas Eliminam o Estado Operário Russo Não com um Estrondo, Mas com um Choramingo’ PR nº43). Uma ‘teoria’ que permite aos seus defensores não perceberem a queda de um Estado operário – a terra da revolução bolchevique, ou não mais – quando os eventos decisivos ocorrem diante do mundo inteiro, é inútil para a classe operária…”
  
“Eles não deveriam ter tido problemas em apoiar o golpe de Yanaiev contra Gorbachev em 1991. Mas nessa ocasião eles não tomaram partido. Eles fizeram contorcionismo teórico para evitar fazer isso por uma razão, porque isso teria significado admitir que os seus arquirrivais, a Tendência Bolchevique Internacional (IBT), estavam ‘certos’ enquanto eles errados. Para todo o alardeio de seu suposto apego bolchevique ao programa, os espartaquistas são frequentemente motivados por pequenas necessidades organizativas.”
  
“Teorias do Colapso Stalinista”
Proletarian Revolution nº65, Outono de 2002
  
Argumentando de uma perspectiva muito diferente da IBT [1], a LRP está ecoando sua afirmação correta de que a única posição defensista soviética consistente era a de ficar do mesmo lado militar dos stalinistas contra Ieltsin, e demonstra a lógica reformista da teoria da SL de contrarrevolução “aos poucos” na URSS. Esses são todos pontos em que a SL tem consistentemente falhado em explicar quando levantados.
  
A força da posição da LRP reflete o fato de que, enquanto a SL afirma reivindicar o defensismo soviético em teoria, no momento mais crucial ela renunciou-o na prática. Em contraste, a LRP teve mais consistência (relativamente à SL) ao renunciar em ambos.
  
Previsões sobre a estabilidade stalinista
  
Desde a polêmica inicial da IBT com a LRP sobre a questão russa (1917 nº6), o mundo assistiu ao colapso do stalinismo na URSS e no Leste Europeu. A LRP diz que, na esquerda, apenas a sua teoria do capitalismo de Estado lhes permitia prever a queda do stalinismo com antecedência. Isso é falso já que a IBT (assim como outros na esquerda) concordavam com a previsão de Trotsky de que:
  
“ou a burocracia, tornando-se ainda mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, vai destruir as novas formas de propriedade e lançar o país de volta ao capitalismo; ou a classe trabalhadora vai esmagar a burocracia e abrir o caminho para o socialismo.”
  
Programa de Transição (1938)
  
Em resposta à inesperada expansão do stalinismo no Leste Europeu no período pós-guerra, e as vitórias de lutas guerrilheiras de base camponesa lideradas por stalinistas na Ásia, ambas resultando na liquidação das relações de propriedade capitalistas, Michel Pablo, então líder da Quarta Internacional (assim como escritores como Isaac Deutscher) impressionisticamente previram que o stalinismo era a onda do futuro. O corolário era que o programa da revolução política contra os stalinistas, como defendido por Trotsky, estava ultrapassado, que os partidos stalinistas agiriam como arma suficiente, embora “cega”, para o socialismo, e que o papel dos trotskistas deveria ser se liquidarem dentro das organizações deles para “afiarem” as armas cegas. As previsões promissoras de Pablo para os stalinistas, descritas como “séculos de Estados operários deformados” por seus oponentes na época, foram de fato descreditadas. Como a LRP deveria saber, a IBT, assim como seus predecessores políticos, que se opuseram à destruição revisionista da Quarta Internacional realizada por Pablo, sempre defenderam a visão de Trotsky sobre o caráter transitório e instável da burocracia stalinista.
  
“Aqueles que não são capazes de defender as conquistas antigas”
  
Durante o tempo de vida de Trotsky existiam tendências em sua organização que, assim como a LRP, acreditavam que a URSS já tinha deixado de ser um Estado operário. Enquanto reconhecia que a diferença teórica no curso dos eventos poderia (e inevitavelmente iria) ter consequências programáticas, Trotsky acreditava que a chave para colaboração política na questão era acordo sobre a necessidade de derrubar os stalinistas combinada com a necessidade de defender a URSS contra a restauração capitalista, sob quaisquer bases teóricas.
  
A LRP buscou um meio termo teórico entre teorias do capitalismo de Estado tradicionais e a teoria de Trotsky, enquanto na prática geralmente tira as mesma conclusões que os seguidores das primeiras. De acordo com a visão um tanto única da LRP [2] a URSS era um Estado capitalista presidindo sobre formas de propriedade nacionalizadas. Eles reconhecem a propriedade nacionalizada como um importante ganho ainda deixado pela revolução de outubro e que devia ser defendido. Os stalinistas, nesse intervalo, eram vistos agindo como uma burguesia “regente”, virando a propriedade estatal contra a classe trabalhadora e explorando-a com ela, enquanto secretamente esperava (por mais de 80 anos) pela oportunidade certa de restaurar o capitalismo de mercado convencional. Apesar da teoria mais do que falha, a LRP ainda foi capaz de corretamente previr, na época da crise stalinista, que:
  
“Entretanto, se o poder econômico da burocracia e seus novos aliados reformistas e burgueses ocidentais não for quebrado, os trabalhadores do Leste Europeu verão suas revoluções se virarem contra eles, e se tornarão vítimas de exploração ainda mais profunda do que antes.”
  
“Revolução Varre a Europa”
PR nº36 (Inverno de 1990)
  
No seu mais recente artigo, eles corretamente criticam Tony Cliff:
  
“Em 1998 Cliff publicou um artigo intitulado “O Teste do Tempo” para dizer que sua teoria do capitalismo de Estado tinha sido comprovada. Lá ele repetiu a análise do “passo para o lado”. É remotamente concebível que em 1990 observadores deixassem passar despercebida a ameaça a todos os direitos dos trabalhadores e níveis de vida que estavam vinculados à privatização e pilhagem da propriedade estatal. Mas não no fim da década. Cliff e Cia. nunca aceitaram que qualquer ganho da classe operária tinha sobrevivido sob o stalinismo e assim olharam complacentes enquanto eles iam por água abaixo.”
  
Fazem as observações corretas de que:
  
“as ‘revoluções’ em nome da liberdade devastaram as classes trabalhadores e as levaram para um período de comparativa passividade.”
  
E (numa passagem previamente citada):
  
“o seu triunfo [de Ieltsin] inaugurou um período de indisfarçável pilhagem capitalista que enriqueceu um punhado e empobreceu milhões.”
  
Para um grupo que parecia reconhecer o valor e a necessidade de defender as formas de propriedade nacionalizadas, poderia-se supor que o corolário político lógico fosse o defensismo soviético, ainda que na base de um teoria confusa e imprecisa. No entanto, como a maioria das outras organizações que reivindicam ser trotskistas, aqueles com teorias “ortodoxas”, assim como aqueles do “terceiro campo”, a LRP apoiou todas as “revoluções populares” pró-capitalistas, do Solidariedade na Polônia de 1981 em diante que, por acaso, destruíram as formas de propriedade nacionalizadas junto com os stalinistas. Essa experiência deveria forçar qualquer pessoa para a conclusão, ainda que tardiamente, que não se poderia defender a valiosa propriedade nacionalizada sem ao mesmo tempo defender aqueles Estados que se baseavam nessa propriedade contra as forças políticas que buscavam a privatização. No entanto, a LRP ainda argumenta:
  
“Na URSS, o contragolpe de Ieltsin foi o evento chave no afastamento do Partido Comunista do poder. Nesse conflito entre alas da classe dominante capitalista burocrática, os stalinistas ‘linha-dura’, liderados pelo vice-presidente Gennady Yanaiev, tentaram tomar o poder só para si e pôr fim ao delicado equilíbrio de poder  mantido por Gorbachev, envolvendo eles e os privatistas mais rápidos. O golpe colocava um agudo perigo para a classe trabalhadora, já que seus líderes anunciavam uma imediata proibição das greves e uma retração dos limitados ganhos democráticos cedidos por Gorbachev na campanha da ‘glasnost’ (abertura) na meia década anterior. Então os trabalhadores revolucionários teriam se oposto ao golpe e teriam taticamente entrado num bloco militar com Ieltsin para derrotar a ameaça imediata aos interesses dos operários.”
  
(Numa seção do seu artigo que nós citamos anteriormente, a LRP castigou os grupos que “apoiaram Ieltsin em dúbias bases democráticas”).
  
Em contraste, Trotsky corretamente indicou:
  
“Nós não devemos perder de vista nem por um instante o fato de que a questão de derrubar a burocracia soviética é para nós subordinada à questão de preservar a propriedade estatal dos meios de produção na URSS; que a questão de preservar a propriedade estatal dos meios de produção na URSS é subordinada para nós à questão da revolução proletária mundial”.
  
Em Defesa do Marxismo (1942)
  
Para a LRP, a questão de defender a propriedade estatal dos meios de produção é subordinada à derrubada dos stalinistas. Subordinar a linha de classe ao democratismo pequeno-burguês parece ser o substrato da substituição que a LRP faz da análise marxista pelo moralismo em muitas de suas posições erradas, da questão russa à questão nacional. 
  
Propriedade nacionalizada
  
A LRP busca criar o que, nesse caso, é uma falsa e artificial distinção, argumentando que a sua defesa era limitada à propriedade nacionalizada, mas não ao Estado. De uma maneira similar, eles dizem que defenderiam reformas estatais socialdemocratas e liberais de bem-estar social, ou nacionalizações realizadas por regimes burgueses no terceiro mundo, pelo propósito do desenvolvimento econômico etc. Entretanto, muitas seções da classe dominante reconhecem que serviço postal público, transporte público de massa, educação pública e outros setores estatais não são apenas ganhos obtidos pela classe operária, mas também os requisitos mínimos para o funcionamento apropriado da economia capitalista. Intervenções estatais na economia capitalista são particularmente importantes em períodos de crise econômica e guerra. Mas dizer que a as relações de propriedade nacionalizada que existiam na União Soviética e outros Estados operários eram de caráter similar exige vontade de não querer ver.
  
A LPR às vezes parece reconhecer isso, quando escreve:
  
“Trotsky não pensava que a burguesia tradicional pudesse na prática nacionalizar completamente a economia. Ele estava certo: isso exigia a revolução proletária, posteriormente usurpada pela burocracia stalinista”. [3]
  
A diferença entre uma sociedade capitalista com vários traços “sociais” e a URSS é o mesmo que a diferença entre a NEP de Lenin e o capitalismo.
  
O Estado e a contrarrevolução
  
A LRP corretamente expõe a inabilidade da SL (e de outros) de dizer quando a contrarrevolução triunfou na URSS. Tendo sido neutra na luta entre Ieltsin e os burocratas stalinistas em agosto de 1991, é compreensível o porquê de a SL buscar negar o significado da vitória de Yeltsin.
  
A LRP está certa em afirmar que essa é uma questão teórica muito séria a qual os marxistas devem responder. Ao argumentar que Ieltsin gradualmente, no decorrer de um tempo indeterminado, realizou de maneira bem sucedida uma contrarrevolução “aos poucos”, a SL, como ela havia previamente argumentado quando ainda uma organização revolucionária, tinha realizado um:
  
“abandono da teoria leninista sobre o Estado em favor de uma concepção linear, burguesa, como a de um termômetro que gradualmente passa de ‘Estado burguês’ para ‘Estado operário’ por pequenos incrementos, sem uma mudança qualitativa. Tal metodologia é a pedra angular do Pablismo.”
  
“Carta para o CORQUI e a OCI”
Spartacist nº22, Inverno de 1973-74
  
Tal compreensão teórica reformista, como Lenin apontou em obras como O Estado e a Revolução e A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, desempenharam um importante papel quando a socialdemocracia cruzou a linha de classe em 1914. Esse abandono teórico também foi evidente, como a LRP corretamente percebe, no entendimento que a Quarta Internacional tinha nos anos 1940 sobre a criação de Estados operários deformados no Leste Europeu e China. 
  
A IBT havia anteriormente criticado esse ponto em relação à SL (veja “Entendendo a Rússia Certo” por S. Trachtenberg, 1917 nº16, 1995) assim como para outros grupos, como o Esquerda Comunista da Nova Zelândia (hoje Grupo Operário Comunista/NZ):
  
“É notável que cada onda maior de revisionismo no marxismo atingiu a concepção marxista sobre o Estado. De Bernstein, para Kautsky, para Stalin – todos tentaram minar a concepção do Estado como força armada em defesa de uma forma de propriedade da classe dominante. Assim, o revisionismo substitui o marxismo por Estados ‘de duas classes’, Estados ‘sem classes’, Estados ‘intermediários’, e Estados ‘de transição’….”
  
“Um Estado ‘de duas classes’ é inevitavelmente um Estado burguês, assim como uma frente popular ‘de duas classes’ é inevitavelmente uma frente burguesa. Em última instância, o programa comunista em relação a um Estado ‘de duas classes’ e a uma frente popular ‘de duas classes’ se reduz à questão da linha de classe. As dificuldades do Esquerda Comunista nas duas questões derivam de uma mesma fonte: a sua incapacidade de distinguir a linha de classe.”
  
Contra o Centrismo (1993)
  
O ponto também foi criticado para a Liga por uma Internacional Comunista Revolucionária (hoje Liga pela Quinta Internacional):
  
“Harvey pensa que ‘o caráter de classe do Estado’ no caso de tais oscilações pode ser determinado pela atividade de tal regime a qualquer instante determinado – quando ele age para os capitalistas, ele é um Estado capitalista, mas, se ele tomar alguma ação em favor do povo trabalhador, ele se torna um Estado operário. O tipo de ‘marxismo’ que ‘entende’ tais noções é chamado kautskismo.”
  
“Lenin atacou a idéia de que um Estado burguês possa ser transformado em um instrumento para servir aos interesses dos oprimidos:
  
‘Que o Estado é um órgão do poder de uma classe definida que não pode ser reconciliado com o seu antípoda (a classe que se opõe a ele) é algo que os democratas pequeno-burgueses nunca serão capazes de entender’ – O Estado e a Revolução’”
  
“Lenin categoricamente rejeitava a idéia de que um regime pequeno-burguês oscilante (ou qualquer outra coisa) possa transformar um Estado capitalista em um instrumento para revolução social:
  
‘Revolução consiste não em uma nova classe comandando, governando com a ajuda da antiga máquina de Estado, mas nessa classe esmagando tal máquina e comandando, governando com a ajuda de uma nova máquina. Kautsky denigre essa idéia básica do marxismo, ou ele falhou grotescamente em entendê-la’”
  
“Cuba, a LCRI & Teoria Marxista”
1917 nº13, 1994
  
A LRP colocou o que parece ser um argumento similar numerosas vezes:
  
“As mudanças governamentais hoje [em relação ao pós-guerra no Leste Europeu] vão na direção reversa: os stalinistas estão sendo substituídos por tipos que pretendem ser burgueses. (‘Burguês’ se refere ao capitalismo tradicional do Ocidente, como distinto da versão estatizada do Leste). Ambas as transformações aconteceram sem confrontações forçosas entre os dois elementos dominantes. Chamá-las de revoluções sociais leva ao reformismo, a noção de que o poder pode ser transferido de uma classe para outra pacificamente e gradualmente. Isso contradiz o ensinamento central da teoria marxista de que o Estado é o instrumento de uma classe dominante particular e defende a ordem e as formas econômicas dessa classe com seu poder armado.”
  
“A Agonia Mortal de uma Teoria Deformada”
PR 39, Inverno de 1991
  
e no artigo mais recente:
  
“Marxistas que acreditam que a URSS e Estados aliados eram não-capitalistas antes de 1989 mas que são capitalistas agora terão que responder à pergunta para cada país: quando a contrarrevolução aconteceu? Nós já mencionamos que trotskistas ortodoxos nos anos 1940 tinham problemas consideráveis com a ‘questão da data’ daquele tempo: quando os países do Leste Europeu, China, etc. se tornaram Estados operários? O problema reverso após 1989 foi igualmente problemático” [4]

A solução da LRP é argumentar que a contrarrevolução triunfou nos anos 1930, como consequência dos Julgamentos de Expurgo. A LRP argumenta que os expurgos representaram uma “guerra civil preventiva” e que portanto sua análise resgata a teoria marxista da necessidade de uma contrarrevolução violenta:
  
“A degeneração acelerou nos anos 1930. Durante os Grandes Expurgos na segunda metade da década, os stalinistas aniquilaram os elementos revolucionários sobreviventes no partido e destruíram as unidades de oficiais do Exército Vermelho. O núcleo essencial do poder de Estado – seu exército, polícia e poderes jurídicos foi expurgada e expurgada novamente até que todos os vestígios de bolchevismo fossem apagados. Assim, o aparato de Estado foi esmagado e reconstituído numa ferramenta da alta burocracia – uma nova classe capitalista, uma classe dominante regente no lugar da burguesia destruída. Isso significou a conclusão da contrarrevolução: o Estado operário foi destruído.”
  
Enquanto houve uma contrarrevolução violenta na URSS em agosto de 1991, é verdade que em muito do Leste Europeu tal confrontação não ocorreu; no lugar os stalinistas e uma classe operária desorientada abdicaram do poder. Como Trotsky notou:
  
“Se um exército capitula ao inimigo numa situação crítica sem lutar, então essa capitulação toma completamente o lugar de uma ‘batalha decisiva’, na política como na guerra.”
  
A Terceira Internacional Depois de Lenin (1928)
  
Como um precedente histórico na outra direção, a República Soviética Húngara de 1919 chegou ao poder quando o governo e Estado burguês similarmente abdicaram do poder sem luta. Marx, Engels, Lenin e Trotsky todos reconheceram a possibilidade teórica, se não a probabilidade, de uma obtenção pacífica (em oposto a gradual) do poder de Estado [5]. Em escritos tais como A Guerra Civil na França e O Estado e a Revolução, a principal questão não era o nível de força e violência usada para uma revolução e, por implicação, contrarrevolução, bem sucedida, mas sim que “a classe trabalhadora não pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado pronta e usá-la para seus próprios propósitos”.
  
No entanto, isso é precisamente o que a teoria da LRP (como a da SL) implica; que os stalinistas/capitalistas nos anos 1930 (ou Ieltsin em 1991-92) tomaram posse da “máquina de Estado pronta” e então prosseguiram para usá-la na restauração do poder capitalista através da morte e do expurgo de elementos comprometidos com as formas de propriedade socialistas. Para usar uma analogia, usando essa metodologia pode-se então teoricamente argumentar que o caminho para o socialismo reside em se infiltrar secretamente nos partidos Democrata e Republicano e, uma vez retendo posições de poder, usá-lo para gradualmente expurgar aqueles comprometidos com o capitalismo a partir de dentro do aparato de Estado.
  
Embora usada num diferente contexto, a afirmação de James Cannon (frequentemente citada pela LRP) é muito bem adequada nesse assunto:
  
“Eu não acho que você possa mudar o caráter de classe de um Estado por manipulações no topo. Isso só pode ser feito por uma revolução que seja seguida por uma mudança fundamental nas relações de propriedade… Se  você começa a brincar com a idéia de que a natureza de classe do Estado pode ser mudada por manipulações nos altos círculos, você abre a porta para todos os tipos de revisões de teoria básica.” 
  
Boletim Interno do SWP, outubro de 1949 (citado no artigo da LRP) [6]
  
Leninismo vs. economicismo
  
Um argumento central colocado pela LRP é de que se a URSS fosse um Estado operário, então a classe operária teria se levantado para defendê-la. Já que não houve insurreições da classe operária contra os stalinistas nos anos 1930, o período no qual a LRP considera que a contrarrevolução capitalista triunfou, a LRP deveria logicamente chegar à conclusão de que a URSS nunca foi um Estado operário.
  
A raiz dessa teoria facilmente desmentida é a rejeição pela LRP do entendimento de Lenin de que a consciência socialista não é um reflexo automático dos interesses materiais da classe operária, mas que devemos lutar por ela entre a classe operária a partir de fora, com a intervenção de um partido de vanguarda. Se os trabalhadores fossem espontaneamente socialistas, então a revolução teria triunfado há muito tempo, trabalhadores jamais apoiariam frentes populares, guerras imperialistas, ideologias racistas etc. Assim como a classe trabalhadora recebe uma infusão de falsa consciência burguesa pelos burocratas sindicais e socialdemocratas reformistas, ela também a recebeu por décadas de desgoverno stalinista, mentiras e repressão.
  
A LRP argumenta nesse artigo que:
  
“Trotsky uma vez disse sobre a União Soviética que aqueles que não fossem capazes de defender os ganhos passados da classe trabalhadora jamais poderiam obter novos. O mesmo é verdade sobre aqueles que não podem compreendê-los.”
  
Usando esse critério correto, ambos a LRP e seus parceiros de debate mostraram tanto incapacidade de defender quanto compreender.
  
Notas
  
[1] Nos anos 1940, Max Shachtman, de maneira similar, também foi capaz de fazer astutas observações sobre as cambalhotas teóricas da Quarta sobre as extensões stalinistas no pós-guerra, enquanto mantinha ele próprio uma análise incorreta.
  
[2] A LRP desenvolveu uma teoria do capitalismo de Estado que é unicamente sua, e não parece ver a ironia de, por um lado, fazer uma mistura de todos aqueles que revindicam ser trotskistas “ortodoxos”, exultando:
  
“Depois da queda, apesar de sua teoria comum, eles não podiam concordar sobre como ou quando os ex-Estados stalinistas tinham se tornado capitalistas. A ‘teoria’ acabou não sendo nenhuma base para análise, mas simplesmente um distintivo para sociedades que certa vez tinham aparentado livres da crise do capitalismo.”
  
enquanto observam sobre o “clube” do capitalismo de Estado, a qual alguns argumentam que eles pertencem:
  
“Outros erros a parte, nenhuma dessas correntes lidou adequadamente com a histórica dimensão da ‘mudança de regime’ na URSS: como e quando o Estado operário soviético tinha sido desfeito? Todos eles disseram ou deixaram implícito que os stalinistas tinham acabado com o Estado operário no momento em que se consolidaram no poder nos anos 1920 ou no começo dos anos 1930.”
  
[3] Essa visão não conta para a criação de economias completamente nacionalizadas nos Estados geridos pelos stalinistas fora da URSS.
  
[4] A confusão da Quarta naquela época foi parcialmente um reflexo de observar as formas de propriedade dominantes, que foram gradualmente modificadas, mais do que o poder armado, o núcleo do Estado, que era o Exército Soviético ocupando esses países. Os governos “populares” que incluíam figuras burguesas não tinham poder real, estando o poder efetivo nas mãos das tropas de ocupação soviéticas que instalaram e retiraram esses governos conforme quiseram. Na maioria dos países os capitalistas foram expropriados; em outros, como a Áustria, eles não foram, sendo o resultado no final o produto das decisões soviéticas (decisões forçadas sobre eles pela pressão militar imperialista). No período de intervalo, o que existia era uma força militar ainda não comprometida com a propriedade capitalista ou coletivizada. Ou seja, não havia Estado no sentido marxista do termo.
  
[5] Marx e Engels na ocasião argumentaram sobre a possibilidade, sob circunstâncias históricas diferentes no passado, de uma transição pacífica nos Estados Unidos e na Inglaterra. No período imediato precedendo a revolução russa, Lenin discutiu a remota possibilidade de isso também ocorrer na Rússia:
  
“Antes de 4 de julho […] transferir o poder aos Sovietes então existentes […] poderia ter sido feito pacificamente, sem Guerra Civil. Porque não havia ocorrido atos de violência sistemática contra as massas, contra o povo”
  
“Agora e apenas agora, talvez durante apenas alguns dias ou uma semana ou duas, tal governo possa ser estabelecido e consolidado de um modo perfeitamente pacífico. Com toda probabilidade ele poderia assegurar o avanço pacífico de toda a revolução russa […]” (ênfase no original)
  
Citado em “Lenin em 1917” de Victor Serge
Revolutionary History, Vol. 5 No.3
  
[6] Apesar das melhores intenções da LRP de evitar as armadilhas das “revisões de teoria básica” ao postular a mudança do caráter de classe do Estado através de “manipulações no topo”, parece que a lógica de tentar afirmar, contra a verdadeira realidade histórica, a restauração do capitalismo nos anos 1930 forçou a LRP a cair precisamente nessa arapuca enquanto buscava responder à “questão da data”:
  
“A culminância formal da contrarrevolução veio no 18.º Congresso do Partido em março de 1939. Lá o triunfante PC santificou as novas relações sociais e abertamente se consagrou à intelectualidade burocrática. Após esse ponto era impossível dizer que o Estado era dominado pelos interesses da classe operária, ainda que numa forma distorcida […]”
  
“Onde a Constituição de 1936 tinha simbolicamente substituído o proletariado em favor de ‘todo o povo’, agora o Congresso do Partido dava poder à nova burocracia […]”
  
“dirigindo-se ao Congresso, o capanga de Stalin, Zhdanov, declarou que a preferência até então dada aos militantes que estavam no partido provenientes da classe operária tinha acabado: ‘O sistema existente, como prescrito nas Regras do Partido, de admitir novos membros no Partido de acordo com quatro categorias diferentes, dependendo do status social [ou seja, classe] do candidato, é obviamente incompatível com as mudanças na estrutura de classe da sociedade soviética resultante da vitória do socialismo na URSS.”
  
A Vida e a Morte do Stalinismo, de Walter Daum
Páginas 183-184
  
Muitos irão reconhecer este esquema arbitrário como tendo muito em comum com a reivindicação maoísta de que a URSS se tornou capitalista em 1956, logo depois que Kruschev fez seu famoso “Discurso Secreto” reconhecendo muitos dos crimes de Stalin. 

29 de abril de 2009

Introdução à Série Polêmica Marxista

Reagrupamento Revolucionário
Introdução à série Polêmica Marxista 

Escrito por Samuel Trachtenberg no mesmo ano de sua ruptura com a Tendência Bolchevique Internacional (TBI) e da fundação do projeto Reagrupamento Revolucionário, o seguinte artigo é a introdução para uma série de polêmicas já publicadas e também planejadas. Entretanto, o reproduzimos enquanto uma introdução aos documentos aqui disponibilizados com o objetivo de apresentar a nossa organização de um ponto de vista histórico. A tradução para o português foi realizada em 2011 por Leandro Torres e Rodolfo Kaleb.

Em 1938, na conferência de fundação do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) norte-americano, após ter ganhado para o trotskismo revolucionário de maneira bem sucedida uma larga fração de membros do reformista Partido Socialista (SP), inclusive uma maioria de sua juventude, James P. Cannon explicou que:

“TODA A EXPERIÊNCIA da luta de classes numa escala mundial, e especialmente a experiência dos últimos vinte anos, ensinam uma lição acima de todas as outras, uma lição resumida numa única posição: o mais importante problema da classe trabalhadora é o problema do partido. O sucesso ou o fracasso nesse domínio é a diferença entre a vitória ou a derrota todas às vezes. A luta pelo partido, o esforço incessante para construir uma nova organização política de vanguarda sobre as ruínas da velha, concentra em si mesma os mais vitais e progressivos elementos da luta de classes como um todo…”

“A reconstrução do movimento operário revolucionário na forma de um partido político não é um processo simples. No meio de dificuldades sem precedentes, complicações e contradições, o trabalho continua, como em todos os movimentos sociais, numa linha em ziguezague. O movimento novo toma forma através de uma série de rachas e fusões que devem parecer com um quebra-cabeças chinês ao observador superficial. Mas como poderia ser de outra forma? A assustadora desintegração dos movimentos antigos, num cenário de levante mundial, desorientou e separou os militantes revolucionários em todas as direções. Eles não podem achar o seu caminho sozinhos, nem chegar às mesmas conclusões básicas, do dia para a noite.”
Um Novo Partido é Criado (1938)
 
No mesmo discurso, Cannon, um líder histórico do trotskismo nos Estados Unidos, também comentou sobre os sectários “antissectários” dos seus dias. Como hoje, o pequeno movimento trotskista era zombado por seu foco em lutar por clareza ideológica e programática dentro da extrema esquerda do movimento operário. Contraposta a isso era uma falsa e aventureira “orientação para as massas”. Os “antissectários” que denunciavam os trotskistas como “primariamente um círculo de teóricos isolados e detalhistas” Cannon caracterizava como “centristas que manobram todo o tempo com inexistentes ‘movimentos de massa’ no vácuo…”. Enquanto revolucionários confiam numa classe trabalhadora politicamente consciente, aliada com todas as massas exploradas e oprimidas, como a única capaz de destruir o capitalismo numa escala mundial, e não pode buscar agir como um substituto a ela, Cannon explicou que “A estrada para as massas é através da vanguarda e não por cima da sua cabeça.” (A História do Trotskismo Americano).

Ao contrário, os verdadeiros sectários (e em geral, também oportunistas) são aquelas tendências que tentam enganar seu público ao se recusarem rigorosamente a sequer mencionar ou reconhecer a existência de todos os outros grupos em suas publicações, ou ao pôr pressão em seus membros e simpatizantes para impedir que entrem em contato livre com militantes de outras correntes ou que leiam seus textos. Mas a vitória das políticas corretas sobre as incorretas só pode triunfar sob circunstâncias de debate livre e honesto entre todos. As organizações que se abstém ou tentam pôr pressão em seus membros e simpatizantes para não participarem nesses debates estão proclamando a falta de confiança em sua política, assim como em seus membros e simpatizantes. Assim, essas organizações não merecem confiança, nem dos seus membros e simpatizantes, nem da classe trabalhadora como um todo.
***

A série Polêmica Marxista é produzida pelo Reagrupamento Revolucionário e cada número será dedicado a um tema político específico. Nosso público alvo para esta série são os grupos e militantes subjetivamente revolucionários ao redor do mundo que “devido à desintegração dos movimentos antigos” estão nesse momento “desorientados e divididos”.

Também esperamos que esses documentos sejam bem sucedidos em esclarecer e introduzir questões centrais para aqueles que há pouco se interessaram pela política revolucionária. Uma investigação séria das organizações atualmente existentes é crucial para decidir qual grupo deve-se ajudar a construir, ou então nele permanecer. Como tem sido frequentemente demonstrado por muitos, pode-se perder muitos anos de vida se isso não for feito.
***
Ao criticar diferentes tendências políticas, não nos limitaremos àquelas maiores entre as existentes atualmente. Muitos grupos internacionais ainda pequenos são mais jovens e, assim, menos burocratizados, e apegam-se menos às tradições e ortodoxias revisionistas que os grupos dos quais racharam. Tendências socialistas menores frequentemente possuem hoje membros mais compromissados e mais desenvolvidos teoricamente (e em algumas circunstâncias, dependendo de suas histórias, a sua liderança também) do que organizações maiores. Desse modo, eles irão provavelmente desempenhar um papel altamente importante nos estágios iniciais de construção de um partido revolucionário.

Em resposta aos que argumentavam que os trotskistas alemães prestavam atenção insuficiente ao Partido Comunista, que possuía uma quantidade maciça de membros em relação a outros grupos, Leon Trotsky respondeu:

“Talvez pareça estranho que nós devamos devotar comparativamente trabalho tão grande a uma organização tão pequena. Mas a essência da questão está no fato de que a importância do SAP é muito maior do que o próprio SAP. Envolvido aqui está, em última instância, a questão de uma política correta em direção às tendências centristas que agora aparecem em todas as cores do arco-íris no movimento operário. O aparato centrista conservador herdado do passado deve ser abortado do desenvolvimento revolucionário da vanguarda proletária, essa é a tarefa!”
Alquimia centrista ou marxismo (1935).
***

Os pablistas e outros oportunistas objetivistas geralmente confiam no desenvolvimento orgânico do processo histórico para resolver o problema do reagrupamento revolucionário (e por esse propósito a crise de liderança revolucionária também). Para eles, a simples existência de um movimento de massas popular, quaisquer que sejam sua liderança e sua política, expressa por si só a solução para esse problema. Todos aqueles que não se comportam como ovelhas seguindo um pastor e tentam expor os falsos líderes, são denunciados por serem ultraesquerdistas e “sectários sem solução”.

Apesar de frequentemente se queixarem da divisão nas forças revolucionárias, o problema que está na raiz da confusão e da desorientação política não lhes interessa. Eles esperam que as lideranças não-revolucionárias do movimento de massas do momento sejam forçadas pela força dos fatos a se tornarem um “instrumento desafinado” para o socialismo, quaisquer que sejam suas intenções verdadeiras ou iniciais, muito menos consideram qualquer confusão ou desorientação política da parte de outros. A história das derrotas da classe operária (que incluem muitas situações potencialmente revolucionárias) que inevitavelmente aconteceram sob a liderança desses líderes traiçoeiros, da Espanha ao Chile e ao bloco soviético, é geralmente aceita formalmente, mas suas lições são repetidamente ignoradas para as lutas dos dias de hoje. Isso arma o terreno para a repetição dessas derrotas.

Hoje essa atitude é mais bem expressa pelas profundas ilusões de muitos que afirmam serem marxistas na capacidade de Hugo Chávez de liderar a Venezuela em direção a uma revolução socialista. Tal posição não está apenas em conflito com o entendimento do marxismo sobre a necessidade do programa e da liderança revolucionária, mas também no entendimento sobre a impossibilidade de reformar o Estado capitalista, e a oposição à colaboração de classes. Ela também pressupõe, explicita ou implicitamente, uma estratégia similarmente reformista a nível internacional.

Outras tendências, ou explicitamente não tem interesse no reagrupamento revolucionário, ou inconscientemente sabotam todas as oportunidades que tem para tal. O recrutamento numericamente significativo de camaradas experientes com força de vontade põe um desafio em potencial para a habilidade dos líderes autoritários de controlarem suas seitas. A sua atitude sectária não é um reflexo de qualquer tipo de sinceridade juvenil ou ultraesquerdismo rígido, mas sim medo burocrático. A existência de suas organizações é transformada em um fim em si próprio e para eles próprios, ao invés de um veículo para construir uma liderança revolucionária das massas. As lideranças de tais grupos geralmente deixaram há muito de acreditar nas políticas e objetivos formais que eles professam, prestando essencialmente o mesmo papel que o “socialismo dos dias de festa” da Segunda Internacional, mascarando a realidade dos seus objetivos e posições verdadeiros. Eles preferem que seus grupos permaneçam pequenos, tornando-os mais fáceis de controlar. Em contraste, a atitude de Trotsky não era nem objetivista nem sectária.

“A crise de liderança proletária não pode, é claro, ser superada através de uma fórmula abstrata. É questão de um processo extremamente monótono. Mas não de um processo puramente ‘histórico’, ou seja, das premissas objetivas de atividade consciente, mas de uma cadeia ininterrupta de medidas ideológicas, políticas e organizativas com o propósito de reunir os melhores, mais conscientes elementos do proletariado mundial debaixo de uma bandeira sem mácula, elementos cujo número e autoconfiança devem ser constantemente reforçados, cujas conexões com seções mais largas do proletariado devem ser constantemente desenvolvidas e aprofundadas – em uma palavra: devolver ao proletariado, sob novas e altamente difíceis e onerosas condições, sua liderança histórica.”
Rosa Luxemburgo e a Quarta Internacional (1935).
***

A resolução de 1961 da Socialist Labour League (SLL) britânica, que estava liderando o Comitê Internacional na época, argumentava que:

“A Quarta Internacional, como organização mundial fundada por Leon Trotsky em 1938, não existe mais. Ela foi destruída pelo pablismo.
A Perspectiva Mundial para o Socialismo, Labour Review (inverno de 1961), página 127.

Enquanto o CI subsequentemente mudou e desonestamente apagou essa posição no curso de sua degeneração política, o documento da SLL prestou um importante papel na formação da Tendência Revolucionária dentro do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP). Num documento fracional fundamental contra o giro do SWP para o pablismo, a TR afirmou:

“Nos últimos quinze anos o movimento fundado por Leon Trotsky sofreu uma profunda crise teórica, política e organizativa. A manifestação superficial dessa crise foi o desaparecimento da Quarta Internacional como uma estrutura significativa. O movimento consequentemente foi reduzido a um grande número de pequenos grupos, formalmente filiados a três tendências: o ‘Comitê Internacional’, o ‘Secretariado Internacional de Pablo’ e o ‘Secretariado Internacional de Posadas’. Políticos superficiais esperam superar a crise por uma fórmula organizativa – ‘unidade’ de todos pequenos grupos que queiram se unir em torno de um programa de denominador comum. Essa proposta obscurece, e na verdade agrava, as causas políticas e teóricas fundamentais dessa crise.”
Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional (1963).

Se a “desintegração dos movimentos antigos… que desorientou e dividiu os militantes revolucionários em todas as direções” tornou as tarefas dos trotskistas complexas em 1938, a desintegração da Quarta Internacional em três tendências internacionais, numa situação de continuação da separação e confusão pré-existentes tornou-as substancialmente mais difíceis e complexas em 1963. Hoje existem não apenas 3 organizações reivindicando o trotskismo, mas muitas. Dessa forma, as conclusões organizativas propostas pela TR retém a sua validade ainda hoje.

“A tarefa do movimento marxista revolucionário internacional hoje é restabelecer sua própria existência real. Falar da ‘conquista das massas’ como uma guia geral internacional é um exagero qualitativo. As tarefas diante da maioria das seções trotskistas e grupos atuais parte da necessidade de clarificação política na luta contra o revisionismo, no contexto de um nível de trabalho de uma natureza geral preparatória e propagandista.”

Para muitos militantes, a atividade mais estreita imposta pela situação, compreensivelmente, não parece atraente. Entretanto, esse crucial trabalho preparatório é hoje uma precondição para liderar lutas de massas de maneira bem sucedida amanhã. Em tais períodos, Trotsky argumentou:

“Uma tendência revolucionária não pode contar com vitórias relâmpagos em um tempo em que o proletariado como um todo está sofrendo as maiores derrotas. Mas isso não é justificativa para ficar de braços cruzados. Precisamente nos períodos de refluxo revolucionário é que se formam e desenvolvem os quadros que mais tarde serão chamados a liderar as massas numa nova investida.”
É necessário Construir Partidos Comunistas e uma Nova Internacional (1933).
***

O Reagrupamento Revolucionário está determinado a não se curvar diante da dificuldade da situação, e nem fazer desta uma virtude permanente como outros antes fizeram. Como previamente declarado, nós seguimos

“convencidos da necessidade e da possibilidade de derrubar a sociedade capitalista, mas essa possibilidade só pode se atingida através do reagrupamento dos subjetivamente revolucionários pelo mundo numa base programaticamente sadia pela reconstrução da Quarta Internacional.”
Carta de Rompimento de Sam T. com a Tendência Bolchevique Internacional (2008).

Dezembro de 2008

Polêmica com o IG / LQB

Grupo Internacionalista / Liga Quarta Internacionalista do Brasil:
Ainda Cambaleando em Torno de uma “Explicação Séria”
  

17 de agosto de 2010

Enquanto critica corretamente muitas das posições atuais da Liga Espartaquista (SL) [organização dos EUA], a liderança do Grupo Internacionalista [IG – organização internacional que dirige a Liga Quarta Internacionalista do Brasil, LQB] persiste rigidamente na defesa da suposta integridade política de tal organização até o momento em que eles forma expulsos dela em 1996. Os líderes do IG escolheram construir a sua organização em torno desse mito e, mais especificamente, continuam insistindo que a SL estava “singularmente correta” ao longo dos anos ‘80 em seu entendimento distorcido das posições trotskistas sobre o stalinismo e a defesa da União Soviética. Tendo eles próprios sido antigos líderes centrais da SL, que participaram ativamente no desenvolvimento de sua linha política, a defesa do histórico da mesma sempre foi uma questão de proteção dos seus próprios legados pessoais e prestígio burocrático. Como consequência da teimosa insistência do Partido Comunista Alemão em defender a sua política, que permitiu que Hitler ascendesse ao poder sem resistência (“Primeiro Hitler, depois nós”), Leon Trotsky foi forçado a concluir que qualquer organização que colocasse o prestígio da sua liderança na frente de falar a verdade, merecia ser descartada de qualquer propósito revolucionário.

Em política, é inevitável, quando se segue adiante com a lógica de uma posição errada em uma questão, que em última instância isso tenha consequências imprevistas em uma ou várias outras questões que poderiam parecer, num primeiro momento, não ter relação com a política original. Após o recente terremoto no Haiti, a SL colheu o que plantou quando ela, escandalosamente e de forma inesperada, acabou apoiando a ocupação do Haiti pelo exército dos Estados Unidos, acreditando nas palavras de Obama de que ele estava lá para prover ajuda às sofridas massas haitianas (veja A Liga Espartaquista apoia as tropas americanas no Haiti, de fevereiro de 2010).

Haiti, Afeganistão e Líbano

Em uma carta recente para a SL, condenando sua demorada e incompleta autocrítica, numa questão na qual, em relação ao restante da esquerda, ela foi “singularmente” incorreta sobre o Haiti (veja “Liga Espartaquista: Nossa Linha Mudou Novamente”), a liderança do IG repreende a SL por sua tentativa de, por um lado se distanciar da sua vergonhosa posição original, enquanto por outro cambaleia na hora de repudiá-la abertamente, ao mesmo tempo em que se recusa a examinar de forma completa a “raiz da traição” em seu mais recente reconhecimento de uma ação errada.
  
“Vocês admitem o crime, mas falham em dar uma explicação séria das razões para ele. E isso garante virtualmente que ele acontecerá de novo […].”
  
“Apesar de suas declarações arrependidas de hoje, como podemos saber que aquilo que vocês dirão amanhã não será uma continuação do que vocês disseram ontem?”
  
Carta Aberta do Grupo Internacionalista para a Liga Espartaquista e a ICL [organização internacional da SL], 8 de maio de 2010.
Reimpresso em The Internationalist nº21, verão de 2010
  
A carta do IG para a SL defende a posição de que o Haiti foi “uma extensão de uma capitulação prévia às pressões do imperialismo americano”, apontando o repúdio aberto da SL em chamar pela derrota do imperialismo dos EUA no Afeganistão em 2002, que a SL ainda defende, como seu precedente mais significativo.
  
“Nessa época vocês atacaram perversamente o Grupo Internacionalista/Liga pela Quarta Internacional por nosso chamado desde o começo (em nossa declaração de 14 de setembro de 2001) pela defesa do Afeganistão e pela derrota do imperialismo americano. Vocês escreveram que nossa linha nos levava a sermos ‘Os representantes do discurso anti-americano’ como vocês declararam num subtítulo, e que apelávamos para uma plateia de nacionalistas ‘terceiro-mundistas’ para os quais ‘americano bom é americano morto’ […].”
  
Mas a posição da SL no Afeganistão, por sua vez, teve um precedente com a posição que ela teve no Líbano em 1983, quando se recusou a defender militarmente o mesmo lado que as forças lutando pelo fim da ocupação militar dos EUA em seu país. Já que eles ainda estavam na liderança da SL naquela época, os fundadores do IG ainda defendem aquela posição hoje em dia. De maneira similar, num livreto da SL de 1990 (também produzido quando os fundadores do IG ainda eram líderes dessa organização) intitulado Trotskismo: O Que É e O Que Não É Isso!, a SL declarou que a Tendência Bolchevique Internacional (IBT), que na época teve a posição correta (mas que desde então se degenerou burocraticamente)
  
“deseja assassinatos indiscriminados em massa de americanos […].”
  
(Para um comentário sobre a posterior degeneração burocrática da IBT, veja “A Estrada para Fora de Rileyville”)
  
Já que a posição da SL no Líbano ainda é defendida pela liderança do IG hoje, pode-se razoavelmente perguntar a eles como, apesar de suas “declarações arrependidas de hoje”, nós podemos saber que “aquilo que vocês dirão amanhã” não será uma repetição “do que vocês disseram ontem”?
  
“Bússola política”: a “explicação séria” das “raízes da traição”
  
Em nosso próprio texto sobre a SL e o Haiti, nós observamos:
  
“o IG inferiu que a SL realizou um giro diante de uma histeria chauvinista. Enquanto a SL certamente realizou tais giros no passado, como sua assustada reação ao 11 de Setembro e à guerra do Afeganistão em 2001, nenhuma atmosfera similar existe em relação ao Haiti nesse momento”.
  
  
Enquanto as duas posições foram ambas traições programáticas e de fato tem muitos paralelos uma com a outra, ao contrário do Afeganistão, a linha da SL no Haiti não é tanto um reflexo de nenhuma pressão imediata externa, e sim suas antigas contradições políticas/metodológicas e organizativas.
  
Ao mostrar algumas dessas contradições, nossa declaração de 15 de fevereiro de 2010 sobre a linha pró-imperialista da SL se referiu a uma polêmica prévia com o IG sobre sua defesa do legado da SL nos anos 1980 na “questão russa”.
  
“Como elaborado de maneira mais completa numa polêmica anterior (IG: Programa de Transição de Trotsky ou Bússola Política de Robertson, de 6 de maio de 2009), a SL baseou praticamente toda a sua existência durante os anos de 1980 na questão da defesa da URSS. No velório da sua queda, eles construíram uma visão de mundo sob a qual, assim como previamente todas as questões eram vistas sob o prisma da defesa da União Soviética, hoje todas as questões são vistas através do estreito prisma da sua morte. Não é mais apenas a crise subjetiva de liderança que atrasa as lutas da classe operária, mas uma nova circunstância objetiva onde a questão de tomar o poder de Estado se coloca fora da agenda histórica por uma razão ou por outra.”
  
“Aqueles que desistem da classe operária são forçados a procurar por salvação em outras forças sociais. Durante os anos 1980, numa desorientação simétrica à de hoje, as visões e medos extremamente exagerados da SL sobre os ‘perigos dos anos Reagan’ combinados com o desmantelamento de suas frações sindicais, os levou a enxergar os stalinistas soviéticos e seu exército e poderio econômico como os protetores dos ataques do imperialismo. Hoje, a URSS não existe mais e Cuba não pode agir como um substituto suficiente na região.”
  
Nessa polêmica com o IG, nós citamos uma intervenção em um curso aberto de tal organização que resumiu um importante aspecto da metodologia da SL sobre a questão:
  
“Eu concordo com muitas das atuais críticas do IG ao fato de a SL ter explicitamente abandonado o programa de transição. Eu também concordo que essa posição está relacionada à extrema desmoralização da SL após o colapso da URSS. Isso se expressou na sua recente posição na luta contra a lei de flexibilização de contratos de emprego na França, quando eles proclamaram que no ‘mundo pós-soviético’ não é provável que uma greve geral seja bem sucedida. Alguns anos atrás, quando o Afeganistão foi atacado, membros da SL argumentaram de maneira similar que no mundo pós-soviético vitórias militares de neocolônias contra os imperialistas não estava na agenda. Enquanto o colapso da URSS foi uma grande derrota, por si próprio ele não é uma explicação de nada disso. Deve-se olhar também para a história da própria SL anterior a esse colapso e seus vários zigue-zagues na questão russa, posições pelas quais a liderança do IG também é responsável por ter desenvolvido e ainda reivindicá-las hoje em dia, das quais eu só vou comentar um aspecto.”
  
“Ao longo dos anos 1980, a SL desenvolveu uma forte tendência a reduzir o trotskismo à questão do defensismo soviético. Esse giro foi parcialmente reconhecido na época em que eu era um membro da SYC [juventude da Liga Espartaquista], quando membros da ICL eram criticados por abandonar em parte a visão de que eles eram o partido da revolução mundial. Desde que passou a ver a defesa da URSS como a questão central em todos os lugares e ocasiões, da Nicarágua até a Austrália, surgiu uma tendência para ver o mundo a partir do estreito ponto de vista da pergunta ‘Está bom assim para a Rússia?’.”
  
“Frequentemente se escrevia e se afirmava internamente que a defesa da URSS era a ‘bússola política’ da SL, que iria prevenir sua degeneração, um tipo de talismã mágico para espantar espíritos do anti-trotskismo. Em contraste, o Programa de Transição declara que a Quarta Internacional deve ‘basear seu programa na lógica da luta de classes’, o que é bem diferente de usar a defesa da URSS como uma bússola política. Mas o que acontece quando se continua usando tal bússola depois que ela não existe mais? (Nós descobrimos faz 2 anos que trocar acusações internamente sobre desejos de abandonar a defesa da URSS ainda é uma norma para eles). O desenvolvimento seguinte em um agrupamento propagandista passivo que o IG descreveu e a recente posição da SL na França novamente confirma isso. Mas os líderes do IG são incapazes de fazer tal análise. Eles estão determinados a defender aquelas posições, já que eles próprios são inteiramente responsáveis por ajudar a desenvolvê-las enquanto líderes da SL”.
  
Nós também mostramos que tal compreensão também desempenhou um papel em distorcer a atitude trotskista diante do imperialismo durante os anos 1980.
  
“Em outra parte do Oriente Médio, a SL tentou encobrir o seu abandono do apoio militar para aqueles que lutavam contra a ocupação dos fuzileiros dos Estados Unidos em seu país, cinicamente perguntando ‘Onde está o lado justo e anti-imperialista no Líbano hoje?’ e então explicando as condições nas quais eles iriam tomar parte:
  
“’Se os EUA entrarem em guerra contra a Síria, uma reavaliação completa seria necessária, não menos porque tal guerra poderia se tornar um conflito real entre os EUA e a URSS, no qual os marxistas defenderiam o lado soviético’”
  
“’Marxismo e Banho de Sangue’
‘Workers Vanguard nº345, 6 de janeiro de 1984’”
  
Enquanto o IG tem tentado explicar que todas as suas diferenças com a SL surgidas após o seu racha são originárias da desmoralização da SL após a queda da URSS, o grupo se recusa a reconhecer que essa desmoralização extrema deriva diretamente da metodologia que eles próprios são responsáveis por ter desenvolvido até o momento da sua própria expulsão.
  
Nós fomos de certa forma pegos um pouco de surpresa pelo que pareceu ser um reconhecimento implícito da exatidão da nossa crítica na carta do IG.
  
“Tudo se origina no devastador impacto sobre a Liga Espartaquista e a Liga Comunista Internacional (ICL) da destruição contra-revolucionária da União Soviética e dos Estados operários deformados europeus em 1989-92.”
  
“Observem o que aconteceu após o ataque de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, que claramente abalou a SL e a ICL. Mas tendo perdido a sua bússola política com o fim da União Soviética, a SL/ICL reagiu abandonando elementos chave do programa leninista-trotskista com relação à guerra imperialista” (ênfase nossa).
  
Fazendo uma busca no Google, descobrimos que é a primeira vez em que uma discussão sobre a antiga “bússola política” da SL é levantada nas publicações do IG. O uso da SL da defesa da URSS como sua “bússola política”, como frequentemente declarado por ela na época, era a característica essencial da SL quando os fundadores do IG ainda eram líderes nessa organização, sendo assim uma parte central dos seus legados políticos, a qual eles seriam responsáveis por ter que honestamente reconhecer como erros. Até onde a afirmação do IG é de que a desmoralização após a queda da URSS foi a explicação chave para sua saída da SL e a justificativa para sua existência independente, tal reconhecimento também ofereceria a única explicação para a natureza altamente profunda dessa desmoralização agora, mesmo duas décadas depois do fato, quando quase todos na esquerda (com a exceção do geriátrico PC pró-Moscou) ou se recuperaram ou pelo menos estão em processo de recuperação. Parece que um reconhecimento muito mais explícito, sincero e rigoroso deveria ser cobrado, em lugar de um reconhecimento improvisado feito de maneira passageira na carta do IG. Como isso difere da maneira da SL de cambalear em repudiar abertamente a sua posição no Haiti? 
  
Nós desafiamos os membros de base do IG a testar a “franqueza” dos seus líderes, ou talvez mais apropriadamente, o seu próprio poder dentro da sua organização, ao tentarem fazer força para exigir um reconhecimento explícito dos seus erros.
  
Carma: tudo que vai, volta 
  
Nós não temos nenhuma confiança na habilidade ou força de vontade da liderança do IG em fazer um balanço honesto do papel que eles desempenharam na degeneração da SL. Não apenas na questão da degeneração da linha política, mas também no papel a que eles se prestaram na burocratização da SL quando eles próprios estavam na liderança, ajudando ou liderando as perseguições aos críticos para expulsá-los e depois caluniá-los.
  
Enquanto reclamam de terem sido vítimas de um “ataque preventivo” de caráter organizativo engendrado, na época de sua expulsão, por Alison Spencer (cujo crédito dentro do grupo diminuiu desde então, mas que na época estava namorando com a ideia de substituir Jim Robertson como a “líder” da SL), dois anos depois do fato, o líder principal do IG, Jan Norden, ainda estava se vangloriando por tê-la ajudado num expurgo igualmente maquiavélico, típico de um Zinoviev, na seção italiana da Liga Comunista Internacional (dominada pela SL/EUA).
  
“Você descreve, a partir do documento sobre a Itália, que parecia que Norden havia feito um bloco com Parks (Spencer) em cima das diferenças sobre chamar, de qualquer maneira que fosse, por uma greve geral na Itália. Na Itália, eu de fato fiz um bloco com Parks contra Gino, cuja política encobria a frente popular. Naquela situação, chamar os burocratas (que eram os únicos na posição de fazer isso) a organizar uma greve geral ilimitada, significava chamar por mais militância sindical com o objetivo de estabelecer as bases para uma coalizão de centro-esquerda para substituir o governo de direita de Berlusconi e Fini. Um ‘bloco’ contra esse embrião de tendência, representado por Gino, que se opunha ao programa trotskista [ou seja, um ‘ataque preventivo’ organizativo – ênfase nossa] era não apenas principista mas obrigatório. Era extremamente necessário formar uma maioria para lutar contra a provocação frente-populista
  
“Carta do IG ao MEG”, 18 de julho de 1998
Reimpresso em “Polêmicas com o IG”
Boletim Trotskista nº6
  
Não é levado em conta o fato de que, após terem sido eles próprios expulsos da SL, o IG desenvolveu críticas fundamentalmente similares às de Gino com relação ao abandono que SL/ICL fez dos chamados por greve geral, ou que eles próprios acabaram sendo vítimas dos mesmos métodos organizativos usados contra Gino. O que está envolvido é, mais uma vez, a questão dos seus legados pessoais e prestígio burocrático.
  
Em contraste, grande parte dos membros de base do IG, sendo subjetivamente revolucionários, ainda podem desempenhar um importante papel em ajudar a reconstruir a Quarta Internacional. Mas eles só podem fazer isso se prestarem ampla lealdade à luta pela revolução socialista, acima da estreita lealdade à organização na qual eles estão atualmente engessados. Assim como a recente tragédia dos membros de base da SL (que unanimemente apoiaram a linha pró-imperialista no Haiti e depois passaram a unanimemente repudiá-la quando o “líder” da SL mudou de ideia) mostra que aqueles que são incapazes de se erguer contra os burocratas do seu próprio partido jamais poderão se erguer diante da classe dominante.
  
17 de agosto de 2010

Carta de Ruptura de Sam Trachtenberg com a TBI

Carta de Rompimento com a Tendência Bolchevique Internacional
A Estrada para Fora de Rileyville


A carta de rompimento a seguir, feita por Samuel Trachtenberg, foi enviada em 25 de setembro de 2008.

Camaradas,

Essa carta de rompimento não deve vir como uma surpresa para vocês. Enquanto tive problemas e fiz críticas direcionadas à liderança da TBI nos anos anteriores, por mais de um ano agora eu tenho constantemente batido de frente com ela sobre o desenvolvimento presente e futuro da TBI e o seu interminável rastro de panelinha, intriga, manobra e métodos desleais em geral através dos quais a Troika (Tom Riley, Bill Logan e Adaire Hannah) têm mantido seu controle sobre o grupo por todos esses anos.

Eu sigo convencido da necessidade e da possibilidade de derrubar a sociedade capitalista, mas essa possibilidade só pode se atingida através do reagrupamento dos subjetivamente revolucionários pelo mundo numa base programaticamente sadia pela reconstrução da Quarta Internacional. Por mais correto que esteja o programa formal escrito por enquanto, a história mostrou que o tipo de organização na qual a TBI se transformou, um grupo estático, estagnado, dominado por uma liderança permanente maquiavélica profundamente enraizada, jamais pode fazer com que os camaradas mais jovens cresçam, se desenvolvam, e dessa forma prestem um papel nesse processo. Nós perdemos os camaradas argentinos primeiramente por estas razões, e é apenas uma questão de tempo até que os atuais simpatizantes latinoamericanos do grupo descubram isso eles próprios. Daniel DeLeon, um dos pioneiros do marxismo norte-americano, também era bastante “ortodoxo” no seu tempo, mas ele liderava uma seita rígida hipercentralizada e autoritária cuja contribuição foi principalmente literária. Nãoé acaso que muitos poucos na história do SLP (Partido Trabalhista Socialista), o grupo de DeLeon participaram na fundação do PC/EUA.

Sob esta luz, talvez a situação da seção neozelandesa seja a mais instrutiva. De um ponto em que era o maior grupo que reivindicava o trotskismo no país, ela regrediu para quatro geriatras semiativos. Eu suspeito que a razão para isso seja que a sua reputação é tal que a maioria dos ativistas da Nova Zelândia não iria querer chegar nem a 10 metros de distância dela. A reputação de Logan e Hannah como líderes da Liga Espartaquista, combinada com o seu aparente fracasso em romper completamente com suas práticas passadas (como expressas em suas sessões de desmoralização interna e a perseguição a Peter De Waal), são amplamente conhecidos nos círculos de esquerda da Nova Zelândia e debatidos em vários grupos de discussão na internet. Mas enquanto havia inicialmente algum protesto entre os membros quando esses incidentes ocorreram, os líderes foram capazes de seguir em frente e a manutenção da capacidade da direção em repetir o tratamento atroz com outros críticos, concorde-se ou não com as suas críticas, estabeleceu um padrão ruim no qual o grupo ainda vive atualmente. Eu fortemente sugiro aos camaradas que leiam os documentos sobre a perseguição da célula da Bay Area (disponível em inglês). Não é preciso ser um fã de Gerald Smith ou Fred Ferguson para ficar perturbado com a maneira típica de um Zinoviev com a qual a liderança lidou com eles. Trotsky lidava com tais diferenças de forma radicalmente diferente como qualquer um pode perceber lendo A Crise da Seção Francesa, onde questões semelhantes de uma imprensa “popular” mantida dentro da disciplina estavam em controvérsia.


Mas enquanto alguns destes casos ocorreram mesmo antes de eu me tornar um membro, eu ainda posso dizer que a TBI é hoje um grupo radicalmente diferente daquele que eu entrei em 1994. Até 1998, quando ocorreu a sua última luta fracional, a TBI era ainda um grupo cheio de debates e disputas de linha política. Na conferência da América do Norte, à qual eu participei após me unir ao grupo, Riley e Logan ainda eram minoria em muitas questões. Mas são agora 10 anos desde a última luta fracional na TBI com os seguidores de Jim Creegan e com Ian Donovan.

Era assim que o grupo via a questão no passado, quando ela aconteceu com a SL (Liga Espartaquista), o grupo com o qual rompeu:

“No mundo de sombras que cada vez mais constitui a vida interna da SL/EUA, a liderança ocasionalmente sente necessário responder a dúvidas, perguntas e críticas que nunca foram explicitamente articuladas por ninguém, mas que parecem espreitar as mentes de muitos. Logo após a questão envolvendo Gordon, Seymour lançou um artigo chamado ‘O Camarada Robertson e a Tendência Espartaquista’ no qual ele trata da espinhosa questão do porquê de a última luta fracional na SL ter ocorrido em 1968. Seymour coloca que ‘Em uma organização homogênea, luta fracional ocorre quase sempre quando modificações nas circunstâncias objetivas exigem uma mudança fundamental na linha política e nas perspectivas organizativas.’ (Boletim de Discussão Interna número 30, página 44). Ele usa o exemplo do Partido Bolchevique, que não era ‘claramente nem um culto nem uma organização personalista. A cada virada maior, Lenin encontrava resistência ou oposição aberta entre os membros de liderança’. O fato de que esse não é o caso na SL/EUA há mais de dez (hoje catorze) anos, explica Seymour:”

“‘é condicionado pelo fato da ausência de circunstâncias objetivas que exigem mudanças maiores ou inovações na linha política ou viradas organizativas não antecipadas… ’ ”

“‘Nossa tendência existe num quadro organizativo a tem limitado a propagandear o programa e visão de mundo trotskista… [a SL/EUA] nunca desafiou seriamente, nem mesmo de maneira episódica, a liderança burocrática da classe trabalhadora… ’ ”

“Muito bem então… todas as lutas fracionais na Tendência Espartaquista Internacional esperam o dia em que a organização ganhe uma base de massa na classe trabalhadora.”

            Declaração da Tendência Externa (1982)

No entanto, quando eu levantei essa questão (junto com várias outras similares), os camaradas deram a mesma resposta que Seymour, combinada com uma grosseira campanha para me convencer de que minhas críticas provinham de “problemas mentais”. Enquanto eu possuo um histórico de depressão, não tenho quadro de insanidade e sou perfeitamente capaz de reconhecer a realidade e as tentativas da liderança de usar os mesmos mecanismos comigo que foram usados com outros críticos. Ian Donovan, que levantou críticas politicamente não-apoiáveis sobre a questão da Frente Popular, foi tratado numa trama semelhante. Após deixar o nosso grupo quando a liderança anunciou de forma antidemocrática que as diferenças dele não seriam discutidas num período de 2 a 4 anos até a próxima conferência, a TBI respondeu com falsas insinuações externas (e afirmações explicitas internas) que a avaliação de Ian do que havia acontecido era um produto de “doença mental”. No entanto, a avaliação dele era precisa. Enquanto Ian tinha um histórico de acessos de raiva em tratamento, ele também não era insano.

Um dos corruptos capatazes da liderança, Jason Wright, tem ele próprio uma história de sua organização anterior, a Revolutionary Workers League, que fez uma campanha para convencê-lo de que suas críticas corretas a ela eram um produto de “doença mental”. Como ele pode se olhar no espelho hoje, sendo um cúmplice de uma campanha semelhante, eu não sei. O termo para esse tipo de prática é “gaslighting” e eu pediria aos camaradas que fizessem uma busca no Google sobre isso. O fato de que Bill Logan, um “profissional” de saúde mental, usou suas credenciais para tais propósitos nojentos aumenta a corrupção envolvida.

O incidente que finalmente me forçou a enfrentar a questão de frente aconteceu há duas semanas. Eu recebi um email de Tom Riley me dizendo que ele queria conversar comigo. Uma vez que eu estava bastante irritado com a mais recente provocação do CEI [Comitê Executivo Internacional] em tentar me fazer perder a calma, eu disse a ele para me mandar um e-mail e que eu iria responder, já que eu estava estressado demais no momento e que não queria lidar com mais problemas desnecessariamente. A resposta de Tom foi me informar que eu não faço as regras, e ele sim, e que eu estava sob disciplina para telefoná-lo. Eu respondi que isso deveria envolver alguma questão de segurança ou algo semelhante que não poderia ser discutido via e-mail, já que de outro modo a exigência não teria a ver com nenhuma disciplina operacional legítima, mas seria um exercício para estabelecer obediência psicológica do tipo que a SL costumava fazer, e que desse modo, seria inteligente para ele me enviar um e-mail, já que nunca é uma boa idéia, para aqueles que perderam toda a autoridade moral, começar a usar ameaças. Ele respondeu continuando a exigir que eu telefonasse. Quando eu telefonei, ele me informou que quando ele, o senhor grande líder mandachuva, me dissesse para telefonar, era melhor que eu telefonasse, e procedeu arrogantemente me informando que eu “não deveria me surpreender se num futuro não muito distante” eu me visse “forçado a sair do grupo” seguido por uma de suas asquerosas risadas. Fosse a intenção me provocar para sair, iniciar intimidações burocráticas, ou mais provavelmente uma declaração de intenção futura feita num momento de descontrolada arrogância burocrática, ela me forçou a confrontar pessoalmente o fato de que, se tal nojento abusivo podia ser o líder inquestionado e indiscutível de um grupo, isso significava que esse grupo não tinha futuro revolucionário. No fim, a questão que ele tinha que discutir poderia ter sido discutida por e-mail. A resposta dele foi de que ele “não achou isso”.

Eu valorizo profundamente as contribuições históricas passadas da TBI e buscarei continuar o seu trabalho. Mas uma continuação não é uma repetição e o grupo que eu (e outros) formaremos terá o cuidado de não repetir o seus erros. Os camaradas podem ler mais no site www.regroupment.org, que em breve estará online.

Eu chamo outros membros da TBI para se juntarem a mim uma vez que eu não creio que a liderança da TBI seja reformável a essa altura, nem acredito que a necessária insurreição dos membros de base que o grupo precisa seja possível numa conjuntura histórica como a nossa. Isso ocorreria geralmente como um reflexo de crescente luta de classes na sociedade em geral, assim como a pacificação dos quadros da TBI reflete o período difícil no qual a TBI vem sofrendo nos seus 27 anos de incapacidade de romper uma existência hipermarginalizada. Mas para aqueles que discordam eu os convido a fazerem uma tentativa de reforma. Se vocês forem bem sucedidos antes que a rotina destrua o programa formalmente correto, eu e os que se juntarem a mim estaremos prontos para unir a vocês nossas forças. Mais provavelmente, a liderança irá marginalizá-los com suas incessantes manobras por trás dos panos e campanhas de boatos, combinadas com repressão organizativa, até que vocês desistam e abandonem a organização, desmoralizados e falidos, como Jim Robertson (que ensinou os líderes da TBI em suas técnicas) costumava explicitamente dizer que era o jeito de lidar com oposicionistas.

Aqueles que tentarem e, como eu, continuarem determinados a serem revolucionários, estão convidados a entrar em contato com o novo grupo que eu vou participar da formação. Eu estou confiante do seu futuro.

Samuel Trachtenberg

PS: Enquanto o novo grupo terá um foco em polêmicas, ele não terá um foco tão estreito na TBI. Eu não formarei uma “tendência externa”. Enquanto tal orientação fazia sentido para um partido de massas envolvido em combate diário, como a Internacional Comunista, ela não faz sentido para um grupo puramente literário com menos que 40 pessoas pelo mundo. Essa orientação já não fazia sentido para um grupo como a SL, e a TBI nunca conseguiu sair desse foco limitado. Essa foi uma lição que eu aprendi. Mas eu escreverei polêmicas com a TBI quando a necessidade surgir e certamente irei responder a quaisquer acusações. Uma análise histórica mais ampla do que a apresentada nessa carta virá em breve.
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Carta de Ruptura com o PSTU

Aos Trotskistas
As Ações do PSTU em Comparação às Tarefas da IV Internacional

Escrita em agosto de 2009, esta carta de ruptura foi publicada originalmente no primeiro número da revista Revolução Permanente, em setembro de 2009. Ela marca a ruptura de Rodolfo Kaleb e Leandro Torres com o PSTU e sua decisão de ingressar no Coletivo Lenin. Notas de revisão foram adicionadas para fins de esclarecimento, destacando-se os trechos comentados com sublinhados.

Encarar a realidade de frente; não buscar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelos seus nomes; falar a verdade às massas, não importa o quão amarga ela seja; não temer os obstáculos; ser verdadeiro nas pequenas coisas como nas grandes; basear seu programa na lógica da luta de classes; ser ousado quando a hora da ação chegar – essas são as regras da Quarta Internacional” 

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Três Dias em Agosto

Três Dias em Agosto
O Rubicão Soviético e a Esquerda

Esse artigo foi originalmente publicado em 1917 No. 11 (terceiro trimestre de 1992), pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional. Sua tradução foi feita pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2013.

Nas semanas que se seguiram ao fracasso da tentativa de golpe em agosto de 1991, a Tendência Bolchevique Internacional esteve virtualmente sozinha, entre as correntes que se reivindicam trotskistas, ao reconhecer que esse evento marcou o fim do Estado operário soviético. Todo evento político importante desde então confirmou nosso ponto de vista. Alguns dias depois do golpe, Gorbachev, sob a instrução de Boris Yeltsin, proclamou a dissolução do Partido Comunista Soviético. O Congresso de Deputados do Povo votou pela sua autodestruição. Em dezembro, Yeltsin anunciou a dissolução da União Soviética e a formação de uma assim chamada Comunidade de Estados Independentes. Ele fez isso sem nem mesmo se importar em consultar Gorbachev, cujas tentativas subsequentes de manter alguma aparência de governo unificado foram simplesmente ignoradas. No dia de Natal, Gorbachev renunciou como presidente soviético. A bandeira soviética foi retirada do Kremlin e substituída pelo emblema czarista. Yeltsin se mudou para o escritório presidencial soviético mesmo antes que Gorbachev pudesse empacotar suas coisas.

As principais instituições políticas do Estado soviético puderam ser desmanteladas sem uma resistência armada, porque o destino da URSS já havia sido decidido. Os desenvolvimentos no pós-golpe foram um mero epílogo aos três dias em agosto, quando os desmoralizados defensores do antigo aparato stalinista fizeram sua última aposta desesperada e perderam.

Yeltsin não perdeu tempo em lançar um ataque completo contra a economia estatal já em desintegração. No começo de janeiro, ele retirou subsídios estatais para alimentação e muitos outros itens, aumentando em muito a maior parte dos preços. Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas com o objetivo de substituir o planejamento centralizado pela anarquia de mercado. Agitações de protesto popular rapidamente se seguiram. Conforme Yeltsin viajou ao redor do país para aferir a reação pública, ele se confrontou com multidões raivosas. Motins reivindicando comida emergiram na capital usbeque de Tashkent, reclamando a vida de vários estudantes; trabalhadores, militares e membros do velho aparato de partido marcharam contra o novo regime na Praça Vermelha no Dia da Revolução; 5 mil oficiais do exército se reuniram no Kremlin para protestar contra os planos de Yeltsin de desmembrar o exército ao longo de linhas nacionais. Em fevereiro, 50 mil pessoas inundaram as ruas de Moscou no maior protesto contra o governo até agora. Os protestos anti-Yeltsin são extremamente heterogêneos. Enquanto alguns participantes carregavam bandeiras vermelhas e fotos de Lenin e Stalin, o ultradireitista Partido Liberal Democrático e outros elementos monarquistas e antissemitas também eram proeminentes. Como a região do Cáucaso permanece atormentada por matanças locais, e Yeltsin continua a disputa com o novo regime nacionalista da Ucrânia sobre a Frota do Mar Negro, está claro que estrada de volta ao capitalismo na antiga União Soviética não será tranquila.

As “reformas de preço” de Yeltsin foram introduzidas por orientação de Jeffrey Sachs, menino de ouro da Escola de Negócios de Harvard, que passou os últimos anos torturando os trabalhadores poloneses com a miséria do livre mercado. O propósito da reforma é reduzir a receita de Estado russa e estabilizar o rublo. Sob o antigo sistema de planejamento, os preços das commodities eram determinados não por forças de mercado, mas pelas decisões sociais e econômicas dos planejadores. O rublo funcionava mais como um vale de compra com base no trabalho do que uma medida de valor. Para estabelecer um regime de produção generalizada de commodities, e para abrir a economia da ex-URSS para o mercado mundial, primeiramente é necessário, de acordo com a Escola de Harvard, ter algum tipo de equivalente universal que estabeleça a medida pela qual vários produtos podem ser comercializados.

Sob quais termos a Rússia e as outras repúblicas vão se juntar à “família das nações” imperialista? A produtividade do trabalho na União Soviética sempre esteve atrás daquela dos países capitalistas avançados. Os produtos da indústria soviética simplesmente não podem competir em preço ou qualidade com os produtos do ocidente. Os capitalistas do ocidente estão relutantes em investir mesmo na Polônia e na antiga RDA (Alemanha Oriental), cuja planta industrial é mais avançada que na Rússia. As indústrias russas e ucranianas tem ainda menos probabilidade de encontrar compradores estrangeiros. Aspirantes russos a “empresários” não podem simplesmente obter as indústrias estatais existentes e começarem a fazer dinheiro. Para se tornarem competitivos internacionalmente, a maioria das empresas soviéticas iria exigir uma massiva troca de equipamentos e avanços, e isso só pode ser financiado de fora. Os gigantes imperialistas, presos em rivalidades econômicas cada vez mais intensas entre si, não estão dispostos a garantir o desenvolvimento de um novo grande competidor. A “ajuda” total destinada à antiga União Soviética até agora é apenas uma fração do que os imperialistas gastavam todo ano preparando-se para lançar uma guerra contra o “império do mal”. A assistência que eles estão dando é apenas para ajudar Yeltsin a manter uma mordaça em sua população rebelde. Não vai haver Plano Marshall tardio.

As terras que um dia fizeram parte da URSS não são sem valor para os predadores de Wall Street e Frankfurt. A antiga União Soviética era o produtor mundial número um de petróleo e lenha, e os seus territórios também são ricos em minerais, metais e grãos. A população é bem educada mesmo para os padrões ocidentais e é, portanto, um enorme mercado em potencial e reserva de trabalhadores que podem ser explorados. Mas os imperialistas veem a antiga União Soviética primariamente como uma produtora de matéria-prima e produtos agrícolas e como uma consumidora dos produtos manufaturados dos Estados Unidos, Europa e Japão. A desindustrialização que vai acompanhar a restauração do capitalismo vai prender as várias repúblicas em um padrão de dependência econômica e atraso mais parecido com países de terceiro mundo do que com o mundo capitalista desenvolvido.

A antiga União Soviética, entretanto, não é um país de terceiro mundo. A revolução bolchevique de 1917 lançou o antigo Império Czarista para fora da órbita imperialista e estabeleceu as fundações para transformar a Rússia de uma nação atrasada majoritariamente camponesa em uma grande potência industrial. Na época da revolução, mais de 80 por cento da população soviética vivia no campo; hoje, mas de 60 por cento são moradores das cidades.

A reintegração da União Soviética na divisão internacional de trabalho capitalista vai significar a ruína de setores econômicos inteiros: aço, maquinário, equipamento militar e bens de consumo e o desligamento de muitos dentre as dezenas de milhões de trabalhadores cujas vidas dependiam da indústria.

Os Estados que estão emergindo do desmantelamento da URSS provavelmente não irão ser reduzidos a um status de países do terceiro mundo sem explosões populares de raiva. Conforme a indignação de massas com a “terapia de choque” do livre mercado continua a crescer, Yeltsin poderia ser derrubado. Ele já foi forçado a modificar alguns dos aspectos mais severos do seu pacote econômico. Entretanto, nenhum dos aspirantes a sucessor de Yeltsin está menos comprometido que ele com a restauração capitalista; eles se diferenciam apenas sobre táticas e rapidez.

Por uma revolução proletária para esmagar a contrarrevolução!

A única força que pode virar a maré – a classe trabalhadora – está confusa e desmoralizada por anos de traição stalinista. O regime de Yeltsin permanece extremamente frágil e vulnerável a um levante vindo de baixo. Os revolucionários na antiga URSS devem buscar transformar a hostilidade popular àqueles que elevam os preços e aos especuladores alimentícios em uma arma contra todo o esquema de privatização. Formando comitês de representantes em cada local de trabalho e bairro operário, os trabalhadores poderiam se unir para reconstruir os sovietes de 1905 e 1917. Tais órgãos de poder popular poderiam garantir que os necessários suprimentos de comida fossem distribuídos igualmente. Eles também poderiam bloquear o completo loteamento e roubo das empresas públicas e combater as demissões com uma campanha por uma escala móvel de horas de trabalho e salários, e constituir a base organizativa de um Estado operário renascido.

A hostilidade de massas às medidas de austeridade de Yeltsin está sendo explorada por uma horda de demagogos nacionalistas de direita e descendentes antissemitas das Cem Negros. As manifestações contra Yeltsin nos meses recentes têm unido stalinistas “patrióticos” com nacionalistas-russos fascistas. A restauração capitalista liberou uma explosão de massacres nacionalistas reacionários pela região do Cáucaso, na Moldávia e em outras partes da antiga URSS. Os marxistas defendem o direito de todas as nações à autodeterminação e se opõem ao chauvinismo grão-russo do Kremlin de Yeltsin. Ao mesmo tempo, os socialistas lutam pela união voluntária dos povos da antiga URSS em uma renovada federação socialista.

Para evitar o desastre, a classe trabalhadora necessita urgentemente de uma liderança revolucionária. Um partido revolucionário buscaria mobilizar o proletariado para retirar Yeltsin e outros potentados nacionalistas do poder, reverter os programas de privatização e colocar o local de nascimento do primeiro Estado operário do mundo de volta na trilha revolucionária internacionalista de Lenin e Trotsky.

Qualquer grupo que aspire ser uma liderança revolucionária deve ser capaz de reconhecer a realidade e dizer a verdade. A realidade política hoje é moldada pelo fato de que a vitória da contrarrevolução em agosto de 1991 destruiu o Estado operário soviético. A maior parte da economia ainda é formalmente propriedade estatal, como na Polônia, Tchecoslováquia e o resto da Europa Oriental. Mas aqueles que retêm o monopólio da força na sociedade estão comprometidos com o desmantelamento, não a manutenção, da propriedade estatal dos meios de produção. A classe que fez nascer a propriedade coletivizada e tinha o interesse maior em sua sobrevivência – o proletariado – foi excluída do poder político direto com a ascensão de Stalin em meados dos anos 1920. Entretanto, a burocracia stalinista, com todos os seus crimes contra a classe trabalhadora, derivava o seu poder social do seu papel como administradora da economia de propriedade estatal. Ela foi episodicamente compelida a defender as formas de propriedade proletárias da restauração capitalista e a reprimir elementos pró-capitalistas dentro das suas próprias fileiras para poder salvaguardar os seus privilégios. Com o fracasso do golpe de agosto, o aparato stalinista profundamente dividido e completamente desmoralizado desmoronou quando as forças que buscavam abertamente destruir as bases econômicas estabelecidas pela Revolução de Outubro tomaram o poder.

O sucesso dos organizadores do golpe poderia ter representado um obstáculo, ainda que temporário e insubstancial, à vitória dos restauracionistas que hoje estão no poder. Era, portanto, dever daqueles que defendiam a União Soviética contra a restauração do capitalismo, tomar o lado dos líderes do golpe contra Yeltsin, sem lhes oferecer nenhum apoio político. Entretanto, no nosso conhecimento, todas as ouras tendências que se reivindicavam trotskistas falharam no último teste de defesa soviética. A maioria ficou do lado das forças reunidas ao redor de Yeltsin em nome da democracia. Outras foram neutras. Para justificar a sua falha, muitos desses grupos agora encontram expediente para minimizar o significado da vitória de Yeltsin em agosto. Nós vamos examinar as respostas ao golpe de três organizações pseudotrotskistas: o Secretariado Unificado da Quarta Internacional, o grupo inglês Workers Power e os espartaquistas.

SU: “Ninguém aqui além de nós democratas”

Nos últimos quarenta anos, o Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU), comandado por Ernest Mandel, se especializou em distorcer e diminuir o programa revolucionário de Trotsky para se adaptar à última moda política na esquerda. A busca deles por um caminho fácil para a “influência de massa” os levou a apoiar stalinistas insurrecionais como Castro e Ho Chi Minh no fim dos anos 1960 e a um louvor irrestrito para os anticomunistas do Solidariedade polonês uma década depois. Conforme os ventos políticos predominantes viraram para a direita na última década e meia, o SU tem tentado encontrar um nicho nas franjas da socialdemocracia. Não é surpreendente, então, que durante o golpe de agosto Mandel e seus seguidores tenham ficado do lado de alguns milhares de liberais restauradores do capitalismo e comerciantes do mercado negro que correram ao palácio presidencial de Yeltsin. Junto com toda a burguesia internacional, o SU aplaudiu a vitória do presidente russo contra o Comitê de Emergência como um triunfo da “democracia”. Um dos afiliados norte-americanos do SU, a Tendência Quarta-Internacionalista (FIT) escreveu: “A derrota do golpe foi uma vitória genuína para os povos soviéticos” (Bulletin in Defense of Marxism, outubro de 1991). Outro grupo norte-americano do SU viu as multidões que apoiavam Yeltsin como um “levante popular” com “poucos precedentes desde a época da revolução russa de 1917, dirigida por V.I Lenin e Leon Trotsky” (Socialist Action, setembro de 1991). O próprio Mandel escreveu:

“Os (…) golpistas queriam severamente limitar ou mesmo suprimir as liberdades democráticas que existiam na realidade. (…) É por isso que o golpe tinha que ser combatido com todos os meios disponíveis. E é por isso que o fracasso do golpe deve ser saudado.”
International Viewpoint, 3 de fevereiro

Como todo bom kautskista, o maior critério de Mandel é a “democracia” abstrata. Os contrarrevolucionários no Kremlin e os seus apoiadores internacionais no FMI não estão tão preocupados com tais “liberdades”. As brutais medidas de austeridade requeridas pela restauração capitalista serão impostas às massas soviéticas com baionetas, não com discursos fajutos e apertos de mão no dia da eleição.

Os marxistas sabem que a democracia burguesa tem um conteúdo de classe. A desigualdade social real entre burgueses e proletários, entre o mendicante sem-teto e o presidente da General Motors, não é eliminada, mas ocultada, pela igualdade formal de direitos. As instituições parlamentares desempenham um importante papel em legitimar o poder da burguesia ao ocultar as políticas de classe dos governos capitalistas por trás de uma fachada de consentimento popular. A classe trabalhadora deve defender as liberdades democráticas em uma sociedade capitalista contra todas as tentativas de restringi-las ou suspendê-las. Entretanto, as conquistas da Revolução de Outubro pesavam bem mais que a democracia burguesa na escala do progresso humano. A abolição da propriedade privada sobre um sexto da superfície da Terra e a substituição da anarquia de mercado pelo planejamento econômico foram bases econômicas sobre as quais democracia poderia ser verdadeira para os milhões que não são donos de fábricas, bancos ou impérios de comunicação. Os hipócritas imperialistas “democráticos” odiavam os stalinistas não porque eles privavam os trabalhadores soviéticos de direitos, mas porque o poder deles dependia da sobrevivência das conquistas obtidas pelo proletariado russo em 1917. Nas palavras de Trotsky:

“Nós não devemos perder de vista nem por um momento sequer o fato de que a questão da derrubada da burocracia soviética para nós é subordinada à questão da preservação da propriedade estatal dos meios de produção na URSS (…).”
— Em Defesa do Marxismo

SU do lado errado das barricadas

As barricadas de agosto formaram uma linha divisória entre aqueles inclinados a restaurar o capitalismo e aqueles que queriam desacelerar as reformas de mercado e preservar, ao menos por um tempo, o status quo econômico e social. Socialdemocratas, liberais e todos aqueles que defendiam abertamente a restauração do capitalismo tiveram pouca dificuldade em entender o significado do golpe e da sua derrota. Os pseudotrotskistas, entretanto, precisam falsificar a realidade para justificar se esquivarem da defesa da União Soviética e se prostrarem diante da opinião pública liberal. É, portanto, extremamente importante para o SU “provar” que não havia diferenças fundamentais entre os organizadores do golpe e os seguidores de Yeltsin. Nat Weinstein, escrevendo em uma edição de setembro de 1991 de Socialist Action, opinou que:

“Enquanto há divisões entre aqueles no governo e no poder de Estado – desde Gorbachev, passando pelos organizadores do golpe, até Boris Shevardnadze – não é entre aqueles apoiando uma democracia capitalista de mercado de um lado e ‘comunistas linha-dura defendendo o socialismo’ de outro.”

Os líderes do golpe certamente não eram “comunistas defendendo o socialismo”, eles eram burocratas stalinistas tentando manter o poder e as prerrogativas do aparato central, que dependia da existência de uma economia estatizada, contra forças que haviam se declarado abertamente pelo capitalismo. Se o golpe não colocou os restauracionistas contra aqueles que resistiam à restauração, pelo que, de acordo com Weinstein, estavam brigando as frações rivais? Ele continua:

“Todas as principais correntes no aparato de Estado (…) apoiam a reintrodução do capitalismo.”
“A diferença fundamental entre elas era sobre se era possível continuar o processo de restauração capitalista por meios políticos ou se era necessária uma ditadura com punho de ferro para impor as medidas antioperárias que essa política exigia.”

Não é difícil ver para onde leva essa linha de raciocínio. Se os seguidores de Yeltsin e os líderes do golpe eram igualmente a favor do capitalismo, e se diferenciavam apenas sobre os meios políticos, a classe trabalhadora deveria apoiar a vitória da fração que buscava restaurar o capitalismo com métodos menos repressivos. Isso, como nós veremos, é o único argumento lógico oferecido por qualquer um dos pseudotrotskistas que se recusou a emblocar com os líderes do golpe. Acontece que a sua premissa principal – que os objetivos dos golpistas e de seus adversários eram os mesmos – é falsa.

Ernest Mandel concorda com Weinstein que Yeltsin representa uma ala da burocracia soviética, mas duvida que tanto o presidente russo quanto os líderes do golpe fossem ou pudessem restaurar o capitalismo:

“A burocracia soviética é muito vasta, suas conexões sociais são fortes, a teia de inércia, rotina, obstrução e sabotagem sobre a qual ela descansa é densa demais para que seja decisivamente enfraquecida por ações de cima (…).”
“Yeltsin, tanto quanto, se não mais que, Gorbachev, representa uma fração no alto escalão da burocracia. Yeltsin, por todo o seu passado e formação, é um homem do aparato. Seus dons como demagogo populista não lhe permitem a modificação do seu juízo (…).”
“As pessoas dirão que, ao contrário de Gorbachev, que continuou se considerando de uma forma vaga como um socialista, Yeltsin saiu abertamente pela restauração do capitalismo. Fatos são fatos. Mas profissões de fé não são o suficiente para nós como uma análise dos políticos. Nós temos que olhar o que acontece na prática e quais interesses sociais eles servem.”
“Desse ponto de vista, Yeltsin e seus aliados na liquidação da URSS (…) representam uma fração da burocracia distinta das assim chamadas forças essencialmente burguesas (…) embora eles possam se aproximar nas margens.”
International Viewpoint, 3 de fevereiro

Assim, de um lado, Weinstein argumenta que toda a burocracia soviética buscava restaurar o capitalismo, enquanto, de outro, Mandel é cético de que alguma ala da burocracia, incluindo os elementos mais direitistas seguindo Yeltsin, tenham a vontade ou o poder para fazê-lo. Essas duas análises da burocracia soviética estão diametralmente opostas, e dariam origem a uma disputa inflamada em qualquer organização que levasse tais questões a sério. Se, de fato, Weinstein e Mandel continuam a viver alegremente sob o mesmo teto política, é somente porque as suas aparentes diferenças ocultam um denominador comum muito mais significativo.

Mandel e Weinstein concordam que o golpe de agosto e o seu desfecho não colocaram em jogo a questão da sobrevivência do Estado operário soviético. Eles coincidem em afirmar que a principal diferença política de Yeltsin com o Comitê de Emergência era que aquele queria preservas as liberdades democráticas. Assim, desde premissas opostas com relação à natureza e trajetória da burocracia soviética, Weinstein e Mandel chegam à mesma conclusão de fundo: apoiar o campo “democrático” de Yeltsin. E, por uma feliz coincidência, essa conclusão prática situa o SU ao lado da contente opinião pública liberal e socialdemocrata. Para os oportunistas, a análise da realidade objetiva funciona não como um guia para a ação, mas como uma racionalização para encobrir falhas programáticas. Qual racionalização se escolhe é um problema menor desde que o valor da posição seja o mesmo.

Os partidários de Yeltsin e os organizadores do golpe: conflito de interesses

Como todas as racionalizações, as de Weinstein e Mandel contêm elementos de verdade enfatizados para falsificar o quadro completo. É verdade, como poderia apontar Weinstein, que o Comitê de Emergência, ao contrário dos stalinistas do passado, não buscava justificar as suas ações com a retórica do socialismo. Nem se pode negar que a sua atitude em relação à propriedade coletivizada expressada em suas declarações públicas era ambígua: de um lado, eles expressaram preocupação com o crescente perigo ao “mecanismo econômico nacional integral que tem estado em formação por décadas” e quanto à ofensiva que está “em andamento contra os direitos do povo trabalhador (…) ao trabalho, educação, saúde, moradia e lazer” (New York Times, 19 de agosto de 1991). Mas por outro lado, eles se comprometeram em respeitar as diferentes formas de propriedade que haviam emergido na União Soviética, incluindo a propriedade privada, e a continuar a seguir o caminho da Perestroika.

Essa confusão se explica pelo fato de que os organizadores do golpe tinham abandonado qualquer aparência histórica progressiva. Muitos poucos dentre eles, muito provavelmente, acreditavam na superioridade da propriedade socializada, muito menos no “socialismo”. Escrevendo no começo dos anos 1930, Trotsky descreveu a burocracia stalinista como uma mistura heterogênea: ela incluía uma gama de cores desde os funcionários temporários completamente cínicos que iriam trair o Estado soviético na primeira oportunidade, até socialistas revolucionários sinceros; desde fascistas como Butenko até internacionalistas proletários como Ignace Reiss. Os anos Brezhnev, entretanto, viram a erosão de qualquer convicção socialista que a burocracia poderia reter. Conforme a economia soviética perdeu o seu ritmo de crescimento, complacência, cinismo e corrupção dominaram o aparato em todos os níveis. Essa corrosão foi personificada pelo próprio Brezhnev, com seu notório gosto por acumular belas casas de campo e carros esportivos estrangeiros. A única convicção ideológica que motivava a “linha-dura” era o patriotismo soviético: um compromisso em manter a posição da URSS como uma potência mundial. Esse “patriotismo” explica o caráter inegavelmente heterogêneo da oposição a Yeltsin, e a curiosa afinidade entre a velha guarda dos funcionários e os czaristas antissemitas: para ambos, manter um Estado russo forte é muito mais importante do que as relações de propriedade que o sustentam.

Mas uma análise marxista da casta que dominava a União Soviética não se baseia primariamente no que pensam os burocratas, muito menos no que eles dizem em público. A chave para explicar o comportamento político de diferentes classes e camadas sociais está na sua posição social objetiva e nos interesses materiais que daí derivam. Ao contrário da burguesia, a burocracia soviética nunca foi um grupo dono de propriedade. Em agosto de 1991, assim como no auge do poder de Stalin, os seus privilégios derivavam do seu papel como encarregados de uma economia de propriedade estatal, administrada de forma centralizada. Conforme o poder do centro recebeu crescentes ataques de nacionalidades rebeldes, burocratas que se afastavam e apoiadores do livre mercado, era natural que algumas seções do Estado central e do aparato do partido tentassem reassegurar suas prerrogativas. Esse foi o significado da luta pelo poder dentro do partido que precedeu o golpe de agosto, e da própria tentativa de golpe em si (veja a declaraçãoda TBI de setembro de 1991).

O que exige explicação não é o fato de que uma seção da burocracia stalinista ofereceu resistência, mas sim por que ela permitiu ser derrubada tão facilmente na maior parte da Europa Oriental, e porque a tentativa de contra-ataque da burocracia soviética, quando ela finalmente veio, foi tão atrasada, irresoluta e patética. A esclerose do stalinismo foi de fato muito mais avançada do que se havia pensado antes de 1989.

O status quo que o “bando dos oito” buscou preservar incluía algo mais valioso para os trabalhadores soviéticos e para os trabalhadores do mundo do que mil constituições ou parlamentos: a propriedade pública dos meios de produção. Ninguém poderia saber na manhã de 19 de agosto que as barricadas erguidas em defesa do status quo se provariam tão efêmeras quanto o foram. Mas como nós escrevemos antes do golpe:

“É possível que alguns setores de liderança da burocracia tentem em algum momento futuro impedir o processo de restauração capitalista. Se isso acontecer, seria nosso dever tomar o lado militar dos ‘conservadores’ contra os partidários de Yeltsin. A casta stalinista é incapaz de resolver os problemas que deram origem às ‘reformas’ para começo de conversa, mas pisar no freio poderia ao menos conseguir algum tempo.”
1917 No. 10

Ernest Mandel, que complacentemente nos assegura de que a burocracia stalinista ainda está no poder, também sustenta seu argumento com alguns fragmentos de verdade. Yeltsin de fato é uma criação do aparato, primeiramente ganhando notoriedade nacional como chefe do partido na cidade de Sverdlovsk (hoje, como na época do czarismo, Yekaterinbug) e depois se tornando o chefe do partido em Moscou. Um homem impertinente, com uma alta opinião de si mesmo, Yeltsin fez pouco da disciplina autocrática do partido imposta por Gorbachev e criticou publicamente o Secretário do Partido por não levar a perestroika e a glasnost longe o suficiente. A ruptura de Yeltsin com Gorbachev finalmente levou à sua demissão como cabeça do partido em Moscou e à sua expulsão do Politburo. Posteriormente ele repudiou o Partido Comunista como um todo.

Yeltsin sobreviveu politicamente só porque a sua reputação como crítico mais proeminente de Gorbachev permitiu-o se tornar-se um porta-voz para forças fora do partido. Yeltsin foi eleito presidente da República Russa, contra a vontade do partido, como um defensor desses elementos na Rússia e na URSS como um todo, que buscavam destruir o monopólio político do PCUS [Partido Comunista da União Soviética]. Quando ele apareceu num tanque do lado de fora do seu palácio presidencial para confrontar os organizadores do golpe, ele falou como um representante do capital estrangeiro, dos separatistas nacionais e dos mafiosos de Moscou, especuladores de câmbio e outros “empresários” que, junto com seus seguranças privados, compunham a maior parte da multidão que correu ao seu apoio. Mandel só pode pintar Yeltsin como um “homem do aparato” ignorando a sua transição para o campo do inimigo de classe.

A “privatização espontânea” e a burocracia

A afirmação de Mandel, de que a burocracia permanece no poder, contém também um elemento de verdade. Os milhões de indivíduos que constituíam a burocracia não desapareceram e muitos deles nem mesmo perderam seus empregos. O presidente ucraniano, Leonid Kravchuk, e seu par cazaque Nursultan Nazarbayev, eram chefes do partido stalinista que se tornaram fervorosos nacionalistas apenas depois de agosto. Não é surpresa que muitos remanescentes do antigo regime, e os escalões burocráticos mais baixos nos quais eles se apoiavam, estejam disputando por posições de influência na nova ordem política e econômica. Se uma classe capitalista completamente desenvolvida, armada com um código legal e um aparato repressivo de Estado para proteger a propriedade privada fossem uma precondição para a restauração, o capitalismo nunca poderia ter sido restabelecido em nenhuma economia coletivizada.

O New York Times de 27 de dezembro de 1991 citou Graham Alison, um especialista em União Soviética, sobre o novo papel desempenhado por muitos diretores de firmas estatais:

“‘Você é o gerente de uma empresa estatal, digamos uma companhia aérea com 10 mil funcionários, e você começa a imaginar que não há ninguém acima de você’. Ele disse que não se recebem ‘ordens quaisquer, e o ministro ao qual você se reportava desapareceu. Você começa a imaginar que a propriedade é sua, e já que você não está recebendo suprimentos, você tem que pensar em si mesmo e nos seus funcionários. Algumas vezes você consegue que um estrangeiro compre metade da operação em uma joint-venture. Isso é privatização espontânea’.”

O International Viewpoint do SU (20 de janeiro) contém uma entrevista memorável com Yuri Marenich, acadêmico e delegado do Conselho (Soviete) dos Deputados do Povo de Moscou. Marenich descreve o processo pelo qual oficiais locais, partidários de Yeltsin, se apropriaram de grande parte dos imóveis e outras propriedades públicas:

“Eles lançaram suas campanhas eleitorais com o slogan: ‘tendo alcançado o poder, nós vamos desmonopolizar a propriedade e administrar a economia através do mercado’. Mas, uma vez no poder para administrar a propriedade pública, eles se encontraram sob uma tremenda tentação para agarrar essa propriedade eles próprios. Isso foi tornado fácil pela possibilidade de combinar empregos nas instituições governamentais com postos em firmas privadas lidando com o governo.”
“Em suma, aqueles no comando de supervisionar a privatização simplesmente transferiram a propriedade do distrito para companhias que eles próprios encabeçavam.”
“Todos os membros do comitê executivo dos sovietes estabeleceram companhias privadas que eles dirigiam. Uma firma tomou o serviço de informação soviético; outra os seus serviços legais, uma terceira tomou os imóveis, suas vendas e seus direitos de arrendamento no território do distrito (…).”
“É bastante simples. Desde 1930 nós tivemos um sistema de transferência de propriedade sem pagamento. Mas era tudo propriedade estatal e a transferência era de uma agência ou empresa estatal para outra. Todas as partes estavam agindo em nome de um único proprietário, o Estado. Agora, entretanto, nós também temos proprietários privados. Mas eles usam o mesmo procedimento para transferir propriedades do soviete do distrito, um órgão estatal, para uma companhia privada (…).”

Marenich especula que um padrão similar está sendo repetido ao redor do país. Muitos na antiga burocracia provavelmente irão encontrar um lugar como membros de uma nova classe capitalista pós-soviética. Aqueles que vão substituir os burocratas stalinistas vão sem dúvida continuar a operar com os mecanismos da propriedade pública por algum tempo.

A restauração do capitalismo deve obviamente vir como resultado de um processo no qual elementos de continuidade do modo anterior de vida econômica e social sobrevivam, conforme um burguesia nativa se forme a partir de fragmentos de outras classes e camadas sociais. Poderosas forças centrífugas estiveram trabalhando na economia soviética anos antes do triunfo de Yeltsin, em agosto. Mas a ênfase de Mandel nos elementos de continuidade obscurece o fato de que a derrota do golpe marcou uma mudança qualitativa. Enquanto o centro em Moscou pudesse exercer controle administrativo sobre a economia, burocratas locais e regionais eram obrigados a trabalhar dentro (ou em torno) do sistema organizado de cima; os seus apetites pelas prerrogativas de donos de propriedade encontravam um obstáculo objetivo. Apenas depois que o poder central foi definitivamente quebrado, em agosto, eles ficaram livres para embarcar no caminho da “privatização espontânea”. Os eventos de agosto fizeram soar o sino da morte do Estado operário soviético. Todas as garantias de Weinstein e Mandel de que nada fundamental mudou são, no fim, nada mais do que tentativas elaboradas de evitar responsabilidade por ter estado ao lado da contrarrevolução.

Workers Power: defensores da União Soviética em palavras, seguidores de Yeltsin nos atos

O grupo britânico Workers Power e seus companheiros na Liga por uma Internacional Comunista Revolucionária (LRCI) [hoje Liga pela Quinta Internacional, L5I] são bem mais francos do que o SU em reconhecer o significado do golpe abortado. Em princípio relutantes em admitir que o Estado operário soviético houvesse encontrado seu fim em agosto, eles inicialmente descreveram a situação pós-golpe como uma de “duplo poder”, na qual Gorbachev, representando a burocracia, continuava a rivalizar pela autoridade de Estado com os restauracionistas ao redor de Yeltsin. Quando, entretanto, o “polo Gorbachev” capotou com um peteleco de Yeltsin, em dezembro, o Workers Power finalmente reconheceu a realidade e concedeu que “A União Soviética está morta. O espectro que assombrou os capitalistas por mais de setenta anos foi posto para dormir”. (Workers Power, janeiro).

O Workers Power também enxerga a conexão entre a morte do Estado operário soviético e a vitória de Yeltsin sobre o golpe de agosto. Uma declaração de setembro de 1991 do Secretariado Internacional da LRCI afirma que a fração burocrática, representada pelo Comitê de Emergência, “esperava, através das suas ações de 19 de agosto, defender os seus privilégios com base em relações de propriedade pós-capitalistas” (Workers Power, setembro de 1991, ênfase adicionada). A declaração prossegue descrevendo as forças lideradas por Yeltsin da seguinte forma:

“A antiga camada de oposicionistas democráticos e nacionalistas (…) perdeu quase toda crença em reformar o ‘socialismo realmente existente’ e se orientava para uma democracia ocidental e uma economia de mercado como ideais. Estes – os antigos apoiadores de Gorbachev – ficaram desiludidos pelo projeto utópico de Gorbachev em um ‘socialismo de mercado’ e, irritados com as vacilações e compromissos de seu líder com os conservadores, atraídos a prestar serviço ao imperialismo como os restauradores do capitalismo na URSS.”

“O que a coalizão de forças liderada por Yeltsin representa politicamente? Yeltsin, Shevardnadze, e de fato todos os capangas militares e políticos do presidente russo, representam uma fração da burocracia que abandonou a defesa dos seus privilégios de casta e a sua fonte – o Estado operário degenerado – em busca de se tornarem os membros chave de uma nova classe dominante burguesa.”

Assim, de acordo com a LRCI, a identidade das forças em luta no confronto de agosto é clara: de um lado, o setor da burocracia soviética que, ainda que apenas para manter seus privilégios, buscou defender o Estado operário soviético; do outro lado, uma coalizão de nacionalistas, intelectuais “democráticos” e burocratas, que buscavam destruir o Estado operário e restaurar o capitalismo. Nesse confronto, o Workers Power não hesitou em tomar um lado… com aqueles que buscavam destruir o Estado operário! A mesma edição de Workers Power proclamou que “nós tínhamos que estar junto, e de fato na linha de frente, da luta para derrotar o golpe”. Para sublinhar esse ponto, a mesma edição tem um artigo chamado “A música deles parou de tocar”, que ridiculariza os “apoiadores do golpe na esquerda”. Para que ninguém duvide da seriedade da LRCI nesse ponto, eles recentemente romperam relações com um pequeno grupo na Califórnia, chamado Tendência Trotskista Revolucionária, que se recusou a apoiar os seguidores de Yeltsin contra o Comitê de Emergência.

Por qual milagre de contorcionismo ideológico pode a LRCI encaixar essa posição nas suas reivindicações de ser comunista, trotskista e defensora da União Soviética? A declaração do Secretariado Internacional da LRCI continua:

“Grandes questões são levantadas por esses eventos. A perspectiva da revolução política era irreal, uma perspectiva utópica? A resistência ao golpe dos conservadores era, em si, contrarrevolucionária? Teria uma reviravolta burocrática bem sucedida dado à classe trabalhadora um espaço para respirar? A resposta a todas essas perguntas é não!”
“Em que sentido pode-se dizer que o CESE [Comitê de Emergência] ‘defendeu as relações de propriedade planificadas’? Apenas nisso: eles resistiram à sua abolição somente no sentido em que estas eram o ‘hospedeiro’ da qual eles eram o parasita. Entretanto, esse parasitismo social massivo foi a principal causa da doença mortal da economia centralizada burocraticamente, da consequente desilusão das massas nela.”
“Através da sua ditadura totalitária, os stalinistas também eram um obstáculo absoluto à autoconsciência e auto-organização do proletariado e de sua habilidade de cristalizar uma nova vanguarda, que era a única capaz de ter não meramente preservado, mas renovado as ‘conquistas de Outubro’.”
— Workers Power, setembro de 1991

É axiomático para os trotskistas que os stalinistas são um obstáculo à auto-organização da classe trabalhadora e agiu como um parasita sobre a economia planificada, a qual eles arruinaram através da sua administração incompetente e que em última instância se mostraram incapazes de defender. É por isso que uma revolução política era necessária na URSS: para derrubar os stalinistas e preservar a economia planificada.

O que deveria ter sido feito?

Mesmo um agrupamento revolucionário relativamente pequeno poderia ter tido um grande impacto durante aqueles críticos dias em agosto, quando os fracos e vacilantes golpistas enfrentaram a mistura heterogênea que apoiava Yeltsin. A fraqueza e desorganização evidente em ambos os lados apresentou uma oportunidade para um grupo trotskista comprometido com a preservação da propriedade nacionalizada sob a direção de órgãos democráticos de poder dos trabalhadores. O objetivo tático imediato naqueles primeiros dias teria sido organizar um ataque para dispersar as poucas centenas de apoiadores fracamente armados de Yeltsin, dentro e em torno do palácio presidencial russo.

Uma iniciativa determinada contra os contrarrevolucionários teria ganhado o apoio amplo da classe trabalhadora, que já estava cheia da Perestroika. Isso também teria sido visto com simpatia por uma considerável parcela das forças armadas, e poderia ter galvanizado apoio ativo dos elementos pró-socialistas. Os homens cinzentos que organizaram o golpe teriam pouca escolha a não ser aceitar essa “ajuda” que, entretanto, ao ser conduzida em nome do poder proletário, acabaria ameaçando também os interesses deles. Após a dispersão dos apoiadores de Yeltsin poderia ser feito um chamado por representantes de cada fábrica, quartel ou bairro operário para se reunirem no palácio presidencial para criar um soviete de verdade, democrático, em Moscou.

O sucesso de uma iniciativa como essa poderia ter lançado uma faísca para lutas de massas dos trabalhadores por toda a URSS, para enterrar os restauracionistas capitalistas. Isso também enfraqueceria ainda mais o punho do aparato do PCUS. Um bloco militar com os golpistas contra Yeltsin não se contrapunha a uma luta pela democracia soviética. Assim como o bloco de Lenin com Kerensky contra o General Kornilov, em agosto de 1917, preparou a derrubada do Governo Provisório burguês, uma luta contra Yeltsin na qual formações proletárias independentes apontassem suas armas na mesma direção que os golpistas, teria energizado as forças defendendo uma revolução política e bloqueado os esforços dos líderes do golpe, Yanayev, Pugo e companhia, de ressuscitar os seu sistema de repressão política.

Não há como garantir de antemão que um ataque contra Yeltsin teria sido bem sucedido. Entretanto, mesmo uma derrota sangrenta seria preferível a sucumbir sem luta. Milhões de trabalhadores teriam recebido uma exposição do programa do trotskismo. A tentativa de derrotar a restauração do capitalismo e de lutar pelo poder direto dos trabalhadores permaneceria como um exemplo e um importante foco de debate na consciência em desenvolvimento da classe trabalhadora russa. Mas nas circunstâncias reais, a derrota de forma alguma era inevitável. A intervenção de um pequeno, mas coeso grupo, armado com uma orientação política correta, poderia muito bem ter alterado a correlação de forças contra a contrarrevolução.

Infelizmente, a classe trabalhadora soviética não desempenhou nenhum papel político independente. A luta pelo poder foi entre os parasitas stalinistas, que buscavam preservar seu hospedeiro, e os restauracionistas apoiando Yeltsin, que queriam destruí-lo. O Workers Power reclama que os stalinistas defendem a propriedade coletivizada “apenas” como um parasita. Mas a pequena palavra “apenas” obscurece a convergência de interesses que, durante aqueles três dias de agosto, foi uma questão de vida ou morte para o Estado operário soviético. Um parasita não pode sobreviver sem seu hospedeiro e, portanto, tem um interesse distinto em preservá-lo. Se, na hora de perigo mortal, o parasita está armado e o hospedeiro não, a sobrevivência do hospedeiro depende da vitória do parasita. Que os stalinistas arruinaram a economia planificada e que não se podia contar com eles para defendê-la no futuro não altera o fato de que, ao buscar preservar os status quo, os seus objetivos, nesse ponto, coincidiam com os interesses da classe trabalhadora. Quando Trotsky falou da defesa incondicionalda União Soviética, ele não queria dizer que a Quarta Internacional deveria defender a URSS só se os stalinistas deixassem o poder, ou se eles se tornassem mais competentes ou mais puros de coração.

Yeltsin era o maior perigo

O Workers Power emblocou com os apoiadores de Yeltsin porque considerou os stalinistas um inimigo maior para classe trabalhadora do que os restauracionistas capitalistas. Isso é revelado na edição de setembro de Workers Power:

“a única força capaz de defender a propriedade estatal (…) é a classe trabalhadora. E ela não pode agir quando as suas greves são proibidas, quando ela está sujeita a toques de recolher e a censura política. É muito melhor que as incipientes organizações de trabalhadores na URSS aprendam a nadar contra a corrente do restauracionismo burocrático do que sejam amontoadas no ‘espaço para respirar’ de uma cela de prisão.”

O espaço “democrático” para respirar que o Workers Power tanto valoriza provavelmente não vai durar muito sob Yeltsin, como o próprio WP admite: “Uma vez instalado no poder e buscando cristalizar uma nova classe de exploradores, mesmo direitos democráticos amplos e consistentes para as massas vão se tornar intoleráveis.” (Idem.). Então a única diferença entre os stalinistas e os partidários de Yeltsin com relação às liberdades democráticas é o tempo necessário para aboli-las. Os stalinistas, se tivessem prevalecido, teriam um Estado policial já pronto para usar contra os trabalhadores. Os partidários de Yeltsin, por outro lado, precisam de mais tempo para consolidar um aparato repressivo e ainda não podem se livrar de muitas liberdades democráticas.

O Workers Power reconhece que o capitalismo vai significar “pobreza, preços altos, desemprego, trabalho exaustivo, opressão social e ameaça de guerra” (Workers Power, janeiro) e também “uma expropriação sem precedentes dos ‘frutos do trabalho’ dos trabalhadores rurais e urbanos” (Workers Power, dezembro de 1991). A repressão política stalinista é mais nociva para a classe trabalhadora como força de luta do que o caos social e a destituição de massas da restauração capitalista? Para justificar a sua decisão de apoiar Yeltsin contra os organizadores do golpe, o Workers Power deve responder essa pergunta afirmativamente. Mas tal resposta foge de todo o conjunto dos escritos de Trotsky sobre a questão russa. Trotsky insistiu que luta para derrubar os oligarcas stalinistas não era contraposta, mas sim baseada (e em última instância subordinada), à defesa da propriedade coletivizada. É por isso que o Workers Power, que se coloca enquanto uma tendência trotskista ortodoxa, não pode declarar abertamente a sua posição verdadeira: que a defesa das conquistas sociais da Revolução Russa era, para eles, subordinada à derrubada da burocracia stalinista. Mas a posição deles nos eventos de agosto não permite outra conclusão.

Trotsky definiu o centrismo como revolucionário em palavras e reformista nos atos. O Workers Power oferece um exemplo puro desse fenômeno. Enquanto eles frequentemente analisam eventos e forças políticas de forma precisa, os seus impulsos oportunistas para adaptar sua política à opinião pública radical/socialdemocrata os impede de traduzir essa análise em um programa para a ação, e às vezes os leva a conclusões práticas que contradizem os seus próprios raciocínios. Eles ainda precisam aprender com Ernest Mandel e o SU que a lacuna entre a teoria oportunista e a prática oportunista só pode ser resolvida por representações falsas da realidade. Para preencher essa lacuna, o SU afirma que não havia diferenças entre os partidários de Yeltsin e o Comitê de Emergência quanto às formas de propriedade – apenas sobre o uso de métodos democráticos ou autoritários. O Workers Power, por outro lado, reconhece que os dois campos rivais representavam objetivamente formas de propriedade opostas, mas de qualquer forma lançam seus esforços com Yeltsin, e tenta racionalizar essa contradição com uma série de non sequiturs “ortodoxos”.

Espartaquistas: “Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”

A Liga Espartaquista de James Robertson e os seus apêndices de além-mar na Liga Comunista Internacional (LCI) há muito conclamam que, dentre todos os grupos que reivindicam o trotskismo no planeta, só eles verdadeiramente defendem a União Soviética. Entretanto, essa postura contrasta com a sua completa confusão sobre a vitória contrarrevolucionária de Yeltsin. A edição de janeiro/fevereiro de Workers Hammer, a publicação da filial britânica da LCI, contém uma polêmica com Gerry Downing, da Liga Internacionalista Revolucionária (RIL), intitulada “RIL: Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”, que condena a RIL por permanecer neutra no golpe:

“para a RIL, não existe diferença entre uma ala da burocracia de um lado e uma ala do imperialismo mundial e da restauração capitalista de outro. E claro, se o stalinismo é igualado com o imperialismo, então a possibilidade de um bloco militar com um setor da burocracia contra os restauradores do capitalismo é necessariamente excluída, já que no seu ponto de vista, isso acabaria sendo um bloco contra a restauração do capitalismo com ‘restauradores do capitalismo’.”

Dificilmente alguém suspeitaria que a LCI, assim como esses centristas que eles censuram, também se recusaram a tomar um lado no golpe. Se o Workers Hammer deseja que alguém explique sua posição de neutralidade, nós sugerimos que comece pela sua publicação irmã nos Estados Unidos, Workers Vanguard (WV), que respondeu ao golpe na sua edição de 30 de agosto da seguinte forma:

“Mesmo antes do golpe, muitos dos trabalhadores mais avançados que se opunham aos planos de Yeltsin, de realizar uma completa privatização, e às reformas de mercado de Gorbachev, olhavam para a chamada linha-dura ‘patriótica’ da burocracia. Não há mais espaço para tais ilusões.”
“O seu programa declarado [dos golpistas] era a lei marcial para impedir a URSS de entrar em colapso, o que significa perestroika sem glasnost: a introdução do mercado, mas não tão rápido, e de boca calada (…).”
“Durante o golpe, um conselho de trabalhadores em Moscou (…) lançou um chamado para: ‘Formar milícias de trabalhadores para a preservação da propriedade socializada, para a preservação da ordem social nas ruas de nossas cidades, pelo controle da execução de ordens e instruções do Comitê de Estado para a Situação de Emergência’.Não houve uma palavra de crítica ao GKCHP [Comitê de Emergência]. Um chamado por milícias de trabalhadores para esmagar as mobilizações contrarrevolucionárias de Yeltsin certamente estava na ordem do dia. Mas se o Comitê de Emergência tivesse consolidado o poder, ele teria tentado dispersar quaisquer dessas milícias de trabalhadores que, de outra forma, teriam inevitável e rapidamente escapado do seu controle político.”

Prodígios de interpretação seriam necessários para compreender as passagens acima como sugerindo outra coisa que não “Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”. E nenhuma quantidade de estilo retórico bombástico pode encobrir o fato de que os argumentos dos espartaquistas parecem muito com os dos mandelistas, de que não havia nenhum conflito essencial entre Yeltsin e o Comitê de Emergência. Como Mandel, os espartaquistas buscam racionalizar a sua falha em tomar um lado reivindicando que a derrota do golpe manteve o caráter de classe do Estado inalterado. Para a LCI, o Estado soviético ainda existe e Boris Yeltsin, mesmo agora, preside sobre um Estado operário degenerado.

Mas, ao contrário de Mandel, os espartaquistas não podem simplesmente reivindicar um posição de condenação igual dos dois lados. Até agosto de 1991, eles frequentemente suportavam a chacota de toda a esquerda por reivindicar um bloco militar com os stalinistas contra as forças restauracionistas. Os espartaquistas corretamente tomaram o lado do regime de Jaruzelski em seu confronto de 1981 com os contrarrevolucionários do Solidariedade, e deu apoio militar às tropas soviéticas combatendo a insurgência reacionária apoiada pelo imperialismo no Afeganistão. Os espartaquistas foram, de fato, tão entusiastas sobre tomar o lado dos stalinistas, que eles começaram a confundir a linha de divisão entre apoio militar e político. A neutralidade deles em agosto representa, portanto, um desvio radical das suas afirmações inoportunas de serem os últimos e melhores defensores da União Soviética.

Neutralidade com uma consciência pesada

Por esse giro não ter base programática real, a liderança dos espartaquistas tem estado relutante em reconhecer que uma mudança importante na linha política aconteceu. Portanto, eles insistem, em desafio a toda lógica e em desacordo com os seus pronunciamentos escritos, que eles não foram neutros. Eles apresentam sua posição como perfeitamente consistente com posições anteriores, cercam-se com uma variedade de qualificações, formulações ambíguas e distorções factuais. Para obscurecer a semelhança evidente entre muitos dos seus argumentos e aqueles de outros pseudotrotskistas reformistas e centristas, os espartaquistas precisam aumentar o volume das polêmicas. Mas um volume mais alto só torna mais audível o som de discórdia que emana da sede de Robertson, em Nova York.

Até onde os espartaquistas lançam qualquer argumento coerente, eles ficam em volta da afirmação altamente dúbia de que o Comitê de Emergência não realizou nenhuma tentativa de dispersar a ralé contrarrevolucionária que se reuniu para defender o palácio presidencial de Yeltsin. Assumindo, pelo bem do argumento, que essa afirmação seja verdade, isso significaria que, ou os líderes do golpe não estavam realmente em conflito com Yeltsin, ou que eles se opunham a Yeltsin, mas eram fracos e indecisos demais para agir contra ele. Os espartaquistas nunca são claros sobre qual dessas interpretações eles defendem. A sua afirmação repetida de que a luta pelo poder do Comitê de Emergência representou um “golpe perestroika” aponta para a primeira. A caracterização que eles fazem do golpe como “patético” e a de seus líderes como “o bando dos oito que não sabe atirar direito”, por outro lado, se inclinam para a segunda. Qualquer das conclusões, entretanto, leva a uma desesperançosa teia de contradições.

Como, por exemplo, pode a afirmação de que ambos Yeltsin e o Comitê de Emergência eram igualmente a favor da penetração do mercado ser encaixada com a afirmação, no mesmo artigo, de que “O povo trabalhador na União Soviética e, de fato, os trabalhadores do mundo, sofreram um desastre sem paralelo” e que o fracasso do golpe “liberou uma maré contrarrevolucionária pela terra da Revolução de Outubro” (WV, 30 de agosto)? Como poderia uma maré contrarrevolucionária ter sido liberada a não ser que um grande obstáculo a ela tivesse sido removido? As forças que os líderes do golpe representavam eram tal obstáculo? Ou eles teriam lançado uma maré contrarrevolucionária similar se tivessem vencido? Nesse caso, como essa derrota foi um “desastre sem paralelo” para a classe trabalhadora? O Workers Vanguard não tem como responder a essas perguntas.

A afirmação do Workers Vanguard, de que o Comitê de Emergência defendia “perestroika sem glasnost”, ecoa os argumentos de Weinstein e Mandel. Todos eles concordam que Yeltsin e os líderes do golpe se diferenciavam somente sobre a questão dos direitos democráticos, com os últimos querendo impor o capitalismo por meio de uma “ditadura com punho de ferro”. Um seguidor pensativo de Robertson pode se perguntar se os trabalhadores soviéticos não estariam em uma posição melhor para se organizarem contra a restauração com a glasnost do que sem ela. É claro, isso rapidamente leva ao apoio ao campo “democrático” de Yeltsin. Ao contrário do SU, o Workers Vanguard não segue a linha desse argumento até a sua conclusão lógica.

Então há o segundo conjunto de desculpas para a neutralidade: que o Comitê de Emergência de fato representou aqueles elementos na burocracia com interesses que conflitavam fundamentalmente com aqueles do campo de Yeltsin, mas eles eram muito vacilantes e inaptos para parar os partidários de Yeltsin. Primeiro, deve-se notar que esse julgamento foi feito com o benefício valioso da análise a posteriori: os desenvolvimentos se deram tão rapidamente que os primeiros artigos de WV sobre o golpe foram publicados alguns dias depois que seu destino já havia sido decidido. Os espartaquistas afirmam ter sabido de antemão que o golpe iria fracassar tão miseravelmente? Era, havia muito, evidente que o stalinismo soviético tinha alcançado o fim da sua energia, e não podia de forma alguma restaurar o status quo anterior a Gorbachev. Mas essa análise geral não era suficiente para inferir a exata correlação de forças em 19 de agosto. Esta só poderia ser testada em ação. Mesmo se uma vitória dos líderes do golpe representasse somente uma desaceleração no ritmo da restauração, isso por si só era uma base adequada para um bloco militar. Os trotskistas não escolhem lados de acordo com a decisão, o refinamento tático ou a força de campos opostos, mas com base no seu caráter político. Os golpistas ou tinham um interesse em parar Yeltsin, ou não tinham. Mas os espartaquistas querem dos dois jeitos: eles, ao mesmo tempo, afirmam que o Comitê de Emergência nunca teve a intenção de parar Yeltsin para começo de conversa, e os critica por não fazer o serviço direito.

As críticas dos seguidores de Robertson ao Comitê de Emergência ganham um tom ainda mais bizarro quando eles condenam o “bando dos oito” por falhar em mobilizar a classe trabalhadora contra Yeltsin:

“O ‘bando dos oito’ não apenas não mobilizou o proletariado, eles ordenaram a todos que ficassem no trabalho.”
“O ‘bando dos oito’ foi incapaz de repelir Yeltsin em sua patética desculpa para um golpe, porque esse era um ‘golpe perestroika’; os golpistas não queriam lançar mão das forças que poderiam ter derrotado os contrarrevolucionários mais extremados, pois isso poderia ter levado a uma guerra civil se os partidários de Yeltsin realmente reagissem.”
Workers Hammer, janeiro/fevereiro

O mesmo artigo relembra orgulhosamente a posição espartaquista sobre o Solidariedade, de uma década antes:

“A Polônia de 1981 levantou a mesma questão que na União Soviética hoje, mas no caso anterior os stalinistas realmente tomaram medidas para temporariamente suprimir a contrarrevolução. Diante desse confronto era impossível ficar de braços cruzados (…).”

No caso soviético, os espartaquistas elevaram o ficar de braços cruzados em uma arte. Mas a comparação com a Polônia de 1981 vem a calhar. Nós não lembramos de Jaruzelski mobilizando a classe trabalhadora polonesa contra Walesa. Os espartaquistas parecem esquecer que os stalinistas no poder raramente mobilizam a classe trabalhadora politicamente, porque a própria existência de uma casta burocrática é garantida através do monopólio do poder político. Tornar o apoio militar aos stalinistas combatendo os restauracionistas como algo condicionado a que eles mobilizem a classe trabalhadora é equivalente a exigir que eles deixem de ser stalinistas.

Em outras partes da mesma polêmica, o Workers Hammer dá a entender que eles teriam apoiado quaisquer medidas que o “bando dos oito” tivesse tomado contra Yeltsin:

“Chamar os trabalhadores a varrer as barricadas de Yeltsin teria significado um bloco militar com qualquer das forças do golpe que se movimentasse para esmagar a ralé contrarrevolucionária (…). Contra o terceiro-campismo da RIL nos eventos de agosto, nós escrevemos: ‘em uma luta armada que coloque os abertamente restauracionistas contra os elementos recalcitrantes da burocracia, a defesa da economia coletivizada estaria posta na agenda quaisquer fossem as intenções dos stalinistas. Os trotskistas entrariam em um bloco militar com ‘a seção termidoriana da burocracia contra o ataque aberto da contrarrevolução capitalista’, como Trotsky postulou no Programa de Transição de 1938’”.

A repressão de Jaruzelski em 1981 não envolveu luta armada porque o Solidariedade não ofereceu resistência armada. A Lei Marcial foi imposta através de uma série de medidas policiais. Os espartaquistas parecem estar sugerindo aqui que eles teriam emblocado com o Comitê de Emergência se ele tivesse se movimentado mais decisivamente para forçar uma Lei Marcial. Por essa lógica, o apoio militar se torna condicional à firmeza e habilidade das táticas stalinistas, e não ao caráter social dos stalinistas, os alvos políticos da sua ação e as consequências objetivas da sua vitória ou derrota. Ou, mais precisamente, os espartaquistas julgam os objetivos políticos e o caráter social da “linha-dura” stalinista pelo seu comportamento no golpe.

O argumento tem uma qualidade circular: o Comitê de Emergência não tomou medidas adequadas contra Yeltsin porque eles não tinham diferenças fundamentais com ele. Como sabemos que eles não tinham diferenças fundamentais? Porque eles não tomaram medidas adequadas. Em outras palavras, esqueça o fato de que a maioria da burocracia tinha um interesse objetivo em preservar o Estado do qual eles derivavam seus privilégios e prestígio; esqueça também que toda a luta intrapartidária que precedeu a tentativa de golpe, na qual Gorbachev ficou sob crescente ataque por dar terreno demais para Yeltsin e os nacionalistas; esqueça, em poucas palavras, que a tentativa de golpe por si só era um ataque direcionado contra os restauracionistas de Yeltsin. Os espartaquistas tratam os motivos dos stalinistas como opacos, e o golpe como um evento sem contexto ou cenário prévio.

Os golpistas foram atrás de Yeltsin?

A eficiência das táticas dos líderes do golpe é uma questão de importância secundária. Mas o Comitê de Emergência de fato tentou se movimentar contra Yeltsin? Nos dias que se seguiram à derrota do golpe, relatos vieram à tona de que a divisão elite de comando da KGB, conhecida como Grupo Alpha (a mesma unidade que assassinou o presidente afegão Hafizullah Amin em 1979), recebeu ordens de atacar o palácio presidencial de Yeltsin, mas se recusou a obedecer a ordem. Essa versão dos eventos foi primeiramente relatada pelo próprio Yeltsin e depois confirmada pelos oficiais do Grupo Alpha. Os espartaquistas foram muito longe para desmerecer esses relatos. O Workers Vanguard de 6 de dezembro contém um artigo intitulado “Porque Eles Não Foram Atrás de Yeltsin – União Soviética: o Raio X de um Golpe”. O artigo cita um texto de Robert Cullen, do New Yorker de 4 de novembro de 1991, que descredita a versão dos eventos dada pelos oficiais envolvidos: “As entrevistas do Grupo Alpha no pós-golpe, de fato, só tem uma coisa em comum: em cada caso, o oficial que está respondendo tenta assumir o crédito por ser o herói cuja recusa em obedecer as ordens frustrou o golpe.” O “raio x” do Workers Vanguard confia pesadamente em trechos dos interrogatórios dos organizadores do golpe depois da sua prisão, publicados em Der Spiegel, no qual todos negam ter emitido ordens para atacar o palácio presidencial de Yeltsin. É peculiar que o Workers Vanguard seja tão cético sobre as afirmações dos oficiais do Grupo Alpha, mas tão crédulo sobre as negativas dos organizadores do golpe enquanto estes se preparavam para ir a julgamento por suas vidas.

O Workers Vanguard, além disso, cita muito seletivamente o texto de Cullen do New Yorker. Cullen relata ao menos uma tentativa do Grupo Alpha, apoiada pelas unidades paraquedistas, de avançar sobre o palácio presidencial. A primeira tentativa, de acordo com Cullen, fracassou quando a multidão pró-Yeltsin cercou o comboio de militare que se deslocava para sua posição e um chefe-militar pró-Yeltsin, o general Constantine Kobets, encontrou o comandante dos paraquedistas e persuadiu-o a não atacar. Cullen relata que esse revés não impediu que o Comitê de Emergência tentasse montar um segundo ataque:

“Informações vazadas, vindas do palácio presidencial, sugerem que os conspiradores estavam desesperadamente tentando encontrar unidades capazes de, ao mesmo tempo, tomar o prédio e dispostas a seguir a ordem de fazê-lo (…). ‘Eu sei que havia um pequeno grupo se reunindo no Ministério da Defesa considerando a realização do plano para tomar o prédio’, disse-me Kobets.”

O segundo ataque nunca se materializou. Cullen acrescenta:

“Depois do seu fracasso final, conclusivo, várias fontes ofereceram várias explicações para a impotência dos conspiradores (…). Todas as explicações, apesar de variadas e contraditórias, tinham um ponto em comum: o exército soviético havia se recusado a derramar sangue em nome da conspiração.”

Então, de fato, a afirmação dos espartaquistas de que o Comitê de Emergência não tentou nenhuma medida concreta contra os seguidores de Yeltsin sofre carência de uma fonte crível que seja para sustentá-la.

A vitória de Yeltsin: triunfo contrarrevolucionário

Os detalhes do que aconteceu durante o golpe ainda são um pouco obscuros. Mas seria um erro contrapor a timidez e a incompetência dos conspiradores à recusa dos seus subordinados em obedecer a suas ordens. As duas explicações são complementares, não mutualmente excludentes. Os homens no Comitê de Emergência não eram stalinistas-modelo dos anos 1930. A sua força de vontade estava comprometida pelo fato de que eles estavam suficientemente desmoralizados para aceitar a inevitável perda de controles centrais e de dar às forças de mercado um escopo mais amplo. A diferença deles com Yeltsin era que eles defendiam “reformas” de mercado dentro do sistema geral de domínio burocrático. No momento em que eles decidiram agir em defesa do sitiado aparato central de Estado, foi em um estado de decadência já tão avançado que eles não tinham mais o apoio inquestionável das forças armadas. Esses fatores alimentaram um ao outro, levando à derrota de agosto. Os espartaquistas dão ênfase às óbvias afinidades entre o Comitê de Emergência e Yeltsin para poderem obscurecer o fato de que o seu conflito desembocou em uma luta pelo destino do poder de Estado soviético.

O aparato stalinista, que era o esqueleto do domínio burocrático, foi abalado para sempre com a derrota do golpe. Os espartaquistas, que se recusaram a emblocar com os stalinistas na sua última tentativa de manter os “portões da contrarrevolução” fechados, agora buscam racionalizar esse lapso de julgamento argumentando que a antiga União Soviética ainda é (severamente enfraquecida e gravemente em risco) um Estado operário. Isso lembra as garantias dadas pelo dono de uma loja de animais, no programa de humor Monty Python, para um cliente que recentemente havia adquirido um papagaio que permanecia imóvel e sem vida no fundo da gaiola. Quando o cliente exige um reembolso, o dono da loja insiste que o papagaio não está morto, apenas descansando, tirando uma soneca, em um estado suspenso de animação, etc. [assista aqui: http://youtu.be/GSC6RayVSqI].

Os seguidores de Robertson meramente afirmaram a sua posição de que a ex-URSS permanece um Estado operário sem tentar argumentar seriamente nesse sentido. Em fóruns públicos e em pessoa, eles oferecem um leque de explicações, algumas vezes contraditórias entre si.

Primeiro, eles apontam o fato de que a maior parte da antiga economia soviética ainda não foi privatizada e permanece formalmente nas mãos do Estado. O capitalismo não pode ser restaurado por decreto governamental. A sua restauração envolve desfazer estruturas, formas organizativas e hábitos de vida construídos nos últimos setenta anos. Em novembro de 1937, Trotsky assinalou que:

“Nos primeiros meses de poder soviético, o proletariado governava na base de uma economia burguesa (…). Se uma revolução burguesa vencesse na URSS, o novo governo por um longo período teria de basear-se sobre a economia nacionalizada.”

A vitória de Yeltsin, Kravchuk e companhia, foi um triunfo das forças da contrarrevolução porque significou que, daí em diante, o poder político seria exercido por aqueles comprometidos sem ambiguidades com a restauração da propriedade privada dos meios de produção.

Confrontado com esses argumentos, os espartaquistas recuam para uma posição defensiva. Yeltsin, eles afirmam, dirige um governo pró-capitalista, mas ainda não consolidou seu poder no aparato de Estado. Em um fórum espartaquista na cidade de Nova Yrok em fevereiro, falou-se muito da reunião de 5 mil oficiais do exército no Kremlin, em janeiro, para protestar contra o desmembramento das velhas forças armadas soviéticas. Uma grande ofensiva da classe trabalhadora, argumentou a Liga Espartaquista, poderia dividir o corpo de oficiais, com um segmento significativo indo em direção aos trabalhadores. Tal desenvolvimento, dizem os espartaquistas, iria equivaler a uma revolução política, pela qual eles ainda chamam em sua propaganda.

Tais argumentos jogam com as inevitáveis ambiguidades da transição que está acontecendo. Os regimes que emergiram da destruição da URSS não presidem Estados capitalistas consolidados, assim como a Rússia, a Ucrânia, etc. não são sociedades capitalistas plenas. O poder de Yeltsin ainda é frágil, mas isso não muda o fato de que Yeltsin e seus aliados republicanos estão usando seu poder recém-adquirido para desencadear uma contrarrevolução social. O imperialismo, os milionários da perestroika e a máfia do mercado negro agora ditam as regras no Kremlin. Muitos antigos burocratas stalinistas estão se apropriando de grandes partes da propriedade estatal. Os homens de Yeltsin comandam as mais altas posições militares. Como o próprio Workers Vanguard relatou, a polícia de Moscou não hesitou em derramar sangue nos protestos em março, chamando pelo retorno da União Soviética. Um ano atrás, a Gosplan ainda orientava diretrizes de planejamento e patrulhas conjuntas do exército e da polícia estavam nas ruas perseguindo especuladores do mercado negro, e prendendo e confiscando a propriedade dos aproveitadores da perestroika. Agora, a Gosplan não existe mais e aproveitadores e milionários estão por cima.

A contrarrevolução social está longe de estar plenamente consolidada, mas ela foi vitoriosa. Um proletariado renascido lutando pelo poder iria encontrar bem menos resistência na Rússia hoje do que em um Estado capitalista maduro. Mas uma revolução proletária teria que enfrentar a máfia do mercado negro, suprimir os partidários de Yeltsin no exército e na polícia, reverter os avanços da privatização e restaurar a planificação estatal. Com o passar de cada mês, as tarefas confrontando o proletariado se tornam mais e mais as de uma revolução social e não de uma revolução política.

Os espartaquistas dizem que nós afirmamos que o Estado operário soviético está morto para podermos lavar nossas mãos da responsabilidade de defendê-lo. Esse argumento é claramente ridículo. A burguesia imperialista está agindo com o conhecimento de que o Estado operário soviético não existe mais. Os marxistas devem reconhecer essa amarga verdade. Os trabalhadores lutando para reverter a maré da contrarrevolução na ex-URSS vão querer saber quando o poder de Estado passou para as mãos dos seus exploradores. Eles também vão querer saber onde os vários grupos que reivindicam o trotskismo e que aspiram lidera-los estiveram no momento decisivo.

“Brigada Yuri Andropov” – há muito tempo e muito longe

Os seguidores de Robertson sempre se orgulharam de afirmar a sua sabedoria sobre a questão russa e a política dos Estados operários deformados. Entretanto, eles estiveram consistentemente errados ao longo da crise terminal do stalinismo. Quando manifestações de massa surgiram contra o regime stalinista da República Democrática Alemã (RDA) no fim de 1989, eles proclamaram o começo de uma “revolução política dos trabalhadores”. Eles pensaram que a perspectiva de reunificação provocaria suficiente resistência para rachar o SED (o partido stalinista dominante na RDA), com um amplo setor indo em direção ao proletariado em defesa da propriedade coletivizada. A LCI jogou grandes quantidades de dinheiro e cada militante disponível na sua intervenção. Em janeiro de 1990, quando o SED aceitou a proposta dos espartaquistas para uma mobilização antifascista no Parque Treptow, em Berlim Oriental, o líder absoluto dos espartaquistas, James Robertson, ficou tão entusiasmado com delírios de grandeza que ele (sem sucesso) tentou organizar reuniões com Gregor Gysi, então cabeça do SED.

Mas a antecipada revolução política nunca se materializou. Ao invés de resistir à reunificação, os stalinistas entraram em uma coalizão com partidos pró-capitalistas para arquitetar a liquidação da RDA. Na época em que eleições foram organizadas para o Volkskammer(o parlamento da RDA), em março, o esquema para a reunificação já estava decidido. Mas, ainda assim, os espartaquistas se apegaram teimosamente à noção de que uma revolução política dos trabalhadores estava acontecendo, que trabalhadores e soldados estavam prestes a montar sovietes, tomar as fábricas e estabelecer um duplo poder em oposição ao frágil governo pró-capitalista. A liderança da LCI esperou que centenas de milhares de trabalhadores apoiariam a sua campanha eleitoral e que eles iriam ser lançados à liderança de uma classe trabalhadores pró-socialista insurgente. Os resultados foram um desastre sem atenuantes para os espartaquistas, pois os seus candidatos terminaram bem atrás do Sindicato Alemão dos Bebedores de Cerveja.

O desastre alemão foi provavelmente a causa mais imediata do giro político que levou os espartaquistas à neutralidade no golpe de agosto. A Alemanha foi o ápice de um período no qual os espartaquistas exibiram um gosto pouco saudável pelos regimes stalinistas. Os trotskistas sempre emblocaram com os stalinistas contra ataques imperialistas ou contrarrevoluções internas, ao mesmo tempo em que reconheciam que os Estados operários deformados e degenerados só poderiam ser defendidos em longo prazo por uma revolução política para derrubar os parasitas stalinistas.

Durante os anos Reagan, entretanto, os seguidores de Robertson frequentemente cruzaram a linha que separa defesa militar e apoio político. Em 1983, uma coluna espartaquista em uma manifestação antirracista em Washington recebeu o nome de Brigada Yuri Andropov, em homenagem ao então chefe da União Soviética que, em 1956, desempenhou um papel chave na supressão da revolução dos trabalhadores húngaros. Quando Andropov morreu, o  Workers Vanguard publicou um laudatório poema-obituário em sua capa. Uma foto do chefe militar polonês, General Jaruzelski, enfeitou as paredes da sede da Liga Espartaquista em Nova Iorque. E, ao invés de simplesmente chamar por uma vitória militar das tropas soviéticas no Afeganistão, os espartaquistas insistiram em dar “vivas” à intervenção do Kremlin.

Com o ignominioso colapso dos regimes burocráticos por toda a Europa Oriental em 1989, entretanto, esse desvio pró-stalinista começou a se tornar uma fonte de constrangimento. Meses antes do golpe, o Workers Vanguard já estava sinalizando um rumo indiferente entre os apoiadores de Yeltsin e a fração conservadora da burocracia (a qual eles se referiram apenas como os “patriotas”):

“O povo trabalhador soviético deve romper com a falsa divisão entre os ‘democratas’ e os ‘patriotas’, ambos produtos da degeneração terminal da reacionária e parasita burocracia stalinista. Ambos são inimigos e opressores da classe trabalhadora nos interesses do capitalismo mundial.”
WV, 15 de março de 1991

Workers Vanguard nunca mencionou a possibilidade de essa “falsa divisão” poder levar a um confronto no qual fosse necessário para os trabalhadores tomar um dos lados. E quando esse confronto aconteceu em agosto, os espartaquistas mudaram da sua tendência prévia, de apoio político aos regimes stalinistas, para um abandono da tática trotskista elementar de bloco militar com os stalinistas contra as forças abertas da contrarrevolução. A vergonhosa neutralidade dos seguidores de Robertson em agosto e a sua acompanhada recusa em reconhecer o fato de que o Estado operário soviético não existe mais, demonstram o vazio das pretensões deles de ser uma liderança revolucionária.

Pelo renascimento da Quarta Internacional

Há mais de meio século, Trotsky escreveu que a luta por uma direção proletária é em última instância a luta pela sobrevivência da humanidade. A criação de uma nova liderança revolucionária para a classe trabalhadora depende acima de tudo de um esforço consciente de militantes socialistas comprometidos. É vitalmente importante que cada socialista sério compreenda as lições de toda a história de 74 anos da revolução russa: sua vitória, degeneração e por fim sua destruição. As forças do marxismo revolucionário hoje representam apenas uma pequena minoria. Porém, através de uma combinação de determinação revolucionária e uma disposição em lutar por clareza programática, os quadros serão organizados para abalar o mundo mais uma vez. O reagrupamento revolucionário começa com a exposição política da confusão, vacilação e traição dos vários reformistas, centristas e charlatães que falsamente reivindicam o legado do trotskismo. Através de uma dura luta política e um processo de rompimentos e fusões, a Quarta Internacional, o partido mundial da revolução socialista, vai renascer!

A Questão Nacional na União Soviética

A Questão Nacional na União Soviética

O presente texto foi originalmente publicado em 1991, pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional, em seu periódico 1917 No. 10. Sua tradução para o português foi feita pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2013.

A questão nacional sempre foi um tópico central na política soviética desde os tempos de Lenin. Ao garantir aos povos subjugados pelo antigo império czarista o direito de se separar e formar seus próprios estados caso desejassem, os bolcheviques ganharam importantes aliados na guerra civil que emergiu depois da Revolução.

Todos os povos não-russos da URSS foram oprimidos pelo estalinismo. O censo soviético realizado em 1979 listou 102 nacionalidades, 22 das quais possuíam populações superiores a um milhão de indivíduos. 15 possuem as suas próprias repúblicas, 20 gozam de relativa autonomia na situação de república autônoma, e 18 outras vivem nas chamadas regiões autônomas e áreas nacionais.

A oligarquia do Kremlin, transbordando com chauvinismo russo, tem por décadas tentado extinguir as culturas e os idiomas das minorias nacionais da URSS. Muitas vezes os estalinistas recorrem às prisões, deportações e à repressão policial, porém também foram aplicadas uma série de técnicas sutis para promover a “russificação” desses povos. Os russos étnicos compõem apenas metade da população soviética, mas isso não impede que mais de 80 por cento dos livros e jornais sejam publicados em russo. Acesso a diversos ramos da educação superior é restrito apenas aos falantes da língua russa.

Deparando-se com o ressurgimento de sentimentos separatistas por toda União Soviética, Gorbachev tem buscado a “resolução” da questão nacional que conteria todas as atuais 15 repúblicas dentro de um Estado unitário. Diferente da burocracia chauvinista que governa a URSS, nós trotskistas somos internacionalistas. Como tais, somos indiferentes à questão das fronteiras entre países. Lenin deixou isso bem claro em 1917:

“Dizem-nos que a Rússia será dividida, que se desmanchará em diversas repúblicas separadas, mas nós não temos razão para temer isso. Não importa quantas repúblicas diferentes surgirem, nós não deveremos temer. O que importa para nós não pode ser o traçado das linhas de fronteiras que dividem os países, e sim que a união dos trabalhadores de todo o mundo deve ser preservada para lutar com a burguesia de qualquer nação.”

Desenvolvimento livre e igual para os povos da URSS depende em ultima análise da extensão da revolução socialista no mundo. Apenas através de uma planificação da economia internacional, com base na democracia operária, será possível obter a base material para abolir a escassez material, que é a raiz por trás de todas as formas de opressão. Na URSS a extensão internacional da revolução está ligada intrinsecamente com a luta pela revolução política que irá derrubar a burocracia russo-chauvinista que reside no Kremlin e devolver o poder ao proletariado. Um programa chave dessa revolução será a defesa intransigente da igualdade entre todas as nacionalidades e, em particular, o direito de autodeterminação das nações oprimidas.

Apesar de defendermos o direito democrático de autodeterminação das nações oprimidas, nós marxistas não apoiamos automaticamente as demandas de todas as correntes nacionalistas. Movimentos separatistas que usam os sentimentos das populações das nações oprimidas para levar a cabo a restauração do capitalismo sempre terão como resultado a brutal subordinação desses povos ao imperialismo. É o dever de todo leninista denunciar esses movimentos. Apesar disso, essa distinção vital é ignorada por grande parte das organizações de esquerda que se autodenominam trotskistas. O consenso entre esses grupos tem sido a exaltação dos movimentos separatistas, desconsiderando totalmente o fato do programa desses últimos levar à restauração do capitalismo.
 
Em seu tempo, Trotsky rejeitou os argumentos desses “socialistas” que, em nome da “democracia”, faziam da autodeterminação dos povos seu critério absoluto:

“A questão nacional, se vista de maneira isolada das relações de classe, é uma ficção, uma mentira, um nó para estrangular o proletariado.”
“… frequentemente os pensadores formais ao mesmo tempo negam o todo e se apegam a uma parte em específico. A luta pela autodeterminação dos povos é um elemento chave da democracia. Essa luta, assim como a luta pela democracia em geral, cumpre um papel importante na vida dos povos, em especial na vida do proletariado. É um revolucionário ruim aquele que não sabe como utilizar as formas e instituições democráticas, incluindo o parlamento, em defesa dos interesses do proletariado. Mas do ponto de vista do proletariado, a democracia, assim como a questão nacional como uma parte integral dessa mesma, não pode ser posta acima da identidade de classes e nem ser usada como critério máximo da política revolucionária.”
— “Defesa da República Soviética e da Oposição”, 1929.

Respondendo ao ressurgimento do nacionalismo ucraniano na década de 1930, Trotsky acreditava que o chamado por uma “Ucrânia Soviética Independente” iria provocar o racha entre aqueles que desejavam a restauração capitalista e os que apenas se opunham à oligarquia do Kremlin. Essa palavra de ordem era claramente oposta a qualquer tentativa de contrarrevolução capitalista, mesmo aquelas que se escondiam atrás do sentimento de resistência à opressão nacional. Também funcionava para conectar a luta contra a opressão às minorias nacionais e a luta contra a casta parasitária formada pela burocracia estalinista que governava a União Soviética.

Lituânia: Nacionalismo e Contrarrevolução

Atualmente na União Soviética, são os Países Bálticos que colocam a questão nacional em pauta de forma mais aguda. Em março de 1990, a Lituânia declarou a sua independência, separando-se do restante da URSS. O governo nacionalista-burguês do Sajudis declara abertamente seu interesse em reinstaurar o país à condição de satélite imperialista na fronteira com a União Soviética. Os imperialistas, em troca, têm proclamado em alto e bom som o seu apoio à autodeterminação lituana.
 
Os problemas crônicos de corrupção e ineficiência na gestão pública, combinados com a opressão burocrática e nacional, contribuíram para que, na ausência de uma oposição socialista ao regime de Moscou, os movimentos nacionalistas que surgem em toda a URSS se tornem veículos para a hostilidade generalizada que se volta contra o estalinismo. Num resultado chocante, o referendo realizado em fevereiro passado na Lituânia sobre a questão da independência, revelou que “mais da metade dos russos, poloneses, e integrantes de outras minorias étnicas na república Soviética, votaram junto com eles [os separatistas]” (Manchester Guardian Weekly, 17 de Fevereiro). Esse resultado é um indicativo da frustração com Moscou sentida por grande parte da população soviética, que assiste o seu país se afundar cada vez mais no caos econômico. Tragicamente, esse sentimento se traduz na difundida resignação das massas à “inevitabilidade” da restauração capitalista, que se apresenta como a única salvação para a crise que se instaurou.
 
É nessa conjuntura que os centristas da Liga por uma Internacional Comunista Revolucionária (LRCI em inglês) [predecessora da atual Liga Pela Quinta Internacional, grupo internacional do Workers Power britânico e da Liga Socialista brasileira] argumentam que os revolucionários devem apoiar os movimentos de independência pró-capitalistas, uma vez que esse é o desejo da maioria dos trabalhadores lituanos. Em uma polêmica com nossos companheiros, a sessão alemã da LRCI escreveu:
 
“Nós dizemos: por um estado operário independente, deixem que as massas passem por sua própria experiência com esses falsos líderes. Se ficarmos neutros, ou pior, apoiarmos as tentativas do governo central de manter o controle, nós iremos empurrar as massas cada vez mais para as mãos de elementos mais radicais da extrema-direita. Claro que existe o perigo imediato da contrarrevolução capitalista. Mas nós podemos lutar contra essa ameaça cortando o apoio da base às lideranças burguesas…”.
— “A crítica e a frase” (“Kritik und Phrase”, no original em alemão)
 
Esse é um exemplo típico de confusão centrista. A chamada “por um estado operário independente” serve para encobertar a capitulação da LRCI aos “falsos líderes [ou seja, pró-capitalistas]”. A LRCI apoia os restauracionistas burgueses por que teme que a neutralidade vá “empurrar as massas” mais para a direita! Em nenhum momento passou pela cabeça desses centristas em se opor à contrarrevolução que vem sendo perpetrada pelo Sajudis.

A principal seção da LRCI (o grupo britânico Workers Power) não é melhor. Eles admitem que a vitória da restauração na Lituânia significaria o desastre para os trabalhadores que “sofrerão enquanto a Lituânia é empurrada para a servidão semicolonial” (“Deixem a Lituânia em Paz”, “Let Lithuania Go!” no original em inglês publicado na edição de abril de 1990 periódico de Workers Power). Apesar dessa afirmação, eles mantêm que em um eventual confronto: “Um partido trotskista na Lituânia… iria se colocar ao lado dos nacionalistas em sua luta contra Moscou, inclusive combater as tropas soviéticas enviadas para esmagar a república independente.” Novamente, pode-se observar uma tentativa de camuflar essa capitulação ao nacionalismo burguês. Dessa vez, a cortina de fumaça assume a forma de uma ridícula promessa de realizar uma suposta “luta determinada contra os nacionalistas, se e quando eles começarem o desmonte das relações de propriedade estatais e restaurarem o capitalismo.” Essa afirmação ignora que para os restauracionistas do governo do Sajudis, a separação da URSS é uma etapa crucial e indispensável em seu projeto de destruição das formas de propriedade coletivizadas.
 
Quando Gorbachev respondeu aos separatistas através do embargo econômico à Lituânia, o Workers Power exigiu que os imperialistas quebrassem o bloqueio soviético. Em maio de 1990, alertavam: “Nós devemos exigir que o governo britânico reconheça a Lituânia e inicie o envio dos suprimentos requisitados pela Lituânia de maneira incondicional.” Eles denunciaram o imperialismo por oferecer apenas um apoio simbólico aos separatistas bálticos.
 
A luta para defender o proletariado de todas as formas de restauração capitalista não se contrapõe, mas se complementa, com luta pelo direito de qualquer nação na URSS de estabelecer uma república socialista independente. A luta contra o chauvinismo grão-russo da burocracia estalinista será um fator vital em mobilizar os trabalhadores para a revolução política. Nós trotskistas nos opomos a qualquer forma de opressão: política, econômica e cultural. Também nos opomos à “união” forçada a ferro e fogo pelos burocratas do Kremlin. Ao defender a união voluntária de todos os povos da União Soviética com base em repúblicas socialistas, os revolucionários acabam por defender o direito à autodeterminação desses povos, ou seja, o direito de nações como a Lituânia de se separarem do restante da URSS. Esse direito não pode ser confundido com o direito a estabelecer um estado burguês independente. Para o proletariado lituano, assim como o proletariado das demais nações oprimidas da URSS, independência ganha ao custo da restauração capitalista seria uma profunda derrota. O trabalho dos marxistas não consiste em pensar de forma sonhadora, ou tentar embelezar as forças reacionárias, e sim “falar a verdade às massas, não importa quão amarga ela seja.” Apenas quando entendemos a realidade é que somos capazes de mudá-la.

A Agonia de Morte do Stalinismo

Os regimes do Leste Europeu Implodem
A Agonia de Morte do Stalinismo

Este artigo foi originalmente publicado em 1917 No.8 (1990), pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional. A tradução foi feita pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2013.

O desmanche da ordem política imposta aos países do Leste Europeu pela União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial alterou profundamente a configuração da política mundial. Os recentes eventos dramáticos podem ser rastreados à aceitação, por Gorbachev, do governo liderado pelo Solidariedade na Polônia em agosto passado, o que sinalizou que o Kremlin não iria mais apoiar os seus clientes do Pacto de Varsóvia com tropas e tanques.

Com a ameaça de intervenção soviética removida, protestos de massa contra décadas de tirania stalinista explodiram por toda a região. Na Romênia, esse levante popular desaguou em um conflito armado sangrento com a “Securitate”[polícia política] de Ceausescu [dirigente do PC romeno e Presidente do país]. Por toda a parte os Partidos Comunistas dominantes, desprovidos de qualquer crença na sua legitimidade, mudaram seus nomes e retiraram seus líderes antes de correr para seus esconderijos. Até o momento, governos abertamente pró-capitalistas tomaram o poder na Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental (RDA) e Hungria. Na Romênia e na Bulgária, os stalinistas “reformadores” que ainda tem o domínio do poder, prometem aplicar medidas de mercado capitalistas num futuro próximo.

Enquanto a dominação de Moscou sobre o Leste Europeuestá rapidamente se tornando uma coisa do passado, o futuro da região permanece incerto. Mas o ritmo é claramente para a direita. Quarenta anos de poder stalinista desacreditaram profundamente a própria ideia de socialismo entre camadas amplas da classe trabalhadora. Enganado, traído e confuso, o proletariado do Leste Europeu ainda está para se afirmar como um fator político independente. As massas de pessoas que derrubaram o Muro de Berlim ou que se enfrentaram com os capangas de Ceausescu estavam unidas por seu ódio aos privilégios, comandismo e desgoverno econômico dos seus chefes burocráticos. Eles sabiam o que eles não queriam, mas não tinham programa positivo.

O vácuo político criado pelo colapso da autoridade burocrática criou uma abertura para intelectuais pró-capitalistas e fanáticos nacionalistas. Ao longo do Leste Europeu, há uma recrudescência de organizações fascistas que datam da era Hitler. Na cidade romena de Tirgu Mures, uma organização autodenominada Guarda de Ferro assumiu a responsabilidade pelo assassinato de membros da minoria étnica húngara; cinquenta anos antes, o seu homônimo havia realizado pogroms contra judeus. Na Bulgária, ataques brutais contra a minoria turca fizeram com que milhares fugissem para salvar suas vidas. Na RDA, ataques a imigrantes e militantes de esquerda por gangues de skinheads nazistas se tornaram comuns. Por trás dessas forças estão os banqueiros e industriais do Ocidente, que estavam loucos para reconquistar os países do bloco soviético.

A restauração do capitalismo no Leste Europeu – uma perspectiva colocada agora de forma direta – representaria um imenso retrocesso para o proletariado internacional. A coletivização dos meios de produção decretada burocraticamente trouxe benefícios concretos para a classe trabalhadora. Emprego era garantido; os preços da comida, moradia e transporte eram estabilizados (e frequentemente subsidiados); saúde e educação eram acessíveis de forma geral. Na RDA, creches eram muito baratas e acessíveis a todos, e recursos especiais garantiam moradia acessível para mães solteiras e aposentados. Esses ganhos sociais, que são diretamente ameaçados pelos arquitetos da restauração capitalista, permanecem genuinamente populares entre largas camadas das massas, apesar da sua atual paixão com a “mágica” do mercado.

Pela revolução política – não à restauração capitalista!

Milhões de trabalhadores do Leste Europeu não vão apreciar a introdução de metas e demissões capitalistas. Eles não vão ficar parados quando o preço dos alimentos e dos aluguéis escalar, enquanto os salários reais são cortados, nem vão aceitar quietos serem amontoados nas filas de desempregados e na fila da sopa que os espera no maravilhoso reino da “livre concorrência”. Isso coloca um problema agudo para os novos governos pró-capitalistas. O principal recurso deles é o apoio de massa, mas eles têm uma missão de contrarrevolução social que lhes exige atacar suas bases.

A projetada absorção da RDA pela Alemanha Ocidental iria potencialmente criar contradições explosivas quando a burguesia tentar fazer a classe trabalhadora pagar o preço da Anschluss[Unificação]. Mas os capitalistas da Alemanha Ocidental possuem tanto um poderoso aparato de Estado quanto imensos recursos econômicos com os quais imporem sua vontade. Em outras partes da região, entretanto, a ausência de um aparato repressivo efetivo apresenta grandes problemas para os novos governos. Os aparatos militares e policiais existentes herdados do antigo regime estão em estado de desorganização e não podem ser considerados confiáveis sem antes passar por profundos expurgos e seleção de novo pessoal. Isso não será realizado facilmente e, de qualquer forma, exige tempo. Enquanto isso, a situação econômica está rapidamente indo de mal a pior. Não vai haver nenhum novo Plano Marshall. Para ter um “milagre econômico” de tipo pinochetista peloqual esperam os novos regimes, eles vão precisar da capacidade militar para esmagar a resistência da classe trabalhadora.

Nesse momento as formações abertamente fascistas, como a antissemita Confederação por uma Polônia Independente (KPN), que aspiram traduzir a raiva e desespero das massas populares em pogroms e terror branco, são muito marginais para realizaram esse serviço. Sem o contrabalanço suficiente para a perspectiva de uma classe trabalhadora coesa, os regimes capitalistas embrionários permanecem extremamente vulneráveis conforme a euforia inicial da “liberdade” vai se dissipando, e as massas começam a compreender exatamente o que significa a vida sob o capitalismo.

Agora, mais do que nunca, as massas do Leste Europeu precisam de uma liderança revolucionária comprometida com a defesa da propriedade coletivizada e a instituição do poder político direto da classe trabalhadora, ou seja, a perspectiva de uma revolução política proletária. A primeira qualificação necessária de tal liderança é a habilidade de encarar de frente a realidade e reconhecer a gravidade do perigo restauracionista. Nesse ponto, a maioria dos grupos da esquerda que se reivindicam trotskistas são inúteis. Seja por relutância em criticar “movimentos de massa”, ou falta de coragem em admitir que a maré política atual não está indo em direção ao progresso, a maioria da esquerda finge viver em um mundo mais ao seu gosto do que o que existe realmente. Isso só serve para desarmar a classe trabalhadora politicamente diante de um levante reacionário.

O colapso do stalinismo: o prognóstico de Trotsky confirmado

O teste de qualquer teoria política é sua habilidade para explicar grandes eventos históricos. Há mais de cinquenta anos, Trotsky caracterizou a burocracia stalinista como um estrato social privilegiado apoiando-se nas fundações econômicas criadas pela revolução de outubro de 1917. Ele apontou que a mordaça política da burocracia impedia um funcionamento e controle democrático pelos produtores, necessário para o funcionamento apropriado de uma economia coletivizada. No Programa de Transição, Trotsky previu que “O prolongamento de seu domínio [da burocracia] abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista”. Trotsky também argumentou que a busca dos stalinistas por riqueza e status contradizia as formas de propriedade igualitárias sobre as quais o seu domínio se baseava. É por isso que a casta stalinista nunca poderia solidificar-se em uma nova classe dominante. Trotsky também afirmou que a oligarquia burocrática permanecia uma camada social altamente instável, vulnerável tanto a levantes da classe trabalhadora como a correntes capitalistas-restauracionistas. Essa análise foi poderosamente confirmada nos meses recentes pela dramática desintegração daquilo que vários impressionistas tinham rotulado como um monolito totalitário imutável. Se nada mais, os atuais desenvolvimentos no “bloco soviético” refutam conclusivamente todas as afirmações de que as burocracias stalinistas constituem uma nova classe dominante.

Por muitos anos, o defensor mais proeminente da teoria da “nova classe” foi Max Shachtman, que rompeu com o movimento trotskista nos anos 1940 e passou a afirmar que os stalinistas representavam uma classe “coletivista burocrática”, nem burguesa nem proletária. A teoria da nova classe de Shachtman era tão indeterminada, e sua eventual deserção para o campo imperialista tão ignominiosa, que poucos ativistas de esquerda hoje reivindicam a doutrina do “coletivismo burocrático” na sua forma original.

Uma variante da teoria de Shachtman é a do “capitalismo de Estado”, de acordo com a qual a burocracia stalinista transformou a si mesma em uma nova classe capitalista coletiva. A maior tendência reivindicando a teoria do “capitalismo de Estado” é a tendência dirigida por Tony Cliff, líder do Socialist Workers Party britânico. O grupo de Cliff originalmente rompeu com o movimento trotskista no começo dos anos 1950, justamente quando a Guerra Fria estava lançando um ataque contra a Coréia. Na América do Norte, os seguidores de Cliff são conhecidos como “Socialistas Internacionais”. Enquanto a “teoria” do capitalismo de Estado livrou Cliff e seus colaboradores da tarefa desconfortável de defender o bloco soviético contra o imperialismo e tornou-os “respeitáveis” no seu ambiente socialdemocrata, ela não pôde explicar a Guerra Fria ou as revoluções sociais dirigidas (e desviadas) pelos stalinistas no Terceiro Mundo. Nem pôde explicar também porque, se não havia antagonismo fundamental entre duas variantes de “capitalismo”, os imperialistas lutaram tão ferozmente para conter e esmagar o “comunismo” desde a revolução chinesa nos anos 1940 até a Coréia, Vietnã e Cuba.

Harman vs. Cliff sobre o caráter da burocracia

Enquanto os seguidores de Cliff passaram a maior parte do tempo comemorando o colapso do stalinismo e promovendo vários oposicionistas socialdemocratas como “marxistas revolucionários”, as suas tentativas ocasionais de explicar os eventos (e não apenas descrevê-los) claramente expõe as contradições insolúveis da sua teoria.

Em um artigo que apareceu na imprensa da Organização Socialista Internacional norte-americana, o especialista em União Soviética dos cliffistas britânicos, Chris Harman, explicou que: “O mercado é uma palavra-chave para reestruturar a economia do Leste Europeu. Aqueles setores que não são competitivos com o Ocidente serão varridos, trabalhadores em outros setores vão ter que trabalhar mais por menos” (Socialist Worker, janeiro). Verdade. Mas, se a privatização completa vai ter tais desastrosas consequências para a classe trabalhadora, então deveria ser a tarefa elementar dos marxistas defenderem a manutenção da propriedade estatal – seja ela chamada de “coletivista burocrática”, “capitalista de Estado” ou qualquer outra coisa – contra o ataque do “livre mercado”. Entretanto, tal chamado pela defesa da propriedade estatal iria contradizer completamente o antisovietismo visceral que define a visão de mundo dos Socialistas Internacionais.

Os cliffistas buscam conciliar a bancarrota completa da sua teoria enquanto guia para ação minimizando o perigo restauracionista e, no lugar disso, destacam os aparatos de Estado stalinistas em rápida desintegração como a maior ameaça à classe trabalhadora. De acordo com Harman:

“É prematuro prever exatamente como a vida política vai agora se desenvolver no Leste Europeu. O que pode ser dito com certeza é que a antiga classe dominante não foi finalizada em lugar nenhum.”
“Isso é verdade mesmo se, como parece possível, o velho partido dominante desmoronar completamente.”
“Uma classe dominante e um partido dominante nunca são exatamente a mesma coisa…”.
“… a classe pode preservar a verdadeira fonte do seu poder e privilégio, seu controle sobre os meios de produção, mesmo quando o partido cair. Isso foi demonstrado na Alemanha, Itália e Espanha depois da queda de seus fascismos.”
“A rede de conexões formais que mantinha juntos chefes de polícia, oficiais do exército, ministros de governo e industriais se desintegrou.”
“Mas conexões informais permaneceram, assim como o impulso à acumulação que garantiu interesses de classe comuns desses elementos contra aqueles abaixo deles. Não demorou muito para que eles pudessem construir novos partidos dominantes tão capazes de defender seus interesses quanto os antigos.”
“No Leste Europeu, tanto se essas redes de conexão se mantiverem nos velhos partidos, quanto se passarem a partidos novos, elas estarão se preparando para a próxima rodada da luta…”
― Idem.

Harman aparentemente não está preocupado com o fato de que a sua analogia superficial contradiz diretamente seu mentor, Tony Cliff. Em Capitalismo de Estado na Rússia, Cliff comparou os dois sistemas de domínio de classe da seguinte forma:

“Onde quer que haja uma fusão da economia com a política, é teoricamente errado distinguir entre a revolução política e econômica, ou entre contrarrevolução política e econômica. A burguesia pode existir como burguesia, possuindo propriedade privada, sob diferentes formas de governo: sob uma monarquia feudal, uma monarquia constitucional, uma república burguesa… Em todos esses casos há uma relação direta de propriedade entre a burguesia e os meios de produção. Em todos eles o Estado é independente do controle diretoda burguesia, e apesar disso, em nenhum deles a burguesia deixa de ser a classe dominante. Onde o Estado é o repositório dos meios de produção, existe uma fusão absoluta entre economia e política; expropriação política também significa expropriação econômica.”

Cliff ao menos reconhece que as “conexões informais” que mantêm a classe capitalista unida, independente de qual fração política esteja no comando do Estado, nada mais é do que a propriedade privada dos meios de produção. E se, como Cliff e Harman podem prontamente concordar, a ausência de propriedade privada é a característica distintiva das economias coletivizadas da URSS e do Leste Europeu, então a única forma pela qual a “classe dominante” stalinista pode manter o seu poder é através de um monopólio absoluto do Estado. Por que então os stalinistas estão abandonando o seu monopólio político em um país do Leste Europeu depois do outro: eles são a primeira classe dominante na história a abandonar o poder sem luta? Se isso for verdade, então Harman não está errado em chamar os líderes da oposição no Leste Europeu de “reformistas” supostamente ingênuos sobre os perigos da reorganização stalinista? A estratégia reformista estaria funcionando.

Burocracia stalinista: casta, não classe

Os stalinistas não se comportam como uma classe dominante porque eles não são uma classe dominante. O principal inimigo dos trabalhadores no Leste Europeu hoje não são as várias burocracias nacionais, que estão em avançado estado de decomposição, mas os capitalistas dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental, que buscam reintegrar essas economias ao mercado mundial imperialista.

Em um artigo particularmente opaco, publicado na edição de fevereiro de Socialist Worker Review, a revista mensal dos cliffistas, Chris Bambery argumenta que:

“Na realidade, a escolha para a burocracia é entre se ater aos velhos métodos capitalistas de Estado do passado ou adotar políticas similares à privatização de Thatcher. Ambos Gorbachev e Thatcher estão preocupados com aumentar a exploração.”

A noção de Bambery, de que o impulso para a projetada privatização da economia do Leste Europeu parte de uma decisão consciente dos governantes stalinistas com o objetivo de consolidar seu poder “aumentando a exploração”, é ridícula. O mergulho rumo à restauração do capitalismo só pode desintegrar ainda mais qualquer poder social que o aparato stalinista ainda possua. Se os países do bloco soviético reintroduzirem o capitalismo, quando isso acontecer as burocracias stalinistas serão desmanteladas. O grosso da nomenkletura está bastante ciente de que sua substituição pelo mercado capitalista como regulador da atividade econômica vai implicar a perda de ambos os privilégios materiais e o status social.

Em Revolução Traída, Trotsky antecipou que “A queda da atual ditadura burocrática, se ela não for substituída por um novo poder socialista, significaria o retorno a relações capitalistas com um declínio catastrófico da indústria e da cultura”. Em Capitalismo de Estado na Rússia, Cliff descartou a possibilidade de tal acontecimento: “As forças internas não são capazes de restaurar o capitalismo individual na Rússia…”. A projeção errada de Cliff não foi apenas um palpite ruim; é um corolário necessário à afirmação de que a burocracia soviética é uma nova classe dominante enraizada em uma nova forma de sociedade de classe, e não um crescimento parasítico sobre as formas de propriedade da classe trabalhadora.

O pânico precipitado e o recuo desesperado das burocracias do Leste Europeu em face aos recentes eventos revelou graficamente a profunda instabilidade dessas castas burocráticas. Aqueles elementos da burocracia que podem, já estão se revirando para encontrar lugares na emergente ordem capitalista – não como membros de uma “classe dominante” stalinista, mas como empresários individuais. Aqueles burocratas que não veem lugar para si em uma economia dominada pelo Ocidente serão forçados, independente da sua vontade, a lançar sua sorte junto com os setores da classe trabalhadora desencantados com as “reformas de mercado”. Esse não é o comportamento de uma classe dominante, mas sim de uma camada social instável, que se vê diante de forças competidoras mais poderosas, em meio a qualquer confronto de classe decisivo.

A atual crise do stalinismo revelou a doutrina de Tony Cliff como aquilo que ela sempre foi: uma cortina de fumaça para acomodação política a preconceitos antissoviéticos. A incapacidade dos cliffistas de responder às questões mais elementares colocadas pela luta de classes no Leste Europeu, ou de explicar, e muito menos prever, o comportamento dos stalinistas, comprova a completa falta de mérito científico da teoria do “capitalismo de Estado”. Pior, se seguida pelos ativistas de esquerda no Leste Europeu, só poderia significar abstenção na maior questão de classe que se coloca hoje: defender ou não o sistema de propriedade coletivizada (o único que pode prover a base para uma planificação democrática) contra aqueles que irão restaurar a propriedade privada dos meios de produção.

SU embarca na “dinâmica” da contrarrevolução social

Ao contrário dos “capitalistas de Estado”, o Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU) do professor Ernest Mandel afirma defender a tradição de Trotsky, incluindo sua posição sobre a “questão russa”. Assim, eles caracterizam a URSS como um Estado operário degenerado e reconhecem os Estados estabelecidos pelo Kremlin no Leste Europeu após a Segunda Guerra Mundial como Estados operários deformados. Mas o SU tem sido ainda mais stalinofóbico, e menos sério com relação ao caráter dos “movimentos de massa” que eles apoiam no Leste Europeu, do que os cliffistas. Os mandelistas saem em apoio a toda e qualquer corrente antiestalinista da região, incluindo aquelas com abertas simpatias fascistas. A edição de 18 de setembro de 1989 do principal órgão em inglês do SU, International Viewpoint (IV), publicou um revoltante apelo pela reabilitação dos “Irmãos Forest” estonianos, um bando de colaboradores nazistas antissemitas (veja “HowLowCan Mandel Go?”, 1917 No. 7).

O mesmo reflexo stalinofóbico ficou evidente no apoio entusiasmado do SU ao Solidariedade polonês, apesar de este ter adotado um programa abertamente restauracionista-capitalista no seu Congresso de setembro de 1981. Hoje o Solidariedade, à frente do governo polonês, está implementando agressivamente o programa de restauração capitalista que ele adotou nove anos atrás. Os custos humanos para os trabalhadores poloneses serão enormes. No Toronto Star de 25 de março, o colunista liberal Richard Gwyn comentou que, até agora “a escala de sofrimento é – para nós – completamente inimaginável. Em janeiro, a renda real dos poloneses diminuiu um terço”. Além disso:

“O segundo choque, começando esse verão, vai deixar algumas pessoas de queixo caído quando elas descobrirem que estão desempregadas enquanto outros, os negociadores do mercado negro e os funcionários das joint-ventures, vão escapar e subir para o topo do nível de renda.”
“‘Existe um risco de conflito que está crescendo todo o tempo’, diz Maciej Jankowski, vice-presidente do sindicato Solidariedade no distrito de Varsóvia e um apoiador do governo.”

Nada disso fez com que Mandel repensasse sua posição. Seus apoiadores norte-americanos no grupo Socialist Action, que levantaram abertamente o chamado contrarrevolucionário pela reunificação “incondicional” (ou seja, capitalista) da Alemanha, ainda usam uma adaptação do logotipo do Solidariedade na capa de seu jornal. A liderança europeia do SU, que não é tão desastrada, tenta se distanciar do Solidariedade no governo enquanto permanece completamente responsável por ter seguido Walesa e companhia todo o caminho até o Sejm [parlamento polonês].

Objetivismo pablista: não vê mal nenhum

A liderança do SU racionaliza a sua adaptação aos florescentes movimentos pró-imperialistas“pela democracia” no Leste Europeu, mascarando a sua ameaça restauracionista. Em um longo artigo analítico que apareceu no International Viewpoint de 30 de outubro de 1989, Mandel escreveu que:

“A questão principal nas lutas políticas em andamento não é a restauração do capitalismo. A questão principal é se essas lutas avançam na direção de uma revolução política antiburocrática ou de uma eliminação parcial ou total das liberdades democráticas adquiridas pelas massas sob a Glasnost. A luta principal não é entre forças pró-capitalistas e anticapitalistas. É entre a burocracia e as massas trabalhadoras…”.
―ênfase adicionada

Para sustentar essa afirmação, Mandel aponta para a “lógica objetiva” das forças de classe. Notando que “Em nenhum dos Estados operários burocratizados a pequeno-burguesia e a média burguesia representam mais que uma pequena minoria da sociedade…”, ele conclui que “A única possibilidade minimamente realista de chegar a tal resultado [capitalismo] é confiando na ala abertamente ‘reformista’ da burocracia”. Mas nem mesmo isso é causa séria de preocupação porque para

“a grande maioria da burocracia, a restauração do capitalismo reduziria seus poderes e privilégios. Apenas uma pequena minoria iria ou poderia se transformar em verdadeiros empresários de grandes firmas financeiras ou industriais…”.
“Assumir que a burocracia está caminhando nessa direção significa assumir que ela está pronta para cometer haraquiri [suicídio] como uma casta social cristalizada.”

Mandel segue para afirmar que os trabalhadores e camponeses pobres nunca vão adotar o capitalismo porque “O peso do fator ideológico… segue subordinado à confrontação dos interesses sociais”. Na Polônia:

“Por mais satisfeitos que possam estar pela espetacular vitória política do Solidariedade… e por maior que seja a real influência ideológica (muitas vezes exagerada no estrangeiro) da Igreja e do nacionalismo, os trabalhadores poloneses vão agir decisivamente para defender seus padrões de vida, seus empregos e mesmo a miserável situação social que eles ganharam quando qualquer governo, mesmo um liderado pelo Solidariedade, lhes atacar. São os seus interesses e não apenas alguns ‘valores ideológicos’ que em última análise vão determinar o seu comportamento cotidiano…”
― Idem

A estupidez criminosa do grupo de Barnes

Jack Barnes, líder do Socialist Workers Party norte-americano eparceiro de Mandel no SU, também vê a questão chave no Leste Europeu sendo democracia contra stalinismo. Os seguidores de Barnes, que tem o hábito de reproduzir acriticamente cada pronunciamento da burocracia cubana, de forma pouco característica discordaram de Fidel Castro sobre essa questão. Na edição de 9 de março do Militant, o líder do SWP norte-americano, Cindy Jaquith, criticou Castro por denunciar o “anticomunismo feroz” do Solidariedade e de seus aliados. Jaquith censura o chefe cubano dizendo que “não é o caso de que a luta por direitos democráticos no Leste Europeu prejudique Cuba; exatamente o oposto”. Ela continua:

“Não é o socialismo que está sendo golpeado por esse levante, mas o stalinismo, que manteve o seu punho contrarrevolucionário sobre a classe trabalhadora desses países por décadas. E ao deferir um golpe no stalinismo, os trabalhadores estão desferindo um gigantesco golpe no imperialismo mundial, que tem confiado na estabilidade do domínio stalinista no Leste Europeu para manter o status quo por 40 anos.”

Descrever a reabertura desse amplo setor da economia mundial à penetração capitalista como um “gigantesco golpe no imperialismo mundial” está tão em desacordo com a realidade que desafia o bom senso. Mesmo os seguidores de Barnes devem saber que um retorno ao capitalismo no Leste Europeu vai significar uma orgia de pogroms antissemitas, ataques aos direitos das mulheres, redução geral dos níveis de vida das massas e a transformação de milhões de trabalhadores em indigentes sem-teto. Entretanto, Jaquith opina de forma iluminada:

“conforme milhões de trabalhadores no Leste Europeu confrontem as consequências devastadoras nos seus padrões de vida e condições de trabalho resultantes da introdução de métodos capitalistas, eles vão resistir. E eles vão procurar por ideias revolucionárias que lhes foram negadas por décadas…”.

E o que o SWP vai dar aos futuros indigentes do Leste Europeu quando eles “procurarem”? Cópias sobressalentes dos discursos de bonapartistas depostos do Terceiro Mundo como Thomas Sankara e Maurice Bishop?

A falsa consciência do proletariado

Aqueles membros do SWP e do SU capazes de pensar, e que não são cínicos, devem estar profundamente perturbados pela atitude de seus dirigentes. Se os trabalhadores sempre vão agir “decisivamente” para defender seus interesses, por que eles votaram esmagadoramente em candidatos pró-capitalistas do Solidariedade para começo de conversa? A monumental falsa consciência da classe trabalhadora polonesa, que imagina ter amigos da Casa Branca ao Vaticano, demonstra que a consciência de classe não é uma função automática de um interesse social objetivo, que é o que Mandel e Jaquith supõem. Se fosse assim, o socialismo já teria triunfado há muito tempo.

A humanidade faz sua própria história, mas frequentemente não como pretende. Quando os trabalhadores agem com base em uma compreensão falsa da sua situação objetiva, o resultado pode ser grandes derrotas para a classe. A história do movimento sindical contém exemplos abundantes de trabalhadores brancos entrando em greve contra a contratação de negros, para supostamente “proteger” seus empregos. O Conselho dos Trabalhadores de Ulster de 1974, uma das ações operárias mais poderosas e bem sucedidas na recente história das ilhas britânicas, foi conduzido com o objetivo de manter a supremacia Protestante. A greve dos mineiros britânicos de 1984-85 foi derrotada em parte porque uma maioria dos mineiros de Nottinghamshire furou a greve dos seus companheiros.

Os trabalhadores poloneses não esperam se juntar às massas empobrecidas da América Latina, mas sim aos trabalhadores especializados da Europa Ocidental e Estados Unidos. Eles não enxergam os esquálidos guetos nos quais os negros norte-americanos e imigrantes vivem, nem os milhões de sem-teto morando em caixas de papelão nesses países. Eles também não veem a imagem de seu futuro nos cinturões industriais devastados no centro-oeste norte-americano ou no norte da Inglaterra. Ao invés disso, seu olhar está fixado nas vitrines de lojas, nos aparelhos de vídeo e nas bem localizadas casas de subúrbio que são mostradas na propaganda capitalista como se fossemum direito comum a todos que vivem no reino da “livre concorrência”.

A necessidade de uma liderança revolucionária

A tentativa de reimpor a exploração capitalista no Leste Europeuvai, sem dúvidas, provocar resistência da classe trabalhadora. Mas cada derrota para os trabalhadores no presente enfraquece a sua capacidade de reagir no futuro. Os trabalhadores poloneses teriam tido uma chance melhor de repelir a maré restauracionista se eles tivessem rompido com o Solidariedadeantes de ele chegar ao poder. Eles estarão em uma posição mais forte se organizarem uma luta contra o Solidariedade agora do que se esperarem até que milhões sejam demitidos das fábricas e os níveis de vida sejam ainda mais dilacerados.

A posição de classe objetiva dos trabalhadores na sociedade torna a sua luta pelo poder possível, mas ela não garante o sucesso. Os trabalhadores são mais capazes de lutar quando eles estão armados politicamente contra as falsas concepções que paralisam a capacidade deles para a luta, e quando estão alertas, em cada passo do caminho, para os perigos que os ameaçam. Essa é a tarefa de uma liderança revolucionária. Garantias ingênuas de que a “lógica objetiva” da luta de classes vai automaticamente levar os trabalhadores a rejeitar as ideias erradas, e a cumprir seu papel de acordo com algum roteiro “marxista” predeterminado é, no fim, uma racionalização para abdicar da luta por consciência marxista no seio da classe trabalhadora.

Tais racionalizações não são novas na história do movimento socialista. O Partido Bolchevique de Lenin foi forjado na luta contra uma doutrina conhecida como “economismo”, ou “espontaneidade das massas”. De acordo com os economicistas, as lutas econômicas do cotidiano do proletariado iriam, de alguma forma, levar ao triunfo “historicamente inevitável” do socialismo. Ao rejeitar tais doutrinas, Lenin contrapôs a necessidade de organizar a minoria politicamente consciente da classe trabalhadora e ganhar influência para o programa revolucionário. Os pronunciamentos de Mandel para efeito de que os “interesses” dos trabalhadores e não os seus “valores ideológicos” é que vão determinar o seu comportamento cotidiano tem muito mais em comum com o economismo do que com o leninismo, o legado que o SU falsamente reivindica.

Workers Power: face de esquerda do Terceiro Campo

Os centristas britânicos do grupo Workers Power, que em geral podem ser encontrados um ou dois passos à esquerda do SU, parecem estar mais conscientes do perigo de restauração capitalista. A edição de setembro de 1989 de Workers Power proclamou: “Polônia – Não ao retorno do capitalismo!”. Em 1981, enquanto o SU estava cantando louvores para a “dinâmica” incorporada pela liderança contrarrevolucionária do Solidariedade, oWorkers Power tomou uma atitude mais crítica. Mas um exame atento das suas credenciais políticas revela que a posição “à esquerda” de Workers Power não é mais do que aparência. Quando aconteceu o confronto em dezembro de 1981, quando os stalinistas agiram para suprimir a liderança contrarrevolucionária do Solidariedade, o Workers Power se uniu ao SU e a vários outros grupos pseudotrotskistas em defesa desse movimento abertamente capitalista-restauracionista. Oito anos depois, a mesma liderança do Solidariedade, defendendo o mesmo programa, finalmente chegou ao poder com o objetivo de estabelecer uma economia de mercado. Quando foi mais importante, o Workers Power estava do lado errado da barricada.A edição de março do jornal Workers Power racionaliza a sua estalinofobia da seguinte forma:

“uma oposição proletária espontânea ao stalinismo provavelmente vai associar o stalinismo com o movimento revolucionário que ele reivindica. Essa confusão não pode ser superada tomando o lado dos stalinistas contra a classe trabalhadora, mas apenas baseando-nos na classe trabalhadora mobilizada em suas lutas progressivas.”

“Lutas progressivas” são uma coisa, mas quando a classe trabalhadora é mobilizada por forças da reação clerical e da restauração capitalista, como foi na Polônia, o Workers Power vai atrás.

Apesar das suas reivindicações de defensismo soviético, oWorkers Power não se afastou muito das suas origens nos Socialistas Internacionais de Tony Cliff. Um artigo sobre a reunificação alemã no Workers Power de novembro de 1989 chamou “Pela expulsão das tropas estrangeiras de ambos os Estados”. Isso nada mais é do que uma concretização do slogan cliffista de “Nem Washington, nem Moscou”. A edição de março de 1990 nota que “a OTAN é uma aliança imperialista” e proclama que “lutamos pela sua dissolução e pela retirada incondicional de todas as suas forças para os países de origem”. Mas o artigo continua:

“O Pacto de Varsóvia foi criado em resposta à ameaça imperialista à União Soviética e àqueles Estados que ela conquistou. Enquanto suas tropas eram e são uma forma de defesa das relações de propriedade pós-capitalistas desses Estados, o único combate que elas travaram foi a supressão de classes trabalhadoras insurgentes… e nós somos a favor da dissolução e da retirada de suas tropas”.
― ênfase adicionada

Se o Pacto de Varsóvia aumentou a capacidade defensiva dos Estados operários deformados contra um ataque imperialista, porque chamar pela sua dissolução? Isso não é apenas uma confusão. Como demonstra sua defesa do Solidariedade capitalista-restauracionista, o Workers Power representa a face “de esquerda” da estalinofobia dentre as correntes que reivindicam o trotskismo.

A atitude dos revolucionários com relação ao exército soviético nos Estados operários deformados depende de circunstâncias concretas. Quando ele representar um bastião contra a pressão militar imperialista, ou uma contrarrevolução interna, nós o defendemos. Ao contrário doWorkers Power, nós não nos opomos à intervenção soviética no Afeganistão. Se a União Soviética tivesse intervido no Vietnã contra os imperialistas, como o exército chinês fez durante a Guerra da Coréia, nós teríamos apoiado militarmente.

Quando o exército soviético é usado contra a classe trabalhadora, como na RDA em 1953 ou na Hungria em 1956, nós exigimos a sua imediata retirada e defendemos os insurgentes. Na RDA, no último outono, as tropas soviéticas não colocaram nenhum perigo imediato para as mobilizações da classe trabalhadora. Dada a relativa disparidade entre o peso econômico e militar da RDA, se comparada com a Alemanha Ocidental, a retirada da presença militar soviética iria enfraquecer significativamente a defesa da propriedade coletivizada. Enquanto diz da boca para fora que faz distinção entre o Pacto de Varsóvia e a OTAN, a posição doWorkers Power, de oposição similar a ambos, é puro terceiro-campismo.

Alucinações espartaquistas e a revolução política

A Liga Espartaquista (SL) baseada nos Estados Unidos e seus satélites na “Liga Comunista Internacional” (LCI) reconhecem que a restauração capitalista, e não uma burocracia stalinista ressurreta, é o principal perigo ameaçando os trabalhadores da região. Por essa razão, nós demos nosso apoio crítico aos candidatos do “Partido dos Trabalhadores Espartaquistas” (SpAD) nas eleições de 18 de março na RDA (como mostra a declaração impressa nessa edição [de 1917]).

Entretanto, enquanto o SpAD chama pela formação de partidos “leninistas igualitários” no Leste Europeu, a própria LCI, enquanto organização política, é tão “igualitária” quanto a Romênia de Ceausescu. Qualquer recruta do SpAD que acredita estar se juntando a um grupo democrático precisa seriamente despertar para a realidade.

Os desvios do trotskismo perpetrados pela LCI vão além da natureza autocrática do seu regime interno. Existe uma deformação na forma como tratam da crise do stalinismo que se assemelha ao pseudo-otimismo do SU. Imediatamente depois do massacre da Praça da Paz Celestial (Tiananmen) no ano passado, Workers Vanguard (jornal da Liga Espartaquista, de 9 de junho de 1989) proclamou triunfantemente: “O stalinismo chinês provocou uma revolução políticaque pode muito bem disseminar o fim desse regime burocrático antioperário” (ênfase adicionada). O artigo concluía dizendo que “Essa revolução começou agora”. Mas não existiu nenhuma revolução política na China no ano passado. Em nossa declaração sobre o massacre de Pequim, nós comentamos:

“Vários impressionistas autoproclamados ‘trotskistas’ – do Secretariado Unificado de Ernest Mandel à Tendência Espartaquista – declararam que uma revolução política plena estava acontecendo. Enquanto a revolta foi enorme em escala e certamente potencialmente revolucionária, ela não constituiu o que os trotskistas poderiam caracterizar como uma revolução política. Primeiro: qualquer tentativa séria de substituir o PC Chinês iria exigir instituições revolucionárias capazes de desafiar e, em última instância, de substituir o burocrático poder de Estado existente. A revolução húngara de 1956, que foi uma tentativa de revolução política, estabeleceu conselhos de trabalhadores, os quais poderiam ter se tornado as instituições principais do poder de Estado se os trabalhadores tivessem triunfado. Mas o ‘movimento pela democracia’ chinês… não criou formas organizativas que poderiam ter constituído a estrutura para o poder de Estado. O objetivo do movimento não era destruir, mas reformaras instituições de poder burocráticas.”
“Segundo: uma revolução política em um Estado operário deformado tem o objetivo de derrubar a burocracia preservando a propriedade estatal dos meios de produção. O ‘movimento pela democracia’ não possuiu clareza com relação aos seus objetivos.”

Algumas pessoas interpretaram as referências espartaquistas a uma revolução política em Pequim apenas como uma reação prematura e exageradamente entusiasmada ao levante chinês. Mas o mesmo erro reapareceu na intervenção do grupo nos eventos na RDA. Um artigo de capa na edição de 29 de dezembro de 1989 de Workers Vanguard começa dizendo que: “Uma revolução política está se desenrolando na República Democrática Alemã…”. A edição de 26 de janeiro de WVcontém um artigo com a manchete “Os estudantes universitários de Chicago veem em primeira mão – a revolução política na Alemanha Oriental”, que faz um relato a partir “do seio da revolução política proletária que se desenvolve contra o poder burocrático stalinista”. Por que os espartaquistas insistem em ver revoluções políticas proletárias onde elas não existem? Antigos membros do Socialist Workers Party norte-americano relembram como, nos anos 1960 e 1970, a liderança do grupo tentava ganhar novos membros e fortalecer os antigos afirmando que cada iniciativa organizativa iria resultar em uma “maior, mais importante e mais profunda” mobilização das massas. A mesma síndrome de “tudo está indo exatamente como queremos”, que leva Ernest Mandel a afirmar que a “lógica objetiva” da luta de classes vai levar inexoravelmente ao triunfo da revolução política, faz com que James Robertson [principal dirigente da SL] afirme que ela já esteja acontecendo.

“Você ouviu falarmos muito sobre revolução política”, Robertson talvez esteja dizendo a um empolgado universitário de Chicago ou a um membro antigo cujo comprometimento esteja em baixa, “e se você estiver entre a pequena minoria dos nossos membros que ainda tem o hábito de ler, você provavelmente leu sobre ela em A Revolução Traída. Bom, agora você pode ver a revolução política com seus próprios olhos. Junte-se a nós (ou continue conosco) na Liga Espartaquista e vá para a RDA!”

Então alguns estudantes universitários se ofereçam e talvez alguns antigos quadros decepcionados se esforcem um pouco mais, esperançosos de que essa vai ser a grande virada pela qual eles andavam esperando. Mas ganhos organizativos temporários conseguidos com tais métodos tendem a se dissipar muito rapidamente quando os grandes sucessos prometidos não se materializam. Como Robertson sabe muito bem, a euforia boêmia de uma noite de sábado pode se transformar em uma ressaca bem forte no domingo pela manhã. E nesse momento, depois de meses de atividade frenética, a moral no “partido” alemão de Robertson parece estar um pouco baixa.

A edição de 20 de março de Aprekorr (o boletim espartaquista na RDA) contém um pequeno artigo intitulado “Eles roubaram os carros errados”, que relata que dois proeminentes recrutas espartaquistas na RDA recentemente saíram do grupo, levando um bom número de amigos junto com eles. Aparentemente, os dissidentes tinham se cansado do estilo de liderança autoritária dos capangas de Robertson. Um dos que saíram foi Gunther M., que havia acabado de ser acrescentado à equipe editorial da revista Spartakist, a principal publicação do SpAD. Aprekorr afirma que os membros que se retiraram, que nós calculamos teremsido cerca de uma dúzia, ficaram com uma boa quantidade dos pertences do grupo, incluindo carros, livros e correspondência. Para aumentar o constrangimento da injúria, os dissidentes do SpAD imediatamente se registraram como um grupo político perante o governo da RDA, usando “cópias do programa e dos estatutos do SpAD”.

Por um realismo leninista – não ao otimismo estúpido

Os espartaquistas, os cliffistas e os mandelistas estão, cada um do seu jeito, inclinados a substituir a realidade que existe por uma mais conveniente. O caminho da história se inclina em direção ao socialismo, mas esse caminho pode ser longo, e passar por muitas derrotas episódicas. A vontade de sobreviver a essas derrotas e perseverar até a vitória exige um compromisso temperado – não contos de fadas, otimismo estúpido ou esperanças falsas e açucaradas. A luta de classes não vai desaparecer, independente do resultado dos eventos no Leste Europeu. O futuro pertence ao socialismo porque somente ele traça um caminho para longe do barbarismo e da patologia da ordem mundial imperialista.

Verdade ou Consequências

Por favor, os verdadeiros mercenários políticos podem se levantar? 

Verdade ou Consequências 

Publicamos a seguir uma carta endereçada pela Tendência Bolchevique (atual Tendência Bolchevique Internacional) ao Workers Vanguard, jornal da Liga Espartaquista dos EUA (SL). Ela é uma resposta a um artigo da SL que tentou difamar a Tendência Bolchevique. Ambas organizações, em momentos diferentes, foram capazes de sintetizar um programa revolucionário para a realidade do pós-Segunda Guerra Mundial, porém se degeneraram e deixaram de representar embriões para a construção de um partido revolucionário do proletariado. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em maio de 2013.

16 de dezembro de 1989
Camaradas:
Ao responder a uma polêmica do Workers Vanguard (WV)contra a Workers League [organização associada ao Comitê Internacional] pela sua postura no caso Mark Curtis [1], o Bulletin [jornal da WL] de 14 de julho de 1989 repete uma série de acusações levantadas contra a Liga Espartaquista pela Tendência Bolchevique.  Em sua réplica (“Why Should Anyone Believe David North?” [Porque alguém deveria acreditar em David North”], WV, 13 de outubro de 1989) vocês aproveitam essa oportunidade para amalgamar a TB com a Workers League (WL), citando o artigo do Bulletin como evidência de que supostamente compartilhamos de um anti-sovietismo, de hostilidade à classe trabalhadora negra, de sede de sangue, de apetite por provocação e de uma “mentalidade criminosa”. Nossa atitude em relação à Workers League tem sido há muito assunto de material público. Nós consideramos esse desagradável bando de outrora acólitos norte-americanos de Gerry Healy como um dos exemplos mais pérfidos de uma psicose de grupos pequenos e de banditismo político na história recente da esquerda dos EUA – excedendo até mesmo vocês. Tendo considerado toda a evidência à disposição, nós concluímos que o militante do SWP de Iowa, Mark Curtis, foi de fato vítima de uma armação da polícia. Nós apoiamos sua campanha de defesa há um ano e meio atrás. A tentativa da WL de apoiar o caso do procurador é mais um episódio em sua cruzada patológica de décadas de duração para destruir o SWP através de todo e qualquer meio sem princípios, incluindo difamação, insinuações de que militantes seus seriam policiais infiltrados no movimento e cumplicidade com as cortes capitalistas.
Entretanto, nada impede que até mesmo os mais inescrupulosos manipuladores políticos possam fazer uso da verdade quando isso atende a seus propósitos. Quantas vezes durante os anos 1930 a mídia burguesa e social-democrata usou os escritos de Trotsky para desacreditar a União Soviética? E quantas vezes os stalinistas oferecem essas citações de Trotsky na mídia burguesa como uma prova de seu “ódio pela União Soviética” e da sua cumplicidade com os poderes imperialistas? Vocês empregam agora essa mesma técnica stalinista de culpa por associação involuntária contra a Tendência Bolchevique, porque a WL, que não é particularmente seletiva em termos dos meios que usam para desacreditar seus oponentes, encontrou na nossa literatura alguns fatos mais danosos para a Liga Espartaquista do que qualquer mentira que pudessem inventar. Nós não seremos mais dissuadidos de publicar a verdade sobre sua organização porque ela pode ser citada pelos direitistas, reformistas ou mercenários políticos, do que Trotsky era por falar a verdade sobre o stalinismo, porque ela poderia ser usada pela burguesia de acordo com seus próprios objetivos contrarrevolucionários.
Sua resposta à WL faz referência às “grotescas calúnias da Tendência Bolchevique contra a Liga Espartaquista”, ao mesmo tempo em que espertamente evita mencionar a que “calúnias” vocês se referem, se esquivando de confrontá-las. Na verdade, a única acusação específica que vocês mencionam é de um artigo publicado em 1917[revista da TB] (que não é citado na polêmica da WL), que compara os regimes internos de Gerry Healy e James Robertson (“A Escola de Robertson de Construção de Partido”, 1917 n. 1). Nesse artigo nós apontamos que, assim como Healy rotineiramente fazia seus oponentes internos serem agredidos, “Isso é algo de que a SL não é culpada no nosso conhecimento”. Vocês se fazem de indignados porque também apontamos que “intimações desse tipo são progressivamente comuns” entre sua liderança, mas vocês se esquivam de comentar os exemplos de tais impulsos que citamos a partir de um relato de um membro dirigente da Liga Espartaquista / Grã Bretanha. Ele perguntou: “Talvez vocês possam explicar por que Len disse [para um antigo membro] para que ele se lembrasse do que momentos de radicalização violenta costumam fazer com ‘pessoas como ele’. Ou por que Ed se sentiu compelido a dizer [para outro membro] que ‘se nós estivéssemos em [outro país] nós iríamos arrebentar você’”. Pessoas razoáveis só podem interpretar observações desse tipo como cultivadoras um apetite para o tipo de violações da democracia operária que deu aos seguidores de Healy uma reputação merecidamente ruim.
Sua reposta aos seguidores de North é feita para dar a seus leitores a impressão de que a TB só faz insinuações vagas em relação à SL. Ninguém iria suspeitar a partir de seu artigo que nós fizemos um número razoável de alegações específicas e concretas em relação a violações do princípio trotskista, do centralismo democrático e da moral proletária por parte de seu Presidente Nacional, James Robertson, e de sua panelinha sicofanta. Várias dessas acusações altamente específicas são repetidas na polêmica da WL. Entretanto, vocês deliberadamente escolheram ignorá-las. Se essas acusações mais específicas fossem falsas, vocês poderiam ter de forma justa nos culpado não só de fazer insinuações, mas (o que é bem pior) de inventar enormes mentiras sobre sua organização. Mas isso necessariamente iria envolver responder nossas acusações de maneira direta – algo que vocês não estão preparados para fazer por uma razão bem constrangedora: elas são verdadeiras.
Nos anos recentes, a liderança da SL se viu forçada a submeter seus membros a testes de múltiplas escolhas, visando elevar seu conhecimento geral. Para aumentar o conhecimento público acerca da Liga Espartaquista, nós os convidamos a fazer o seguinte teste de “verdadeiro ou falso”, consistindo das alegações específicaspublicadas em nossa revista, 1917, que foram recolhidas pelo Bulletin(14 de julho de 1989):
1. “Em 1984, o Workers Vanguard publicou uma notícia de óbito bordada de preto para Yuri Andropov, o chefe da KGB que desempenhou um papel central em massacrar a Revolução Hungára de 1956, reivindicando que ele ‘não cometeu traições abertas em nome do imperialismo’” (V) (F)
2. “Alguns membros da SL que participaram de um ato contra a Ku Klux Klan em Washington, DC, se nomearam de ‘Brigada Yuri Andropov’” (V) (F)
Temos certeza de que até mesmo vocês não teriam dificuldade em responder “verdadeiro” para as duas perguntas acima, já que as respostas podem ser confirmadas consultando-se os devidos números anteriores de Workers Vanguard. Ainda não reconhecidas publicamente até o momento, entretanto, são seguintes acusações sobre a vida interna da SL contidas no Bulletin:
3. “…a liderança colocou fotos do General Jaruzelski [chefe da burocracia stalinista na Polônia] no escritório nacional” (V) (F)
4. “O fundador da SL, James Robertson, teve uma casa de veraneio que custou mais de seis dígitos construída [nós dissemos “comprada” – TB] para si em uma marina, na Bay Area de San Francisco, financiada por uma taxação especial sobre a militância. ‘Apesar da casa ser tecnicamente propriedade da organização, ela é claramente destinada ao uso pessoal de Robertson…’” (V) (F)
5. “‘Adjunta ao seu escritório oficial na sede de New York do grupo está uma sala de diversões especificamente projetada para as escapadas noturnas que ocupam uma sempre crescente parte da atenção do Presidente Nacional.’” (V) (F)
6. “‘Robertson também teve um ofurô instalado em seu vasto apartamento de dois andares em Manhattan.’” (V) (F)
Assim como vários outros ex-membros e membros atuais da SL, nós temos conhecimento pessoal de que a resposta para todas as questões acima é “verdadeiro”. Nós prevemos que vocês não irão publicar esta carta na sua totalidade. Fazer isto significaria confirmar ou negar por escrito as acusações acima; fazer qualquer uma das duas coisas iria ser igualmente desastroso para a reputação da liderança da SL. Negá-las iria contradizer a experiência de cada membro da SL ou simpatizante que viu a foto de Jaruzelski (em exposição por meses no departamento de manutenção da sua sede nova-iorquina), que contribuíram para comprar a casa de Robertson, que perderam muitas horas construindo a sua sala de recreação ou instalando a sua banheira. Uma negação direta iria expor a sua liderança como mentirosos cínicos e sem escrúpulos diante de todos os membros e simpatizantes.
Se, por outro lado, vocês confirmarem essas alegações, e disserem que, como cabeça de uma suposta organização marxista, Robertson tem todo o direito de desfrutar de um estilo de vida com privilégios materiais à custa dos seus membros, e que Jaruzelski merece um lugar de honra nas suas paredes, vocês deixariam para sempre de poder ser levados a sério em sua reivindicação de ser uma organização trotskista, e revelariam a si próprios ao mundo como a seita personalista degenerada que se tornaram. Seria então bastante improvável que qualquer ser humano racional algum dia fosse querer apoiar a Liga Espartaquista.
Vocês, portanto, vão se esconder atrás da única brecha possível nesse momento: desviar a atenção das acusações criando confusão e difamando quem faz as críticas. Um gangster qualquer pode tentar impugnar a reputação de uma testemunha contrária a ele dizendo que é um estuprador ou viciado em drogas; vocês respondem ao testemunho da Tendência Bolchevique com uma bateria de epítetos especificamente elaborados para nos desacreditar aos olhos de militantes da esquerda e dos trotskistas: renegados anti-soviéticos, burocratas sindicais, racistas, agentes provocadores, etc. E somente para o caso de estes termos específicos não terem o efeito desejado, mais algumas acusações – por exemplo, “pequenos bandidos” – são lançadas para este propósito. Estas táticas – todas na pior tradição de Gerry Healy e David North – deveriam lavar os leitores mais atentos de Workers Vanguard a se perguntarem: ‘Por que alguém deveria acreditar em James Robertson?”.
Seus, pela democracia operária,
Jim Cullen (militante da SL entre 1981-86) 
Dave Eastman (militante da SL entre 1972-86) 
pela Tendência Bolchevique.
NOTAS DA TRADUÇÃO
[1] Mark Curtis foi um militante do Partido dos Trabalhadores Socialistas norte-americano (SWP) que, em 1988, foi acusado e condenado pela justiça por supostamente ter abusado sexualmente de uma garota de 15 anos. O SWP alegou que tudo não passou de uma armação, por conta da militância partidária e sindical de Curtis.

O teste em que Jim Robertson não passou

O teste em que Jim Robertson não passou


Originalmente impresso no boletim da Tendência Externa da “tendência Espartaquista internacional” (ET/iSt) número 4, maio de 1985. Traduzido pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão disponível em inglês no site da Tendência Bolchevique Internacional.

Os sicofantas são encorajados na SL [Liga Espartaquista], não através de discursos bajuladores sobre a “genialidade” ou a “infalibilidade” de [James “Jim”] Robertson e do restante da liderança. Eles são encorajados pela promoção de uma psicologia da reverência, ocasionalmente reforçada com uma intimidação aberta. Por que alguém deve respeitar o julgamento de Nova Iorque [sede da liderança da Liga Espartaquista] até mesmo sobre o mais insignificante dos assuntos? Porque a liderança central é um repositório de grande experiência política e capacidade. Porque eles “passaram por mais testes” do que qualquer outro na organização. Porque desafiar a “autoridade” deles é equivalente a rejeitar a tradição política da qual eles são a “encarnação”, ou a falhar em entender a questão organizativa.

A liderança central (e Robertson em particular) é o guardião do programa trotskista. Ninguém mais tem o direito de ser o guardião do programa. Ninguém mais passou no teste. É meu partido, diz Robertson: e ele está certo. Eu não tenho raiva de J.R. [Jim Robertson]. Eu acho que nenhum psiquiatra no mundo pode ajudá-lo, mas eu acho que a psicologia dele é bastante transparente. Ele é um grande peixe em um aquário pequeno, uma vítima da megalomania de grupo pequeno.

A desproporção entre as tarefas da SL e os seus recursos reais ficou evidente para ele há muito tempo. O programa trotskista deve ser preservado, ele raciocinou: ele é a “última e melhor esperança” para a humanidade. E quem, em nossa época, fez mais para preservá-lo do que qualquer outro? Sem dúvida foi Jim. Ele lutou contra a liderança do SWP, ele lutou contra Wohlforth, ele lutou contra Healy, ele lutou contra o impressionismo, o revisionismo, o liquidacionismo, como ninguém. E contra todos os contras ele conseguiu construir uma tendência internacional real, ainda que frágil, que pôde preservar a herança do programa trotskista. O ponto é: essa conquista é a justificativa para a forma peculiar de burocratização que a SL adquiriu. É uma burocracia baseada não na preservação de privilégios (embora haja privilégios envolvidos); é uma burocracia baseada em uma psicologia megalomaníaca centrada ao redor da preservação do programa trotskista. Paradoxal, talvez; mas acho que este é o caso.

Mas Jim foi reprovado em um teste. Ele não construiu, e provavelmente não poderia construir, um regime interno revolucionário. O regime interno é doentio. A autoridade investida em Jim e seus associados próximos é absurda e perigosa. Não é o suficiente ter um programa formalmente correto; é necessário um partido revolucionário capaz de produzir quadros reais. Jim nunca esteve à altura desse desafio por causa da sua excessiva preocupação com a integridade programática formal e a homogeneidade política. O equilíbrio certo não foi atingido. Ele certamente nem mesmo tentou chegar ao equilíbrio que Lenin atingiu no Partido Bolchevique, que Trotsky atingiu na Quarta Internacional e que Cannon atingiu no SWP. E eu acho que o motivo é óbvio, e foi mencionado pelo próprio J.R.: no fim as organizações de Lenin, Trotsky e Cannon se degeneraram. Então coube a J.R. descobrir uma nova fórmula (um novo equilíbrio entre democracia e centralismo, entre programa e organização) que poderia assegurar, acima de tudo, a integridade do programa. Se a SL está realizando desvios programáticos agora, isso é a consequência do nosso fracasso – o fracasso daqueles dentre nós que engoliram o respeito e uma consciência aguda de nossa própria falibilidade – em dizer o que tinha de ser dito enquanto ainda éramos membros. Eu espero que a Tendência Externa tenha a coragem de faze-lo agora.

Por um antigo membro de liderança da tendência Espartaquista internacional (iSt), janeiro de 1984. [Atualmente a iSt se chama Liga Comunista Internacional, ICL]

Apêndice: A Confissão de um Burocrata
“Quando você se senta no seu escritório administrativo é muito fácil crer que todos os seus membros são só um grande saco de merda que a liderança central está arrastando atrás de si, e que, se a liderança central cometer um erro político sério, não existem dentro da sua organização forças restauradoras.”

Discurso Público de Jim Robertson, 29 de Janeiro de 1977. Disponível (em inglês) em:

Bolívia e o “Terceiro Período Healyista”

Terceiro Período Healyista

Aprender a Ler, Aprender a Pensar

Este artigo foi originalmente publicado em Workers Vanguard No. 3 (jornal da então revolucionária Liga Espartaquista) em dezembro de 1971. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em abril de 2013 a partir da versão disponível em http://anti-sep-tic.blogspot.com.br/2009/05/1971-dec-third-period-healyism.html

A SLL-WL [Socialist Labour League britânica – Workers League norte-americana], tentando usar como recurso fracional a desastrosa política do POR boliviano [Partido Obrero Revolucionario], adotou uma postura sectária que só obscurece e dissemina confusão na vista de quem esteja seriamente buscando entender as lições cruciais da derrota boliviana. Proeminente entre as acusações healyistas de traição de classe lançadas contra Guillermo Lora do POR boliviano estava esta de Wohlforth no seu Bulletin [jornal da Workers League] de 30 de agosto:

“Junto com os stalinistas, o POR apoiou a posição de ameaçar uma greve geral e ação militar em defesa de Torres!” (ênfase no original).

Tal é a concepção de Wohlforth de traição contra a classe trabalhadora. A interpretação mais caridosa é a de que o camarada Wohlforth foi terrivelmente pressionado pelo tempo de rodar as cópias do seu bombástico Bulletin semanal. Mais provavelmente, Wohlforth não sabia que estava rompendo com uma tática leninista básica para derrotar a contrarrevolução e realizar a revolução proletária. Em sua autoproclamada luta pela continuidade da Quarta Internacional, Wohlforth faria bem em restabelecer continuidade com as visões de Trotsky:

“O partido chegou ao levante de outubro … através de uma série de estágios. Na época dos protestos de abril de 1917, um setor dos Bolcheviques levantou a palavra de ordem ‘Abaixo o Governo Provisório!’. O Comitê Central imediatamente corrigiu os ultraesquerdistas. É claro que nós deveríamos popularizar a necessidade de derrubar o Governo Provisório; mas chamar os trabalhadores às ruas sob essa palavra de ordem – isso não pode ser feito, já que nós próprios somos uma minoria da classe trabalhadora. Se nós derrubássemos o Governo Provisório sob essas condições, nós não seríamos capazes de tomar o seu lugar, e consequentemente nós ajudaríamos a contrarrevolução. Nós devemos pacientemente explicar às massas o caráter antipopular desse governo antes que a hora da sua queda tenha chegado. Tal foi a posição do partido …

“Dois meses depois, Kornilov se levantou contra o Governo Provisório. Na luta contra Kornilov, os Bolcheviques ocuparam as posições da linha de frente. Lenin nesse momento estava escondido. Milhares de Bolcheviques estavam nas prisões. Os trabalhadores, os soldados, os marinheiros exigiam a libertação de seus líderes e dos Bolcheviques em geral. O Governo Provisório se recusou. Deveria o Comitê Central dos Bolcheviques ter feito um ultimato ao governo de Kerensky – liberte os Bolcheviques imediatamente e retire essa desgraçada acusação de serviço aos Hohenzollern – e, no caso da recusa de Kerensky, se recusarem a combater Kornilov? Assim provavelmente é como agiria o Comitê Central de Thaelmann-Remmele-Neumann. Mas não foi assim que agiu o Comitê Central dos Bolcheviques. Lenin escreveu na época: ‘Seria o mais profundo erro pensar que o proletariado revolucionário é capaz, por assim dizer, para «se vingar» dos SR e dos Mencheviques por seu apoio em esmagar os Bolcheviques, pelos assassinatos no front, e pelo desarmamento dos trabalhadores, de «se recusar» a apoiar aqueles contra a contrarrevolução. Tal forma de colocar a questão teria significado, acima de tudo, levar para o proletariado concepções de moralidade pequeno-burguesa (porque pelo bem da causa o proletariado sempre irá apoiar não apenas a pequeno-burguesia vacilante, mas também a grande burguesia); em segundo lugar – e este é o mais importante – teria sido uma tentativa pequeno-burguesa de «moralizar», de lançar uma sombra sobre a essência política da questão …’ 

“É precisamente esse ‘moralismo pequeno-burguês’ que Thaelmann e companhia se embrenham quando, em justificativa para seu próprio giro, eles começam a enumerar as incontáveis infâmias cometidas pelos líderes da socialdemocracia.”

— “Contra o Nacional Comunismo”, impresso em A Luta Contra o Fascismo na Alemanha.


Wohlforth está contando – e não pela primeira vez – com a ignorância política de seus apoiadores. Ele espera que o seu próprio “moralismo pequeno-burguês”, ao catalogar os horrores dos regimes burgueses e os crimes dos reformistas que neles participam, vai encobrir a sua incapacidade de lidar com eles. A devastadora crítica de Trotsky às políticas dos stalinistas e ultraesquerdistas na Alemanha pré-Hitler, “conduzindo políticas com lanternas quebradas”, se aplica com igual precisão ao “trotskista” Wohlforth. Mais de A Luta Contra o Fascismo na Alemanha:

“Alguém poderia dizer: ‘Para os Bolcheviques, o kornilovismo começa com Kornilov. Mas Kerensky não é um kornilovista? Ele não está esmagando os camponeses por meio de expedições punitivas? Ele não organiza locautes? Lenin não teve que ficar clandestino? E devemos aturar tudo isso?’”.

“… Eu não consigo pensar em sequer um Bolchevique imprudente o suficiente para defender esses argumentos. Mas caso tivesse existido, ele receberia uma resposta mais ou menos nos seguintes termos. ‘Nós acusamos Kerensky de preparar e facilitar a chegada de Kornilov ao poder. Mas isso nos desobriga do dever de agir para repelir o ataque de Kornilov? Nós acusamos o porteiro de deixar o portão entreaberto para o bandido. Mas devemos então encolher nossos ombros e deixar o portão ser escancarado?’. Uma vez que, graças à tolerância da socialdemocracia, o governo de Bruening foi capaz de afundar o proletariado até os joelhos no pântano de sua capitulação ao fascismo, vocês chegam à conclusão de que joelhos, barriga ou cabeça atolados no pântano são todos a mesma coisa? Não, existe uma diferença. Quem estiver atolado de joelhos no pântano ainda pode se reerguer e sair. Quem estiver atolado até a cabeça, para este não existe volta.”


Para os mais espertos

Quanto ao “apoio crítico” reivindicado por Lenin, que deveria ser “da mesma forma com a qual uma corda sustenta um enforcado”, Wohlforth diz:

“Será necessário apontar que Lenin estava se referindo ao apoio a partidos socialdemocratas e não a governos burgueses e certamente não a ditadores militares?”


Correto, mas Lenin estava falando de apoio político, não defesa militar contra a contrarrevolução – que é o que está em questão na “ação militar em defesa de Torres” pela qual Wohlforth condena Lora. Leninistas defendem a política de lutar lado a lado com forças stalinistas, socialdemocratas e até mesmo burguesas contra levantes militares direitistas ou fascistas, enquanto mantém a completa independência do movimento da classe trabalhadora. Essa é a lição completa da questão Kornilov, e da política pela qual Trotsky lutou para salvar os trabalhadores alemães contra o nazismo. Mas Wohlforth aparentemente é incapaz de compreender a diferença entre uma política de defesa militar unificada com independência política e defesa militar com capitulação política a outras classes e a colaboracionistas de classe.

Além do mais, o reconhecimento por Wohlforth da política de Lenin de apoio político crítico a partidos reformistas da classe trabalhadora – que não está em questão no caso da defesa militar do regime burguês de Torres contra a direita – é peculiar em si próprio, já que Wohlforth (em amplo contraste com suas posições passadas) recentemente tem se destacado por recusar a entrar em ações políticas de frente única com stalinistas, particularmente maoístas. Os stalinistas são piores que os socialdemocratas, camarada Wohlforth? Se você afirmar que sim, você está de prontidão para cinicamente marcar pontos na luta fracional adotando um “método” contra o qual Trotsky lutou incessantemente: stalinofobia. A posição de Wohlforth contra qualquer ação comum com os stalinistas é sectarismo cego, o outro lado da moeda da capitulação do SU [Secretariado Unificado] a tais correntes, e é reminiscente da “teoria do social-fascismo” de Stalin, de acordo com a qual os comunistas foram ordenados a evitar qualquer ação comum com os socialdemocratas, que supostamente eram tão ruins quanto os nazistas. Quando os healyistas vão rotular abertamente a sua atual posição de “teoria do social-stalinismo” ou “healyismo do terceiro período”?

O POR deve, através de críticas impiedosas à sua própria história, e rompendo com o programa e a liderança centristas que levaram a derrotas em 1953 e 1971, descobrir a estrada leninista para o poder (confira “Desastre centrista na Bolívia”). Eles não podem esperar nenhuma ajuda dos healyistas, que proclamam sua ortodoxia leninista e “continuidade” para encobrir o seu oportunismo sem limites, sectarismo cego e ignorância.

Desastre Centrista na Bolívia

Desastre Centrista na Bolívia

Originalmente publicado em Workers Vanguard (jornal da então revolucionária Liga Espartaquista) No. 3, de dezembro de 1971. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão disponível em http://anti-sep-tic.blogspot.com/2009/05/1971-dec-centrist-debacle-in-bolivia.html.

A questão do papel do Partido Obrero Revolucionario nos recentes eventos na Bolívia tornou-se inevitavelmente um motivo de disputa fracional pelo poder entre os seguidores de Healy (SLL-WL [Socialist Labour League britânica e Workers League norte-americana]) e a OCI [Organisation Communiste Internationaliste francesa] lambertista, as alas do agora dividido Comitê Internacional. Mas além de oferecer um teste de capacidade revolucionária para ambas as alas do CI, as lições da Bolívia são importantes em si próprias como uma verificação, pela negativa, das lições da Revolução de Outubro de 1917. O POR é uma organização que se declara trotskista, liderada por Guillermo Lora e que, desde 1970, reivindica acordo com as credenciais antirrevisionistas do CI. Apesar da sua política oportunista na sequência do levante boliviano de 1952, ao conciliar com a ala esquerda do governo nacionalista burguês do MNR de Paz Estenssoro, o POR é uma organização que deve ser levada a sério pela sua implantação considerável no setor mais militante do proletariado boliviano, os mineiros de estanho.

Assembleia Popular

O POR desempenhou um papel ativo na Assembleia Popular que surgiu sob o regime bonapartista do militar de esquerda, o General Juan Jose Torres, que foi derrubado por um golpe de direita do General Hugo Banzer em agosto. A Assembleia Popular era composta de uma maioria de representantes de organizações da classe trabalhadora e incluía representantes das organizações de esquerda significativas. A base de adesão da Assembleia Popular foi definida como apoio às Teses do Quarto Congresso da Central Obrera Boliviana, a principal federação sindical, que é pesadamente influenciada por nacionalistas de esquerda e stalinistas. A assembleia popular reivindicava liderar a luta contra o imperialismo e pelo socialismo:

“A Assembleia Popular é uma frente revolucionária anti-imperialista liderada pelo proletariado, constituída pela Central Obrera Boliviana, as confederações sindicais e federações de caráter nacional, as organizações populares e os partidos políticos de orientação revolucionária. Ela reconhece como sua liderança política o proletariado e declara como seu programa as Teses Políticas aprovadas pelo Quarto Congresso da COB, realizado em maio de 1970…”

“A Assembleia Popular se constitui como a liderança e centro unificador do movimento anti-imperialista e o seu objetivo fundamental consiste em conseguir a liberação nacional e o estabelecimento do socialismo na Bolívia.”

– Citado dos estatutos da Assembleia Popular, reimpresso no órgão do POR, Masas, de 13 de julho de 1971.

De acordo com o POR, a Assembleia Popular era um órgão de tipo soviético que tinha o potencial para se tornar uma instituição de poder dual – ou seja, que era um governo proletário embrionário paralelo e em contradição com o governo burguês de Torres. Masasrealizou ocasionalmente duras críticas ao PC [stalinista] por seguir uma “linha direitista e pró-governo” na Assembleia, mas não expôs sistematicamente o PC e os outros partidos reformistas pela sua traição à classe trabalhadora ao tentarem subordinar a Assembleia a Torres, dando ênfase pelo menos igual em elogiar a Assembleia e defende-la contra detratores “esquerdistas”.

Vacilação centrista

Mesmo nos baseando em documentação insuficiente, o que surge claramente é um padrão de vacilação centrista por parte do POR. Por exemplo, em um artigo escrito por Guillermo Lora depois do golpe de Banzer, está o seguinte reconhecimento:

“Nesse momento [outubro de 1970] todos pensavam – incluindo os marxistas – que as armas seriam distribuídas pela equipe militar do governo, que consideraria que apenas se apoiando nas massas e lhes dando poder de fogo adequado eles poderiam ao menos neutralizar a direita gorila. Essa posição estava completamente errada…”

Bulletin [jornal da Workers League norte-americana], 27 de setembro de 1971.

Ter depositado qualquer confiança em Torres para armar as massas mostra a mais severa desorientação por parte do POR sobre a questão crucial da natureza de classe do Estado. Torres era um bonapartista buscando se equilibrar entre a classe trabalhadora, despertada por uma mostra de sua força e ansiosa por lutar por seu próprio domínio de classe, e os generais reacionários – e que estava encabeçando o Estado burguês. Embora forçado a fazer concessões às massas, Torres, como Lora aponta:

“… preferiu capitular a seus colegas generais antes de armar as massas que mostravam sinais de que tomavam o caminho do socialismo e cuja mobilização colocava em sério perigo o exército como instituição.”

A situação é clara, mas a atitude e o papel do POR não. Já na edição de 31 de maio de 1971 de Masas, nós encontramos um chamado pela formação de milícias independentes de trabalhadores e camponeses e a afirmação categórica de que: “O General Torres nunca vai armar as milícias de trabalhadores e camponeses”.

Um artigo na Workers Press, da SLL, de 24 de agosto último cita um líder do POR, Filemon Escobar:

“… nós vamos trabalhar pelos objetivos políticos que ajudem a radicalizar o presente processo – por exemplo, participação operária na COMIBOL [Corporação Mineira Boliviana]”.

E o artigo de Lora no Bulletinfala do “perigo para o Estado que significaria uma participação majoritária da classe trabalhadora na COMIBOL”. Entretanto, um longo artigo da edição de 31 de maio de Masas expõe o plano de “participação operária” na COMIBOL como “ponto de partida para a burocratização e controle político dos ‘gestores operários’ por parte do Estado”, contrapondo a isso a demanda por “controle operário – com direito de veto” e apontando que o controle operário não resolve a luta de classes.

Uma vulgarização severa da posição leninista fica patente em um artigo de 9 de maio de Masas, que declara:

“… a contradição fundamental na Bolívia não é outra que não a que existe entre o proletariado e o imperialismo.”

Nossa pergunta é simples: que papel a burguesia nacional joga nesse esquema? Isso porque a ilusão fatal disseminada pela trama nacionalista-stalinista era precisamente a concepção de que a burguesia “anti-imperialista” era uma aliada. O que se exigia do POR era precisamente romper a classe trabalhadora da subordinação ao regime “revolucionário”, “anti-imperialista” de Torres. Para os marxistas, as forças de classe contrapostas são a classe trabalhadora apoiada pelo campesinato de um lado e a burguesia – ambos os fantoches do imperialismo e a ala nacionalista “progressiva” – de outro.

A resposta da OCI às graves acusações levantadas contra o POR é uma tentativa de blefe e intimidação. Sua declaração de 19 de setembro afirma:

“… o golpe de Estado organizado pela CIA e os ditadores militares do Brasil e da Argentina e facilitado pela ação do governo de Torres é a prova de que a política defendida pelo POR era fundamentalmente baseada nos interesses do proletariado boliviano…”

“… Todos aqueles que atacam o POR nesse momento representam os inimigos da ditadura do proletariado. Eles tomam o lado do imperialismo e do stalinismo. Eles são agentes da contrarrevolução e são inimigos, conscientes ou inconscientes, da Quarta Internacional.”

Esse tipo de argumentação pode ser simplesmente descartado de imediato. Como trotskistas, nós já ouvimos muitas vezes as acusações histéricas dos stalinistas de todo tipo na mesma linha: a ferocidade da agressão do imperialismo dos EUA contra a FLN e o regime norte-vietnamita prova que a sua liderança não os traiu; todos que atacam o Presidente Mao estão tomando o lado do imperialismo; Trotsky era consciente ou inconscientemente um agente do fascismo; aqueles que ficam em oposição ao Secretariado Unificado da Quarta Internacional, ad nauseam. Nós observamos apenas que essa “defesa” do POR não diz nada sobre o POR, mas diz muito para o descrédito da OCI.

A OCI afirma que a Assembleia Popular estava “sob a liderança do partido trotskista, o POR”. Essa afirmação é questionável. Em uma entrevista na edição de 9 de agosto do Bulletin, o dirigente do POR Victor Sossa declara que “o POR representava apenas cerca de 20 por cento dos delegados, talvez um pouco mais”. Apesar disso, ele esperava que a Assembleia, ainda predominantemente influenciada por stalinistas, pelo nacionalismo burguês e por “grupos pequeno-burgueses ultraesquerdistas e aventureiros”, fizesse o seguinte:

“Em caso de golpe, a Assembleia Popular irá chamar uma greve geral, irá assumir o comando político e militar das massas. A decisão de avançar para a organização sistemática de milícias está voltada a essa perspectiva e prepara a classe trabalhadora para o inevitável confronto, a luta para instalar plenamente o seu próprio governo, um governo operário e camponês.”

A dúvida aqui não é se o POR já tinha estabelecido sua hegemonia nas organizações dos trabalhadores, mas se ele estava lutando por isso – se a perspectiva do POR era expor a traição dos reformistas e nacionalistas diante dos seus apoiadores ao exigir que a Assembleia se opusesse ao regime, rompendo todos os laços com o regime e lutasse para estabelecer um governo operário e camponês – ou seja, a ditadura do proletariado. Parece que o POR depositou confiança política na Assembleia sob a sua liderança de então.

Sovietes: forma vs. conteúdo

Qual foi o papel do POR dentro da Assembleia Popular? A OCI observa que:

“… o estabelecimento da Assembleia Popular expressa a tendência fundamental do período, a vontade das massas proletárias e camponesas de entrar na luta pelo poder.”

Mas o governo de frente popular de Allende no Chile, por exemplo, também sem dúvida é uma expressão da “vontade das massas proletárias e camponesas de entrar na luta pelo poder” – porém nós sabemos que as massas chilenas foram terrivelmente enganadas e que elas provavelmente vão pagar com sangue pelas promessas dos seus falsos líderes. A disposição das massas trabalhadoras para lutar não está em discussão. Na Bolívia, como no Chile, Espanha, Vietnã e dúzias de outros exemplos, a questão é se o seu heroísmo combativo foi traído.

A OCI declara:

“É a unidade dentro e em torno da Assembleia Popular, órgão de poder dual, que sob a liderança do partido trotskista, o POR, dominou todo o processo revolucionário antes e depois dos confrontos de 20-23 de agosto.”

O que significa aclamar a “unidade dentro e em torno da Assembleia Popular”? Se a Assembleia Popular era de fato uma forma embrionária de soviete, como foi realizada a luta por sua liderança? Um soviete é uma frente única da classe trabalhadora elevada ao nível da luta pelo poder. Não há nada de sagrado sobre o soviete ou qualquer outra forma de frente única. Os sovietes surgem, mesmo espontaneamente, em crises revolucionárias como o centro proletário em uma situação de poder dual, com o potencial, sob uma liderança revolucionária, de derrotar o poder de Estado burguês e se tornar o comando de poder da classe trabalhadora – ou seja, consumar a revolução em um plano nacional. Eles são a melhor arena na qual os bolcheviques podem demonstrar a sua superioridade em levar adiante as tarefas implícitas ao soviete como forma embrionária do Estado de uma classe diferente: a tomada de poder e a ditadura do proletariado. Um soviete de direção menchevique, por exemplo, pode ser ainda um soviete autêntico – mas irá inevitavelmente trair. Por isso, um chamado leninista pela formação de sovietes, para que os sovietes obtenham o poder, deve contar em si a perspectiva de luta dentro do soviete: para poder demonstrar aos trabalhadores que são eles que, ao contrário dos revisionistas e reformistas, nada tem a temer em um poder soviético e que somente sua política pode conquista-lo e defende-lo. A existência de um soviete, por si próprio, não é garantia de princípio revolucionário. (Até mesmo os stalinistas chamaram – burocraticamente, é claro – pela formação de sovietes em seus ziguezagues “de esquerda”, depois de terem condenado os trabalhadores de antemão com suas políticas – políticas essas que garantiram a ruína do soviete). Sem a presença de revolucionários lutando intransigentemente em cada ponto para expor diante da classe trabalhadora os seus líderes traidores em suas colunas, a Assembleia Popular não oferecia nem mais nem menos perspectiva à revolução proletária boliviana no nível político do que a AFL-CIO de George Meany [American Federation of Labor – Congress of Industrial Organizations, maior federação sindical norte-americana]. A OCI realmente quer se gabar de que o POR defendeu a “unidade dentro e em torno da Assembleia Popular”?

Quando questões envolvendo a briga pelo poder entre as alas do CI não estavam postas de maneira tão clara e ultimatista, a OCI estava disposta a tomar uma atitude mais crítica com relação ao POR precisamente nessa questão. Uma carta para a liderança do POR datada de 30 de julho de 1970, e posteriormente publicada na revista teórica dos lambertistas, discutiu as Teses da COB que o POR tinha ajudado a preparar e nas quais votou. As seções do documento da COB selecionadas para a crítica da OCI incluíam a seguinte:

“Para poder atingir o socialismo, parece ser necessário, antes de tudo, realizar uma unidade de todas as forças revolucionárias anti-imperialistas. A revolução popular anti-imperialista está ligada à luta pelo socialismo. A frente popular é uma aliança de classes relacionadas, e o instrumento unitário para fazer a revolução. A expulsão do imperialismo e a realização das tarefas nacionais e democráticas vão tornar possível a revolução socialista.”

La Vérité, outubro de 1970.

O que esse parágrafo estabelece como perspectiva é a teoria menchevique de etapas, pura e simplesmente – primeiro a libertação nacional, depois a revolução socialista. É a clássica racionalização reformista para a colaboração de classes, que levou às mais amargas e sangrentas derrotas para a classe trabalhadora. E ainda assim, o POR apoiou essa resolução e continuou a elogiá-la em Masas. Ao invés de lutar em cima dessa questão, o POR se comprometeu com um documento contraditório cheio de misturas, que continha afirmações de internacionalismo e condenação da colaboração de classes junto com elogios às assim chamadas nações “socialistas” e um frentepopulismo explícito.

É um mérito dos lambertistas que eles tenham se disposto a levar ao POR e posteriormente tornar públicas suas críticas aos desvios de princípios do POR. Agora, entretanto, o oportunismo da OCI tomou a dianteira e assim todos os críticos do POR se tornaram “agentes da contrarrevolução”!

E quanto à conduta do POR desde o golpe? A edição de 6 de dezembro do Intercontinental Press do SWP [Socialist Workers Party norte-americano] reproduz uma declaração assinada pelo POR – junto com o Partido Comunista, o “POR” dos pablistas de Moscoso, grupos nacionalistas de esquerda e o próprio General Torres! O documento novamente elogia a “liderança do proletariado, a classe dominante do processo revolucionário”, mas o tom do documento é nacionalista-populista (“padres revolucionários”, “oficiais revolucionários”, “patriotas”, “o poder está agora nas mãos de estrangeiros”, etc.) e em seu miolo está o seguinte:

“Portanto, a necessidade é inegavelmente construir uma unidade de luta de todas as forças progressivas e democráticas para que a grande batalha possa começar em condições de oferecer uma perspectiva real para um governo nacional e popular…”

“Esta não é uma batalha que diz respeito a apenas um setor do povo explorado, ou apenas uma classe, instituição ou partido… Qualquer forma de sectarismo é contrarrevolucionária. Sejamos dignos do sacrifício daqueles que caíram em 21 de agosto defendendo a Bolívia.”

– Nossa ênfase.

De fato, a declaração é uma frente popular clássica que subordina a classe trabalhadora a outras forças de classe e ideologias às quais ela está em oposição fundamental e irreconciliável.

Frentepopulismo healyista

Para os mercenários políticos healyistas da SLL-WL, a decisão da OCI de marchar de mãos dadas com o POR é uma dádiva divina, uma forma fácil de afirmar a sua ortodoxia leninista e de se apresentar como a ala esquerda principista no racha do CI. Mas as diferenças reais entre os healyistas e o POR com relação à política proletária diante de um governo burguês “de esquerda” é que o POR teve a oportunidade de estragar uma situação pré-revolucionária, os healyistas não. Healy-Wohlforth se apegaram à Bolívia como um pretexto para se livrarem da OCI, que estava desempenhando um papel cada vez mais dominante no CI – e isso é tudo. Apesar de que agora eles prefeririam coloca-lo debaixo do tapete, os healyistas tem um exemplo reluzente de como eles lidariam com um governo burguês de frente popular: Chile.

O Bulletin de 21 de setembro de 1970 aconselhou aos trabalhadores do Chile:

“Só existe um caminho, e esse é o caminho revolucionário da Revolução de Outubro… Como um passo nesse sentido, os trabalhadores devem fazer com que Allende cumpra suas promessas…”.

O caminho de Wohlforth [dirigente da Workers League] não é o da Revolução de Outubro, mas o de certos Bolcheviques, Stalin proeminente entre eles, que chegaram perto de arruinar as chances para Outubro com sua política – denunciada por Lenin e Trotsky – de apoio ao governo provisório “enquanto ele lutar contra a reação e a contrarrevolução”. A declaração de Wohlforth se assemelha aos notórios artigos do Pravdacapitulando ao menchevismo em fevereiro e março de 1917, recheado de afirmações como a seguinte:

“A saída é exercer pressão sobre o Governo Provisório, com a exigência de que o governo anuncie a sua disponibilidade para iniciar negociações imediatas para a paz.”

Contra essa política, Lenin declarou: “Voltar-se para esse governo com uma proposta para concluir a paz é equivalente a pregar a moralidade a um dono de bordel”. E Trotsky, em Lições de Outubro, disse:

“Este programa de pressão sobre o governo imperialista de modo a ‘induzi-lo’ a seguir um caminho justo era o programa de Kautsky e Ledebour na Alemanha, de Jean Longuet em França, de MacDonald em Inglaterra, mas nunca o programa do bolchevismo.”

Deve-se criticar duramente, como fez Trotsky, aqueles bolcheviques que teriam deixado escapar uma oportunidade revolucionária se não tivesse sido pela dura correção de Lenin. Mas os healyistas, que reivindicam se apoiar nos ombros dos bolcheviques, que reivindicam ter assimilado as “Lições de Outubro”, merecem críticas ainda mais severas.

Lenin expressou sua política em uma fórmula sem conciliações:

“Nossa tática: absoluta falta de confiança; nenhum apoio ao novo governo; suspeitar especialmente de Kerensky; armar o proletariado é a única garantia… nenhuma reaproximação com outros partidos.”

Contra a política de Lenin, estão ambos o centrismo do POR-OCI e a postura pseudo-leninista dos healyistas.

E agora os healyistas hipocritamente denunciam o POR-OCI pelo mesmo tipo de capitulação frentepopulista que eles próprios realizaram para o Chile!

Healy acoberta o LSSP

Mas talvez um exemplo ainda mais puro da hipocrisia healyista seja a questão do Ceilão. O Bulletin de 30 de agosto escreve:

“… Embora menos conhecido do que a evolução do LSSP no Ceilão, o papel de Lora e do POR não foi menos traiçoeiro e importante.”

Por anos, em artigos sem fim, os healyistas usaram a traição das massas cingalesas pelo LSSP [Lanka Sama Samaja Party] – que capitulou ao partido nacionalista burguês da Sra. Bandaranaike e, quando este chegou ao poder em 1964, entrou no governo – como uma forma de expor os pablistas do Secretariado Unificado, que acobertaram o LSSP até o último momento. (O Bulletinacabou de concluir outra série de quatro artigos sobre o assunto). E muito corretamente, já que o papel deles no Ceilão foi uma importante verificação do abandono do trotskismo por parte do SWP-Secretariado Unificado. Mas o que os healyistas provavelmente não vão mencionar é que eles próprios estão no mesmo barco!

Em maio de 1960, o SWP, então afiliado com o CI, assim como a SLL de Healy, começou a ficar cada vez mais nervoso sobre a linha e a conduta do LSSP. Em 17 de maio, Tom Kerry enviou uma carta em nome do Comitê Político do SWP para o LSSP. Ela declarava:

“Nós estamos fortemente perturbados pelo caminho parlamentar e eleitoral agora seguido pela liderança do LSSP…”

“A sua política de trabalhar pela criação de um governo do SLFP nos parece estar em completo desacordo com o curso de ação política independente da classe trabalhadora, que vocês sempre promoveram no passado como uma questão de princípio…”

“O seu novo curso político nos parece ser uma forma de ‘frentepopulismo’ do tipo promovido em muitos países pelos stalinistas desde 1935 – ou seja, colaboração de classes entre os partidos da classe trabalhadora e um setor da burguesia…”

Apesar da sua preocupação, a liderança do SWP hesitou em mencionar essa traição na sua imprensa pública.

Em 8 de agosto, James Robertson, então um membro do SWP, escreveu para o Comitê Político:

“Eu estou escrevendo para vocês sobre o assunto do silêncio público do nosso partido no que diz respeito à recente e contínua traição da classe trabalhadora cingalesa e do movimento trotskista mundial pelo Lanka Sama Samaja Party. Eu me refiro, é claro, à entrada desse partido em um pacto eleitoral de ‘Frente Popular’ com o partido stalinista e com o partido nacionalista burguês de esquerda representado pela viúva Bandaranaike.”

“Ao levantar esse assunto de forma privada com vários membros da liderança, eu recebi a resposta de que cartas foram enviadas para os cingaleses e que a visão de vocês é de que, por ora, uma vantagem maior será obtida para os marxistas revolucionários no LSSP através da nossa permanência em silêncio público. Eu devo discordar e clamo a vocês que reconsiderem…”

A carta concluía:

“Camaradas, que vocês condenam os ex-trotskistas cingaleses eu não tenho nenhuma dúvida, mas o seu fracasso em falar sobre isso publicamente e com grande seriedade presta um desserviço ao movimento internacionalmente.”

E qual foi a posição de Gerry Healy, que agora se autoproclama o único antipablista consistente do mundo? Depois de ter escrito para o SWP que manobras delicadas com os pablistas eram necessárias no Ceilão, Healy escreveu uma carta em 14 de agosto para Joe Hansen, do SWP:

“Nós discutimos extensamente… a proposição com respeito à situação no Ceilão. Nós achamos que é necessário escrever novamente pedindo o máximo possível de informação em relação à presente situação do partido no Ceilão.”

“Não há dúvida de que eles estão em uma crise severa, mas se nós tomarmos a situação deles e os recentes eventos na Europa, não é improvável que haja agora importantes desenvolvimentos por dentro do campo de Pablo. Isso é razão ainda mais para nós procedermos com cautela – como vocês insistiram tão corretamente no passado.”

“Nós vamos sondá-los amanhã por informação e nós sugerimos que vocês façam o mesmo e segurem, por ora, a publicação de qualquer coisa no Militant [jornal do SWP].”

Reconstruir a Quarta Internacional!

É a sua própria história que mostra a mentira nas reivindicações de internacionalismo e antirrevisionismo dos healyistas. Se os lambertistas – que em 1952 lançaram a luta contra o pablismo – nunca superaram o centrismo e agora endureceram seu oportunismo com sua linha sobre a Bolívia e sua conduta em Essen, as pretensões principista dos healyistas sempreestiveram erguidas sobre areia.

Apenas a Quarta Internacional – a ser reconstruída no processo de luta contra todas as variantes de revisionismo pablista, incluindo o pablismo invertido do CI – pode fornecer o caminho que avança rumo à vitória decisiva da classe trabalhadora internacional.

Arquivo Histórico: Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

O Mito da Inferioridade da Mulher

[Escrito em 1954 por Evelyn Reed, importante revolucionária norte-americana, ativista em prol dos direitos das mulheres e dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP – EUA). Tradução em português disponível em http://www.marxists.org/portugues/reed-evelyn/1954/mes/mito.htm.]


De um modo geral, uma das principais características do capitalismo e da sociedade de classes, é a desigualdade entre os sexos. Na vida econômica, cultural, política e intelectual, os homens são os amos, enquanto as mulheres cumprem um papel de subordinadas e inclusive de submissas. Só muito recentemente a mulher começou a sair da cozinha e dos quartos das crianças para protestar contra o monopólio do homem. Mas a desigualdade inicial permanece.

Esta desigualdade entre os sexos caracterizou a sociedade de classes desde o seu início já há cerca de dois mil anos, permanecendo através de seus três períodos mais importantes: escravagismo, feudalismo e capitalismo. Por esta razão, a sociedade de classes se caracteriza essencialmente pela dominação masculina, e esta dominação foi difundida e perpetuada pelo sistema da propriedade privada, pelo Estado, pela Igreja e pelas instituições familiares que servem aos interesses, dos homens. Com base nesta situação histórica divulgou-se o mito da pretendida superioridade social do sexo masculino. Geralmente, diz-se como um axioma imutável que os homens são socialmente superiores porque são naturalmente superiores. De acordo com este mito, a supremacia masculina não é um fenômeno social característico de um momento determinado da história, mas sim uma lei natural. Os homens, afirma-se, foram dotados pela natureza de atributos físicos e mentais superiores.

Para a mulher, propagou-se um mito equivalente, de defesa desta pretendida superioridade do homem. Afirma-se — como axioma imutável — que as mulheres são socialmente inferiores, porque são naturalmente inferiores aos homens. E qual a prova disso? Que as mulheres são mães. Afirma-se que a natureza condenou o sexo feminino a uma posição inferior.

Isto é uma falsificação da história natural e social. Não é a natureza, e sim a sociedade de classes que rebaixou a mulher e elevou o homem. Os homens obtiveram sua supremacia social através da luta contra a mulher e suas conquistas. Mas esta luta contra os sexos era somente uma parte da grande luta social: o desaparecimento da sociedade primitiva e a instituição da sociedade de classes. A inferioridade da mulher é produto de um sistema social que causou e proporcionou inumeráveis desigualdades, inferioridades, discriminações e degradações. Mas esta realidade histórica foi dissimulada atrás de um mito da inferioridade feminina.

Não foi a natureza, e sim a sociedade quem roubou da mulher seu direito de participar nas tarefas mais altas da sociedade, exaltando somente suas funções animais de maternidade. E este roubo foi perpetuado mediante urna dupla mistificação. Por um lado, a maternidade se apresenta como uma aflição biológica. Por outro, esse materialismo vulgar se apresenta como algo sagrado. Para consolar as mulheres como cidadãs de segunda classe, as mães são santificadas, adornadas com uma auréola e dotadas de “intuições” especiais, sensações e percepções que vão além da compreensão masculina. Santificação e degradação são simplesmente dois aspectos da exploração social da mulher na sociedade de classes.

Mas isto não existiu sempre: possui somente alguns milhares de anos. Os homens não foram sempre o sexo superior, uma vez que não foram sempre os dirigentes industriais, intelectuais e culturais.

Pelo contrário, na sociedade primitiva, em que as mulheres não eram nem santificadas nem degradadas, eram elas as dirigentes da sociedade e da cultura. A sociedade primitiva era um matriarcado, o que significa, como indica a própria palavra, um sistema no qual quem organizava e dirigia a vida social não eram os homens, mas as mulheres. Mas a distinção entre os dois sistemas sociais vai muito além desta mudança de papel de dirigente dos dois sexos. A direção social das mulheres na sociedade primitiva não estava fundada sobre a opressão do homem. Pelo contrário, a sociedade primitiva não conhecia desigualdades sociais, inferioridades ou discriminações de qualquer espécie. Estava fundada sobre uma base de completa igualdade. Portanto, de fato, através da direção das mulheres, os homens passaram de uma condição atrasada a um papel social e cultural mais elevado.

Nesta sociedade primitiva, longe de ser vista como um sofrimento ou um símbolo de inferioridade, a maternidade era considerada um grande dom da natureza. A maternidade investia as mulheres de poder e prestígio; e havia boas razões para que tal acontecesse.

A humanidade nasce do reino animal. A natureza dotou somente um dos sexos, o feminino, com órgãos e funções procriadoras. Este dom biológico foi o que de fato tornou possível a transição do reino animal ao humano. Como demonstrou Robert Briffault, em seu livro The Mothers (As Mães), graças aos cuidados de alimentar, cuidar e proteger seus filhos.

No entanto, como demonstraram Marx e Engels, todas as sociedades, tanto as passadas como a presente, fundamentam-se no trabalho. Não era somente a capacidade das mulheres de reproduzir que teve um papel decisivo, uma vez que todas as fêmeas animais dão à luz. Para a espécie humana foi decisivo o fato de que a maternidade impulsiona o trabalho, e sobre a fusão da maternidade com o trabalho, fundou-se, na verdade, o primeiro sistema social.

As mães foram as primeiras que tomaram o caminho do trabalho, e com este iniciou-se o caminho da humanidade.

Foram as mães quem se converteu na maior força produtiva; as operárias e camponesas, as dirigentes da vida científica intelectual e cultural. E conseguiram tudo isso precisamente porque eram mães: e, de início, a maternidade se fundia com o trabalho. Esta união permanece até hoje em dia na linguagem de controle sobre suas provisões para poder progredir e desenvolver-se. Controle significa não só alimento suficiente para hoje, mas um excedente para amanhã e a capacidade de conservá-lo para o futuro. Partindo deste ponto de vista, a história humana pode ser dividida em dois períodos principais: o período da coleta de alimentos, que dura uns cem mil anos, e o período da produção de alimentos, que se inicia com a invenção da agricultura e a domesticação de animais, há mais de oito mil anos.

Na primeira época, a divisão do trabalho era muito simples. Geralmente, é descrita como uma divisão entre os sexos, ou divisão de trabalho entre o macho e a fêmea (as crianças davam sua contribuição assim que possível: as meninas eram educadas para trabalhos femininos e os meninos para trabalhos masculinos). Esta divisão de trabalhos determinava uma diferenciação entre os sexos nos métodos e na maneira de recolher comida. Os homens eram caçadores, ocupação de tempo integral que os mantinha longe de casa ou do acampamento durante períodos mais ou menos longos. As mulheres recolhiam os produtos vegetais do campo e das proximidades das habitações.

Portanto, devemos compreender que, com exceção de áreas particulares do mundo e em um período histórico determinado, a fonte mais segura de provisões alimentares não eram os animais (proporciona dos pelos homens), mas sim os vegetais (proporcionados pelas mulheres).

Otis Tufton Mason escreve

Em todos os lugares do mundo em que a raça humana avançou, as mulheres descobriram que os produtos típicos daquela terra se transformariam em sua segurança. Na Polinésia, o cará ou a árvore da fruta na África a palmeira e a mandioca, o milho e a batata-doce. Na Europa, os cereais. Na América, o trigo e a batata etc…(1)
Alexander Golden Weiser enfatiza

Em todas as partes do mundo a manutenção da família é garantida com maior regularidade e certeza pelas tarefas da mulher, ligada à casa, do que pelas do marido ou filhos caçadores que estão longe. Realmente, nos povos primitivos, era um espetáculo habitual o homem voltar ao lar depois de uma caçada mais ou menos árdua, com as mãos vazias e morto de fome. Portanto, as provisões vegetais deviam bastar para suas necessidades e para as do restante da família.(2)

Então, podia-se contar com as provisões alimentícias que as mulheres recolhiam, e não os homens. Mas as mulheres também eram caçadoras, embora praticassem um outro tipo distinto de caça. Além de desenterrarem raízes, tubérculos etc., recolhiam lagartos, aves, lagartixas, moluscos e outros pequenos animais como lebres, roedores etc. Esta atividade era de fundamental importância, pois parte desta caçada era levada viva aos acampamentos, e foram a base das primeiras experiências com a domesticação.

Portanto, foi sob a direção das mulheres que se iniciaram as técnicas mais importantes de domesticação de animais, técnicas que logo alcançariam o nível mais alto com a criação dos animais. O fato da mulher domesticar animais tem relação com seu instinto materno. Sobre isso, diz Mason:

A primeira domesticação é simplesmente a adoção dos filhotes abandonados. O caçador traz para casa um cabrito ou um cordeiro, vivos. À mulher e as crianças tratam dele e o acariciam, e inclusive ela o amamenta no peito. Pode-se apontar exemplos intermináveis de como as mulheres sabiam capturar e domesticar os animais da selva. De todas as formas, as mulheres se ocuparam, em grande parte, dos animais que forneciam leite e lã.(3)

Vemos que, enquanto um aspecto da atividade feminina no campo – a coleta de alimentos – nos leva à domesticação de animais, um outro aspecto nos conduzirá ao descobrimento da agricultura. Um dos trabalhos da mulher era escavar a terra com uma estaca – um dos primeiros utensílios da humanidade – para buscar alimentos. Ainda hoje, em algumas regiões subdesenvolvidas do mundo, a estaca é considerada parte inseparável da mulher, como um filho seu. Por exemplo, quando os homens brancos descobriram os índios shoshones de Nevada e Wyoming, deram-lhes o nome de “os escavadores” (the diggers) porque inclusive hoje usam esta técnica para procurar alimentos.

Graças precisamente a esta atividade, as mulheres finalmente descobriram a agricultura. Sir James Frazer nos dá uma bonita descrição deste processo, em seus primeiros estágios.

Tomando como exemplo os nativos de Victoria Central, na Austrália, escreve:

O instrumento que usavam para tirar raízes do solo era um pau que media cerca de 7 a 8 pés de comprimento, endurecido a fogo, e com uma ponta no final, que lhes servia de arma, tanto ofensiva como defensiva. A partir daqui, podemos descobrir quais foram os passos dados para se chegar ao cultivo sistemático do solo.
Um pau comprido é enterrado no solo e sacudido várias vezes para remover a terra que, por sua vez, é recolhida com a mão esquerda e jogada para outro lado. Desta forma escavam rapidamente, mas a quantidade de trabalho é demasiadamente grande em relação aos resultados. Para recolher uma batata com uma circunferência de meia polegada aproximadamente, devem escavar um buraco de um pé de largura por dois de profundidade, como mínimo. As mulheres e as crianças dedicam uma parte considerável de seu tempo a este trabalho.
Nos terrenos férteis, onde a batata-doce cresce em abundância, a terra é peneirada. O efeito de escavar a terra ao redor das raízes e das batatas-doces propiciou o enriquecimento e a fertilização do solo, e desta maneira aumentou a coleta de raízes e ervas. A queda da semente na terra anteriormente revolta com o pau, contribuiu para se obter um resultado idêntico. Além disso, as sementes levadas pelo vento, pouco depois davam outros frutos.(4)
Com o passar do tempo, as mulheres aprenderam a ajudar a natureza, retirando as ervas daninhas dos campos e protegendo as plantas que estavam crescendo. Finalmente, aprenderam também a plantar e semear.

Não só a quantidade e a qualidade foram melhoradas, mas também foram descobertas novas espécies de plantas e vegetais. Chapple e Coon dizem:

Com o cultivo, o processo seletivo produziu muitas novas espécies de vegetais ou alterou profundamente as características das já existentes. Na Melancia chegam a fazer crescer batatas de seis pés de comprimento e cerca de um pé de espessura, e inclusive mais que isso. Enquanto que as míseras raízes que os australianos tiram da terra não são maiores do que um grão-de-bico.(5)

Vejamos como Mason resume os passos dados na agricultura:

A evolução da agricultura primitiva passa pela busca de vegetais, a fixação das habitações próximas dos mesmos, a escavação do terreno, o semear, o manual e finalmente com a utilização de animais domésticos.(6)

Segundo Gordon Childe, todas as plantas comestíveis, como também o linho e o algodão, foram descobertas pelas mulheres, em épocas primitivas.(7)

A descoberta da agricultura e da domesticação de animais permitiu ao gênero humano superar o estágio da coleta de alimentos e passar ao seu cultivo. Isso representou para a humanidade a primeira vitória sobre o problema das provisões de víveres. Esta conquista foi realizada pela mulher. A grande Revolução Agrícola, que proporcionou alimento aos homens e aos animais, foi a coroação do trabalho produtivo feminino que se iniciou no dia em que se utilizou a estaca para cavar a terra.

De qualquer forma, poder controlar a provisão de alimentos significou muito mais que confiar simplesmente na fertilidade da natureza. Para a mulher, significou principalmente entregar-se a seu trabalho, à experiência, às suas capacidades de inventar e inovar. As mulheres tiveram que descobrir todos os métodos particulares de cultivo adaptados a cada espécie de planta ou semente. Tiveram que aprender as técnicas da colheita, da limpeza do grão, da moenda etc., e inventar todos os utensílios adequados para cultivar o terreno, recolher e guardar a colheita, e, finalmente, transformá-la em comida.

Em outras palavras, a luta pelo controle dos alimentos trouxe não só o desenvolvimento agrícola, mas proporcionou as bases iniciais para a produção e para a ciência.

Escreve Masco:

Toda a vida industrial da mulher foi construída a partir da provisão de alimentos. Desde a primeira viagem a pé, para buscá-los, até o momento de cozinhá-los e comê-los, realizaram uma série de experiências que continuaram e que eram próprias das circunstâncias vividas.(8)

A mulher na indústria, na ciência e na medicina

A primeira divisão de trabalho entre os sexos é frequentemente descrita de uma forma muito simplificada e deformada. Diz-se que os homens eram caçadores ou guerreiros, enquanto as mulheres permaneciam no acampamento ou em casa para cuidar dos filhos e fazer a comida. Tal descrição dá a impressão de que a família desta época era idêntica à família moderna. Enquanto os homens se ocupavam de todas as necessidades sociais, as mulheres tratavam somente da cozinha e dos filhos. Este conceito é realmente uma grande distorção dos fatos.

Com exceção da divisão de trabalho na busca de alimentos, não existia entre os sexos nenhuma outra diferença, nem nas formas mais elevadas de produção, pela simples razão de que toda atividade industrial na sociedade estava nas mãos das mulheres. Por exemplo, o cozinhar não deve ser entendido como nós o entendemos na família moderna. Cozinhar era somente uma das técnicas que as mulheres adquiriram como o resultado do descobrimento e uso do fogo e da capacidade de utilizar o calor.

Todos os animais da natureza temem o fogo e se afastam dele. E, sem dúvidas, o descobrimento do fogo tem pelo menos meio milhão de anos, inclusive antes mesmo da humanidade ter alcançado um nível completamente humano. Sobre isso, escreve Gordon Childe:

Conseguindo utilizar o fogo, o homem controlava uma força física potente e uma importante transformação química. Pela primeira vez na história, um ser vivo conseguia controlar uma das forças da natureza. E o uso de uma força condiciona quem a controla… Ao acender e apagar o fogo, ao transportá-lo e usá-lo, o homem conseguiu distanciar-se completamente do comportamento dos outros animais. O homem afirmou sua humanidade e se converteu em Homem.(9)

Todas as. bases técnicas da cozinha, que se se guiaram ao descobrimento do fogo, foram inventadas pelas mulheres: cozinhar, assar, servir, etc. Estas técnicas implicavam experiências constantes sobre as propriedades do fogo e sobre a utilização do calor. Foi precisamente graças a essas contínuas nuas experiências que a mulher conseguiu desenvolver as técnicas de conservação dos alimentos. Com a aplicação do fogo e do calor, conseguiu dissecar e conservar, para as exigências futuras, tanto os animais como os vegetais.

Mas o fogo representou muito mais. O fogo é, por excelência, o instrumento da sociedade primitiva; pode ser comparado ao controle e uso da eletricidade e inclusive da energia atômica na idade moderna. E foi a mulher quem desenvolveu as primeiras formas de indústria e, ao mesmo tempo, quem descobriu o uso do fogo como instrumento de seu trabalho.

A primeira atividade industrial da mulher estava centrada na busca de todo tipo de alimentos. Preparar e conservar a comida pressupõem a invenção de todo o equipamento subsidiário: vasilhas, utensílios, fornos, armazéns etc. As mulheres construíram as primeiras despensas, celeiros, depósitos para alimentos. Alguns desses celeiros consistiam em buracos cavados na terra, revestidos de palha. Nos terrenos pantanosos ou úmidos fincaram paus, e sobre estes construíram depósitos. A necessidade de proteger os alimentos dos répteis e outros pequenos animais foi resolvida com a domesticando de outro animal, o gato. Mason escreve:

Pela invenção dos celeiros e proteção dos alimentos de pequenos animais, o mundo deve agradecer à mulher pela domesticação do gato… A mulher amansou o gato selvagem para a proteção de seu celeiro.(10)

Foi sempre a mulher quem conseguiu distinguir as substâncias nocivas dos alimentos. Com o uso do fogo, transformava os alimentos, que em seu estado natural não eram comestíveis, em um alimento novo.

Novamente citando Mason:

As mulheres desses países compreenderam que cozinhando ou simplesmente fervendo, podiam transformar em comestíveis plantas que em seu estado natural são venenosas ou demasiado ásperas e picantes.

Por exemplo, a mandioca é venenosa em seu estado natural. Mas a mulher conseguiu transformá-la em um alimento-base através de um complicado processo de compressão, utilizando uma prensa primitiva, para eliminar as substâncias venenosas e depois cozinhando- a para eliminar qualquer outro resíduo desagradável.

Muitas outras plantas e substâncias não comestíveis foram usadas pelas mulheres em suas atividades industriais, ou transformadas em medicamentos. O Dr. Dan Mckenzie catalogou uma centena de medicamentos homeopáticos descobertos pelas mulheres, precisamente devido ao seu profundo conhecimento da vida vegetal. Alguns desses medicamentos são usados ainda hoje, sem qualquer modificação. Outros foram modificados ligeiramente. Entre eles, existem muitas substâncias usadas por suas propriedades narcóticas.

A mulher, por exemplo, descobriu a propriedade da resina do pinho, da trementina e do azeite de chaulmoogra, que atualmente é usado como remédio contra a lepra. Descobriu elementos medicinais na acácia, no amendoim, na seringueira, na cevada e assim sucessivamente. Estes descobrimentos deram-se na América do Sul, na China, na Europa, no Egito etc., de acordo com a região natural dessas plantas.

Inclusive, as mulheres conseguiram transformar substâncias animais em medicamentos. Transformaram, por exemplo, o veneno da serpente em um soro contra as mordidas deste réptil (igual ao preparado que atualmente conhecemos como antídoto).

Na indústria ligada à conservação dos alimentos começava-se a sentir necessidade de recipientes e vasilhas de todos os tipos para conservar, transportar e cozinhar os alimentos. E, nas diferentes partes do mundo, nasceram os primeiros recipientes de madeira, de pele, de cortiça. Só mais tarde a mulher descobriu a técnica da cerâmica.

O fogo também era usado na fabricação de utensílios de madeira. Mason descreve esta técnica, e pode-se então compreender facilmente como se passa rapidamente à construção das primeiras canoas e embarcações.

Queimavam com cuidado a parte côncava, controlando a chama. Logo estas maravilhosas e versáteis mulheres deixavam de lado o fogo e, improvisando uma escova de madeira, cortavam os resíduos. Com uma lâmina de pedra, raspavam a resina até obter uma superfície de madeira completamente lisa. Parte côncava era raspada e queimada até se obter a forma desejada. Completa a bacia, estava pronta para ser usada como panela.(11)
Com esta transformação, uma substância como a madeira, que é facilmente consumida pelo fogo, podia ser usada como recipiente para cozinhar e, portanto, ser colocada no fogo.

Mas estas primeiras atividades femininas, que nasceram exatamente da luta pela conservação dos alimentos, superaram rapidamente este limitado horizonte. Logo que uma necessidade era satisfeita, nasciam outras, e estas, por sua vez, eram satisfeitas em uma espiral sempre crescente de novas necessidades e novos produtos. E foi neste contínuo reproduzir-se de necessidades e soluções, que as mulheres construíram as bases para uma futura cultura mais elevada.

A ciência se desenvolveu ao mesmo tempo que a indústria. Gordon Childe destaca que para transformar a farinha em pão, necessita-se uma longa série de descobrimentos colaterais que terminam com o conhecimento da bioquímica e o uso de um microorganismo, o fermento (levedura). O mesmo conhecimento da bioquímica que tornou possível a produção do pão, tornou também possível os primeiros licores fermentados e uma série de outros descobrimentos.

Da corda ao tecido

Fazer uma corda pode parecer uma atividade muito humilde, mas entrelaçar estas fibras foi somente o princípio de uma grande cadeia de atividades que culminaram com a indústria têxtil. Construir essas cordas requer não só habilidade manual, como também um conhecimento de que material utilizar e como manuseá-lo, tratá-lo.

Chapple e Coon escrevem:

Todos os povos usam a corda, seja para ligar os cabos dos utensílios ou para fazer redes para caçar coelhos, bolsas ou braceletes. Nos lugares onde se usa muito mais as peles de animais, como entre os esquimós, estas cordas de modo geral consistem em tiras de couro ou tendões de animais. Os povos que vivem nos campos, ao contrário, usam fibras vegetais como o hibisco ou raízes longas que não necessitam nenhum tratamento especial para serem utilizadas. Outras fibras, muito curtas, são enroscadas entre si até formarem uma longa corda.(12)

Da técnica do entrelaçamento nasce a indústria de cestos. Segundo a localidade, os cestos são feitos de vime, cortiças, ervas, raízes ou peles. Alguns eram entrelaçados e cozidos ao mesmo tempo. A variedade de canas e outros artigos entrelaçados é enorme. Robert H. Lowie enumera alguns: cestas para transporte, botijas para água, copos, escudos, chapéus, abanos, esteiras etc. Alguns dos materiais estavam tão estreitamente entrelaçados que eram impermeáveis, e eram usados para se cozinhar ou conservar os alimentos.(13)

Alguns são tão bonitos, diz Briffault, que não podem ser reproduzidos nem com a tecnologia moderna:

“Os chamados chapéus do Panamá, cujos exemplares mais belos podem ser comprimidos até que se consiga passá-los através de um anel, talvez sejam o exemplo mais típico”.(14)
Nesse tipo de indústria, as mulheres utilizaram todos os recursos que a natureza colocava à sua disposição. Na terra onde nascia o coco, teciam cordas lindas, utilizando os filamentos das cascas.

Nas Filipinas, uma espécie de banana não comestível produzia o famoso abacá, ou cânhamo-de-Manilha, usado também para a fabricação de cordas. Na Polinésia, cultivava-se uma espécie de amoreira, cuja casca era batida fortemente até se transformar em uma espécie de tecido com o qual as mulheres conseguiam fabricar camisas para si e para os homens, além de correias, bolsas etc.

A indústria têxtil nasce com a grande Revolução Agrícola. Nesta atividade complexa, vemos a fusão de técnicas aprendidas na agricultura e na indústria.

Gordon Childe escreve:

“A indústria têxtil requer não só o conhecimento de substâncias particulares como o algodão, o linho e a lã, mas também a criação de certos animais e o cultivo de plantas especiais”.(15)

A indústria têxtil requer um alto grau de capacidade técnica e mecânica e uma longa série de invenções paralelas. Para desenvolver esta indústria, continua Childe,

necessita-se uma série complexa de descobrimentos e invenções e um conhecimento científico igualmente complexo Entre as invenções prioritárias, a mais importante é o tear. Consideramos que o tear é um instrumento mais ou menos complicado, demasiada mente complicado para podermos descrevê-lo aqui. E sua utilização não é menos complexa. O tear, a sua invenção, foi um dos grandes triunfos do engenho humano. Seus inventores não possuem nomes, mas realizaram uma contribuição essencial à bagagem cultural do homem.(16)

Sem levar em conta a sua importância enquanto contribuição para aumentar as provisões de alimentos, a caça foi um fator de grande valor para o desenvolvimento humano. Na caça organizada, o homem devia colaborar com outros homens, atitude desconhecida no mundo animal, no qual é regra a concorrência individual.

Sobre esta questão, Chapple e Coon escrevem:

A caça é um ótimo exercício tanto para o corpo como para a mente. Estimula a cooperação, o autocontrole, a agressividade, o engenho e a inventividade. E, por último, exige um alto grau de destreza manual. O gênero humano não poderia ter melhor escola em seu período de formação.(17)

Trabalhadoras do couro

Uma vez que a caça era uma atividade tipicamente masculina, os historiadores estão sempre dispostos a glorificá-la sem limites. Sinceramente, não há dúvidas que os homens realmente contribuíram com a caça nas provisões, mas eram as mulheres que preparavam e conservavam a comida e utilizavam os produtos derivados necessários para suas atividades. Foram as mulheres as que desenvolveram as técnicas do curtume e da conservação das peles e quem fundou a primeira grande indústria de peles.

Trabalhar a pele, o couro, é um processo longo, difícil e complicado. Lowie descreve a primeira forma deste tipo de atividade, que ainda é utilizado pelas mulheres ona, da Terra do Fogo:

Quando os caçadores trazem para o acampamento a pele de um guanaco, a mulher — diz ele — se ajoelha sobre a pele, limpa-a, raspa laboriosamente com sua folha de quartzo os tecidos rotos e a camada transparente que existe abaixo deles. Depois, com os punhos, amassa a pele palmo por palmo, de cima para baixo, em toda a extensão e às vezes mastigando-a com os dentes para que se torne mais macia. No caso de ser necessário o corte dos pelos, usa-se o mesmo processo da raspagem.

O raspador de que fala Lowie e, juntamente com a estaca ou bastão, um dos mais antigos utensílios da humanidade. Ao mesmo tempo que nasce o pau de madeira usado para coletar verduras, nasce esse troço de pedra, raspador ou machado de mão, usado nas mais diversas atividades.

Briffault escreve a este respeito:

Estas espécies de raspadores, que constituem a maior parte dos utensílios primitivos, foram usadas e inventadas pela mulher. Nasceram muitas controvérsias sobre os possíveis usos desses objetos, mas o fato é que ainda hoje as mulheres esquimós empregam utensílios idênticos aos que suas irmãs europeias usaram em abundância durante a Era Glacial.
Os raspadores ou cutelos usados pelas mulheres esquimós, são de forma geral muito elaborados e montados artisticamente em cabos de osso. Na África do Sul, a terra está cheia desses objetos, idênticos aos que se encontraram na Europa, originários da Era Paleolítica.
Segundo testemunhos de pessoas que conheciam bem os costumes dos bosquímanos, estes objetos eram fabricados pelas mulheres.(18)
Mason acrescenta:

O raspador é o utensílio primeiro, que se usa em qualquer trabalho. Sua utilização entre as mulheres aborígenes de Montava é transmitida de mãe para filha, de geração em geração, e assim sucessivamente, desde o nascimento do gênero humano.(19)

Curtume

Assim como a maior parte das atividades, o trabalho com as peles requeria muito mais que um simples trabalho manual. Para desenvolver este trabalho a mulher também teve que aprender os segredos da química, e de experiência em experiência, aprendem inclusive a usar uma substância para transformá-la em outra.

O curtume é essencialmente uma alteração química da pele crua. Entre os esquimós, escreve Lowie, esta transformação foi descoberta deixando as peles serem maceradas dentro de um recipiente cheio de urina. Na América do Norte, ao contrário, as mulheres usavam o cérebro dos animais, preparados especialmente, e com ele empapavam as peles. Sem dúvida, o verdadeiro curtume exige o uso da cortiça da azinheira ou outras substâncias vegetais que contenham ácido tânico.

Uma parte do processo para trabalhar a pele era defumá-la em fogo lento. Os escudos dos índios norte-americanos eram tão resistentes que eram à prova não só de flechas, mas de tiros.

Os produtos de pele são de uma variedade enorme, principalmente no que se refere aos recipientes. Lowie cita alguns dos usos da pele. Os asiáticos utilizavam-na para fazer uma espécie de garrafa; os africanos orientais como escudos ou estofos; entre os índios norte-americanos era usada, às vezes, como vestidos, camisas, mocassins ou calças. Só mais tarde foi utilizada para fazer choças ou tendas. A variedade de produtos feitos com peles pelas mulheres índias nunca deixou de maravilhar os visitantes dos museus onde estes objetos encontram-se expostos.

Briffault sublinha que as mulheres deviam conhecer primeiro a natureza das peles que deviam preparar, e decidir que produtos seriam os mais adequados:

O produto que se deve empregar varia de acordo com a utilidade que a pele vai ter. As peles macias eram alisadas até se conseguir uma espessura uniforme, e também se utilizava a camada que fica junto ao pelo. As mais duras eram usadas na construção de cabanas, escudos, canoas ou botas. As mais finas e laváveis, para vestidos. Tudo isto requeria trabalhos técnicos especiais que haviam sido elaborados precisamente pelas mulheres.

Mason escreve:

No continente americano, só as mulheres sabiam como tratar qualquer tipo de pele de animal, como gatos, ursos, ovelhas, antílopes, crocodilos, tartarugas, e inclusive répteis e peixes.(20)

Ceramistas e artistas

Ao contrário das demais indústrias femininas, a cerâmica leva à criação de substâncias completamente novas, que não existem em estado natural. Sobre isso, escreve Gordon Childe

Talvez a cerâmica seja a primeira utilização consciente de um processo químico por parte da humanidade… O fator essencial da arte cerâmica e que a mulher pode modelar algo de argila, na forma que desejar, e logo, utilizando o fogo, dar-lhe a forma definitiva (calor acima dos 600 graus centígrados). Aos homens primitivos, tal mudança na qualidade de um material deve ter parecido uma espécie de transmutação mágica. A conversão do barro ou da terra em pedra…
O fato essencial deste descobrimento consiste em conseguir controlar e utilizar o processo químico que citamos anteriormente. Mas, da mesma forma que os demais descobrimentos, a sua aplicação prática implica outros novos conhecimentos. Para que a argila esteja em condições de ser trabalhada, tem que ser molhada, mas se o objeto é colocado úmido no forno, ele se quebra. A água deve secar aos poucos no sol, ou próxima do fogo, antes da argila ser cozida. Da mesma forma, a argila tem que ser cortada, preparada e lavada, para eliminar todos os resíduos de outras substâncias.
Durante o cozimento, a argila muda não só sua consistência física, mas também sua coloração. O homem teve que aprendera a controlar estas mudanças e utilizá-las as para melhorar a beleza dos vasos…

A arte da cerâmica, inclusive em seu estado mais rústico e generalizado, já era complexa. Implicava um certo número de processos bem distintos e a aplicação de numerosos descobrimentos. Construir um vaso foi um exemplo magnifico da criatividade humana.(21)

A mulher primitiva, assim como o primeiro cera mista, colheu o pó da terra e modelou uma gama infinita de novos produtos. As artes decorativas, também pelas mãos das mulheres, se desenvolveram paralelamente a esta indústria. A arte nasce do trabalho.

Lowie escreve

Um fabricante de cestas pode se converter em um decorador, sem ter a intenção de fazê-lo; mas no momento em que um determinado modelo deslumbra os nossos olhos, então buscamos repeti-lo. A corda retorcida de um cesto pode parecer uma espiral, uns arabescos etc. O fato essencial é que, uma vez considerada decorativa, esta forma geométrica se aplica também a outras formas de arte. Um ceramista pode pintar figuras em seu vaso, um escultor pode imitá-las em sua madeira.(22)

Os objetos de pele feitos pelas mulheres são muito apreciados, não só por seu aspecto prático, mas também pela beleza de sua decoração. E quando a mulher começou a fazer vestidos, começou também a tecer belíssimos desenhos nas telas, e inventou a cor e a técnica da tintura.

Construtoras e arquitetas

Talvez a atividade menos conhecida das mulheres primitivas seja seus trabalhos de construção, arquitetura e engenharia. Briffault escreve:

Não estamos acostumados a pensar que a arte de construir casas ou a arquitetura foram ocupações tão femininas quanto a fabricação de botas ou objetos de terracota. E, sem dúvida, as cabanas dos australianos, das ilhas habitantes as ilhas de Andaman, dos habitantes da Patagônia, os toscos refúgios dos Seri, as tendas de pele dos índios norte-americanos, a “iurta” dos nômades da Ásia Central, a tenda de pele de camelo dos beduínos, todos são trabalhos exclusivamente femininos.
Às vezes, estas moradias, mais ou menos estáveis, eram muito elaboradas. A “iurta”, por exemplo, e, na maioria das vezes, uma casa muito grande, construída sobre uma armação de madeira em forma de círculo, que tem em cima uma espécie de encerado também de madeira, todo ele coberto por uma espessa camada de feltro, que dá à casa uma estrutura de cúpula. O interior está dividido em numerosos compartimentos. A exceção da madeira, todo o restante foi construído e colocado pelas mulheres turcomanas.

Os pueblos do Novo México e do Arizona recordam em sua forma as pitorescas cidades orientais. São grupos de casas, construídas umas sobre as outras. O teto plano de uma serve de base para a outra. Os andares mais elevados são alcançados através de escadas de polé ou escadarias exteriores, e os muros são bastiões com merlões ornamentais. Pátios, praças, ruas, curiosos edifícios públicos que servem tanto como locais de reuniões ou de templos… como testemunham as numerosas ruínas.(23)

Os missionários espanhóis que se estabeleceram entre os povos indígenas ficaram atônitos frente à beleza das igrejas e conventos que aquelas mulheres haviam construído para eles. E escreveram aos seus compatriotas europeus:

Nenhum homem contribuiu nem com o mínimo para erguer uma casa. Estes edifícios eram construídos somente pelas mulheres, as meninas e as jovens das missões Entre estes povos era costume que as mulheres fossem as construtoras de casas.(24)

Sob a influência dos missionários, os homens aprenderam também este trabalho, mas seus primeiros esforços foram recebidos com muita zombaria pelas pessoas. Como escreveu um missionário espanhol:

Os pobres foram rodeados por uma alegre multidão de mulheres e crianças que riam e zombavam deles, e que pareciam encontrar-se frente à coisa mais engraçada do mundo: um homem ocupado na construção de uma casa.(25)
Hoje, ocorre justamente o contrário: ridiculariza-se a mulher arquiteta ou engenheira.

Sobre os ombros da mulher

A mulher não era só uma experiente trabalhadora da sociedade antiga, mas também se ocupava de trabalhos muito duros e pesados, como o transporte de mercadorias, utensílios etc.

Antes que tivessem este trabalho aliviado pelos animais domésticos, ao menos em parte, eram elas que transportavam sobre os ombros todo o necessário. Quando toda a tribo mudava de um lugar para outro, transportavam não só as matérias-primas para suas indústrias, mas também depósitos inteiros de mercadorias.

Quando a tribo emigrava, e isto ocorria com muita frequência antes que se desenvolvessem o sedentarismo, eram as mulheres quem desmontava e armava as tendas e cabanas. As mulheres transportavam os objetos mais pesados e também seus filhos. Na vida diária, era também a mulher quem transportava grandes feixes de lenha para o fogo, a água, os alimentos e todos os produtos essenciais. Segundo Chapple e Coon, inclusive hoje, as mulheres da tribo Ona, da Terra do Fogo, transportam pesos de mais de 100 libras quando emigram. Entre os Akikuyus da África Oriental, escrevem os Routledge, os homens não estavam em condições de suportar pesos de mais de 40 ou 60 libras, enquanto que as mulheres suportavam mais: “Quando um homem diz: esta carga está muito pesada, é porque ela está pronta para ser levantada por uma mulher e não por um homem. Isto nada mais expressa do que uma realidade”.(26)

Sobre este aspecto do trabalho feminino, Mason escreve:

Dos ombros da mulher, do carro a majestosa nave, está aqui a história do maior dos artifícios que impulsionou nossa raça a explorar o mundo inteiro. Não me estranha que o carpinteiro talhe em madeira, na proa de seu navio, uma cabeça de mulher, e que a locomotiva receba nomes femininos.(27)

Por acaso estas atividades indicam que a mulher estava oprimida, explorada ou degradada? De modo algum. Totalmente o contrário. Sobre isto, escreve Briffault:

A opinião fantasiosa de que as mulheres estiveram oprimidas na sociedade primitiva em parte deriva da complacência do homem civilizado e, em parte, do fato de que as mulheres trabalhavam duramente. Uma vez que as mulheres realizavam trabalhos cansativos, seu estado era considerado como que de escravidão e opressão. Não poderia existir maior equívoco…

A mulher primitiva é independente, e não apesar de seu trabalho. No geral, é justamente nos povos entre os quais elas trabalham mais duramente, que são mais independentes e têm uma maior influencia. De modo geral, lá onde as mulheres ficam na folga e os trabalhos são realizados por escravos, elas são pouco mais do que escravas sexuais…
Na sociedade primitiva, todos os trabalhos, inclusive os mais insignificantes, eram voluntários, e nunca a mulher fez algum trabalho tendo que obedecer ordens arbitrárias. Falando das mulheres zulus, um missionário escreve:

Qualquer um que houvesse observado o comportamento das mulheres, concentradas em seu trabalho, sua alegria, sua conversa, suas risadas e suas canções, não poderia deixar de comparado com os de nossas mulheres que hoje trabalham.(28)

O que atormenta os seres humanos, não é o trabalho, mas sim a exploração e o trabalho forçado. Quando as mulheres começaram a trabalhar, ninguém as ensinou como fazer isso. Tiveram que aprender da forma mais difícil, com sua coragem e perseverança. Obtiveram algumas noções, provavelmente, da própria natureza. Mason escreve:

As mulheres aprenderam com as aranhas a tecer redes. Com as abelhas e formigas a conservar os alimentos e a trabalhar a argila. Isto não significa que esses animais criaram escolas para que aquelas obtusas mulheres aprendessem a trabalhar, mas sim que as mentes despertas destas estavam sempre dispostas a se apoderar de qualquer experiência que viesse daquela fonte. Foi na época da industrialização que a mulher mostrou todo seu talento. Desde o princípio, estabeleceu os caminhos que era necessário percorrer, e se ativeram a eles sem reservas.(29)


As primeiras comunidades

Dado a humildade com que a mulher iniciou as suas primeiras atividades, muitos historiadores apresentam a indústria feminina como basicamente familiar ou artesanal. Sem dúvida, é importante levarmos em conta que antes de se desenvolver a máquina, quina, não existia nenhuma forma de arte, a não ser o artesanato. Antes que surgissem as fábricas especializadas, não existia senão a casa.

Obviamente sem estas formas artesanais primitivas não teriam nascido as grandes corporações da Idade Média. E sequer o mundo moderno teria se desenvolvido com suas fazendas agrícolas mecaniza das e suas inúmeras indústrias.

Quando as mulheres começaram a trabalhar, fizeram com que o gênero humano se elevasse acima do reino animal. Foram elas as primeiras trabalhadoras e as fundadoras da indústria, a primeira força que elevou a humanidade para além de seu estado de símio. Junto com o trabalho, nasce a linguagem.

Como escreve Engels:

O desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividades sociais, fazia necessariamente com que os membros da sociedade se reunissem cada vez mais… A única teoria correta sobre a origem da linguagem é a de que ela nasce e se desenvolve junto com o processo do trabalho. Primeiro nasceu o trabalho, e logo, como consequência, se desenvolveu a linguagem articulada.(30)

Sem dúvida, também o homem começou a articular alguma palavra durante a caça organizada, mas o desenvolvimento decisivo da linguagem nasce da atividade produtiva feminina. Diz Manson:

Exatamente porque, a cada dia se ocupava de todas as atividades industriais, a mulher inventou e fixou uma linguagem em relação às mesmas. O Dr. Brinton escreve em uma carta particular que em muitas linguagens primitivas não só se encontram muitas expressões que são próprias das mulheres, como em muitas partes do mundo se encontra com frequência linguagens usadas somente pelas mulheres e completamente distintas da dos homens.

Os homens primitivos, quando iam caçar ou pescar, estavam geralmente sozinhos, e esta atividade lhes impunha silêncio. As mulheres, pelo contrário, estavam juntas e falavam o dia todo, e tal coisa é tão certa que, prescindindo dos ambientes culturais, as mulheres têm ainda hoje em dia um vocabulário mais rico e são as melhores oradoras e escritoras.(31)

O trabalho e a linguagem, mais do que qualquer outra coisa, representam o nascimento da coletividade. Os animais são obrigados por leis da natureza a uma contínua concorrência individual. As mulheres, através do trabalho, substituíram as relações estabelecidas pela natureza por novas relações humanas, graças ao trabalho coletivo.

A família – a comunidade

A família era toda a comunidade. Não existiam individualismos e sim coletivismo social. Sobre este ponto, escreve Gordon Childe:

No Neolítico, a arte aparece como uma ocupação familiar. Nem mesmo as tradições artesanais são individuais, são coletivas. A experiência e sabedoria colocam-se constantemente em evidência e, com exemplos e explicações, são transmitidas de pai para filho. A filha ajuda a mãe a trabalhar os vasos. Observa-a atentamente, imita e recebe as explicações, advertências e os conselhos necessários. No Neolítico, as ciências aplicadas foram transmitidas pelo que chamamos atualmente de sistema de aprendizagem.

Num povoado moderno africano, a mulher não se isola para modelar ou coser seus vasos.

Todas as mulheres trabalham juntas, conversam, confrontam suas experiências e se ajudam mutuamente. Todas as atividades são públicas, suas regras são resultados de experiências comuns… E a economia neolítica em seu conjunto não poderia existir sem esforços comuns.(32)

Assim, o resultado mais importante das atividades femininas foi a fundação e a consolidação do primeiro grande coletivo humano. A vida coletiva e o trabalho, substituindo o individualismo animal, abriram um abismo intransponível entre a sociedade humana e os animais, Tornaram possível a primeira grande conquista da humanidade, a domesticação dos animais.

Através destas experiências as mulheres se converteram nas primeiras trabalhadoras e lavradoras, nas primeiras cientistas, doutoras, arquitetas, engenheiras; as primeiras professoras, educadoras e artistas, e transmitiram a herança social e cultural. As famílias que surgiram não eram simplesmente cozinhas coletivas ou salas de cozinhar, mas eram também as primeiras fábricas, os primeiros laboratórios científicos, centros médicos, escolas e centros culturais e sociais. O poder e o prestígio feminino que surgem das funções procriadoras, alcançam seu ponto máximo com a primazia de suas atividades socialmente úteis.

A emancipação do homem

Durante todo o tempo em que a caça intensiva foi uma ocupação indispensável, o homem esteve relegado a uma experiência de segunda ordem. A caça isolava os homens durante períodos muito grandes da comunidade, e da participação nas formas mais altas de trabalho.

O descobrimento da agricultura e da domesticação de animais pela mulher representou também a emancipação dos homens. A caça já não era socialmente indispensável, e esta atividade se viu transformada, rapidamente, em um simples esporte. Os homens estavam então livres para participar da vida cultural e industrial da comunidade. Com o aumento das provisões de alimentos, cresceu também a população. Os acampamentos nômades se transformaram em povoados estáveis e, mais tarde, em vilas e cidades.

No primeiro período de sua emancipação, os homens eram menos capazes do que as mulheres nas atividades produtivas. Portanto, limitavam-se a cortar as ervas daninhas nos campos e a preparar o terreno para o cultivo que as mulheres faziam. Cortavam árvores e armazenavam madeira para as construções. Só mais tarde começaram a trabalhar na construção propriamente dita, assim como cuidar de animais e de seu filho.

Mas, ao contrário das mulheres, não tiveram que começar do princípio. Em pouco tempo, conseguiram aprender não só aquelas atividades que exigiam uma certa destreza, mas realizaram grandes melhoras no que diz respeito aos utensílios de trabalho, móveis e tecnologia em geral. A agricultura se incrementou notavelmente com a invenção do arado e com o uso de animais já domesticados.

Durante um breve período de tempo, em termos históricos, a divisão do trabalho entre os sexos foi uma realidade. Homens e mulheres, juntos, aumentaram o bem-estar social e consolidaram as primeiras povoações sedentárias. Mas a Revolução Agrícola, promovida pela mulher, que divide a época da colheita da época da produção, da mesma forma separa a barbárie da civilização e, mais adiante ainda, assinala o desenvolvimento de um novo sistema social e uma inversão da liderança econômica e social dos sexos.

Estas novas condições de vida, que começaram com a abundância de alimentos necessários para urna população crescente, liberaram uma nova força produtiva e, com ela, novas relações produtivas. A velha divisão do trabalho entre os sexos foi substituída por uma nova divisão social do trabalho. O trabalho agrícola separou-se do trabalho industrial urbano, o trabalho manual do trabalho intelectual. E as atividades femininas passaram gradualmente para os homens.

Por exemplo, com o torno, os especialistas do ofício se apoderaram da arte artesanal feminina de modelar os vasos. Como diz Childe:

A etnografia nos demonstra que os ceramistas que usam o torno são geralmente homens, e não mulheres. E o antigo método artesanal de modelar os vasos, nada mais é para eles que um dever familiar, como o de cozinhar ou tecer.(33)

O homem se apoderou dos fornos inventados pelas mulheres e os transformou em fráguas e forjas para fundir os metais brutos e obter cobre, ouro e ferro. A Idade do Metal foi como a aurora da idade do homem. E o sobrenome mais comum atualmente, Mr. Smith, tem origem justamente naquela época.(34)

As mesmas causas que levaram à emancipação do homem conduziram à queda do matriarcado e à escravização da mulher. No momento em que o homem se apropriou dos meios de produção, a mulher foi relegada exclusivamente a suas funções biológicas de mãe, e lhe foi negada toda forma de participação na vida social produtiva. Os homens tomaram as rédeas da sociedade e fundaram um novo a serviço de suas necessidades. Da destruição do matriarcado, nasceu a sociedade de classes.

Neste resumo das atividades produtivas da mulher no sistema primitivo, vimos como os dois sexos contribuíram na edificação da sociedade e para o progresso da humanidade até o estágio atual. Mas esta contribuição não se deu ao mesmo tempo, nem da mesma forma. E isto nada mais é do que uma expressão do desenvolvimento desigual da sociedade em geral.

Durante o primeiro grande período de desenvolvimento social, foi a mulher quem conseguiu fazer com que a humanidade progredisse até se tornar superior ao reino animal. E uma vez que os primeiros passos são sempre os mais difíceis, não podemos deixar de considerar decisiva a contribuição social e produtiva das mulheres. Foram os descobrimentos no campo produtivo e cultural os que tornaram possível a civilização. Foram necessárias centenas de milhares de anos para que as primeiras mulheres pudessem assentar as bases sociais. E justamente por terem colocado estas bases tão solidamente, foram necessários menos de quatro mil anos para que a civilização alcançasse seu estágio atual.

Por isso não é científico querer discutir a superioridade do homem ou da mulher sem levar em conta a experiência histórica. No transcurso da história, assistimos a uma grande inversão na superioridade social dos sexos. O papel dirigente pertenceu primeiro à mulher, biologicamente dotada pela natureza; e logo aos homens, socialmente dotados pelas mulheres. Entender estes fatos históricos significa evitar cair na armadilha de valorizações arbitrárias baseadas somente em instinto e pré- julgamentos. E compreender isto significa destruir o mito que faz das mulheres seres naturalmente inferiores.


Primavera de 1954.

Notas de rodapé:

(1) Women’s Share In Primitive Culture (A participação das mulheres na cultura primitiva).
(2) Anthropology.  
(3) Op. cit.  
(4) The Golden Bough.  
(5) Principles of Anthropology.  
(6) Op. cit.  
(7) What Happened in History.  
(8) Op. cit.  
(9) Man Makes Himself.  
(10) Op. cit.  
(11) Op. cit.  
(12) Op. cit.  
(13) An Introduction to Social Anthropology.  
(14) The Mothers.  
(15) Man Makes Himself.  
(16) Idem.  
(17) Op. cit.  
(18) Op. cit.  
(19) Op. cit  
(20) Op. cit.  
(21) Man Makes Himself.  
(22) Op. cit.  
(23) Op. cit.  
(24) Briffault, op. cit.  
(25) Ibidem.  
(26) Scoresby e Katherin Routledge, With a Pre-historic People.  
(27) Op.cit.  
(28) Op.cit.  
(29) Op.cit.  
(30) O papel do trabalho na transformação do macaco em homem.  
(31) Op. cit.  
(32) Man Makes Himself.
(33) What Happened in History. 
(34) Smithies é o termo em inglês para ferraria. N. da T. 

Arquivo Histórico: Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

Dia Internacional da Mulher:

Um Feriado Proletário


[O presente artigo foi originalmente publicado em Women and Revolutionnº 8 (outono de 1975), periódico da então revolucionária Liga Espartaquista dos EUA. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em 2014.]


Por mais que feministas burguesas comemorem essa data, o 8 de março – Dia Internacional da Mulher – é um feriado dos trabalhadores.  Sua origem remonta a 1908, quando operárias têxteis do Lower East Side de Manhattan [Nova York] marcharam em prol de demandas como “por jornada de trabalho de 8 horas”, “pelo fim do trabalho infantil” e “voto feminino”, e foi adotado oficialmente pela Segunda Internacional em 1911.

O Dia Internacional da Mulher foi comemorado pela primeira vez na Rússia, em 1913, onde ele foi largamente divulgado nas páginas do jornal bolchevique Pravda, e popularizado através de discursos proferidos em vários clubes e sociedades controladas por organizações bolcheviques, que apresentaram uma análise marxista da opressão à mulher e o programa para sua emancipação.

No ano seguinte, os Bolcheviques fizeram agitação em prol do Dia Internacional da Mulher não só nas páginas do Pravda (então publicado sob o nome Put’ Pravdy), mas também realizaram preparações para publicar um jornal especial, lidando com a questões da libertação da mulher na Rússia e internacionalmente. Ele foi nomeado Rabotnitsa (A Mulher Trabalhadora) e seu primeiro número foi agendado para aparecer em 1914, no Dia Internacional da Mulher.

As preparações para o feriado eram feitas sob as mais árduas condições. Pouco antes do tão esperado dia, todo o comitê editorial do Rabotnitsa – a exceção de um membro – foi preso pela polícia czarista, bem como outros Bolcheviques que haviam feito agitação em prol do Dia Internacional da Mulher nas fábricas de São Petesburgo. Apesar dessas prisões, os Bolcheviques seguiram com suas preparações. Anna Elizarova – irmã de Lenin e a única do comitê editorial que havia escapado de ser presa – publicou sozinha o primeiro número de Rabotnitsa em 8 de março (ou, de acordo com o antigo calendário russo, 23 de fevereiro). Clara Zetkin, uma figura de liderança da Social Democracia alemã e do movimento internacional de mulheres trabalhadoras, escreveu:

“Saudações pela sua corajosa decisão de organizar o Dia da Mulher, congratulações por não ter perdido a coragem e não ter se resignado a sentar com suas mãos fechadas de raiva. Nós estamos com você, de coração e alma. Você e seu movimento serão lembrados em inúmeras reuniões organizadas para o Dia da Mulher na Alemanha, Áustria, Hungria e América.”
– Citado em A. Artiukhina, “Proidennyi Put”, Zhenschina v revoliutsii.

A mais importante celebração já realizada no Dia Internacional da Mulher ocorreu em Petrogrado, em 8 de março de 1917, quando operárias têxteis dessa cidade lideraram uma greve de mais de 90 mil trabalhadores – uma greve que sinalizou o fim da velha dinastia de 300 anos dos Romanov e o começo da Revolução Russa. Uma semana depois, o Pravada comentou:

“O primeiro dia da revolução – foi o Dia da Mulher, o dia da Internacional das Mulheres Trabalhadoras! Viva a Internacional! As mulheres foram as primeiras a desafiar as ruas de Petrogrado naquele dia.”

Conforme as posições das mulheres trabalhadoras se degeneraram sob Stalin e seus sucessores, como fruto da degeneração do Estado operário soviético como um todo, o Dia Internacional da Mulher passou de um dia internacional de solidariedade proletária em um ritual vazio, no qual, à semelhança do Dia das Mães nos EUA, glorifica o papel tradicional da mulher dentro da família.

Mas o Dia Internacional da Mulher não é uma celebração da maternidade nem da fraternidade feminina; ignorar esse fato é ignorar os aspectos mais significantes de sua história e propósito, que era fortalecer as fileiras do proletariado revolucionário. Diferentemente dos Mencheviques de antes da guerra, que queriam conciliar com as feministas de sua época ao limitar a celebração do Dia Internacional da Mulher a apenas mulheres, os Bolcheviques insistiram que ele deveria ser um feriado das mulheres trabalhadores e dos homens trabalhadores, juntos em luta. Como escreveu Nadezhda Krupskaya no principal artigo do primeiro número de Rabotnitsa:

“O que unifica as mulheres trabalhadores com os homens trabalhadores é mais forte do que aquilo que os divide. Eles são unidos pela sua comum falta de direitos, pelas suas necessidades comuns, pelas suas condições comuns, que são sua luta e seus objetivos comuns… A solidariedade entre os homens trabalhadores e as mulheres trabalhadoras, a atividade comum, o objetivo comum, a via comum para esse objetivo – tal é a solução da questão “feminina” entre os trabalhadores.”

Hoje em dia o programa bolchevique para a completa emancipação da mulher é levado adiante pela Liga Espartaquista. Nós temos orgulho de publicar a verdadeira história do Dia Internacional da Mulher, uma parte da nossa herança revolucionária, e nós vamos celebrá-lo com fóruns públicos através do país, apresentando a análise marxista da opressão à mulher e o programa e estratégia para esmagá-la.

Conforme aprofundarmos nossa influência na classe trabalhadora, nós olhamos adiante para comemorarmos o Dia Internacional da Mulher não só através da disseminação de propaganda, mas também através da deflagração das atividades de grande escala tradicionalmente associadas com esse feriado proletário – greves gerais, insurreições, revolução!

Rumo à uma Seção Feminina da Quarta Internacional Renascida! 
Pela libertação das mulheres através da Revolução Proletária Internacional!

Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (3)

Tendência Vern-Ryan

A Revolução Boliviana e a Luta contra o revisionismo

[Publicamos a seguir o terceiro de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]

Sam Ryan, de Los Angeles.

Outubro de 1954.

“Para Pablo, a missão histórica da Quarta Internacional perdeu todo o seu significado. O ‘processo revolucionário objetivo’ sob as rédeas do Kremlin, aliado com as massas, está cumprindo seu papel suficientemente bem. É por isso que ele está inclinado impiedosamente a liquidar as forças trotskistas, sob o pretexto de integrá-las ao ‘movimento de massas como ele existe’.

“A salvação da Quarta Internacional exige imperativamente a expulsão dessa liderança liquidacionista. Uma discussão democrática deve ser aberta dentro do movimento trotskista mundial sobre todos os problemas que ficaram em aberto, embaçados, ou falsificados pela liderança pablista durante três anos. Dentro dessa perspectiva, será indispensável para a saúde da Internacional que a maior autocrítica possível seja realizada sobre todas as fases e causas do desenvolvimento da gangrena pablista.

“… estas ideias e esta tática liquidacionista foram depois estendidas aos partidos reformistas e a todas as organizações sob uma liderança pequeno-burguesa (o MNR boliviano, o movimento peronista na Argentina, o movimento liderado por Ibánez no Chile, etc.)”. (Boletim do Comitê Internacional, No. 1)

Este artigo tem a intenção de ser uma contribuição para a discussão sobre o “desenvolvimento da gangrena pablista”. Ao mesmo tempo, ele também pretende se uma contribuição para a luta contra o pablismo. Em minha opinião, tal discussão, já muito atrasada, é uma parte indispensável da luta e não deve ser mais adiada; isso porque uma das maiores vitórias do pablismo é precisamente o fato de que problemas teóricos e práticos da maior importância “ficaram em aberto, embaçados, ou falsificados”. A “maior autocrítica possível”, que realmente é necessária, irá mostrar que a maior ajuda para que Pablo traísse o marxismo veio do silêncio e da resignação dos “trotskistas ortodoxos”. Um dos crimes do revisionismo durante os últimos dois anos foi a traição da revolução boliviana.

Que a revolução boliviana de fato foi traída deveria estar claro para todos. Em novembro último, o partido trotskista boliviano, o POR, publicava um jornal semanal, Lucha Obrera. Para um partido operário num país pequeno e atrasado, com uma alta taxa de analfabetismo, isso é uma conquista tremenda, uma indicação de poderoso apoio de massas. Em dezembro, Lucha Obrera foi suspenso pelo governo, quase sem nenhuma resistência. Não houve nenhuma luta desde então que fosse importante o suficiente para ser noticiada nos jornais daqui. Esse fato é, por si só, uma notícia muito significativa.

Marxismo é uma ciência. Isso significa que suas generalizações não são imperativos divinos, mas a destilação dos eventos passados. E a característica distinta de toda ciência não é simplesmente fornecer generalizações verdadeiras (ou mais corretamente, aproximações da verdade), mas que ela fornece generalizações que podem ser testadas na realidade material. Falhar ao examinar qualquer evento importante em sua relação com a teoria marxista é transformar o marxismo num dogma, em verdades que são dadas de forma definitiva. E uma vez transformado em um dogma, o marxismo se torna inútil e desnecessário para a solução dos problemas práticos.

Quais eventos, acima de todos, exigem investigação pelos marxistas? Se o marxismo for compreendido não como um exercício contemplativo, mas como um guia para a ação, a resposta vem à mente de maneira imediata. Uma revolução é um teste supremo de teoria. Uma revolução joga fora todas as enganações, expõe de forma clara o caráter de classe de todos os partidos, de todos os programas. Nenhum tipo de revisionismo consegue se passar pelo marxismo no tempo de uma revolução; nenhum marxista pode ignorar uma revolução. É mais do que lógico esperar que uma atenção muito próxima fosse dada à revolução boliviana, por mais de uma razão. Não apenas é um teste de teoria e prática, especialmente em vista do fato de que um partido trotskista está desempenhando um papel importante; ela acontece sob as próprias muralhas do bastião da reação mundial.

Mas a revolução boliviana já passou há mais de dois anos agora, e não houve discussão sobre esse importante evento. Apenas dois artigos de discussão surgiram, ambos escritos pelo presente autor. E, apesar de os dois artigos serem agudamente críticos, eles não receberam nenhuma resposta. Até mesmo as novidades da Bolívia têm sido muito escassas. Pablo, que reivindica uma Internacional centralizada, nem mesmo conseguiu estabelecer uma comunicação decente por correio!

Que resposta esmagadora Pablo teria para as acusações de revisionismo? “Podem revisionistas sustentar uma política revolucionária no curso de uma revolução?” Mas Pablo escolheu não responder a isso, e isso é um traço claro do seu revisionismo. Os revisionistas preferem agir e não explicar; quanto mais eles puderem manter o silêncio, mais eles podem enganar os revolucionários. E Pablo foi deixado em paz para realizar o seu trabalho de traição.

Que o pablismo é a inspiração para a linha do POR é fácil de provar. A caracterização feita pelo POR do MNR e do governo do MNR como “pequeno-burgueses”, seu prognóstico da possibilidade de reformar o governo, sua teimosa recusa em fazer qualquer crítica à linha traidora e contrarrevolucionária dos líderes sindicais, e seu completo silêncio quanto ao stalinismo – essas coisas não vêm do arsenal do marxismo, mas do revisionismo.

Uma revolução por nomeação

Em sua décima conferência nacional, ocorrida em junho de 1953, o POR adotou uma resolução política que, apesar de cheia de expressões trotskistas, contém alguns poucos parágrafos que são o suficiente para tornar o documento inteiro um exercício de revisionismo. Essa resolução (Etapa Actual de la Revolución y Tareas del POR) foi impressa na publicação mexicana “Que Hacer?” mas não foi traduzida para o inglês.

“O governo pequeno-burguês”, diz a resolução (VII, 7), “… adquire um caráter transitório e bonapartista … Submetendo-se à poderosa pressão do proletariado assim como à do imperialismo, ele vacila constantemente entre os dois extremos. Dessa situação fluem as duas possibilidades abertas para o desenvolvimento do presente governo. Se as massas, com um novo impulso, decidem pela derrota política da ala direita pela esquerda, se abre a possibilidade de que o governo se transforme na etapa prévia do governo operário e camponês. Esse processo seria acompanhado por uma série inteira de medidas de caráter revolucionário, assim como a expansão das nacionalizações, a revolução agrária, etc. Se a ala direita, com a ajuda do imperialismo, barrar o espaço governamental dos seus adversários, ela irá consolidar um governo pequeno-burguês a serviço da ‘Rosca’ e do capital financeiro.”

Dois parágrafos depois, nós lemos:

“A ala direita está definitivamente comprometida com a reação latifundiária e imperialista e, portanto, nós não podemos simplesmente descartar a possibilidade de um futuro racha com a ala esquerda. Uma predominância completa dessa última iria alterar profundamente o caráter do MNR e lhe permitir mover para mais perto do POR. Apenas sob tais condições nós poderíamos falar de um possível governo de coalizão do POR e do MNR, que seria uma forma de realização da fórmula de ‘governo operário e camponês’, que por sua vez constituiria a etapa de transição em direção à ditadura do proletariado.”

Um regime bonapartista só pode aparentar estar entre as classes para as pessoas que se esqueceram da natureza de classe do Estado. Todos os governos sempre foram, para os marxistas, os instrumentos das classes dominantes, impossíveis de serem reformados, em sua natureza de classe, por nenhuma quantidade de pressão. Bonapartismo é simplesmente uma forma que um regime burguês ou proletário assume sob determinadas condições. O POR não foi o primeiro a se esquecer de que não pode haver um regime intermediário nem a reforma de um regime. Foi o Terceiro Congresso Mundial, com seu “status intermediário” dos países do Leste Europeu, e o CEI [Comitê Executivo Internacional] com sua caracterização do regime de Mao na China como Estado nem burguês nem operário, mas intermediário, um “governo operário e camponês”.

Um regime bonapartista é um regime ditatorial, regulado por um árbitro. Os marxistas nunca favoreceram essa forma de governo; eles sempre promovem a intervenção das massas na política. Assim, os bolcheviques exigiram uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal para substituir o domínio bonapartista de Kerensky. A demanda de eleições democráticas é uma das pedras de toque do programa trotskista para a revolução nos países atrasados. Essa palavra de ordem certamente não é “golpista”; ela pode ser levantada – é mais apropriado – por um partido revolucionário que ainda não está em posição de tomar o poder. E levantar essa demanda certamente não é incompatível com defender o governo no caso de investidas contrarrevolucionárias.

No entanto, em nenhum lugar de toda a resolução do POR é levantada a demanda por eleições! E isso apesar do fato de que o presente governo foi eleito há cinco anos, e que um golpe militar e uma revolução aconteceram desde então. Não é feita menção nem mesmo à existência de uma legislatura eleita ou do desejo de eleger uma. Não é feita menção à questão de eleições populares. O POR está obviamente satisfeito com o atual governo bonapartista, está convencido da sua capacidade de se transformar, passo a passo, em um governo de trabalhadores.

Diante da recusa do POR em exigir eleições gerais, qual é o significado da palavra de ordem que ele levanta: “Controle completo do Estado pela ala esquerda do MNR”? Como ele espera que isso ocorra? Aparentemente por nomeação do Bonaparte Paz Estenssoro. Isso não é uma mera dedução. Isso é o que o POR realmente propôs. Em agosto de 1953 surgiu um gabinete de crise, uma divisão entre as alas esquerda e direita do governo sobre a questão da divisão das terras. Em uma situação como essa, com o movimento camponês se levantando, é óbvio o que o um partido trotskista deveria propor: destituição do governo, incluindo o presidente; eleições nacionais para presidente e para o congresso; a ala esquerda do MNR deveria lançar candidatos independentes, incluindo um candidato a presidente; o POR poderia dar apoio crítico à campanha da ala esquerda e levantar a palavra de ordem: que a Ala Esquerda tome o poder.

O POR não exigiu eleições gerais; ele não exigiu que as massas tivessem o direito de se despojar por si próprias do governo. Ele propôs que a ala esquerda “recebesse o poder” por nomeação do presidente Paz Estenssoro.

No número 43 (23 de agosto de 1953) de Lucha Obrera, nós podemos ler o seguinte apelo tocante direcionado ao Bonaparte do governo bonapartista:

“Para os revolucionários, a condução do presidente parece ambígua e nós acreditamos que ela indica a intenção de manter algumas posições de direita enfraquecidas pela crescente pressão das massas. É certo que um chefe de Estado tem responsabilidades, mas ele as tem perante o povo. Na realidade, são os trabalhadores que sozinhos tem o direito de julgar os atos do governo, especialmente levando em conta que foi a classe trabalhadora que, com seus sacrifícios, colocou-o no poder. Se essas massas, que são o único apoio do presidente, seguindo seu instinto de classe, desconfiando da ala direita, apelam e exigem que homens saídos de suas fileiras sejam postos no gabinete para substituir elementos ligados à reação, não existe base para negar a elas esse direito. E se Paz Estenssoro respeitar suas responsabilidades perante a história, ele estará motivado primariamente por um desejo de respeitar a vontade do povo e realizar as aspirações dos trabalhadores, organizando um gabinete composto exclusivamente de homens da esquerda do seu partido.”

Esse gabinete “operário” faria alguma diferença para o caráter do governo? Nem um pouco. Não faria mais diferença do que os gabinetes “operários” do governo legalista espanhol ou que o gabinete “operário” de Kerensky. Significaria tanto quanto um gabinete nomeado por Eisenhower ou Truman composto não por “nove milionários e um encanador”, mas de “dez encanadores”. Um “gabinete operário” nomeado por Paz Estenssoro seria responsável não a um corpo legislativo eleito por sufrágio universal, como na Inglaterra ou na França, mas a um comandante supremo responsável perante ninguém a não ser sua classe. Tal gabinete não seria o resultado de um rompimento dos líderes operários com o governo. Ao contrário, os tornaria os representantes oficiais dessa classe.

O que é um partido pequeno-burguês?

Agora é possível ver o que o POR quer dizer quando caracteriza o MNR como um partido “pequeno-burguês” e o governo do MNR como um governo pequeno-burguês. Todas as publicações do POR são muito consistentes nisso; o MNR e o seu governo nunca são chamados de nada além de pequeno-burgueses. Longe de ser meramente uma questão terminológica (um defensor da linha do POR me disse – verbalmente, é claro – que pequeno-burguês queria dizer burguês), essa é uma formulação que leva à rejeição do trotskismo em teoria e à traição da revolução na prática.

Se a política é a economia concentrada, então os partidos políticos são a expressão de interesses econômicos. Mas o fator dominante na sociedade atual é a luta de classes entre o proletariado e a burguesia. Os partidos políticos, portanto, são, e não podem deixar de ser, expressões de e instrumentos na luta de classes. Eles servem aos interesses ou da burguesia ou do proletariado. É isso que dá a eles seu caráter de classe. Não é a sua composição social, nem a composição da sua liderança, mas a qual das duas classes principais eles servem. Isso é verdade tanto nos países atrasados quanto nos avançados.

Existem partidos que os marxistas chamam de pequeno-burgueses – os partidos socialdemocratas e trabalhistas. Nós usamos esse termo por convenção, não porque esses partidos sirvam aos interesses da pequeno-burguesia – a pequeno-burguesia não tem interesses de classe independentes – mas porque esses partidos estão, em certo sentido, entre as classes. Eles falam do socialismo e da classe trabalhadora, mas agem pelo capitalismo e pela burguesia. Os partidos pequeno-burgueses são largamente ou predominantemente proletários em composição e burgueses pelo seu caráter político. Para provar isto basta se perguntar se a natureza de classe de algum governo já foi modificada pela ascensão ao gabinete de algum partido pequeno-burguês. A vitória do Partido Trabalhista britânico, por exemplo, não mudou o caráter de classe do governo de burguês para pequeno-burguês.

O MNR não é um partido pequeno-burguês nesse sentido. Ele não é um partido operário, ele não reivindica representar a classe trabalhadora ou advoga o socialismo. O seu programa é típico de um partido nacionalista burguês em um país atrasado. Ele reivindica falar em nome de todo o povo; ele é pela paz e prosperidade. A concepção do POR é de que como o capital nativo é muito fraco e muito reacionário (aliado com o imperialismo), e porque o MNR diz tentar cumprir a revolução nacional burguesa, mas não é um partido da classe trabalhadora, então ele representa a pequeno-burguesia e é um partido pequeno-burguês.

Para encontrar um precedente para tal concepção de um partido pequeno-burguês – um partido que representa a pequeno-burguesia e luta contra a burguesia pela revolução burguesa – nós teríamos que retornar aos escritos bolcheviques antes de outubro. Essa é a concepção defendida por Lenin em 1903 como prognóstico para a revolução russa. A ditadura democrática do proletariado e do campesinato seria, de acordo com Lenin, dirigida por um partido camponês e apoiada, talvez na forma de um governo de coalizão, pelo partido proletário.

Para fazer justiça a Lenin deve-se acrescentar que ele não concebeu tal governo como um governo “pequeno-burguês” intermediário, mas como um que iria permanecer nos limites do capitalismo, removendo os vestígios do feudalismo, cimentar o capitalismo e dessa forma fortalecer a classe burguesa. Isso seria um governo de transição, não de transição para o socialismo, mas de transição do feudalismo para uma república democrático-burguesa. As Teses de Abril de Lenin e depois a revolução de outubro marcam a rejeição definitiva de um partido pequeno-burguês, um partido que não é nem proletário nem burguês. Daí em diante, todos os marxistas aceitaram a teoria da revolução permanente, defendida por Trotsky em 1903. De acordo com essa teoria, o governo que realiza a revolução democrático-burguesa não pode permanecer nos limites do capitalismo; ele deve começar a transformação socialista. Mas esse governo não pode ser um “governo camponês” nem de um partido “pequeno-burguês”; deve ser um governo animado pelo partido do proletariado.

Stalin traiu a segunda revolução chinesa usando como pretexto para sua política menchevique uma vulgarização da concepção de Lenin de ditadura democrática. Não é à toa que Mike Martell, um líder dos pablistas norte-americanos, defende a linha do POR (verbalmente, é claro) ao dizer que a teoria de Lenin de ditadura democrática não foi completamente refutada. Também não é à toa que Murray Weiss, ao defender a linha pablista sobre um caráter intermediário do governo de Mao (verbalmente, é claro) se apropriou do que ele afirmou que era a crença de Lenin, em 1903, sobre a possibilidade de um governo transitório, pequeno-burguês. O POR, enquanto diz apoiar a teoria da Revolução Permanente, acredita que um partido “pequeno-burguês” pode ser reformado e seu governo se transformar em um governo de trabalhadores e camponeses, uma “etapa de transição em direção à ditadura do proletariado”.

“A linha em ziguezague entre o imperialismo e proletariado, que caracteriza a condução do governo”, diz o POR em sua resolução, “não permite que ele planeje suas ações e faz com que ele caia em um empirismo disforme, fadado a dar respostas isoladas e improvisadas aos problemas que se apresentam. Assim, o observador percebe que a política do governo é caracterizada por uma falta de consistência e o raciocínio dos líderes por uma total ausência de coerência e doutrina unitária”.

Isso, é claro, é uma característica de todo pensamento burguês e pequeno-burguês. Seria, portanto, a característica principal das atividades de um “governo pequeno-burguês”? Não. As atividades dos políticos pequeno-burgueses, por mais inconsistentes que pareçam ser para si mesmos e para terceiros, tem uma consistência que os marxistas podem desvendar. Elas são governadas por leis tão completamente quanto são as ações dos corpos físicos ou dos elementos químicos, que não tem pensamentos quaisquer. Os marxistas podem ver a consistência em ações aparentemente inconsistentes dos políticos pequeno-burgueses. Os marxistas podem ver que, não importa como eles se enxerguem, na verdade servem aos interesses da burguesia.

A verdadeira questão do poder

A concepção de que o MNR e seu governo são pequeno-burgueses é uma traição à revolução boliviana. Ela implica que o MNR e seu governo não são fundamentalmente inimigos da classe trabalhadora, que eles podem ser reformados. Não alertar a classe trabalhadora de que esse governo vai esmaga-la se ele puder é deixar os trabalhadores politicamente desarmados e indefesos, esperando sentados para quando o inimigo estiver pronto para atacar.

Como nós podemos saber o caráter do MNR? Antes de tudo, nós podemos estudar o seu passado, especialmente quando ele teve o poder de Estado. O MNR de Paz Estenssoro é o MNR de Villaroel. Estenssoro foi o vice-presidente de Villaroel. Villaroel suprimiu a classe trabalhadora e executou estudantes em protesto. Ele foi enforcado em um poste em um levante parcialmente liderado pelos stalinistas. O MNR estava tão exposto como inimigo da classe trabalhadora que nas eleições de junho de 1949, Lechín, cabeça da Federação dos Mineiros, recusou a indicação para vice-presidente e, ao invés disso, fez um bloco eleitoral com o POR. Essa eleição mostrou que o MNR, apesar de ganhar uma maioria de votos, já estava desacreditado com a vanguarda do proletariado. Os trotskistas e a Federação dos Mineiros elegeram quatro deputados cada um. Então veio uma ditadura militar de três anos, que naturalmente fortaleceu as ilusões democráticas entre as massas.

Entretanto, durante a revolução de abril de 1952 aconteceu um incidente que indicou que o MNR não tem a confiança da classe trabalhadora. O MNR apelou aos trabalhadores por apoio no levante. Os trabalhadores têxteis exigiram como condição para seu apoio que dois líderes sindicais fossem aceitos no novo governo. A demanda foi aceita e os trabalhadores apoiaram o levante. Guillermo Lora, que deu esses detalhes em uma entrevista que foi impressa no jornal em maio de 1952, não disse se o POR apoiou ou não essa demanda; mas o fato de que o POR nunca criticou a presença de líderes sindicais no gabinete indica que sim.

No decorrer do levante, o exército e a polícia foram desarmados. Os trabalhadores, liderados por Lechín e pelo POR, possuíam dez mil rifles e metralhadoras, todas as armas do país. O que o governo fez? Ele procedeu para reorganizar o exército e a polícia e para rearmá-los com armas novas e mais modernas. Então ele começou a cuidadosamente tomar medidas para desarmar o proletariado. E isso é a medida do seu caráter burguês.

O Estado é a força armada a serviço de uma classe dominante. Permitir ao governo reconstruir o corpo especial de homens armados é colocar o destino da revolução nas mãos da burguesia, o seu inimigo mortal. Apenas mantendo seu destino em suas próprias mãos, impedindo a reconstrução do corpo especial de homens armados, mantendo o Estado como o povo em armas, pode a classe trabalhadora proteger a si e à sua revolução. O POR deveria ter alertado que aqueles que reconstruíram a força policial e o exército estão preparando uma guerra civil contra os trabalhadores e camponeses.

Isso não é o mesmo que propor a derrubada do governo do MNR. Mas é uma exposição do seu caráter burguês: se o MNR fosse realmente aliado dos trabalhadores e camponeses, se ele fosse levar adiante a revolução, ele não teria necessidade de corpos especiais de homens armados, ele poderia se basear no povo em armas. A sua “traição” (não uma traição de verdade, já que ele apenas agiu de acordo com o seu verdadeiro caráter de classe) data do momento em que ele começou a restabelecer o exército e a polícia – ou seja, do momento em que assumiu o poder. A traição de Lechín e dos dirigentes sindicais data da sua falha em se opor à reconstrução do Estado burguês.

O POR não expôs a natureza burguesa do governo; ele não criticou a traição dos dirigentes sindicais. Ele passou completamente por cima da questão da reconstrução das forças armadas do inimigo de classe. Na resolução política da Décima Conferência Nacional citada acima não há sequer uma palavra sobre essa questão, nenhum alerta contra a reconstrução do exército contrarrevolucionário e da força de polícia; literalmente nem uma palavra sobre a questão militar como uma verdadeira questão de poder. O POR obviamente acredita que questões de poder são decididas não pela força, mas por substituições e manobras nos altos círculos governamentais.

O programa de transição trotskista foi totalmente ignorado. E esse programa foi elaborado precisamente para uma situação revolucionária como a que existe na Bolívia. Seguindo esse programa, o POR poderia ter exigido que a defesa do país e da ordem interna fosse confiada não a corpos especiais de homens armados, mas às milícias operárias, que elas fossem armadas com as mais modernas armas, incluindo as pesadas, e treinadas sob controle das organizações de trabalhadores e camponeses; e que os oficiais fossem escolhidos pelos trabalhadores e camponeses. Não há nem sombra dessas demandas na resolução política nem em nenhuma das edições de Lucha Obrera em 1953.

Lucha Obrera não pode, entretanto, ignorar completamente a questão militar; e o que diz é um tremendo suplemento à sua recusa em reconhecer o programa de transição. Por volta de agosto de 1953, o governo foi tão longe a ponto de estabelecer uma academia militar para treinar uma casta de oficiais para seu exército contrarrevolucionário. O número 43 de Lucha Obrera (o mesmo número que tinha o apelo ao presidente) protestou em um artigo intitulado “Academia Militar, Perigo para a Revolução”.

“A ala direita reacionária”, diz o artigo, “deseja desesperadamente criar uma força armada na qual possa se apoiar contra o avanço dos sindicatos. Essa é a missão que recebeu a academia militar reaberta, que vai ser um bastião da contrarrevolução para os militaristas pequeno-burgueses. A única força que pode destruir a conspiração contrarrevolucionária são as massas armadas.”

“Sem dúvida”, continua o artigo, “a Revolução vai atingir a construção de um exército regular, mas isso vai ocorrer quando os trabalhadores e camponeses organizarem seu próprio governo, sem qualquer subterfúgio que permita uma infiltração contrarrevolucionária. O sentimento de classe dos trabalhadores não deveria permitir a organização de qualquer força militar enquanto todo poder não estiver em suas mãos. Apenas um Governo de Operários e Camponeses pode organizar uma verdadeira força militar verdadeiramente proletária e revolucionária. No meio tempo, é um dever revolucionário inescapável fortalecer as milícias sindicais em cada fábrica, cada mina, e prepara-las para quaisquer repressões que utilizarem como seu instrumento a academia militar.”

Aqui está uma renúncia aberta ao programa de transição, da política militar proletária. Essa é uma política completamente irrealista e impraticável, uma política que simplesmente não pode ser realizada pelo partido, e que é incapaz de convencer alguém. Nós não devemos permitir ao governo organizar nenhum exército enquanto o poder não estiver em nossas mãos? Quem e o que, então, vão defender o país no caso de o imperialismo ianque ser bem sucedido em provocar um ataque militar por parte de um dos seus satélites? Um exército de prontidão é absolutamente necessário. As milícias sindicais não são suficientes. Ninguém pode ser convencido, muito menos os militantes revolucionários, de que não pode haver exército “no meio tempo”. É por isso que o governo é capaz de ganhar tão facilmente uma vitória política e construir seu exército (um exército contrarrevolucionário) sem oposição. Porque a alternativa concreta a um exército contrarrevolucionário não pode ser, como reivindica o POR, exército nenhum, mas sim um exército revolucionário.

E não há razão no mundo pela qual essa alternativa deva esperar até que “todo o poder esteja em nossas mãos”. Se for possível mobilizar pressão de massa suficiente para forçar o governo a construir tal exército revolucionário (ao armar e treinar os trabalhadores sob controle sindical) então o poder estará em nossas mãos. Se, como é infinitamente mais provável, o governo resista a qualquer pressão, o seu caráter contrarrevolucionário estará exposto e toda a necessidade de derrubá-lo se tornará mais clara. É para isso que serve o programa de transição.

O POR, ao invés de propor a alternativa realista do programa de transição, vai esperar até que “todo o poder esteja em nossas mãos” por nomeação do mesmo presidente responsável pela reconstrução do exército contrarrevolucionário. Essa é a política de observar de forma tranquila enquanto o machado está sendo afiado e então esperar pelo seu golpe.

Inocentes pegos desprevenidos

Quem, então, é responsável pela traição da revolução? Quem é responsável pelo fato de que os trabalhadores e camponeses tenham caído na apatia? O MNR simplesmente cumpre a sua tarefa assumida – salvar o capitalismo na Bolívia. Os líderes sindicais colaboraram completamente para salvar o capitalismo. Eles entraram no governo no começo e permaneceram lá desde então. Eles deram um consentimento silencioso para a reconstrução das forças armadas contrarrevolucionárias e para a supressão do POR. Eles permitiram que a milícia operária caísse em decadência, como foi demonstrado pela insurreição fascista de 9 de novembro de 1953. A Falange, um grupo comparativamente menor liderado pelos oficiais do exército de Paz Estenssoro, foi capaz de tomar Cochabamba, a segunda maior cidade da Bolívia e centro do movimento camponês. E mantê-la por seis horas antes que as milícias pudessem mobilizar força suficiente para expulsá-lo. O POR jamais criticou os dirigentes sindicais por entrar o permanecer no gabinete governamental. Ele jamais os criticou por seu silêncio sobre a reconstrução da contrarrevolução. Ele nem mesmo os criticou por seu silêncio diante da supressão do Lucha Obrera.

Guillermo Lora, escrevendo para a edição de março de “Que Fazer?”, reclama que o MNR está traindo as aspirações das massas. A traição, de acordo com Lora, consiste no fato de que o governo está contendo a revolução agrária, está revertendo as nacionalizações, jogou o fardo da crise econômica nas costas dos trabalhadores e camponeses, burocratizou a COB, a central sindical. É digno de nota que Lora nem mesmo mencione a supressão de Lucha Obrera! Isso, aparentemente, é tão pouco importante para ele quanto a supressão dos trotskistas chineses realizada por Pablo e Germain [Mandel].

Lora é consistente em acusar o MNR de traição, já que ele esperava mais dele. Mas quem e o que tornou essa traição possível? Sem o apoio dos dirigentes sindicais, Paz Estenssoro não poderia ter sido bem sucedido em seu papel contrarrevolucionário. Lora não faz menção de que os líderes sindicais permanecem até hoje no gabinete.

Lora, é claro, afirma ser superior em perspicácia do que um trabalhador na média:

“Para o grosso dos militantes [do MNR]”, escreve ele, “e para muitas outras pessoas, o ano de 1954 vai ser o ano da traição. Nós falamos da traição das aspirações das massas por parte da liderança pequeno-burguesa. Para nós será o ano da verificação de nossas conclusões teóricas sobre a capacidade de um partido pequeno-burguês realizar as tarefas revolucionárias e anti-imperialistas.”

O prognóstico de que o MNR iria suprimir a classe trabalhadora e o seu partido não foi feita pelo POR, porque o POR nunca considerou o MNR como um inimigo de classe. A “previsão” do POR que, de acordo com Lora, foi verificada, foi completamente inútil em preparar a si mesmo ou aos seus seguidores para uma luta contra o MNR. Tal luta, de fato, foi caracterizada por Lora em sua entrevista como uma “histeria”.

“Não se pode excluir a possibilidade”, disse Lora em sua entrevista, “de que a ala direita do governo, encontrando-se diante do aguçamento da luta de massas contra si, vá aliar-se com o imperialismo para esmagar o assim chamado ‘perigo’ comunista”.

Em uma carta comentando a entrevista de Lora (boletim interno [do SWP] de junho de 1952), eu escrevi o seguinte:

“Uma coisa parece clara: o camarada Lora não considera esse governo como um inimigo da classe trabalhadora e do POR. Essa formulação é errada, muito errada! Esse é um erro que, se de fato representa a posição do POR, pode ter consequências trágicas para a própria existência física dos quadros do partido trotskista boliviano. Este é o aviso que os líderes do POR devem dar à classe trabalhadora e acima de tudo aos seus próprios membros: Nós podemos esperar com absoluta certeza (não meramente ‘não excluir a possibilidade’) que o governo (e não apenas a sua ala direita) vai se aliar com o imperialismo e tentar esmagar o movimento de massas e antes de tudo a sua vanguarda, o POR.”

Na mesma carta:

“Eu acho que é incontestável que o atual governo boliviano é um governo burguês (eu nunca imaginei que alguém iria contestar isso!), cuja tarefa e objetivo é defender por todos os meios disponíveis os interesses da burguesia e do imperialismo. Ele irá, se puder, controlar e desarmar a classe operária, esmagar a sua vanguarda revolucionária e reconstruir a ditadura da burguesia, que foi abalada, mas não destruída, pela primeira fase da revolução. Esse governo é, portanto, o inimigo mortal dos trabalhadores e camponeses, e especialmente do partido marxista.”

E mais uma:

“Lechín é um simpatizante traidor e indigno de confiança. Lechín irá capitular de novo e de novo. Ele irá ajudar a desarmar os trabalhadores. Ele vai ajudar a tentar esmagar o POR, não importa o quanto este o apoie. E a traição de Lechín será facilitada se o POR continuar a apoiá-lo.”

Não é preciso ser um gênio, como pode ser visto, para fazer previsões corretas e úteis. Armados com a doutrina marxista e o método marxista, pessoas bastante comuns podem ver a direção dos eventos e se prepararem para eles com uma política revolucionária. Mas sem o método marxista, não há possibilidade nenhuma de prever e realizar uma política bem sucedida. O marxismo não é uma garantia da vitória, mas o revisionismo é uma garantia de derrota.

O maoísmo ganha um recruta

Alinhado com a capitulação do POR aos dirigentes sindicais reformistas estava a sua conciliação pró-stalinista. Nisso o POR se sai melhor do que Pablo. Nessa questão eu não posso fazer nada melhor do que reproduzir porções de uma carta que eu escrevi para Murray Weiss em 2 de janeiro de 1954 (nunca respondida, é claro):

“Eu fiquei feliz em ver você tomar conhecimento do ‘papel contrarrevolucionário dos stalinistas na Bolívia’ no jornal de 21 de dezembro. Entretanto, eu considero a sua breve referência totalmente inadequada, já que ela não é apoiada por quaisquer fatos… Você tem tais evidências, Murray? Eu, da minha parte, estaria muito interessado em vê-las… Eu me pergunto onde você conseguiu suas evidências sobre o papel contrarrevolucionário dos stalinistas bolivianos. Certamente não dos trotskistas bolivianos. Como você sem dúvida sabe, eles nunca criticam os stalinistas bolivianos, não em palavra impressa pelo menos.”

“Olhe as edições de Lucha Obrera, o jornal do POR. Em todas as edições de 1953, você vai encontrar apenas uma única referência aos stalinistas. É num anúncio de um racha no PIR stalinista e a formação do ‘Partido Comunista dos Trabalhadores e Camponeses’. Fora isso não há nenhuma outra referência aos stalinistas. Esse fato, tão incrível e tão esclarecedor, sem dúvida é do seu conhecimento. Como você explica isso? Alguém pediu ao POR uma explicação?”

“Mesmo quando Lucha Obrera menciona o assassinato de Trotsky, ele não diz quem foi responsável ou por qual razão (isso no número 43, a mesma edição que eu citei duas vezes). O artigo menciona o assassinato e lida com as contribuições de Trotsky – liderou a revolução russa, construiu o Exército Vermelho, elaborou a teoria da Revolução Permanente, e fundou a Quarta Internacional. Mas ele consegue omitir qualquer menção que seja ao tema dominante nos últimos dezessete anos de sua vida – a luta contra o stalinismo.

Lucha Obrera publicou dois artigos sobre a queda de Mossadegh – e nem mesmo um sussurro sobre a existência de um partido stalinista no Irã, muito menos de denúncia à sua traição. ‘A queda de Mossadegh’, diz Lucha Obrera, ‘é sem dúvida um triunfo do imperialismo britânico, mas é ao mesmo tempo um produto da sua política vacilante, que tentou limitar a revolução iraniana, virando suas costas para as aspirações das massas’. E Lucha Obrera quer dizer a ‘política vacilante’ não do Partido Tudeh [stalinista], o que já seria ruim o suficiente (ele nem sequer dá pista da existência de tal partido); ele fala da ‘política vacilante’ de Mossadegh.”

“ ‘A conversa pablista sobre a a ‘inadequação’ da política stalinista em agosto, ou da ‘falha dos stalinistas em projetar uma orientação revolucionária’ é falsa e desorientadora. É uma questão de traição calculada’. Isso é o que vocês dizem no jornal. O erro do POR ao fazer o mesmo que Pablo na forma como critica os stalinistas iranianos e, sobretudo, os bolivianos, também não é ‘falsa e desorientadora’?”

Por questão de precisão, eu devo fazer as seguintes reservas. Os números 38 e 39 de Lucha Obrera estão ausentes da minha coleção: portanto eu não posso afirmar ter examinado todas as edições de 1953. Também, eu encontrei outra referência aos stalinistas bolivianos – uma resposta às suas calúnias contra o POR no número 35 (março de 1953). Sobre o stalinismo a nível internacional, há um artigo traduzido do nosso jornal sobre o caso contra os médicos judeus no número 34 (fevereiro de 1953) e um pequeno item sobre a greve de Berlim no número 40 (julho) que relatou, de forma bastante estranha, que uma das demandas dos grevistas era a retirada do Exército Vermelho. Essas reservas não mudam a imagem da conciliação com o stalinismo.

O número 36 (abril de 1953) contém o seguinte elogio a Mao Tse-tung:

“Em Primeiro de Março o governo central chinês adotou uma lei eleitoral que é amplamente democrática e permite às forças revolucionárias esmagarem a reação. Plena democracia para os explorados e liquidação de todas as garantias dos reacionários, esse é o espírito da lei.”

“A nova lei estabelece que todos os chineses (homens e mulheres) com mais de 18 anos ‘com exceção dos contrarrevolucionários’ e antigos proprietários de terras que não tenham sido convertidos ao trabalho produtivo tem direito ao voto. Os analfabetos estão incluídos e votarão por sinal, erguendo suas mãos. O Partido Comunista Chinês e todas as outras organizações democráticas podem apresentar suas listas, conjuntas ou separadas. O eleitor vai reter o direito de votar por candidatos que não estejam em nenhuma lista.

“As eleições serão por representação proporcional. Um delegado para cada 800 mil habitantes de regiões não-proletárias. Os proletários vão eleger um delegado para cada 100 mil. Mao Tse-tung explica que a lei eleitoral reflete o papel dirigente da classe trabalhadora.”

“Como tem se visto, a lei eleitoral é plenamente democrática para os camponeses e proletários (forças fundamentais da revolução). Ela concretamente estabelece que o direito ao voto não pode ser exercido por contrarrevolucionários e latifundiários que não tenham se convertido à produção. Na China de Mao não há democracia para a reação.”

Esse item apareceu por volta do mesmo período em que o nosso jornal aqui imprimiu o apelo do Comitê Executivo Internacional contra as perseguições sofridas pelos trotskistas chineses. Durante o resto do ano, até ser suprimido, Lucha Obrera não teve uma palavra a dizer sobre esse assunto. Ele nem mesmo relatou as notícias aos seus leitores. E, de fato, por que deveria se importar? Se a revolução está tão bem liderada por Mao Tse-tung, então os trotskistas não são realmente “fugitivos de uma revolução” (como afirmava Pablo)? Como resultado dos eventos revolucionários do pós-guerra, o maoísmo encontrou representantes dentro da Quarta Internacional.

Isso não é uma questão acadêmica para o POR, já que envolve toda a questão da revolução colonial. Maoísmo é colaboração de classes, a ideia da possibilidade de uma “democracia popular” que não é um Estado nem burguês nem proletário, mas um governo de transição. O POR acredita na mesma possibilidade; ele acredita que o governo de Mao seja um governo intermediário. O POR tem muitas coisas bonitas a dizer sobre a Revolução Permanente. A sua verdadeira teoria, entretanto, é uma caricatura do trotskismo. A teoria da Revolução Permanente sustenta que as tarefas democrático-burguesas da revolução colonial só podem ser realizadas por um Estado operário; o POR sustenta que as tarefas socialistas só podem ser realizadas por um governo não-proletário.

O POR não está sozinho nisso, é claro. Ele encontra sua inspiração e apoio no pablismo, que é um dos nomes do maoísmo.

Poderia o maoísmo liderar uma revolução na Bolívia como ele fez na China? Enquanto isso não está absolutamente excluído, é extremamente improvável, muito mais do que era na China. “A revolução avança sob o chicote da contrarrevolução”, disse Marx sobre a revolução francesa de 1848; e essa observação empírica se transformou em uma lei geral. Diante de um poderoso inimigo de classe, a revolução só pode ser bem sucedida se liderada por uma liderança resoluta, completamente consciente, ou seja, o partido marxista; sob os golpes temperantes da contrarrevolução, a liderança vai se desenvolver, se tornar forte teórico e politicamente, e ganhar a confiança da classe trabalhadora.

Na China a classe dominante nativa era muito fraca e muito corrupta, privada do apoio efetivo do imperialismo, ela pôde ser derrubada por uma revolução fraca, contida e sabotada por uma liderança burocrática e colaboracionista de classe. Wall Street não vai permitir uma vitória tão fácil em nenhuma parte do seu império na América Latina, e ele vai ter muito mais poder, tanto político como econômico, para impedir isso do que ele teve na China.

Uma condição adicional foi necessária para o sucesso do maoísmo; a ausência de um partido marxista revolucionário de massas. Já que o maoísmo não é completamente revolucionário, enquanto liderava a revolução para a qual foi forçado pela fraqueza do seu inimigo de classe, ele deforma a revolução, ele expropria politicamente a classe operária.

A vitória do maoísmo resulta em um Estado operário deformado. A expropriação política da classe trabalhadora não pode acontecer de nenhuma outra forma a não ser esmagando a sua vanguarda com consciência de classe e o seu partido marxista. Mao deixou o grosso dessa tarefa para Chiang Kai-shek; esse é o significado do que o CEI chama delicadamente de “falta de coordenação” entre os levantes de trabalhadores em 1945-47 e o movimento camponês, que o Partido Comunista conteve; esse é o significado da perseguição dos trotskistas chineses que não são, como os pablistas vergonhosamente e maliciosamente os chamam, “fugitivos da revolução”, mas na verdade refugiados (se tiverem sorte) da contrarrevolução – a contrarrevolução stalinista que Mao também representa. Entre o maoísmo e o partido marxista não pode haver coexistência pacífica.

Maoísmo é incompatível com o marxismo. É por isso que o pablismo na Bolívia e em toda parte é uma traição ao marxismo e uma liquidação do partido.

Maoísmo dentro da Internacional

Foi objetado (verbalmente, é claro) que eu não critiquei Pablo, mas sim Lora e o POR, e que Lora está agora “do nosso lado”. Se Lora de fato está do lado do marxismo, isso não invalida a conclusão de que ele e o POR foram o instrumento através do qual Pablo traiu a revolução boliviana. Lora pode, é claro, repudiar a linha reformista que ele tem seguido. Isso seria de grande ajuda para rearmar a revolução boliviana, e só poderia ser bem-vindo. Mas se Lora for aceito como um trotskista ortodoxo com base em defender uma revolução na URSS enquanto é pelo reformismo na Bolívia, então a ortodoxia dos “trotskistas ortodoxos” é questionável, e eles dividiriam com Pablo o ônus da traição boliviana.

A luta contra o revisionismo pablista não pode ser confinada a palavras de ordem de “Nenhuma capitulação ao Stalinismo” e “Pelo direito do Partido de existir”. Pelos últimos dois anos o POR foi organizativamente independente enquanto capitulava politicamente ao governo burguês. Por quê? Porque o revisionismo do POR é em uma questão mais fundamental: a natureza de classe do Estado. E o revisionismo pablista como um todo também se baseia fundamentalmente na rejeição da posição marxista sobre a natureza de classe do Estado.

Antes do Terceiro Congresso Mundial, o camarada Cannon reconheceu o perigo. Em 1949, junto com a maioria do Comitê Nacional, ele rejeitou a posição defendida por Cochran e Hansen de que os antigos Estados burgueses da Europa Oriental haviam se transformado em Estados operários sem uma revolução prévia.

“Se você começa a brincar com a ideia de que a natureza de classe do Estado pode ser modificada por manipulações nos altos círculos”, disse o camarada Cannon, “você abre a porta para todos os tipos de revisão de teoria básica […] Isso só pode ser feito por uma revolução que é seguida por uma mudança fundamental nas relações de propriedade.”

Essa profecia foi completamente concretizada; entretanto o profeta prefere permanecer sem honra por sua profecia. Ele prefere combater algumas das manifestações do revisionismo que ele previu e ignorar a base sob a qual este se fundamenta.

Quando o Terceiro Congresso Mundial adotou a mesma posição que o camarada Cannon atacou tão fortemente, ele e todos os seus apoiadores se uniram para endossa-la de forma unânime. Eles aceitaram que os países do Leste Europeu teriam tido um “status intermediário” de 1945 a 1948; eles aceitaram o critério economicista de Pablo e Cochran sobre a natureza de classe do Estado; eles aceitaram a ideia de uma transformação social fundamental e de uma mudança na natureza de classe do Estado sem revolução. Eles não estavam felizes com essa posição; nenhum artigo sequer apareceu defendendo isso ou explicando isso.

Posteriormente eles também aceitaram a posição de Pablo de que a China não era um Estado operário nem burguês, mas um “governo operário e camponês” intermediário. Eles nunca defenderam essa posição tampouco – por escrito – e defenderam-na oralmente apenas quando eles precisaram: quando ficaram diante do ataque da tendência de Vern em Los Angeles. Murray Weiss e Myra Tanner mostraram então que essa posição só poderia ser defendida com o mais aberto e evidente revisionismo – tamanho revisionismo que eles não ousariam colocar por escrito. Eles também aceitaram a traição de Pablo na revolução boliviana, recusando-se também a defender isso por escrito e consentindo a um debate verbal – em Los Angeles – somente depois de muita hesitação e muitas mudanças de opinião.

Nos últimos quatro anos a linha política do movimento internacional esteve nas mãos de Pablo, com os “trotskistas ortodoxos” seguindo-o docilmente. Eles estavam, como disse Murray Weiss, “nas mãos de Pablo”. “Pelo direito do Partido de existir” e “Nenhuma capitulação ao Stalinismo” não podiam ser encontrados em lugar nenhum quando Pablo e Germain apresentaram sua posição maoísta sobre a China. Eles votaram por uma resolução que declarava:

“Ao colocar-se em matéria de doutrina no nível do marxismo-leninismo, ao afirmar que seu objetivo histórico é a criação de uma sociedade comunista sem classes, ao educar os seus quadros nesse espírito, assim como no espírito de devoção à URSS, o PC chinês apresenta de maneira geral as mesmas características que outros partidos stalinistas de massa dos países coloniais e semicoloniais.” (É por isso que o POR se recusa a criticar os stalinistas?).

Eles aceitaram a linha de “apoio crítico” ao governo de Mao, mesmo quando Germain mostrou que isso realmente significava solidariedade com o governo de Mao contra os trotskistas. Com uma brutalidade digna de um Stalin, mas sem precedentes no movimento trotskista, Germain declarou que a recusa em apoiar Mao, como apresentada no CEI pelo camarada Jacques era “contrarrevolucionária”. Nenhum membro da internacional ou de nenhum partido do movimento levantou a voz contra esse ato de brutalidade stalinista. Chamar a posição de Jacques de contrarrevolucionária significava que a diferença sobre dar ou não apoio crítico a Mao não era uma disputa terminológica; significava solidariedade com a polícia secreta contra todo pensamento independente, contra os trotskistas. Os camaradas que emitiram suspiros de choque por uma deserção muito mais insignificante, a de Grace Carlson, reagiram a isso com tranquilidade. Não apenas não houve protesto, mas também essa posição stalinista foi na verdade defendida por Max Geldman, um membro de liderança da maioria, em um debate. “Vocês não tem confiança”, disse Geldman, “vocês desconfiam do CEI”. Isso foi em abril de 1953.

Sim, Vern e Ryan, e os companheiros que apoiam sua posição, não confiavam no CEI dirigido por Pablo e Germain; eles estavam mais do que desconfiados da sua linha revisionista. E eles tinham muito menos conhecimento concreto do que Geldman e o resto do Comitê Nacional deveriam ter. Nós não sabíamos o que Peng [o líder da seção chinesa emigrada] sabia. Mas o marxismo é um guia melhor para pessoas e eventos do que o empirismo ou a fé. Murray Weiss tinha fé em Pablo. “Como vocês sabem”, perguntou ele em um debate com Denis Vern em maio de 1953, “que o Partido Comunista Chinês não pode se tornar um partido marxista?”.

“Eu estou disposto”, respondeu o companheiro Vern, “a afirmar a total validade da minha posição sobre isso: quando a pressão da guerra da Coréia crescer, o governo vai, ao invés de liberar o poder proletário como dizem você e Germain, se tornar ainda mais burocratizado; vai intensificar sua repressão contra os trotskistas.”

Por que eles ficam em silêncio?

Agora os camaradas estão indignados pela zombaria pablista de que os trotskistas chineses são “fugitivos de uma revolução”. Mas indignação não é uma resposta para uma posição política. Os pablistas estão confiantes; eles acreditam que o maoísmo é ou pode vir a ser completamente revolucionário. O que dizem os seus oponentes? Nada. Eles ainda retêm formalmente a posição pablista. Todas as tentativas de levantar a questão encontram um silêncio retumbante. O camarada Stein fez a tentativa de abordar a questão em um documento interno do Núcleo da Maioria, mas ele foi rejeitado e desde então manteve o silêncio. A resolução do Comitê Nacional criticando a linha de Pablo sobre o stalinismo (“Contra o Revisionismo Pablista”, Fourth International, setembro-outubro de 1953) retém a posição de Pablo sobre a China.

Por que eles permaneceram em silêncio? Por que eles permanecem em silêncio, como diz o Comitê Internacional, sobre problemas deixados em aberto, embaçados ou falsificados pela liderança pablista durante “três anos”? Será porque, como nos disseram insipidamente, eles não queriam “dignificar” a tendência Vern respondendo às suas críticas? Mas as questões sobre as quais eles mantêm tal silêncio teimoso envolvem a vida e a morte do movimento! Será o pequeno grupo Vern tão poderoso que ele pode travar as mentes e as máquinas de escrever da liderança do partido em tais questões vitais?

Não. Os “trotskistas ortodoxos” tem uma razão muito mais importante para terem se omitido diante de Pablo. Enquanto Pablo analisou e respondeu a importantes problemas conforme eles surgiam – de uma forma empírica e revisionista – os seus oponentes foram incapazes de dar qualquer resposta a qualquer desses problemas. Tanto Pablo como seus oponentes descobriram que não podem fazer a realidade se adequar à sua doutrina; no aforismo usado por ambos Harry Frankel e Max Geldman, “a teoria é cinza e a vida é verde”. Pablo vira suas costas para a doutrina e concentra seus olhos de uma forma empírica e impressionista na “nova realidade mundial”. Os seus oponentes viram suas costas para os eventos e mentem sua doutrina como um dogma revelado.

O stalinismo não pode ser reformado – diz o camarada Cannon em declarações públicas. Então o PC chinês, que certamente era stalinista, foi ou não reformado? Nenhuma resposta.

A burocracia soviética deve ser derrubada por uma revolução. E quanto à burocracia chinesa? Recusar a dar apoio político a ela ainda é contrarrevolucionário? Nenhuma resposta.

A natureza de classe do Estado, diz o camarada Cannon, não pode ser transformada sem uma revolução. E as mudanças que aconteceram na Europa Oriental? Quando e como esses Estados foram transformados de burgueses a proletários? Sobre essa questão, depois de votar pela posição de Pablo, eles nem a defenderam (quer dizer, por escrito) e nem a combateram.

E eles não responderam a nenhuma pergunta sobre a revolução boliviana.

Será que não é possível encarar a realidade do pós-guerra e ao mesmo tempo manter e defender a doutrina marxista? Claro que sim. Ambos o empirismo de Pablo e o abstencionismo de Cannon tem sua base comum na rejeição do marxismo sobre a natureza do Estado; e isso tem sua origem na questão russa. A crença de que a burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo, que é a origem dos erros de ambos os lados, significa a rejeição do trotskismo sobre a natureza do Estado soviético.

Quando uma organização da classe trabalhadora, não importa quão burocratizada, leva adiante a luta contra a classe capitalista, não importa quão inadequadamente, isso é uma luta de classe. Se o Estado soviético é um Estado operário, então a luta contra a Alemanha Nazista foi uma luta de classe. Uma guerra de classe é uma luta de classe no nível do poder de Estado – ou seja, guerra-revolução ou guerra-contrarrevolução. Esse pensamento, que foi hesitantemente e equivocadamente aceito com relação a uma possível Terceira Guerra Mundial, foi rejeitado quando diz respeito à Segunda. No entanto, essa é a única posição que pode trazer todos os eventos do pós-guerra, toda a “nova realidade”, em conformidade com a teoria marxista. Com a vitória sobre os alemães, o Exército Vermelho foi deixado como o único verdadeiro poder – o único poder de Estado – na Europa Oriental. Essa foi a revolução, a transferência de poder de uma classe para outra. Sem essa transferência de poder, as subsequentes transformações econômicas e sociais teriam sido impossíveis.

A revolução é ignorada pela Internacional. A burocracia stalinista teria sido contrarrevolucionária de cabo a rabo e, portanto, não poderia realizar a revolução. Os Estados da Europa Oriental não poderiam ser Estados operários, concluiu a Internacional; eles ainda devem ser Estados burgueses – Estados burgueses degenerados, no caminho da assimilação estrutural pela União Soviética. Mas o Terceiro Congresso Mundial não podia ignorar as transformações econômicas e sociais fundamentais que haviam ocorrido; eles devem ser Estados operários. Como eles surgiram? Estados burgueses no caminho da assimilação estrutural acabaram virando Estados com um “status intermediário”, Estados de transição, a traição do marxismo sobre a questão do Estado. Os “trotskistas ortodoxos” assentiram à traição teórica porque eles não tinham saída. E eles ainda mantem o seu erro original, a causa da sua rendição a Pablo.

A burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo e até a medula? Os “velhos trotskistas” não conseguem nenhum apoio de Trotsky nesse ponto. Eles só podem encontrar uma citação que pode de alguma forma parecer apoiar os seus pontos de vista. E essa frase é parte de uma passagem em que Trotsky explica a Shachtman que o Estado soviético é contrarrevolucionário, mas ainda assim um Estado operário. Os camaradas têm suas próprias boas razões para chamar a tendência Vern de “talmúdica” ou “escolástica”. Admitindo que a burocracia cumpre algum papel progressivo, o camarada Weiss aponta que às vezes políticos burgueses também fazem algumas coisas progressivas sem mudar seu caráter completamente reacionário.

Isso mostra a completa falta de preocupação com relação a distinções de classe. Construir estradas, financiar pesquisa científica, etc. pode ser progressivo no sentido geral da luta pelo controle da natureza; mas para os marxistas, os termos progressivo e reacionário tem um significado político apenas em relação à luta de classes. Um capitalista que faz uma concessão em resposta a uma luta não é mais progressista do que aquele que resiste; o efeito da resistência do capitalista pode ser até mais progressivo no caso de isso forçar os trabalhadores a se organizarem e a lutarem de forma mais combativa. Enquanto um capitalista que faz as concessões mais liberais não está fazendo nada de progressivo, um líder sindical que organize um piquete está. E a atividade da burocracia soviética em organizar a luta contra a contrarrevolução de Hitler foi profundamente progressiva. Se a burocracia tivesse desertado (e muitos burocratas o fizeram) a União Soviética teria sido conquistada. Pode-se objetar que a ausência de uma alternativa, uma liderança marxista, foi totalmente devido à supressão feroz da burocracia – e isso é a pura verdade. Mas isso meramente serve para mostrar o papel dual da burocracia, ao mesmo tempo progressiva e reacionária.

Se o Estado soviético é de fato um Estado operário, então como pode o administrador do Estado, confrontado não apenas com uma classe trabalhadora rebelde, mas também com uma feroz burguesia contrarrevolucionária, ser de cabo a rabo, e até a medula, contrarrevolucionário? Essa posição não pode ser sustentada de forma consistente; os apoiadores do Comitê Internacional ainda não podem negar as mudanças fundamentais na Europa Oriental. Eles insistem que as mudanças foram realizadas por “ação militar-burocrática” e que os stalinistas chineses não são mais stalinistas. Como isso prova a natureza supostamente completamente contrarrevolucionária da burocracia soviética, isso ninguém até agora o demonstrou.

A escolha não pode ser ignorada: ou abandonem a teoria de que a burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo ou então abandonem de forma completa e aberta o marxismo sobre a questão do Estado. A escolha terá de ser feita. O silêncio terá de ser quebrado. Até que esse momento chegue, a luta contra o pablismo não pode ser levada até o fim.

Acima de tudo, e mais importante que tudo, o silencio a respeito da revolução boliviana deve ser quebrado. A traição de Pablo deve ser exposta e combatida. Se o silêncio de Pablo sobre a Bolívia é um sinal de seu abandono do marxismo enquanto ciência, o que devemos dizer do silêncio de seus oponentes? Permanecer em silêncio é proteger os traidores e compartilhar da sua traição.

Nós precisamos de solidariedade internacional

Não apenas não houve discussão sobre a revolução boliviana, como se nós não tivéssemos nada a aprender com ela e nenhuma ajuda política a oferecer; a revolução boliviana esteve quase completamente ausente da atividade de propaganda do partido.

Quando a revolução começou, dois anos atrás, o jornal respondeu rapidamente e publicou uma boa quantidade de material nas primeiras semanas. George Breitman escreveu muitos bons artigos que mostram que ele sabe qual deveria ter sido uma política revolucionária. Ele até mesmo chamou o governo do MNR de um governo burguês, e escreveu que “seria melhor se presença de Lechín no gabinete fosse curta”.

Mas depois das primeiras semanas, o jornal só publicou algumas referências ocasionais à revolução boliviana. Breitman aparentemente perdeu o interesse até que, cutucado pela supressão de Lucha Obrera, ele escreveu um pequeno artigo no qual ele novamente chamou o governo do MNR de “um governo capitalista”. Mesmo quando Labor Action[o jornal de Shachtman] acusou os líderes do POR de terem aceitado postos nas comissões governamentais, nenhuma resposta foi antecipada. Mesmo uma carta escrita pelo Secretário do POR negando as acusações foi rejeitada para publicação. (Nesse ponto, eu admito uma circunstância atenuante: a negação do POR pareceu ser meramente diplomática. O secretário do POR negou estar no governo, mas não disse nada sobre participar das comissões. Uma carta aberta para o Labor Action, prometida pelo secretário do POR, jamais apareceu.)

Desde as primeiras semanas, o jornal imitou a linha do POR, chamando o governo do MNR de pequeno-burguês, apontando para a presença de dirigentes sindicais no gabinete como prova do seu caráter progressivo, e depois acusando o MNR de trair a revolução. A última vez, até o fechamento dessa carta, que foi feita menção da revolução boliviana foi em 28 de dezembro [de 1953]. Foi um editorial lidando com a supressão de Lucha Obrera. O editorial denunciou os covardes dirigentes sindicais pelo seu silêncio sobre a Bolívia! Mas o jornal conseguiu uma vitória. Depois de dois editoriais chamando pelo reconhecimento do governo do MNR, sem quaisquer protestos de massa, sem reuniões públicas ou petições, o Departamento de Estado foi convencido. Os dois editoriais posteriores protestando contra a supressão de Lucha Obrera não tiveram o mesmo efeito.

O partido não fez nada para popularizar, defender ou explicar a revolução boliviana para o público. Em dois anos só houve uma reunião pública sobre a Bolívia; não uma reunião por filial, mas uma reunião para todo o partido! Ela aconteceu em Nova Iorque, e Bert Cochran foi o palestrante. A revolução boliviana é algumas vezes mencionada em orações de fim de semana, a maior parte das vezes nem isso. Só houve uma discussão de filial sobre a revolução boliviana em todo o partido, um debate em Los Angeles; e ele aconteceu seis meses depois de ter sido requisitado. “Vocês tem uma fixação na Bolívia”, me disseram, “nós estamos ocupados com a revolução americana”. Isso partiu do organizador da filial de Los Angeles, com a sua enorme população latina!

Essa negligência vergonhosa do dever elementar de solidariedade internacional está em contradição flagrante com as diretivas dadas pelo Congresso de Fundação da Quarta Internacional:

“Da mesma forma que as seções latino-americanas da Quarta Internacional devem popularizar em sua imprensa e agitação as lutas dos movimentos revolucionários e operários americanos contra o inimigo comum, sua seção nos EUA deve devotar mais tempo e energia em seu trabalho de agitação e propaganda para explicar ao proletariado norte-americano as posições e lutas dos países latino-americanos e de seus movimentos operários. Toda ação do imperialismo americano deve ser exposta na imprensa e em manifestações e, em determinadas situações, a seção dos EUA deve tentar organizar movimentos de massas para protestar contra atividades específicas do imperialismo norte-americano.”

“Além disso, a seção norte-americana, pela utilização da literatura em língua espanhola da Quarta Internacional, deve buscar organizar, mesmo que numa escala modesta de início, as forças militantes revolucionárias entre os milhões de trabalhadores filipinos, mexicanos, caribenhos e das Américas Central e do Sul residentes nos Estados Unidos, duplamente explorados, não apenas com o objetivo de uni-los ao movimento operário nos EUA, mas também com o objetivo de aproximar-se dos movimentos revolucionários e operários em seus países de origem. Esta tarefa será desenvolvida sob a direção do Secretariado Americano da Quarta Internacional, que publicará a literatura necessária e organizará o trabalho para este objetivo.”

Devido a uma legislação reacionária, a filiação internacional está impedida. Mas nenhuma lei capitalista pode impedir trotskistas ortodoxos genuínos de agir como internacionalistas. A revolução boliviana deveria ter para nós ao menos a mesma importância que uma greve em Minneapolis ou Detroit.

Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (2)

Tendência Vern-Ryan

A Colaboração de Classes Ganha um Recruta

[Publicamos a seguir o segundo de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]


Sam Ryan, de Los Angeles
4 de Agosto de 1953

“Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário.”
― Lenin

1. O QUE NÓS SABEMOS SOBRE A BOLÍVIA

Faz agora dezesseis meses desde que a revolução boliviana começou. Faz dezesseis meses que essa pequena nação, de três e meio milhões de pessoas, apresentou para a Quarta Internacional a oportunidade de provar que o marxismo – trotskismo – pode conquistar as massas e dessa forma leva-las à vitória.

Considerando o fato de que um partido trotskista de massas, o POR, está envolvido em uma situação revolucionária, nós deveríamos esperar ter nesse período uma leva de informações da Bolívia, tanta informação que iria enriquecer imensuravelmente, aprofundar e concretizar a nossa teoria marxista.

Como tem ido o POR na tarefa de ganhar dos traidores do movimento operário, do naipe de Lechín, as massas que seguem o MNR?

Como o POR lidou com as várias questões concretas que surgem com os vários estágios da luta?

Quem controla a COB? Qual é a força de Lechín? E a do POR? E a dos stalinistas? Como as suas forças variaram no curso dos últimos dezesseis meses?

E quanto aos altos e baixos nas lutas grevistas? Como variou com isso a força do POR? Greves políticas têm aumentado em intensidade? Se não, por quê? Qual tem sido o papel do POR? E o de Lechín?

Surgiu alguma disputa dentro do POR? Ou o POR permaneceu, numa situação revolucionária, completamente monolítico?

Essas são apenas algumas da muitas perguntas para as quais nós já deveríamos agora ter um rico tesouro de informações.

Na verdade, nós não recebemos quase nenhuma informação prática sobre a situação na Bolívia – a única revolução em que os trotskistas estão desempenhando um papel importante.

Não é verdade, entretanto, que nós não saibamos nada sobre o que está acontecendo na Bolívia. Isso porque no mês passado relatos detalhados têm circulado sobre as atividades do POR. De acordo com esses relatos, recebidos de fontes não-trotskistas, o POR está aceitando posições no aparelho governamental; Guillermo Lora, ex-secretário do partido, foi indicado para o Ministério da Estabilização; o camarada Moller, atual secretário do POR, é diretor do Banco de Reserva dos Trabalhadores, que é controlado por Juan Lechín, um membro do gabinete; Alayo Mercado, outro líder do POR, é membro da comissão agrária. Diante desses relatos, o silêncio do Comitê Político do SWP e do Secretariado Internacional deveria causar grande preocupação aos camaradas.

Quem cala consente. E aqueles que permanecem em silêncio diante de uma política que desarma politicamente os trabalhadores e camponeses diante dos seus inimigos de classe compartilham da responsabilidade pelos resultados inevitáveis.

Os relatos de coalicionismo e colaboração de classes por parte do POR não caem como um raio de um céu azul. É essa a direção da política adotada pelo POR, com o encorajamento dos camaradas de liderança da Internacional, desde a revolução de 9 abril de 1952.

Em maio de 1952 o jornal publicou uma entrevista do camarada Lora. Eu escrevi uma carta para o Comitê Político, que foi impressa no Boletim Interno de junho de 1952, expressando um agudo desacordo com a linha política de Lora. Eu afirmei então que eu achava que era uma linha conciliacionista e de colaboração de classes, ao invés da linha do marxismo revolucionário; e eu perguntei se essa era mesmo a linha do POR. O Comitê Político respondeu que isso era “obviamente uma diferença de opinião entre você e o camarada Lora” e ele, o Comitê Político, não estava em posição de participar da discussão.

Agora nós temos a posição oficial do POR, na forma de um artigo não-assinado da nossa revista (“Um Ano da Revolução Boliviana” [Fourth International, janeiro-fevereiro de 1953]). Esse artigo, que segue a linha de Lora, estabelece inequivocamente a base não para liderar a revolução proletária, mas para fortalecer o Estado burguês. Imediatamente depois de ler o artigo, eu preparei uma crítica, com o objetivo de leva-la ao Boletim Interno. Mas ao ouvir sobre os verdadeiros passos que o POR tem tomado em direção a entrar no governo, eu decidi me conter de enviar meu artigo, esperando que fossem desmentidos, ou por uma explicação, ou por uma crítica, fosse pelo Comitê Político ou pelo Secretariado Internacional. Entretanto, nenhum comentário foi anunciado até o momento; e isso é por si só um grave indício não apenas da política do POR, mas também da linha do Comitê Político e do Secretariado Internacional.

2. UMA REVOLUÇÃO “CLÁSSICA” – UMA POLÍTICA NADA CLÁSSICA

Desde a Segunda Guerra Mundial, a Internacional tem tido o hábito de encontrar situações “excepcionais” nas quais, “excepcionalmente”, as leis “clássicas” e tradições do leninismo não se aplicariam. Na Europa Oriental, a negação do caráter de guerra-revolução na guerra entre União Soviética e Alemanha levou a Internacional a ver o estabelecimento de Estados operários sem revolução proletária. Na China, a Internacional vê um Estado transitório, nem burguês nem proletário, batizado de poder dual e de “governo operário e camponês”. Além disso, a Internacional vê o partido stalinista chinês sendo reformado em um partido que ela espera que vai liderar a “demonstração do poder proletário”; o papel do trotskismo é reduzido desde a luta pelo poder para um de “empurrar” o PC e as massas. Para essas situações “excepcionais”, a Internacional tem adotado os conceitos e métodos do reformismo. Mas uma vez embarcada em um curso reformista, ela não pode voltar atrás; não é nem um pouco difícil passar a enxergar todas as situações como “excepcionais”.

Mas o artigo (“Um Ano da Revolução Boliviana”) aponta que aqui nós não temos nenhuma situação excepcional. Ele vê a semelhança próxima do curso da revolução boliviana com o da revolução russa. Alguém poderia pensar que muito poderia ser aprendido estudando a estratégia e as táticas – acima de tudo as concepções – dos bolcheviques no período de fevereiro a outubro.

A linha política do POR, entretanto, não é a de Lenin, mas sim a dos seus oponentes colaboracionistas de classes, Kamenev e Zinoviev. Os últimos, de fato, não foram tão longe quanto o POR: eles não aceitaram postos no governo burguês.

“Se essa política (de Kamenev e Zinoviev) tivesse prevalecido”, diz Trotsky, “o desenvolvimento da revolução teria passado por cima da cabeça do nosso partido e, no fim, a insurreição das massas operárias e camponesas teria acontecido sem a liderança do partido; em outras palavras, nós teríamos tido a repetição dos dias de julho em uma escala colossal, ou seja, dessa vez não como um episódio, mas como uma catástrofe. É perfeitamente óbvio que a consequência imediata de tal catástrofe teria sido a destruição física do nosso partido. Isso nos oferece uma medida de quão profundas eram nossas diferenças de opinião”.

A mesma medida deveria nos indicar a penalidade extremamente séria na qual nosso movimento vai incorrer como resultado de uma política errada. Deixe-me citar os três parágrafos centrais do artigo na revista:

“O POR começou concedendo justificadamente um apoio crítico ao governo do MNR. Isto é, ele deixou de lado a agitação da palavra de ordem de ‘abaixo o governo’; ele deu ao governo apoio crítico contra os ataques do imperialismo e da reação, e ele apoiou todas as medidas progressivas. Mas ao mesmo tempo ele evitou qualquer tipo de expressão de confiança no governo. Pelo contrário, ele propagou a atividade revolucionária e a organização independente das massas tanto quanto pôde.”

“O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”

“O POR têm aplicado essa atitude flexível que exige uma ênfase cuidadosamente considerada a cada momento, uma que não seja nem confusa e nem sectária, e ao aplicar essa atitude, o POR está demonstrando uma formidável maturidade política. O POR adotou uma atitude de crítica construtiva em relação à base proletária e popular do MNR com o objetivo de facilitar uma progressiva diferenciação dentro dela.”

Cada frase nesses três parágrafos contém pelo menos um ataque contra a teoria e a prática do marxismo revolucionário; a política que é delineada é o oposto direto daquela que foi conduzida por Lenin. Tornou-se moda aqui em Los Angeles falar que Lenin está morto; mas nós podemos facilmente julgar que tipo de caracterizações enérgicas ele faria de qualquer um que chamasse qualquer tipo de apoio a um governo burguês como algo “justificável”.
  
“‘Por que vocês não puseram Rodzianko e companhia (o Governo Provisório) na cadeia?’ ele perguntou amargamente aos líderes bolcheviques no dia da sua chegada em Petrogrado. No dia seguinte ele escreveu: ‘Nenhum tipo de apoio ao governo provisório ’. Nos protestos de massas por volta do fim de abril, os bolcheviques levantaram a palavra de ordem: ‘Abaixo o governo provisório’.”

Lenin retirou a palavra de ordem “Abaixo o Governo Provisório”. Mas isso não tinha nada em comum, como aponta Trotsky em “Lições de Outubro”, com a posição de Kamenev de que a palavra de ordem era, em si, um erro aventureiro.

“Uma vez efetuado o reconhecimento”, diz Trotsky, “Lenin retirou a palavra de ordem de derrube imediato do Governo Provisório; retirou-a, contudo, temporariamente, por algumas semanas ou meses, de acordo com a maior ou menor rapidez com que crescesse a indignação das massas com os conciliadores. A oposição (que defendia apoio crítico ao Governo Provisório – S. Ryan), pelo contrário, considerava esta palavra de ordem como um erro. O recuo provisório de Lenin não comportava a menor modificação na sua linha. Lenin não se baseava no fato de ainda não ter terminado a revolução democrática, mas tão somente em que a massa ainda não era capaz de derrubar o governo provisório, para o que devia prepará-la o mais depressa possível”.

A “flexibilidade” de Lenin nas táticas não tem nada em comum com a “atitude flexível” do POR em relação ao governo do MNR. Lenin não era nem um pouco flexível, mas muito rígido em sua atitude com relação ao Governo Provisório. Todas as táticas flexíveis de Lenin eram parte de uma linha inalterável: derrubada do Governo Provisório.

Lenin não depositou nenhuma confiança no Governo Provisório, nem nos partidos que o compunham; sua confiança estava inteiramente reservada ao partido Bolchevique. Declarar isso é um pleonasmo, quase uma tautologia. O artigo da revista, entretanto, se sente obrigado a protestar dizendo que o POR “evitou (!) qualquer tipo de expressão de confiança no governo”. O que seria isso além da linguagem diplomática puramente formal? E como toda linguagem diplomática, essa passagem é mais útil em esconder do que em esclarecer o que está por trás dela.

O que significa essa frase? Que o POR jamais afirmou: “Nós confiamos no governo”? Mas existem muitas formas de expressar a essência da confiança, acima de tudo nas ações, enquanto se “evita” formalmente. Antes de tudo, na revolução de 9 abril de 1952, o POR, ao invés de lutar pelo poder por si próprio, pela classe trabalhadora, propôs que o MNR tomasse o poder; isto é, o POR propôs manter a burguesia no poder.

Se não se confia na classe trabalhadora e em seu partido, que eles podem tomar e exercer o poder, tal confiança passa a ser dada, queira-se ou não, para o governo burguês. Lenin entendia isso. Quando, em resposta à sua demanda de que o governo burguês fosse derrubado, os mencheviques perguntaram o que, para eles, era uma pergunta retórica – “Quem dentre nós vai formar um governo e comandar a nação?” – Lenin respondeu imediatamente – “Nós iremos!”. E ele recebeu em resposta risadas zombeteiras, já que os Bolcheviques não passavam de uma pequena minoria no soviete e no país.

O próprio artigo da revista  expõe o claro contraste entre a atitude do POR e a de Lenin.

“A direção da revolução boliviana até agora confirma passo a passo a linha geral desse tipo de desenvolvimento clássico da revolução proletária em nossa época. Ela tem mais semelhança com o curso da revolução russa, embora em miniatura, do que com a revolução chinesa, por exemplo. Ela começou levando o partido radical da pequeno-burguesia ao poder (como foi o caso com a revolução russa em um momento particular antes de outubro) com o apoio das massas revolucionárias… e ainda do partido revolucionário do proletariado, o POR.”

Isso não é “evitar qualquer tipo de expressão de confiança no governo” do MNR! Além do mais, é completamente falso implicar que os Bolcheviques deram algum apoio a qualquer “partido radical da pequeno-burguesia” que governou a Rússia em algum “momento particular antes de outubro”.

3. DANDO COBERTURA AOS CONCILIADORES DO MOVIMENTO OPERÁRIO

A classe trabalhadora podia ter tomado o poder em abril de 1952? O paragrafo citado acima implica que uma revolução proletária não era possível. Mas isso é ver a questão de forma desesperançosamente formalista. A classe trabalhadora estava armada e havia derrotado o exército e a polícia. Nada a impedia de tomar o poder a não ser suas próprias ilusões e a sua liderança capitulacionista. Exatamente como na Rússia! O poder da classe trabalhadora é demonstrado pelo fato de que ela foi capaz de forçar o MNR a aceitar dois de seus líderes no governo.

Nada sobre isso é dito no artigo da revista. O autor fala de uma futura diferenciação com o MNR, de uma futura ala revolucionária emergindo de dentro do MNR, mas não diz nada sobre o fato de que essa diferenciação já está um ano atrasada; que o que as massas apoiaram em abril de 1952 não foi o MNR, mas a sua ala esquerda (colaboracionista de classe). Quais eram e quais são as relações entre o POR e essa ala esquerda já existente? Essa questão nem sequer é discutida. O artigo “evita” mencionar a “expressão de confiança” que o POR estendeu aos líderes operários conciliadores (e ao governo) quando ele apoiou a entrada deles no governo. E até hoje o POR não levantou a demanda de que os líderes operários rompam com o governo burguês e tomem o poder.

A questão decisiva da revolução nem mesmo é mencionada! A luta do POR pelo poder transforma-se concretamente na luta contra a ala esquerda do MNR pela liderança dos trabalhadores e camponeses. Antes que os marxistas possam tomar o poder eles devem derrotar os conciliadores ideológica e politicamente. Essa é uma parte integral e inevitável da luta de classes; os conciliadores representam a influência do inimigo de classe dentro da classe trabalhadora.

Como os Bolcheviques derrotaram os conciliadores russos? Os Mencheviques e Socialistas-Revolucionários também tinham o apoio da maioria dos trabalhadores e camponeses. Eles também entraram no governo burguês. Os Bolcheviques atacaram impiedosamente os conciliadores por sua traição de classe. Eles intransigentemente se opuseram à colaboração dos Mencheviques e dos SR no governo burguês. Quando os bolcheviques estavam em pequena minoria, eles insistentemente demandaram que os mencheviques e SR rompessem com os políticos burgueses e tomassem o poder, não em algum momento no futuro, mas na hora, imediatamente. Mesmo se os Mencheviques e SR tivessem tomado o poder na primavera de 1917, isso não teria lhes proporcionado a confiança dos Bolcheviques, nem uma coalizão governamental com eles; os Bolcheviques prometeram apenas tirá-los do poder pacificamente, contanto que isso fosse possível.

Como o POR vai expor e derrotar os conciliadores bolivianos? Longe de atacar a sua traição de classe, o POR exigiu a sua inclusão no governo do MNR. Longe de chama-los a romper com o MNR e a tomar o poder (estabelecer um “governo operário e camponês”), o POR relega o governo operário e camponês ao “objetivo final da luta”. O POR fala da “colaboração com uma ala revolucionária emergindo de dentro do MNR” em um futuro governo operário e camponês. Então ele resolveu o problema – verbalmente. Se a futura ala esquerda é revolucionária, tudo que temos que fazer é fundir com ela e formar um partido revolucionário maior. Mas lutar contra a atual ala esquerda reformista? Isso o POR falha em fazer.

A premissa de que um governo do POR era inevitável é uma tentativa de acobertar os falsos e traiçoeiros líderes da classe trabalhadora ao colocar a culpa da sua traição no “atraso” das massas.

4. APOIO CRÍTICO E COLABORAÇÃO DE CLASSES
  
A questão do apoio crítico tem se tornado uma coisa difícil de discutir no nosso partido; seu sentido se tornou obscuro desde que a Internacional resolveu dar apoio crítico ao governo de Mao na China e ao governo do MNR na Bolívia. Apoio crítico é apoio político? Apoio crítico é defesa material contra uma contrarrevolução armada? Apoio crítico a um governo é meramente apoiar as suas medidas progressivas? Todas essas definições estão incluídas em uma passagem muito curta e muito confusa do artigo da revista.

Na Guerra Civil espanhola, os trotskistas foram bem claros sobre a distinção entre ajuda material e apoio crítico. Nós demos ajuda material ao governo Legalista burguês; mas nós não lhe demos nem um centímetro de apoio crítico. Shachtman foi duramente repreendido por Trotsky por propor isso. Nossa atitude em relação aos partidos da classe trabalhadora, incluindo o POUM, o mais à esquerda dentre todos, era a mesma: nós nos recusamos a lhes dar apoio crítico.

Lenin, da mesma forma, delimitou uma linha bastante clara entre defesa e apoio. Na época da tentativa de Kornilov para derrubar Kerensky, ele escreveu:
  
“Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos, sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.

A defesa de Kerensky por Lenin foi uma parte integral da sua luta para derrubar Kerensky.

Na concepção do POR, como exemplificado pelo artigo da revista em discussão, a palavra “defesa” enquanto aplicada ao governo burguês, não aparece em lugar nenhum. A palavra “apoio” é usada indiscriminadamente para significar ambos apoio político e defesa material. Além de ser um empobrecimento da nossa herança teórica, essa confusão dá respaldo e conforto a todos os conciliadores.

“O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”

O que é isso senão apoio político – ou seja, apoio à política do governo do MNR, enquanto ele levar adiante o programa nacional-democrático da revolução? Quantas lembranças do “enquanto” de Stalin e Kamenev que, antes da chegada de Lenin em Petrogrado, proclamaram sua disposição em apoiar o Governo Provisório “enquanto ele fortaleça as conquistas da revolução”.

O que há de errado com ambos os exemplos de “enquanto”? Apenas isso – correlacionar “apoio” e “críticas” significa que o apoio é político; como é possível misturar defesa física com críticas políticas?

Se, entretanto, o POR quer dizer que nós temos que “limitar” nossa defesa material dos aliados traiçoeiros dependendo da sua política ou da sua atitude conosco, então isso só poderia resultar em um isolamento sectário e passividade no exato momento em que a defesa material é necessária. Essa é outra instância do bem conhecido fato de que oportunismo e sectarismo compartilham a mesma carcaça teórica. Deixe-nos lembrar que a investida de Kornilov contra Kerensky veio em agosto, precisamente durante a repressão de Kerensky contra os Bolcheviques; Trotsky estava na prisão, Lenin estava escondido. Kerensky certamente tinha “se mostrado incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução”; ele certamente estava “perseguindo e ridicularizando os revolucionários”. Além disso, Kerensky estava de fato mancomunando com Kornilov para destruir os sovietes. Não seria esse o momento ideal para Lenin “limitar seu apoio”? Entretanto, se ele tivesse “se vingado” dessa forma de Kerensky, a revolução teria sofrido uma derrota esmagadora.

Antes do recente plenário do nosso Comitê Nacional, o núcleo de Los Angeles realizou uma discussão na qual a questão do apoio crítico ao governo de Mao Tse-tung se destacou. “Apoio crítico”, disse Myra Tanner, “não é apoio político”. “Apoio crítico”, disse Murray Weiss, também um apoiador da posição do Comitê Executivo Internacional, “é apoio político”. E ele castigou a tendência Vern como sectários sem solução por se oporem a dar apoio crítico a um partido da classe trabalhadora que liderou a revolução. Junto com o camarada Vern, eu escrevi uma resposta a essa posição que foi enviada, mas ainda não publicada no Boletim Interno (“Carta Aberta ao Comitê Nacional”).

Mas o argumento de Murray Weiss não se aplica à Bolívia; e isso foi apontado diversas vezes no curso da discussão. Quando nós perguntamos “E quanto à Bolívia?”, nossa única resposta foi um embaraçoso silêncio. E esse silêncio foi mantido por Murray Weiss e por todos os camaradas que apoiam a posição do CEI durante toda a discussão e até o dia de hoje!

A pergunta sobre se o apoio crítico é apoio político só pôde surgir porque a posição trotskista tradicional sobre o apoio crítico foi derrubada. A questão não podia surgir no passado porque os trotskistas nunca antes deram apoio crítico a um partido ou a um governo. Nós nunca hesitamos, entretanto, em dar apoio crítico a todas as medidas progressivas de qualquer partido, qualquer governo. Dar apoio crítico à sugestão do presidente Truman por um aumento do salário mínimo, por exemplo, não implica nenhum apoio crítico para o Partido Democrata e não fez levantar a questão de se nós estamos dando apoio político ao governo.

5. O TERCEIRO CAMPO GOVERNA A BOLÍVIA?

O governo boliviano é um governo burguês? Ele serve a uma das duas classes sociais rivais da sociedade moderna? Sobre essa questão, o POR abandonou a posição tradicional e principista do marxismo. E ao fazer essa “exceção”, ele encontra apoio em outras “exceções” que foram encontradas pela Internacional no “status intermediário” da Europa Oriental entre 1945-48 e no “governo operário e camponês” que o CEI enxerga na China.

“O MNR”, diz o POR, “é um partido de massas, sendo a maioria da sua liderança pequeno-burguesa, mas tendo à sua margem alguns representantes conscientes da nascente burguesia industrial, um dos quais, por exemplo, é o próprio Paz Estenssoro!”. E o governo é, naturalmente, caracterizado como um governo “pequeno-burguês”, “tendo à sua margem agentes conscientes dos capitalistas-feudais nativos e do imperialismo”. Os agentes do imperialismo e da classe capitalista estão à margem do partido e o governo. Tal afirmação ridícula é possível apenas em uma atmosfera de neo-reformismo envenenado. Os políticos burgueses estão à margemdo MNR exatamente da mesma forma com a qual Henry Ford está à margemda companhia Ford Motor.

Como os líderes do POR explicam o fato de que esses agentes da burguesia e do imperialismo controlam o governo, incluindo em suas fileiras um proeminente habitante da “margem”, o presidente da Bolívia? Toda revolução vitoriosa e fracassada desde 1917 nos ensina que a pequeno-burguesia (e isso se aplica duplamente para a pequeno-burguesia urbana) não pode ter um partido próprio; não pode estabelecer o seu próprio governo. Essa é a pedra de toque da Revolução Permanente.

Compare-se a explicação superficial do POR com a de Trotsky:

“A revolução”, ele diz em Lições de Outubro, “provocou deslocamentos políticos nos dois sentidos; os reacionários tornaram-se cadetes e os cadetes, republicanos (deslocamento para a esquerda); os Socialistas-Revolucionários e os Mencheviques tornaram-se o partido burguês dirigente (deslocamento para a direita). É através de processos deste gênero que a sociedade burguesa tenta criar uma nova ossatura para o seu poder, estabilidade e ordem”.

Nós não deveríamos esquecer que o equivalente dos Mencheviques e dos SR não é o MNR, mas as sua ala esquerda. Trotsky não falha em caracterizar aqueles Bolcheviques que defendiam o apoio crítico ao governo:

“Mas enquanto os mencheviques abandonam o seu socialismo formal pela democracia vulgar, a direita dos bolcheviques passa ao socialismo formal, quer dizer, à posição ocupada ainda na véspera pelos mencheviques.”

6. O MNR É NOSSO INIMIGO MORTAL

Por que é tão importante entender que o governo do MNR é burguês (e não pequeno-burguês)? Porque os trotskistas devem ser absolutamente claros em que o governo é o seu inimigo mortal. E os trotskistas devem ser os inimigos mortais do MNR e de seu governo. Essa não é a concepção do POR.

“Em um estágio mais avançado da revolução”, diz o artigo da revista, “ele (o governo de Paz Estenssoro) vai cair sob condução da direita que quer impor uma ditadura militar, ou então da esquerda para o estabelecimento de um genuíno governo operário e camponês, a ditadura do proletariado aliado ao campesinato pobre e à pequeno-burguesia urbana.”

O que o MNR vai fazer? Esperar ser derrubado?

Não. O MNR vai atar as mãos da classe trabalhadora, enchê-la de legalismo burguês e burocracia, usando seus ajudantes do movimento operário para isso. Ele vai perseguir os militantes revolucionários, desarmar os trabalhadores politicamente (novamente, usando seus ajudantes) e depois fisicamente.

E as forças da “direita que quer impor uma ditadura militar”, quem são elas? Com que vão impor uma ditadura militar? Não são eles os oficiais, o aparato geral precisamente desse governo “pequeno-burguês”? Não é o caso que os democratas pequeno-burgueses como Kerensky, como Azaña, como Paz Estenssoro, sempre colaboram e conspiram com seus próprios generais? Kornilov era o comandante-em-chefe de Kerensky. Franco era o dirigente militar de Azaña no Norte da África. E não vamos esquecer aquele democrata mais à esquerda, o queridinho da Internacional Comunista estalinizada, Chiang Kai-shek, que foi seu próprio Kornilov. Que o futuro aspirante a ditador militar da Bolívia está no presente momento preparando as suas forças sob a proteção de Paz Estenssoro é indicado pela recente tentativa de golpe de Estado por oficiais do exército e da polícia.

O governo do MNR é o inimigo mortal da classe trabalhadora. A sua derrubada é uma necessidade urgente.

7. PLANEJAMENTO CONSCIENTE OU OTIMISMO FATALISTA?

Uma das características mais chocantes da linha do POR é o seu otimismo fatalista. Um exemplo:

“A pequeno-burguesia urbana”, diz o artigo da revista, “está dividida entre uma maioria muito pobre, altamente radicalizada em razão de suas condições instáveis e sempre disposta (minha ênfase – S. Ryan) aliada do proletariado revolucionário…”.

Mas a pequeno-burguesia empobrecida não está sempre disposta como aliada do proletariado revolucionário. Uma das maiores lições do outubro russo, e da revolução alemã abortada de 1923, e da ascensão de Hitler, é exatamente essa: a pequeno-burguesia radicalizada, e também a classe trabalhadora por sinal, não pode ser considerada como uma mina de ouro, sempre disponível ao Partido uma vez que tenham sido convencidas da necessidade de uma mudança revolucionária. Elas se viram primeiro para os social-reformistas. Desapontadas, vão aos marxistas criticamente, cheias de suspeitas. Se os marxistas se provam receosos, hesitam em realizar sua tarefa proclamada de derrubar o governo burguês, o apoio das massas rapidamente se esvai. A pequeno-burguesia radicalizada torna-se então uma presa fácil para um demagogo fascista; a pequeno-burguesia fica então “disposta” não para a revolução, mas para a contrarrevolução.

É por isso que a insurreição é tão necessária como parte da revolução. É por isso que o momento da insurreição é o momento decisivo na vida do partido revolucionário. É por isso que Lenin foi tão insistente para que o Comitê Central Bolchevique tratasse a insurreição como uma arte.

“A pressão instante, contínua, incansável, exercida por Lenin no Comitê Central durante os meses de setembro e outubro justificava-se pelo receio de que deixássemos escapar o momento”. Este é Trotsky em Lições de Outubro. “O que significava deixar escapar o momento?… A correlação das forças varia em função do estado de espírito das massas proletárias, do naufrágio das suas ilusões, da acumulação da sua experiência política, do abalo de confiança no poder estatal das classes e grupos intermediários e, finalmente, do enfraquecimento da confiança deste em si próprio. Em épocas revolucionárias estes processos decorrem rapidamente. Toda a arte tática consiste em saber aproveitar o momento em que combinação das condições é mais favorável para nós… Nem a desagregação do poder estatal, nem tampouco o afluxo espontâneo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques, podiam ser de longa duração; de uma maneira ou de outra, a crise tinha que desembocar numa solução. Agora ou nunca! repetia Lenin.”

Não existe nada desse sentido de urgência na linha do POR, como expresso no artigo da revista. “O objetivo final da luta” é expresso como:

“a formação de um genuíno governo operário e camponês. Esse governo vai surgir não mecanicamente, mas dialeticamente, baseando-se nos organismos de duplo poder criados pelo próprio movimento de massas… O governo operário e camponês vai aparecer amanhã como a emanação natural de todos esses organismos no qual ele vai se basear.”

Todas as expressões usadas – “formação”, “surgir dialeticamente”, “aparecer” – podem descrever um processo evolutivo. A questão decisiva, entretanto, não é como o Estado operário irá aparecer, surgir, ou ser formado, mas como ele vai tomar o poder, tornar-se a força dominante do país. O que está faltando é a consumação da revolução, a insurreição conscientemente organizada.

Uma possível resposta à minha crítica (se alguém for respondê-la) pode ser a de que eu sou crítico demais com relação ao POR; que os líderes do POR sabem o que deve ser feito em uma revolução; que eles simplesmente não querem contar todos os seus planos.

Infelizmente, tal argumento, sedutor como parece ser, exige um exercício de fé que rivaliza com aquele de quem acredita na Imaculada Conceição. Isso porque não são as intenções subjetivas dos líderes do POR que estão em questão (eu posso admitir que elas sejam as melhores), mas sim os resultados objetivos das suas concepções neo-reformistas.

É algo muito difícil mudar a linha do partido de paz para guerra, de apoio crítico para derrubada revolucionária. Mesmo se o POR tivesse a linha de oposição irreconciliável ao governo desde o começo, a mudança desde a preparação para a verdadeira derrubada traria consigo uma crise de liderança, tal qual a que afetou os Bolcheviques em outubro, quando uma seção do Comitê Central, liderada por Kamenev e Zinoviev, saiu a público em oposição à insurreição.

“Qualquer partido”, diz Trotsky, “mesmo o mais revolucionário, elabora inevitavelmente o seu conservadorismo de organização; caso contrário, não alcançaria a estabilidade necessária… Lenin – como vimos – dizia que quando sobrevinha uma mudança brusca na situação e, portanto nas tarefas, os partidos, mesmo os mais revolucionários, continuavam na maior parte dos casos a seguir a sua linha anterior, tornando-se ou ameaçando tornar-se, por isso mesmo, uma trava para o desenvolvimento revolucionário. O conservadorismo do Partido, tal como a sua iniciativa revolucionária, encontram nos órgãos da direção a sua expressão mais concentrada”.

Para vencer a oposição de Zinoviev e Kamenev, Lenin teve essa vantagem: a linha pública oficial do partido estava do seu lado. Seis meses antes, em abril, Lenin havia rearmado o partido; ele havia derrotado decisivamente aqueles que queriam dar apoio crítico para o Governo Provisório. Desde então o partido havia agitado abertamente pela preparação da derrubada de tal governo.

8. A SEMENTE E O FRUTO

Quem vai ter a vantagem no POR – os partidários do conservadorismo, ou os partidários da iniciativa revolucionária? A questão já está respondida. O POR está à direita da ala direita daqueles Bolcheviques que, como diz Trotsky, adotaram uma posição socialista formal.

O POR ocupa, em todas as questões principais, as posições ocupadas pelo menchevismo na revolução russa, e pelo stalinismo na segunda revolução chinesa de 1925-27.

O POR, em suas concepções reformistas, na sua atitude conciliacionista, e com seus métodos de colaboração de classes, se baseia e se apoia na posição neo-reformista adotada pela Internacional desde a Segunda Guerra Mundial. Tal é a teoria adotada pela Internacional para explicar as transformações na Europa Oriental. Essa teoria, que desde a sua adoção não recebeu defesa nas nossas publicações, sejam públicas ou internas, sustenta de fato que o reformismo funcionou na Europa Oriental; que o caráter de classe do Estado foi modificado sem revolução proletária, por manipulações nos círculos de poder; que por três anos o Estado estava em um status intermediário. Essa revisão do marxismo tinha suas raízes, como todo o revisionismo desde 1917, na questão russa; e a incapacidade ou falta de vontade de ver a guerra entre a Alemanha e a União Soviética como uma guerra de classe – ou seja, como revolução ou contrarrevolução.

A linha política da Internacional na China trouxe esse neo-reformismo do reino da teoria (ou terminologia) para o da atividade política. A ideia de um Estado transitório, um Estado que não é nem burguês e nem operário, se torna mais explícita; através do “apoio crítico” ao governo de Mao, afirma-se o papel de liderança do stalinismo, enquanto a necessidade crucial da consciência marxista incorporada no partido trotskista é jogada no lixo. A consciência revolucionária deve ser substituída pela “pressão das massas”.

O POR não introduziu nada de novo. Ele está aplicando na Bolívia a linha revisionista da Internacional – ainda mais, com o apoio e o encorajamento da Internacional.

Eu não tenho dúvidas de que a maioria dos camaradas esteja desconfortável com o curso que está sendo seguido na Bolívia; que eles não concordam com a linha do POR. Mas um silêncio embaraçoso não é o suficiente. Aqueles que permanecem em silêncio pelo bem de uma falsa harmonia não podem escapar da responsabilidade pelas consequências de uma linha política errada.

LRP/ISL on the Revolution in Palestine/Israel

LRP/ISL on the Revolution in Palestine/Israel

Worshipers of the Accomplished Fact

August 26, 2009

 

The following remarks which were reconstructed from notes, were made from the floor of a League for the Revolutionary Party meeting on August 18, 2009 in New York titled “The Crisis of Zionism and the Prospects for Revolution in the Middle East” attended by over 40 people. The speaker for the meeting was Yossi Schwartz of the Internationalist Socialist League (Israel/Occupied Palestine) with whom the LRP at this time appears to have reached common political agreement. The remarks and commentary primarily deal with the two groups writing off the prospect of winning the majority of Israeli Jewish workers to a common struggle with the Palestinian masses against the Israeli Zionist state. We hope to post subsequent polemics that deal more broadly with  other aspects of the LRP’s and it’s co-thinkers position on the issue of Zionism and the Palestinian struggle in the future.

Revolutionaries defend the Palestinians and of course opposed the founding of the state of Israel, but six decades later one has to be blind not to recognize that an indigenous Israeli Jewish nation [who at this stage can no longer reasonably be classified simply as colonial settlers] has come into existence and whose workers we must win the allegiance of for the Palestinians to be able to wage any successful struggle to overthrow the Zionist state. This can only be done by appealing to Jewish workers to transcend their national consciousness in favor of their common class interests with Palestinian workers, not by denying them their national rights. The LRP and ISL it seems implicitly recognize this on many levels,  but, proceeding from their insistence on denying the Israeli workers those rights, are forced to draw completely defeatist conclusions.

In the 1960’s, under circumstances where the white US working class appeared to be permanently conservatized, and when much of the time a majority of it seemed to oppose the civil rights, anti-war and women’s liberation movements, the New Left wrote it [and most of the working class in the economically developed countries as a whole] off as permanently bought off. They called on a minority to “abandon their white skin privilege” and projected the allegiance of the majority to reaction. And today things seem similarly bleak no doubt with regards to the Israeli working class to the LRP and ISL. The New Leftists at the time therefore abandoned any perspective of an indigenous socialist revolution and took up the utopian Maoist view that US imperialism would be overthrown externally by Third World struggles.

In terms of the LRP they write in their most recent statement [“After the Gaza Massacre: The Future of Palestine” July 2, 2009 http://www.lrp-cofi.org/statements/gaza090702.html ] that “most likely, unfortunately, a minority” of the Israeli Jewish workers can be won to the revolution since “many Israeli Jews would prefer to fight in defense of their temporary privileges” acknowledge that “Palestinians alone have not been and will not be able to defeat Israel” and conclude that “We cannot predict exactly what form revolutionary struggles in the Middle East will take.” On other occasions and contexts [perhaps previous to winning over Israeli co-thinkers whose existence they’d need to justify] the LRP has been less ambiguous stating that the Zionist state will be overthrown externally by a victorious regional socialist revolution/revolutions most likely led by the Egyptian working class.

While an indigenous socialist revolution made by Israeli and Palestinian workers would be preferable, it should be conceded that it is indeed a possibility that a socialist revolution that overthrows the Zionist state may in the end have to be imposed externally without the support of the majority of Jewish workers. That should not be opposed if in the end it comes to that.

But conceding that as a possibility, at the same time it does not tell Palestinian and Israeli revolutionaries what they should do in the meanwhile except perhaps passively wait for Arab workers in other countries (and the LRP/ISL call for “Arab Workers Revolution” leaves out not only Israeli Jews but also Kurds, Persians, Berbers, Armenians and many other non-Arab groups in the region) to come to their rescue. Any active revolutionary strategy is missing from such a schema.

Afterword.

Despair over the revolutionary capacities of the working class in the more economically developed capitalist countries has been the political basis of not only the New Left, but also the Stalinists abandonment of world revolution in favor of building “socialism in one country” and all their ensuing betrayals. This has also been the implicit political basis of Pabloism, which at times also wrote off the working class in Third World countries in the process, based on similar notions. At times the rationale was made more explicit such as in a May-July 1962 Fourth International article by Michel Pablo which approvingly quotes Frantz Fanon that the Third World proletariat

““  … is among the most protected stratum of the colonial regime. The embryonic proletariat of the towns is relatively privileged. It represents that fraction of the colonized people, necessary and irreplaceable for the efficient working of the colonial apparatus – tramway conductors, taxi-drivers, miners. dockers, interpreters, hospital staffs, etc. These are the elements which constitute the most loyal stratum of the nationalist parties and who from the privileged place they occupy in the colonial system constitute the ‘bourgeois’ fraction of the colonized people”

commenting

““The analysis which Fanon makes of the role of the urban proletariat can appear exaggerated to a European Marxist; however with qualifications it ‘fits’ well enough those countries with a weak industrial development.”

Of course the LRP and ISL would argue that they oppose Stalinism, New Leftism and Pabloism. They would argue that they don’t write off the US working class or the working class of the advanced capitalist countries, and that their analysis is specific to the Israeli working class. But they also tend to reduce what is, ultimately, a self-destructive Jewish support to Zionism to questions of economic privilege (in the process being somewhat blind to other involved factors such as historical traumatization due to past oppression and the horrors of the holocaust, fears of Arab national retribution, despair over internationalist solidarity arising out of the history of Stalinist betrayals etc.). But while it is true that the Israeli working class is significantly privileged relative to the Palestinians, the US working class in turn is significantly privileged relative to the Israeli working class and most of the rest of the world for that matter. In an article written in one of his many earlier political incarnations, Comrade Shwatrz correctly noted

“It is possible of course to blame the Jewish working class, to maintain that it was in the interests of the workers to serve Zionism. But we maintain that the Jewish working class, as with all other parts of the world working class, has but one interest: proletarian revolution.

“On the First Arab-Israel War”

Workers Vanguard #35 4, January 1974

Rather than reducing Jewish support to Zionism due to privilege (which of course is indeed one, but only one, of the factors), his article echoed Trotsky’s assertion in the Transitional Program that in the final analysis “The historical crisis of mankind is reduced to the crisis of the revolutionary leadership.”

“The explanation for the Zionist control does not lie in the interests of the Jewish working class but in its organizational position-its lack of any weapons or independent struggles. And the responsibility for this situation rests with the Communist Party.

A rejection, of course from a somewhat very different pov and in different degrees, of Lenin and Trotsky’s stress on the centrality of revolutionary leadership, the “party question”, is indeed one of the elements the LRP and ISL share with the Pabloites. The LRP and ISL both reject explicitely Lenin’s argument in What Is To Be Done that revolutionary/Marxist consciousness must struggled for within the working class against against the multitiude of existing false/bourgeois consciousness through the medium of a vanguard party. The contemporary neo-economists/ workerists prefer to sugarcoat reality in favor of an admittedly more consoling image of a spontaneously revolutionary working class chomping at the bit. Sugarcoating the tragic reality of the Israeli Jewish workers present backwards consciousness is of course significantly harder to accomplish (not to mention getting in the way of opportunistically adapting to what is currently a certainly more receptive but still nationalist and non-Marxist Arab consciousness). But one of the factors behind the necessity of a revolutionary party arises precisely from the fact that the struggles of various strata of the oppressed masses tend to be sectional (whether going on strike against your particular employer, organizing against racist police brutality in your community, in general engaging in struggles against your own immediate groups oppression etc.) and it’s political consciousness and understanding therefore tends to be sectional, reflecting their most immediate, as opposed to historic, internationalist, political-class interests.

Uniting the struggles of the varied sections of the working class (nationally and internationally) and oppressed is the job of a revolutionary party, instilling the understanding of their common interests in striking at the capitalist root of all their oppression.  This necessary theoretical understanding of the workings of capitalist society and the necessary means of overthowing it (the central theme of What Is To Be Done is that there can be no revolutionary movement without revolutionary (that is Marxist), theory) does not indeed arise spontaneously.

But if the working class cannot engage in a successful struggle for power spontaneously, it can provided a revolutionary leadership exists. Rejection of this understanding can only lead to objectivist fatalism, usually pessimistic, though sometimes of the tailist “optimistic” variety. Both attitudes preclude the possibility of a successful working class struggle for power.

In the Revolution Betrayed Trotsky described those with such fatalist attitudes as “worshipers of the accomplished fact” noting that “Whoever worships the accomplished fact is incapable of  preparing the future.” Despairing at the present backwards consciousness of the Israeli Jewish workers, the LRP and ISL forget Marx’s motto that “the point is to change it”.

Effectively writing off the possibility of leading Palestinian and Jewish workers in a struggle for state power poses deep contradictions for the ISL in relation to it’s ostensible purpose for existence. James P. Cannon described the ISL’s dillema well in The First Ten Years of American Communism.

“The Stalinization of the Party was rather the end result of a process of degeneration which began during the long boom of the Twenties. The protracted prosperity of that period, which came to be taken for permanence by the great mass of American people of all classes, did not fail to affect the Communist Party itself. It softened up the leading cadres of that party, and undermined their original confidence in the perspectives of a revolution in this country. This prepared them, eventually, for an easy acceptance of the Stalinist theory of ‘socialism in one country.’

“For those who accepted this theory, Russia, as the ‘one country’ of the victorious revolution, became a substitute for the American Revolution.”

“What happened to the Communist Party would happen without fail to any other party, including our own, if it should abandon its struggle for a social revolution in this country, as the realistic perspective of our epoch, and degrade itself to the role of sympathizer of revolutions in other countries.”

The logic of such a perpective can lead the ISL down the road to becoming an Israeli version of the recently defunct and unlamented Maoist Internationalist Movement (though no doubt significantly more intelligent and less psychotic), if not the more garden variety reformist solidarity activist or trade union economist likethe CPs. At the forum LRP and ISL supporters responded that they were not advocates of building “socialism in one country”.  Indeed, one can not build socialism in one country whether that be Israel or anywhere else, the victory of revolutionary struggles worldwide is a prerequisite for that. But that is confusing the question of building “socialism in one country” with the necessity of leading the working class in a struggle to take state power, in the context of a struggle for world revolution.

Trotsky summed up the ISL dillemma well in his summing up the perspective of the “worshipers of the accomplished fact” in the Revolution Betrayed.

“In reality, our dispute with the Webbs is not as to the necessity of building factories in the Soviet Union and employing mineral fertilizers on the collective farms, but as to whether it is necessary to prepare a revolution in Great Britain and how it shall be done. Upon that question the learned sociologues answer: ‘We do not know.’”

SEE ALSO

LRP’s “Revisions of Basic Theory”

IG: Trotsky’s “Transitional Program” or Robertson’s “Political Compass”

Internationalist Group

Trotsky’s “Transitional Program” or Robertson’s “Political Compass”?

May 6, 2009  

 

The following intervention (reconstructed from notes) was made by Samuel Trachtenberg at an Internationalist Group class on Leon Trotsky’s “Transitional  Program” at Hunter College in New York on 6/28/06. Jan Norden, who gave the class, spent a  significant portion of it discussing the Spartacist League’s (out of which the IG was expelled) explicit renunciation of the Transitional Program’s assertion that “the crisis of  mankind is reduced to the crisis of revolutionary leadership” in their intepretation of the “Post-Soviet World.” (1) S.T. directed his remarks to that  criticism. Also included is an addendum and lengthy footnotes for further elaboration and archival citations of the points made.

I agree with much of the IG’s current criticisms of the SL’s open abandonment of the Transitional Program. I also agree that this is related  to the SL’s extreme demoralization over the collapse of the USSR. This was expressed in their recent position on the anti-CPU struggle in France (2) where they proclaimed that in the “Post-Soviet World” a successful general strike is not likely to succeed. A few years ago when Afghanistan was attacked, SLers similarly argued that in the post-Soviet world military victories by neo-colonies against the imperialists were not on the agenda. While the collapse of the USSR was a huge defeat, by itself it is not adequate as an explanation. One must also look at the SL’s own history prior to that collapse and it’s various zig-zags over the Russian Question, positions that the the IG leadership share responsibility for developing and still stand on today, and on which I’ll only touch on one aspect of.

Throughout the 1980’s the SL developed a strong tendency to reduce Trotskyism to the issue of Soviet Defensism. That drift was partially acknowledged at the time I was an SYCer in which members were  criticized for somehow abandoning the view that they were the party of  world revolution. (3) From seeing defense of the USSR as the central  question at all times and places from Nicaragua to Alice Springs, Australia (4) there developed a tendency to look at world events from the narrow prism of, to paraphrase an old Jewish joke, “Is it good for Russia?”.

It was frequently written and stated internally that defense of the USSR was the SL’s “political compass” (5) which would prevent their  degeneration, a sort of talisman to ward off anti-Trotskyist spirits if you will. In contrast, the Transitional Program states that the Fourth International must “base ones program on the logic of the class struggle”, which is quite different than using defense of the USSR as ones political compass. But what happens when you continue using such a compass after it no longer exists (we found out 2 years ago that trading accusations internally of wanting to abandon defense of the USSR is still the norm for them) (6)? The further development into a passive propagandist or De Leonist grouping the IG has described and the SL’s  recent position on France again confirms. But the IG’s leadership are incapable of making such an analysis. They are determined to defend those positions since they themselves are fully responsible for helping develop them while SL leaders.

…………….

IGers at the class responded to this criticism with accusations of anti-Sovietism and “Third-Campism”. Actually a similar revisionist view to the one described was developed by Michel Pablo in the  1950’s.

Developing his revisionist politics in reaction to the height of the cold war, Pablo also equated such criticisms as “Third Campist” capitulations to anti-communism. Sam Marcy developed a similar outlook in his “Global Class War” theory.

As the French Trotskyist responded at the time

“‘The history of all hitherto existing society is the history of  class struggles, one reads in that dustbin known as the Communist  Manifesto.

“But it’s necessary to keep abreast of the times and to admit without hesitation along with Pablo that ‘For our movement objective social reality consists  essentially of the capitalist regime and the Stalinist world.’ [International Information Bulletin, March 1951, ‘Where Are We Going?’ p.2. Emphasis added.]

“Dry your tears and listen: the very essence of social reality  is composed of the capitalist regime (!) and the Stalinist (!) world  (?).

“We thought that social reality consisted in the contradiction between the fundamental classes: the proletariat and the bourgeoisie. Clearly an  error, for from now on the capitalist regime, which encompasses  precisely these two classes, becomes a totality that is counterposed …to the Stalinist world…

“Where is Pablo Going?” (1951)

Showing that he abstractly understood the issues involved in such  a view, at least when it did not intrude into his ownpolitical activity,  Jan Norden approvingly cited historical this criticism in “Yugoslavia, East Europe and  The Fourth International: The Evolution of Pabloist Liquidationism”  which the SL published in 1993, adding

“Pabloism also incorporates themes raised by the Zhdanov line … The struggle between “camps” instead of classes,  the international balance of forces unfavorable to capitalism: these premises were shared by Pablo and Zhdanov.”

The author of this article pointed to this issue in a December 9, 1994 document, 2 years before Norden was expelled from the SL

“In the above-cited pamphlet on Yugoslavia and the Fourth International, Jan Norden makes the correct point that, while it was a strategic task for the Trotskyist movement to defend the USSR, its strategic line was world socialist revolution. The idea that the strategic line of the workers’ movement should be the defense of the USSR is a Pabloist or Stalinist conception. Yet this implicit two-worldist conception tended to color the SL’s view for much of the 1980s. From this they drew the conclusion, as was written in a recent issue of Spartacist Canada (No. 100) that what you had was a ‘‘bipolar world—-polarized between the imperialist powers and the Soviet bloc.’’ That polarization, though, was only a reflection of the general class struggle between workers and capitalists, and did not replace it. The SL, though, started seeking revolutionary virtue in the Stalinist bureaucracy. This was shown when, for example, they proclaimed themselves the ‘‘Yuri Andropov Brigade’’ and then later wrote a eulogy for Yuri Andropov, butcher of the 1956 Hungarian Revolution, claiming, among other flattering things, that he made ‘‘no overt betrayals on behalf of imperialism’’ (WV No. 348,17 February 1984).

“Getting Russia Right”

In 2008 he revisited the question at a public meeting

“I think that the political perspective put forward by the comrades of the Trotskyist League  [Canadian co-thinkers of the SL/US centered ‘International Communist League’] today is one that you will find they have been putting forward in their newspapers for the last several years. And I would argue that it is an extremely demoralizing and pessimistic perspective. It boils down to arguing that, with the collapse of the Soviet Union, the so-called post-Soviet era that they are talking about, what we have seen is not just a huge defeat for the working class, which it certainly was, but a defeat of the working class so monumental that no class struggle, no real progress of any sort—whether a call for a general strike in France last year, whether we see uprisings by workers in Bolivia (7) or Mexico, or fighting to build a revolutionary party through revolutionary regroupment— is possible. Nothing is possible in the -called post-Soviet era, according to them, but [to] uphold the Trotskyist tradition in their own bunker (8). As they put it, they themselves have developed a ‘bunker mentality’ in reaction to the so-called post-Soviet era.

“So what do you do? Well, it seems that the argument that is being made today [is] that revolutionary regroupment was possible because of the victory of the Russian Revolution. Well, we don’t have the Russian Revolution around at this moment, so what do you do? Well, you wait for another Russian Revolution to occur. But guess what? We cannot have another revolution in the United States, Canada or anywhere else without a revolutionary party. And you cannot have a revolutionary party hiding out in their bunker abstractly upholding the tradition in isolation from the class struggle and from the rest of the left.

“On ‘Revolutionary Regroupment’”

Whether the IG wants to recognize it or not, by crudely equating class struggle with Soviet Defensism, and with the USSR no longer existing, it logically follows that the class struggle ended up seeming as bleak to the SL as the pro-Moscow CPs.

In the Transitional Program, Trotsky argued that “When a program or an organization wears out the generation which carried it on its shoulders wears out with it. The movement is revitalized by the youth who are free of responsibility for the past.” Lenin was known for joking that all revolutionaries over 50 should be shot. Groups (such as the IG’s, SL’s, IBT’s and most others today) which are dominated by, when not completely consisting of, worn our geriatric bureaucrats now well into their 60’s (sometimes with a small group of obedient handpicked assistants), are almost by definition not revolutionary. Their incapacities to own up to their “responsibility for the past” means they deserve no confidence in not repeating that past. The Spartacist League in it’s earlier revolutionary days was capable of producing critical pieces on the history of the Fourth International and it’s errors such as “Genesis of Pabloism” because at that time their leadership was mostly of younger comrades who were “free from the responsibility for the past.”

This is something the IG ranks should consider when seeking to understand why from the Russian Question, to the social patriotic line on Lebanon, to the liquidation of the trade union caucuses, the IG leadership (and other similar leaderships) are organically incapable of acknowledging wrongdoing in confronting it’s SL past.

FOOTNOTES:

1) “Trotsky’s assertion in the 1938 Transitional Program that ‘The world political situation as a whole is chiefly characterized by a historical crisis of the leadership of the proletariat’ predates the present [“Post-Soviet”] deep regression of proletarian consciousness.

“ICL Declaration of Principles and Some Elements of Program” February 1988

Spartacist #54, Spring 1998

2)“In May ’68, the students’ actions sparked a three-week workers general strike, mobilizing millions of workers in the streets, but also importantly at first, in factory occupations. It was those strikes and factory occupations which shook up the ruling class not only here in France but across the world. But in the absence of a revolutionary party, the strikes were demobilized and betrayed, chiefly by the Stalinist Communist Party which, thanks to its influence within the working class, was ultimately able to save the skin of the French bourgeoisie.

Worker Vanguard, March 31, 2006

3) “The document for the 12th Conference of the Ligue Trotskyste de France noted a ‘creeping deviation’ did called “we are the party of the family of  defenders of the Soviet Union” instead of “we are the party of the Russian  Revolution”’Such a view–seeing us as the consistent wing of the ‘family  of defenders of the Soviet Union” and the Stalinists as the  inconsistent wing–implicitly capsizes the contradictory nature of Stalinism  in the other direction…..”

“In the course of these fights it was repeatedly noted that this would  and did lead to defeatism about the working class at  home…”

“Document of the Second International Conference of the International Communist League”

Spartacist #47-48, Winter 1992-93

This reflected a desire on the SL leaderships part to move away from it’s Stalinophilic orientation in the aftermath of the Stalinists collapse. In the aftermath there was an attempt to scapegoat Norden for this orientation, while whitewashing the history of it’s full dimensions, subsequently followed by a lurch in a Stalinophobic direction.

4) The following citations are from just a cursory examination of a selection of SL’s political literature from the 1980’s, expressing how nearly every question around the world was reduced to the issue of defence of the USSR.

During the 1985 mayoral election in New York, SL candidate and current IG leader Marjorie Stamberg put the issue this way at an election rally.

“We’ve been saying that the anti-Soviet war drive is at the heart of it all. That Reagan’s war on what he calls the ‘evil empire’ was behind his war on labor, behind his smashing of PATCO, behind his war on blacks at home, behind the firebombing of MOVE.”

“Spartacist Election Rally: We Are the Party of the Russian Revolution”

Workers Vanguard #391, November 1985, and reprinted in

“Massacre of Philly MOVE”

Black History #3, February 1986

At the same rally Ed Kartsen, running for Manhattan borough president explained that “the primary threat to capitalist domination of the earth remains the Soviet Union” rather than the international proletariat. Just like the trade unions, the USSR could only be a threat to the capitalist domination of the earth under revolutionary leadership. The Stalinists history was one of actively betraying class struggle around the world in the name of peaceful co-existence and “socialism in one country,”

On the international field, attacked neo-colonial countries were similarly viewed as mainly Soviet “proxies” and “surrogates.” This lead the IBT, in a 1992 statement devoted to noting the SL’s failure to defend the USSR during it’s last days in August 1991, to point that

“Over the years, the Spartacist League has developed a unique concept of ‘defending’ the USSR. They have repeatedly invoked it in situations in which defense of the USSR was not the central issue. Remember ‘defense of the Soviet Union begins in El Salvador’?

“Defense of the USSR Does Not Begin On Warren Street”

January 31, 1992

Four years earlier an exchange between the two groups occurred where the IBT was denounced for failure to see that the key issue in opposing the imperialist backed contras in Nicaragua was really the USSR’s defence

“The TL’s confusion over Gorbachev is paralleled by some peculiar notions about Soviet defensism. This is apparent in regard to Nicaragua. While much of the reformist solidarity milieu stupidly denies any connection between the events taking place in Central America and the social revolution that took place in Russia in 1917, the TL shrilly insists that the main issue posed in Nicaragua today is defense of the Soviet Union! The crudest expression of this uniquely idiotic position can be found in the Summer 1988 issue of Spartacist Canada, edited by the same cde. Masters.

“To ‘expose’ the Bolshevik Tendency (BT), the TL quotes our intervention at last April’s TL forum on Nicaragua as saying ‘the key question in Nicaragua today in our view is not defense of the Soviet Union, that’s not the central question that’s posed there today, but rather defense of the Nicaraguan Revolution.’ It’s hard to understand how any ostensible Trotskyists could disagree with this statement two weeks after the signing of the Sapoa accords, where the Sandinistas promised to ‘democratize’ in accordance to the dictates of the Central American neo-colonial rulers and Washington’s mercenary contras. But for the TL this simple observation is evidence of…Shachtmanism! Recalling how Max Shachtman refused to defend the Soviet Union in its war with Finland in 1939, the TL concludes: ‘For him then, as for the BT now, defense of the USSR was never ‘the central question’ and thus never to be fought where it counts.’

“ to atone for the sins of founder/leader James Robertson, who left the Stalinists for the Shachtmanites just as the cold war was gathering steam in the late 1940s, the Spartacists have decided that Soviet defensism is the ‘central question’ at all times and in all places. Those who don’t agree are automatically denounced as State Department socialists. This travesty of the Trotskyist position of defense of the Soviet Union has one advantage. It is easy to teach to new recruits. But if revolutionary politics were so simple a moderately intelligent myna bird could learn the formula in a matter of weeks.

“TL On the Russian Question: Dazed and Confused”

Sept 17, 1988

In France, the Lutte Ouvriere group was denounced for the slogans it raised over the US attack on Libya in these terms

“For the first time any militant can recall, LO marched at the head of a demonstration, with one banner  saying ‘Great power terrorism is no less criminal just because it’s done on a big scale’  and another which read: ‘Against terrorism wherever it comes from, counterpose the unity of all the worlds oppressed.’ By doing this, LO accepted and made it’s own the imperialist propaganda designed to whip up warmongering hysteria against the USSR through one of it’s military clients, Libya. Another banner explained that LO opposes Reagan’s murderous raid on Tripoli and Benghazi because “Reagan is not trying to overthrow dictators, he wants to terrorize the people.” For the White House, ‘dictators’ are all those who are friendly with the USSR…”

“LO and Libya: The Stench of Fear”

reprinted in Lutte Ouvriere and Spark: Workerism and National Narrowness

In another part of the Middle East, the SL tried to cover their abandonment of military support for those struggling against the US Marines occupying their country by cynically asking “Where is the just, anti-imperialist side in Lebanon today?” and then explaining the conditions where they would take a side

“Should the U.S. go to war against Syria, a complete reevaluation would be indicated, not least because such a war could become a de facto U.S./USSR conflict in which Marxists would defend the Soviet side.”

“Marxism and Bloodthirstiness”

WV #345, 6 January 1984

In Australia a crisis ensued over confusion and lack of enthusiasm in the group over the slogan “Defence of the USSR Begins in Alice Springs” which ended with six out of seven Australian Central Committee members being driven out of the group on the Zinovievite initiative of the New York center. This was in relation to raising this as the central slogan at a protests against South African Apartheid.

Perhaps most ludicrous was Jim Robertson’s British branch’s campaign in Scotland around “evocative” slogans such as “For a Scottish workers republic as part of the USSR!” and “Turn Holy Loch into a Soviet U-boat pen!” (Worker Hammer #196, Autumn 2006). This expressed the specifically Russian centered character of their Stalinophilia since no similar slogans were raised calling for Scotland’s incorporation into the Peoples Republic of China, East Germany etc.

5) A special issue of Spartacist devoted to analyzing the implosion of Gerry Healy’s organizion, retroactively attributes failure to put defence of the USSR at the center of every (from the Chinese Cultural Revolution, to the 1979 Iranian Revolution to the Iran/Iraq War) question as the cause of his groups degeneration. In an interview with Jim Robertson on the Spartacist split from the IC, he thus explains

“It turns out that we have a profound difference with the WRP, over politics. Their nominal defense of the Soviet Union is at such a level of abstraction that any concrete expression for several decades has been against the Soviet Union, on most anything you can name. Including, interestingly, going way back, support for the Cultural Revolution, which was virulently anti-Soviet. And they applauded the execution of Communists in Iraq. Then they had to dump the Ba’athist connection in Iraq in order to back the Ayatollah, because Iran and Iraq were at war. And may I point out that to back the Ayatollah is also to be anti-Russian. And they back Solidarnoność, which wants a bloody counterrevolution to make Poland safe for NATO. Iran, Poland, China. Afghanistan—back all the enemies of the Soviet Union on the perimeter of the Soviet Union. And this is called “defense of the Soviet Union”!

“So we have some stuff to say now, because we were the principled people the whole way. And I would suggest that the main reason is not some morality associated with Americans versus English persons, but that over a long period of time, through many fights, through one tendency after another, we stood concretely for the defense of the Soviet Union, against imperialism, and against the damn Russian bureaucracy. That has in fact been our political compass, and it also generates a certain cultural superstructure and a certain morality.

“On the 1966 Split”

Spartacist #36-37, Winter 1985-86

This was reiterated in the closing paragraph of the main article

“Morality” for Marxists is inextricably tied to program. The Spartacists’ unwavering adherence to revolutionary Trotskyism—our genuine, concrete defense of the Soviet Union against imperialism and against the treacherous Stalinist bureaucracy, our commitment to building an international party of proletarian revolution—this has been our political compass. From that also comes a certain superstructure, a certain morality.

”Healyism Implodes”

6) “However, it became clear that the frustrations and antagonisms which had developed toward those responsible for such organizational breaches and for the broader political drift that had led to the excision of the P.S. had been deflected into a false fight: an attempt to find a fundamental deviation in the party on the nature of Stalinism. It took considerable effort to establish that there were no fundamental programmatic differences on this score, and to put the conference back on track to deal with the real problems the ICL faces.”

“Fourth ICL International Conference, Autumn 2003: The Fight for Revolutionary Continuity in the Post-Soviet World”

Spartacist #58, Spring 2004

7) “Reading the IG’s breathless accounts of Bolivian events (gathered on its Web site under the grandiloquent title of “Bolivia: Class Battles in the Andes”), one would never know that anything had changed in the world over the past 20 years, whether in Bolivia or elsewhere. The IG denies the magnitude of the counterrevolutionary destruction of the Soviet Union and the retrogression of proletarian consciousness worldwide accompanying this defeat. “

“Bolivia: Trotskyism vs. Bourgois Nationalism”

WV 14, April 2006

8) “Speaking of a number of such instances of sectarian withdrawal in the years following the destruction of the Soviet Union, a comrade noted some time ago that the party had been ‘retreating from a newly alien world, into our castle, hauling up our drawbridge and hiding out.’

“Fifth International Conference of the ICLMaintaining a Revolutionary Program in the Post-Soviet Period”

Spartacist #60, Autumn 2007

Leon Trotsky sobre Otimismo e Pessimismo

Leon Trotsky sobre
Otimismo e Pessimismo, 
Sobre o século XX e muitas outras coisas 

O pequeno trecho a seguir, escrito em 1901 por um jovem Leon Trotsky, foi reimpresso como introdução à primeira edição da revista Revolutionary Regroupment (EUA, segundo trimestre de 2010). Ele é simbólico da determinação da revista de ser bem sucedida em seu esforço e na sua confiança fundamental na capacidade da classe trabalhadora de quebrar as correntes de opressão e inaugurar um novo capítulo na história da humanidade. Sua tradução para o português foi realizada por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres em 2011. Ele também foi reimpresso na primeira edição de Reagrupamento Revolucionário (Brasil, terceiro trimestre de 2011).

Dum spiro spero! [Enquanto há vida, há esperança!] … Se eu fosse um dos corpos celestiais, eu olharia com completo desapego para esta bola miserável de sujeira e poeira … Eu brilharia indiferente entre o bem e o mal … Mas eu sou um homem. A história do mundo que para você, desapaixonado cálice de ciência, para você, guarda-livros da eternidade, parece apenas um momento insignificante no equilíbrio temporal, para mim é tudo! Enquanto eu respirar, eu lutarei pelo futuro, este radiante futuro no qual o homem, poderoso e belo, se tornará mestre do fluxo incerto da História e irá direcioná-lo para um horizonte sem fim de beleza, alegria e felicidade!

O século dezenove de muitas formas satisfez e de ainda mais formas enganou as esperanças do otimista … Ele o compeliu a transferir a maioria das suas esperanças para o século vinte. Sempre que o otimista se confrontava com um fato de atrocidade, ele exclamava: Como pode isso acontecer no limiar do século vinte! Quando ele imaginasse maravilhosamente desenhado um futuro harmonioso, ele o colocava no século vinte.

E agora este século chegou! O que trouxe com ele em sua inauguração?

Na França – o escarcéu venenoso do ódio racial [1]; na Áustria – disputa nacionalista…; na África do Sul – a agonia de um povo pequeno, que está sendo assassinado por um colosso [2]; na própria “ilha da liberdade” – o canto triunfante da vitoriosa avareza de agiotas chauvinistas; dramáticas “complicações” no leste; rebeliões de massas populares famintas na Itália, Bulgária, Romênia … ódio e morte, fome e sangue …

Parece até que o novo século, este gigante recém-chegado, está determinado mesmo no momento do seu surgimento a levar o otimista ao absoluto pessimismo e a um nirvana cívico.
           
– Morte à Utopia! Morte à fé! Morte ao amor! Morte à esperança! Esbraveja o século vinte em salvas de fogo e ao retumbar das armas.
           
– Renda-se seu patético sonhador. Aqui estou eu, o seu tão esperado século vinte, o seu “futuro”.
           
– Não, responde o inabalado otimista: Você, você é apenas o presente.

Notas do tradutor

[1] O “Caso Dreyfus”
[2] A Guerra dos Boers

Pablismo e Pablismo Invertido

Rascunho de Teses sobre Pablismo, Pablismo Invertido e a Quarta Internacional 

[Escrito pelo Communist Working Collective, organização de origens maoístas que se aproximou do trotskismo e da então revolucionária Liga Espartaquista nos anos 1970. Originalmente impresso no Marxist Bulletin No. 10, “Do Maoísmo ao Trotskismo: documentos sobre o desenvolvimento do Communist Working Collective de Los Angeles”, pela Liga Espartaquista. A tradução ao português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em novembro de 2013].

Pablismo 
1. Após a Segunda Guerra Mundial, o movimento trotskista internacional foi lançado em uma profunda crise teórica, política e organizativa. Grandes números de quadros trotskistas foram fisicamente destruídos pelo esforço conjunto dos imperialistas e stalinistas. O capitalismo mundial passou por uma relativa estabilização devida principalmente às traições socialdemocratas e stalinistas do levante revolucionário da classe trabalhadora que se seguiu ao cessar do conflito. Em adição, lideranças stalinistas e pequeno-burguesas foram bem sucedidas em derrubar o capitalismo e em estabelecer Estados operários deformados no Leste Europeu e na China. Todos esses fatores puseram de forma muito aguda para o movimento trotskista o problema de construir partidos de vanguarda proletários independentes.
2. A tendência revisionista pablista emergiu como uma tentativa de tornar o movimento trotskista mais “efetivo” acomodando-o aos movimentos de “esquerda” existentes no mundo. O papel dos trotskistas foi essencialmente confinado ao de um grupo de pressão sobre tais formações, se integrando a quaisquer forças parecessem ter mais potencial e esperando que esses agrupamentos, sob a influência da marcha objetiva dos eventos e incitação dos trotskistas, fossem ser forçados a adotar uma orientação revolucionária. Por essa razão, o pablismo pode ser considerado uma tendência liquidacionista. Assim, durante os anos 1950, Michel Pablo e seu Secretariado Internacional buscaram políticas de liquidação (entrismo “profundo”) nos partidos socialdemocratas e centristas da Europa Ocidental, as formações nacionais burguesas e pequeno-burguesas nos países coloniais, e os PCs stalinistas dirigentes na Leste Europeu.
3. Fundamental para a perspectiva de mundo pablista é a teoria, tomada do stalinismo, de que o equilíbrio de forças no mundo mudou em favor do socialismo, resultando em uma “nova realidade mundial”, na qual a maré da revolução é irreversível. Por essa razão, o pablismo também pode ser caracterizado como empirista. Essa concepção passou por várias variações. Por volta de 1950, Pablo previa uma Terceira Guerra Mundial, lançada pelo imperialismo para recuperar sua vantagem, que levaria ao confronto final entre capitalismo e stalinismo. Em 1953, o Secretariado Internacional afirmou que o isolamento da URSS havia terminado, eliminando uma das condições fundamentais para a existência da burocracia e levando à iminente queda do stalinismo. Mais recentemente, os pablistas declararam que o mundo colonial é o principal centro da revolução no mundo, que as lutas anti-imperialistas lá são ininterruptas e irresistíveis e que, portanto, a classe trabalhadora pode chegar ao poder com um “instrumento desafinado” ao invés de um partido proletário leninista. Assim, o problema de superar a crise de liderança proletária, o problema central da revolução socialista mundial, é abandonado, ou então deixado para ser resolvido pelo “processo objetivo” que se desenrola nessa “nova realidade mundial”.
4. Embora o Socialist Workers Party tenha rompido com os pablistas em 1953, no começo dos anos 1960 ficou claro que o SWP estava se movendo cada vez mais em direção à metodologia revisionista à qual ele uma vez havia se oposto. Essa tendência regressiva se manifestou mais abertamente na linha da maioria do SWP sobre a revolução cubana: apoio à burocracia governamental de Castro na esperança de que o castrismo iria se transformar em trotskismo. No nível organizativo, o abandono pelo SWP de uma linha proletária revolucionária se tornou definitiva com o “Congresso de Reunificação” de 1963, no qual as diferenças políticas “minoritárias” foram ignoradas para que o SWP pudesse realizar uma reunificação sem princípios com a Internacional (Secretariado Unificado). De fato, a principal resolução política aprovada nesse Congresso incluiu todas as teses básicas sobre as quais se baseou o pablismo: a mudança no equilíbrio mundial de forças, a centralidade da revolução colonial, e o fim do isolamento da URSS.
5. Desde o Congresso de 1963, tornou-se óbvio que, embora Pablo tenha caído em descrédito, o método do pablismo domina todo o SU. As seções europeias levaram a teoria do “epicentro colonial” à sua conclusão e chamaram pela luta armada baseada na guerra de guerrilhas rurais e entrismo nas organizações castristas da América Latina. Ao mesmo tempo, o SWP se moveu bruscamente para a direita, tornando-se pouco mais do que um grupo de apoio para o nacionalismo negro, o feminismo pequeno-burguês, o pacifismo liberal e a burocracia cubana. (Isso é verdade apesar de que agora o SWP afirma que a revolução cubana se degenerou – deixando a entender que ela já havia sido não-deformada). O maior trabalho do SWP e de seu grupo de juventude, a Young Socialist Alliance (YSA), é construir manifestações anti-guerra com base em políticas de um único ponto – uma perspectiva claramente reformista e frentepopulista. Assim todas as tendências dentro do SU, do aventureirismo ultraesquerdista dos partidos europeus ao reformismo na seção dos Estados Unidos, adotam o método liquidacionista e empirista pablista. 
Pablismo Invertido 
6. Outra tendência internacional que se adapta à metodologia do pablismo, apesar das proclamações de representar a única tendência internacional anti-pablista, é o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI), liderado principalmente pela Socialist Labour League britânica. A SLL, em sua análise sobre Cuba, usou as mesmas premissas objetivistas do pablismo e, ao fazer isso, falhou em compreender a diferença crítica entre o estabelecimento de um Estado liderado por um partido bolchevique-leninista onde órgãos de poder são democraticamente administrados pela classe trabalhadora (sovietes) e a formação de um Estado operário que desde o seu nascimento é dirigido por uma burocracia bonapartista. Com esse método, eles não podem adotar uma atitude correta com relação às lideranças stalinistas e pequeno-burguesas. Eles são forçados, para manter uma “posição firme” contra a capitulação dos pablistas a essas lideranças, a negar categoricamente a possibilidade de que, sob certas condições (sendo a mais importante um temporário apoio material do campo stalinista), essas lideranças possam de fato estabelecer Estados operários deformados. Essa posição os leva a concluir que Cuba não é um Estado operário deformado, mas alguma forma de “estatismo” (apesar do fato de que a liderança castrista de Cuba expropriou a burguesia, impôs o monopólio do comércio exterior e estabeleceu os rudimentos de uma economia planejada). Disso fica claro que a perspectiva metodológica da SLL e de seus seguidores pode ser caracterizada como pablismo invertido.
7. Essa reação da SLL e de seus colaboradores ao pablismo serve, em última instância, para reforçar a corrente pablista, já que não pode efetivamente lidar com as acomodações pablistas de forma teórica. Em essência, ambas as correntes igualam o Estado operário deformado com o caminho para o socialismo. O pablismo faz isso explicitamente, por seu apoio ao castrismo e seu outrora apoio velado à burocracia chinesa. Os pablistas invertidos começam com a mesma premissa, e por isso são forçados a negar o fato de uma transformação social para evitarem dar esse tipo de apoio. Uma avaliação trotskista correta da estratégia e táticas com relação a essas burocracias deve começar com a compreensão de que elas são um obstáculo à construção do socialismo, e assim descartar qualquer possibilidade de apoio, ainda que crítico, a tais lideranças, removendo a base da Pablofobia do CIQI.
A Quarta Internacional 
8. Com o desenvolvimento do capitalismo em imperialismo, a tendência básica do capitalismo de entrelaçar todas as áreas do mundo, independente do seu nível de desenvolvimento, em um sistema econômico comum que domina e subordina perante si cada uma de suas partes foi grandemente reforçada. A hegemonia do imperialismo sobre a economia mundial tende não apenas a uniformizar as várias etapas de desenvolvimento de uma área comparada com a outra, um país comparado com o outro, mas simultaneamente aumenta as diferenças entre eles e joga um contra o outro – dessa forma agravando enormemente a contradição entre o desenvolvimento futuro das forças produtivas mundiais e os limites do Estado nacional. Essa dinâmica do imperialismo inevitavelmente leva a guerras pela conquista e redistribuição dos mercados e para a completa destruição das forças produtivas na qual a cultura humana se baseia. A existência continuada do imperialismo ameaça, portanto, mergulhar a humanidade no barbarismo. É com base nisso, “na insolvência do Estado nacional, que se transformou em um freio para o desenvolvimento das forças produtivas” (Trotsky), que em última instância jaz o internacionalismo do comunismo.
9. O proletariado é a única classe capaz de destruir o capitalismo internacional e construir uma sociedade comunista que iria para sempre eliminar todas as guerras, exploração e desigualdade social e, portanto, criando as condições para o desenvolvimento sem limites da civilização humana. Entretanto, sem a liderança de um partido comunista, o proletariado não pode chegar ao poder e estabelecer um Estado operário genuíno em nenhum país. Além do mais, a revolução proletária internacional só pode triunfar se for liderada por uma internacional comunista revolucionária, ou seja, um partido mundial do proletariado. Isso foi completamente verificado pela experiência da Revolução de Outubro e pelas subsequentes derrotas que o proletariado internacional sofreu, em um momento em que estavam presentes todas as condições necessárias para a revolução mundial bem sucedida, com a exceção de uma internacional revolucionária que pudesse liderar a insurreição. Finalmente, tentar construir um partido revolucionário em separado, por fora ou em oposição à luta pela construção de uma internacional só pode significar capitulação ao estreito pensamento nacional que é inseparavelmente conectado com o reformismo. Assim, qualquer organização comunista que não assuma a luta pela construção de uma internacional comunista como seu ponto de partida estratégico deve inevitavelmente se degenerar.
10. A Quarta Internacional que foi fundada por Trotsky em oposição à degeneração da Terceira Internacional stalinista já não existe mais. O advento do pablismo destruiu a Quarta Internacional até o ponto em que o trotskismo revolucionário encontra sua continuidade programática apenas em pequenos e desunidos grupos, dispersos ao redor do mundo e que, por razões óbvias, não pode liderar seções significativas da classe trabalhadora na luta. Consequentemente, o principal foco internacional do trotskismo revolucionário deve ser dirigido para condução de discussões programáticas com essas organizações, com o objetivo de atingir a clareza programática necessária para um rápido reagrupamento que possa resultar em uma tendência internacional revolucionária que se tornasse um polo de atração ao redor do qual um reagrupamento comunista futuro e mais completo pudesse acontecer. Apenas usando esse método é possível começar a reconstrução da Quarta Internacional com base nas linhas do Programa de Transição de 1938.
11. Para lançar as bases de uma completa reconstrução da Quarta Internacional, é necessário derrotar decisivamente o pablismo através de um confronto ideológico em todas as arenas da luta de classes. Tal vitória sobre o revisionismo iria levar a teoria marxista adiante e prover a fundação necessária sobre a qual uma genuína unidade internacional baseada no centralismo democrático possa ser constituída. Por ora, entretanto, é importante enfatizar que a batalha contra o pablismo ainda não foi vencida.
12. Embora uma tendência internacional revolucionária ainda não tenha sido completamente cristalizada, o processo de reagrupamento comunista revolucionário pode e deve ser iniciado. Clareza suficiente sobre as questões básicas postas pelo pablismo foi alcançada em grande medida, abrindo assim a possiblidade de fusões de organizações nacionais e internacionais com base em princípios. É a essa tarefa, a reconstrução da Quarta Internacional através de um processo de reagrupamento comunista revolucionário, que se dedica o Communist Working Collective.
19 de agosto de 1971

Por uma perspectiva trotskista na Turquia

Chega de oportunismo, aventureirismo, nacional-divisionismo:

Por uma perspectiva trotskista na Turquia

[O documento a seguir foi assinado por dois membros da Fração Trotskista da Workers Socialist League britânica, que fundiu com o Grupo Espartaquista de Londres em março de 1978. Esse documento apareceu originalmente no Boletim de Discussão Pré-conferência da WSL No. 12, em fevereiro de 1978, e foi reimpresso em Spartacist Britain No. 1, em abril de 1978. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em 2013.]

“Esse não é um ‘documento sobre perspectivas’, já que perspectivas de trabalho não podem ser esboçadas no abstrato em Londres, mas devem ser desenvolvidas no contexto das lutas vivas na Turquia.”

Boletim de Discussão Pré-Conferência No. 6.

“Com essas poucas palavras, o caráter internacional do socialismo como doutrina científica e como movimento revolucionário é completamente refutado. Se socialistas (comunistas) de um país são incapazes, incompetentes, e consequentemente não tem direito a decidir as questões vitais da luta de socialistas (comunistas) em outros países, a Internacional proletária perde todos os direitos e possibilidades de existência.”

— Trotsky, Escritos 1933-34, página 33.

O trabalho realizado pelos camaradas na Turquia se baseia na experiência deles ao militarem com a WSL na Grã-Bretanha. A liderança da WSL inspirou e “guiou” o trabalho na Turquia; consequentemente, isso deve ser visto como um teste para o programa e a política da WSL. Essa hostilidade à luta por clareza programática, combinada com uma postura familiar de fazer “trabalho de massa”, levou ao que deve ser chamado de crise do movimento turco. Nós buscaremos oferecer uma base política para uma completa reorientação desse trabalho, enquanto reconhecemos que isso não pode ser alcançado sem uma radical reorientação da própria WSL. Nós concordamos quando a direção diz que “Os problemas desse trabalho são os problemas da WSL” (Boletim de Discussão Pré-Conferência No. 6, página 1).

Sobre a história do movimento turco

O trabalho da WSL na Turquia começou quando alguns camaradas foram para lá, onde eles tiveram discussões com a liderança de um grupo simpatizante do Secretariado Unificado nesse país – o KOZ. Depois disso, os camaradas encontraram quatro pessoas em Istambul que eram ligadas a um pequeno grupo próximo ao KOZ (mandelistas turcos) e conseguiram ter várias reuniões com essas pessoas para discutir política. Nesse ponto o camarada H. interviu e sugeriu que as quatro pessoas com quem nos reuníamos deveriam começar a trabalhar conosco. O contato com o grupo simpatizante do KOZ, do qual elas eram parte, foi abandonado. O que tornou esse rompimento muito destrutivo e sectário foi que ele não se deu em torno de diferenças políticas – mesmo as pessoas que nós eventualmente recrutamos não foram ganhas para nossas posições políticas. E já que não foi feita nenhuma tentativa de recrutar esses camaradas politicamente, alguns depois se desmoralizaram e deixaram o grupo.

Com o rompimento do contato com os simpatizantes do KOZ, a direção tomou então o “trabalho de massas” como a principal orientação do grupo. Isso na realidade era uma liquidação de quadros em potencial em uma série de ações estúpidas e aventureiras. Uma das primeiras dessas ações é descrita como se segue pelo documento da direção: “(…) nós concordamos com uma mobilização conjunta de um dia ao redor das seções eleitorais, para que pudéssemos lutar junto com os trabalhadores para defender o direito democrático.” (página 8). Mas o que foi tal “mobilização”? Em uma carta escrita em 7 de junho, o camarada H. responde a essas perguntas:

“Embora fosse tarde, alguns camaradas desse grupo e nós organizamos uma reunião e elegemos um comitê para mobilizar 20 camaradas para a defesa das urnas e contra a violência. Algumas [medidas específicas de proteção] estavam envolvidas na mobilização. Embora tenha sido muito fraca, ela foi útil para alguns camaradas jovens. Mas por causa da falta de prática dentro das fábricas, a defesa não foi realmente construída como uma defesa de trabalhadores.”

Deve-se notar que com essa atividade isolada nós conseguimos ignorar completamente a mobilização da DISK, a principal federação sindical, para defender as urnas.

Outro exemplo do “trabalho de massas” da WSL na Turquia é descrito no documento produzido pela direção:

“Quando os camaradas conseguiram empregos em outra pequena fábrica, nós fomos capazes de liderar (!) outra (!) luta por sindicalização. Novamente nós combatemos a burocracia da DISK, e ganhamos o apoio dos trabalhadores que organizamos previamente, que ajudaram com piquetes e arrecadação de fundos. Mas a greve foi marginalizada, foi quebrada, e todos os grevistas foram demitidos. Embora a batalha tenha sido perdida, nossos camaradas se desenvolveram e novos contatos foram ganhos.

Boletim de Discussão Pré-Conferência No. 6, página 9 [ênfase de Spartacist Britain]

Nós dissemos a esses jovens trabalhadores em uma pequena fábrica que eles deveriam entrar em greve por reconhecimento sindical. Nós tínhamos muito pouco entendimento do movimento sindical turco e não tínhamos meios de prover uma liderança para tal greve para além de nossa experiência com a WSL na Grã-Bretanha. Nós estávamos totalmente mal preparados para prover mesmo uma boa liderança meramente sindical para sustentar nossa orientação a esses trabalhadores.

Além da idiota ostentação dos nossos pequenos ganhos organizativos à custa de trabalhadores serem demitidos, nós culpamos os trabalhadores pelo fracasso da greve! Em uma carta para o camarada F., o camarada H. escreveu:

“A maior razão para isso [a derrota da greve] não é por que estejamos errados ou por causa do nosso método de trabalho, mas porque as leis estão contra nós, mesmo em tal luta, e que um grupo muito pequeno de trabalhadores não tem o poder para mudar essas leis. Outro erro cometido que não foi nosso foi o da militância dos trabalhadores, foi eles agirem cedo demais… A luta foi derrotada, mas como o método do Programa de Transição ensina, nós ganhamos, em primeiro lugar, o desenvolvimento de nossos camaradas e, em segundo lugar, tivemos a oportunidade de desenvolver um ou dois trabalhadores militantes!”

— 23 de agosto de 1977 [tradução e ênfase de Spartacist Britain]

Então a crise de direção não é o problema quando nós estamos envolvidos: nós colocamos nos trabalhadores a culpa por suas derrotas.

Mas a euforia com o sucesso não durou muito. Revelando a crise do grupo turco enquanto desacordos sobre centralização, e “visitas secretas” de um ex-camarada, o documento da direção afirma que essas coisas:

“… tiveram efeitos sobre um camarada em Istambul e sobre alguns outros camaradas em Ankara. O camarada em Istambul rompeu com o grupo.”

“Na última reunião em Ankara, os camaradas concordaram em atuar novamente como um grupo centralizado. Mas desde então nós não temos recebido informação detalhada sobre a situação em Ankara.”

Boletim de Discussão Pré-Conferência No. 6, página 9

A verdade é que, ao fracassar em fazer do esclarecimento político o trabalho mais importante para nossos camaradas turcos, a WSL desperdiçou suas oportunidades na Turquia. O grupo turco da WSL está uma confusão, e é duvidoso que seus membros ainda apoiem a WSL. A crise do grupo turco e a desmoralização expressada pela declaração acima estão ligadas a duas causas: primeiro, a natureza de panelinha (não-programática) através da qual o grupo foi construído e, segundo, o estúpido aventureirismo que só poderia nos desacreditar aos olhos de quaisquer militantes sérios.

Por uma orientação de propaganda trotskista

A única forma através da qual a base para um partido trotskista de verdade pode ser estabelecida é através do abandono de todas as pretensões de já atuar como um partido de massas e concentrar esforços em recrutar e treinar quadros que formarão uma futura liderança. Essa tarefa, antes de tudo uma tarefa de propaganda do trotskismo, também envolve uma orientação para discussão, debate e polêmicas com os outros grupos supostamente “revolucionários” – principalmente os falsos trotskistas do KOZ, que é aproximadamente 20 vezes maior do que nós. Não apenas há muitos revolucionários subjetivos nessa organização que podem ser ganhos para o trotskismo autêntico, mas a sua própria existência a torna um importante obstáculo adicional para a formação e crescimento de uma organização revolucionária. A luta contra o KOZ também pode desempenhar um papel na luta para esmagar os revisionistas pablistas internacionalmente. Em menor escala, nós devemos orientar nossa propaganda para as outras formações “marxistas” – maoístas, guevaristas, “anti-stalinistas” (especialmente na Revolutionary Youth, onde muitos elementos estão interessados no trotskismo). Qualquer outra estratégia – como o “trabalho de massas” da direção – só pode levar à liquidação da luta por uma liderança revolucionária na Turquia.

Nos primeiros dias da formação da Oposição de Esquerda Internacional, Trotsky projetou exatamente esse curso:

“Nossa força na atual etapa está em um correto (…) prognóstico revolucionário. Essas são as qualidades que nós devemos apresentar em primeiro lugar à vanguarda proletária. Nós agimos em primeiro lugar como propagandistas. Nós somos fracos demais para tentar dar respostas a todas as questões, para intervir em todos os conflitos específicos, para formular em todas as ocasiões e lugares os slogans e as respostas da Oposição de Esquerda. Buscar tamanha universalidade, com nossa fraqueza e a inexperiência de muitos camaradas, vai frequentemente levar a conclusões apressadas, a slogans imprudentes, a soluções erradas. Ao dar passos em falso em questões específicas, nós vamos nos comprometer, impedindo que os trabalhadores apreciem as qualidades fundamentais da Oposição de Esquerda. De forma alguma eu quero dizer que devamos nos colocar à parte da luta real da classe trabalhadora. Nada disso. Os trabalhadores avançados podem testar as vantagens revolucionárias da Oposição de Esquerda apenas através de experiências práticas, mas deve-se aprender a selecionar as questões mais vitais, mais candentes, e mais dependente de princípios e, através dessas questões entrar em combate sem se desgastar em ninharias e detalhes. É nisso, me parece, que consiste agora o papel fundamental da Oposição de Esquerda.”

— Trotsky, Escritos 1930-31, página 297

A palavra de ordem de frente única na Turquia

Um dos erros políticos mais sérios do movimento turco foi o uso inteiramente falso e incorreto da palavra de ordem da “frente única”. Para os revolucionários, a frente única é uma tática que é útil para unir os trabalhadores de várias tendências políticas para certas ações comuns limitadas e concretas (contra os fascistas, por exemplo) enquanto ao mesmo tempo proveem a oportunidade de expor a traição e inconsistências dos reformistas e centristas para os seus seguidores.


Centristas tentam usar a palavra de ordem da “frente única” para encobrir sua própria capitulação diante dos reformistas – ou como algum tipo de atalho mágico para a influência de massas. Eles tentam apresentar blocos de propaganda comuns com os reformistas (ou outros centristas) como um substituto ou primeiro estágio na construção do partido revolucionário. A fórmula leninista da frente única é “bater juntos – marchar separados”, mas os centristas sempre querem marchar junto com os reformistas sob uma bandeira comum. Essa é exatamente a estratégia proposta pela liderança dos camaradas turcos da WSL em Enternasyonal No. 5 (setembro, outubro e novembro de 1977).

“Tal frente [única] vai buscar lidar com as questões econômicas e políticas dos operários e trabalhadores, e ser uma alternativa para o poder. A questão se reduz ao estabelecimento de uma poderosa combinação política e organizativa na qual outros amplos setores de trabalhadores e membros da pequeno-burguesia possam confiar….”

Ou, novamente, em Enternasyonal No. 3 (julho de 1977): “A luta deveria avançar para estabelecer uma Frente Única com um programa socialista”. Tal proposta – por uma frente única estratégica com os traidores reformistas e centristas – é, na realidade, uma proposta oportunista para liquidar a vanguarda revolucionária.

Um dos resultados da confusão introduzida pela liderança sobre a questão da frente única é que os camaradas logicamente se perguntam se o partido revolucionário poderia realizar ações comuns na qual o partido burguês RPP, que possui uma base de massas, poderia participar sem formar uma frente popular. Entretanto, se aceitarmos a definição de frente única de Lenin e Trotsky, como um acordo temporário para ações comuns limitadas dentro das quais os revolucionários mantêm completa liberdade de fazer críticas, fica claro que ações comuns nas quais os RPP participe não constituem traições frentepopulistas.

A luta contra o fascismo

Hoje na Turquia, a existência e o crescimento dos fascistas colocam um sério perigo ao proletariado. O Partido da Ação Nacional usa livremente sua organização de juventude para atacar as organizações dos trabalhadores e militantes individuais. Enquanto nós temos atualmente apenas algumas forças limitadas na Turquia, é necessário que levantemos o programa político correto para esmagar os fascistas. Nosso grupo não é capaz de criar uma organização de defesa independente. A tarefa é lutar para criar tal corpo dentro dos sindicatos. Enquanto tal política se contrapõe ao aventureirismo absurdo e potencialmente desastroso que é defender as seções eleitorais por conta própria, também se contrapõe ao chamado oportunista por uma frente única estratégica com as demais organizações de trabalhadores existentes.

O chamado de Trotsky para que o PC formasse uma frente única com os socialdemocratas do SPD na Alemanha não pode ser separado da autocaracterização da Oposição de Esquerda como uma fração da Internacional Comunista. Portanto, nós não chamamos por uma frente única das organizações operárias existentes como uma solução para a ameaça fascista. Tal estratégia significa dizer aos trabalhadores para depositarem sua fé em um bloco dos colaboracionistas de classe socialdemocratas e stalinistas. Trotskistas nunca devem ensinar os trabalhadores a confiar na unidade dos reformistas – ao invés disso, uma das razões pelas quais nós chamamos os reformistas para realizarem ações de frente única (conosco) é para que nós possamos melhor expor sua traição e covardia diante da base. Em um sentido histórico, a classe trabalhadora na Turquia, assim como nos outros lugares, se vê diante de duas alternativas: socialismo ou barbárie (que pode bem tomar a forma do fascismo). A ameaça do fascismo não pode ser removida a não ser pela vitória da revolução socialista – e isso requer a liderança de um partido trotskista de vanguarda.

A questão do partido operário na Turquia

Ao contrário da Grã-Bretanha e de outros países europeus, hoje não existe na Turquia um partido operário reformista de massas. Ambos o Partido Trabalhista Turco (TIP) e o Partido Comunista Turco (TKP) pró-Moscou são organizações muito pequenas (não muito maiores que o SWP britânico de Tony Cliff) com uma base pequena nos sindicatos. O partido que possui uma base de massas nos sindicatos (o RPP) é um partido abertamente burguês.

Portanto, uma tarefa chave para os revolucionários na Turquia é lutar para que os trabalhadores rompam com o RPP e pela construção de um partido operário de massas como uma forma de construir a independência de classe dos trabalhadores contra a burguesia. Quando nós levantamos o chamado por esse partido, devemos deixar claro que queremos um partido operário baseado no programa revolucionário – o Programa de Transição. Nós não temos interesse em lutar por uma versão turca do reformista Partido Trabalhista britânico. Essa é claramente a posição de Trotsky em suas discussões sobre o programa para um partido operário nos Estados Unidos: “Nós devemos dizer aos stalinistas, aos lovestonistas, etc., ‘Nós somos a favor de um partido revolucionário. Vocês estão fazendo de tudo para que ele seja reformista! ’. Mas nós sempre apontamos para nosso programa. E nós propomos o nosso programa de demandas transitórias.” (“Como Lutar por um Partido Operário nos EUA”, O Programa de Transição para a Revolução Socialista, página 124).

Apenas em duas edições recentes de Socialist Press a WSL chamou pela construção de um partido operário na Turquia, mas nos materiais escritos em turco, o grupo turco da WSL nunca levantou essa palavra de ordem. Ao invés disso, a política da liderança tem sido a de oferecer apoio ao pequeno e ultrarreformista TIP. Na época das últimas eleições, o TIP tentou desesperadamente fazer um bloco eleitoral com o muito maior RPP. Só quando o RPP recusou a oferta foi que o TIP lançou candidatos, e então eles concorreram com um programa de colaboração de classes – tentando forçar o burguês RPP a formar com o TIP e outros pequenos partidos da esquerda uma frente popular. Apesar da plataforma claramente frentepopulista da campanha do TIP, nosso grupo vergonhosamente chamou os trabalhadores a votarem por esses traidores e levantou até mesmo o chamado oportunista e ridículo para que o colaboracionista TIP lutasse por um programa revolucionário! A “tática” reformista (que significa gerar ilusões nas massas sobre o TIP) foi claramente copiada da palavra de ordem da WSL, “Fazer os Partidos da Esquerda Lutarem”, e do chamado da WSL para votar nos trabalhistas apesar da sua coalizão com os liberais.

Nós defendemos um rompimento com a capitulação diante do pequeno grupo de colaboracionistas socialdemocratas do TIP e pela adoção do chamado pela independência política de classe dos trabalhadores turcos – por um partido operário baseado no Programa de Transição na Turquia!

Por uma posição leninista na questão nacional

Os leninistas defendem o princípio democrático básico da igualdade entre as nações e, portanto, reconhecem o direito de todas as nações à autodeterminação – ou seja, o direito de todas as nações de estabelecerem seu próprio Estado político. Nós não defendemos essa política para fortalecer a reacionária ideologia do nacionalista entre o proletariado, mas para enfraquecê-la, e dessa maneira fortalecer a unidade proletária independente de divisões nacionais. Se nós vamos ou não chamar pela realização do direito de autodeterminação em uma situação particular depende de uma variedade de fatores. Como Lenin aponta na Discussão Sobre a Autodeterminação Resumida:

“As várias demandas da democracia, incluindo a autodeterminação, não são absolutas, mas apenas uma pequena parte do movimento geral democrático (agora geral socialista) mundial. Em casos individuais concretos, a parte pode contradizer o todo; se for o caso, ela deve ser rejeitada.”

Obras Reunidas, Vol. 22

Na passagem a seguir, Lenin resumiu a perspectiva bolchevique à opressão nacional, e nossa hostilidade ao nacionalismo:

“O despertar das massas da letargia feudal, e sua luta contra toda a opressão nacional, pela soberania do povo, da nação, são progressivas. Portanto, é o dever obrigatório dos marxistas defenderem a democracia mais resoluta e consistente em todos os aspectos da questão nacional. A tarefa é em grande parte negativa. Mas esse é o limite do proletariado em apoiar o nacionalismo, já que para além disso começa a atividade ‘positiva’ da burguesia no esforço para fortalecer o nacionalismo.”

“É um dever imperativo do proletariado, como força democrática, se livrar do jugo feudal, de toda opressão nacional, de todo privilégio desfrutado por qualquer nação ou língua, e isso certamente está nos interesses da luta de classes do proletariado, que é obscurecida e retardada pelas disputas sobre a questão nacional. Mas ir além desses limites históricos limitados e definidos de ajuda ao nacionalismo burguês significa trair o proletariado e ficar ao lado da burguesia. Há uma linha divisória aqui, que frequentemente é muito sutil, e a qual os membros do Bund judaico e os nacionalistas-socialistas ucranianos perderam completamente de vista.”

Comentários Críticos Acerca da Questão Nacional, páginas 22-23.

Pelo direito de autodeterminação do povo curdo

O povo curdo é uma minoria nacional oprimida que se divide entre a Turquia, Irã, Iraque, Síria e União Soviética. A maior porção dos curdos (cerca de um quarto) vive na Turquia. Uma posição correta sobre a questão curda é central para a orientação de um grupo revolucionário na maioria dos países nos quais o povo curdo reside atualmente.

Embora tenha havido inúmeros levantes de setores do povo curdo contra vários opressores ao longo do último século, o que os curdos desejam, enquanto povo, de forma alguma está decidido de forma definitiva. As várias lutas dos curdos nos últimos cem anos não dão nenhuma indicação clara para saber se eles desejam simples igualdade, ou autonomia regional dentro de determinado Estado ou independência.

A luta recente mais bem conhecida do nacionalista Partido Democrata Curdo foi por autonomia regional dentro do Estado iraquiano. Em uma situação como essa, na qual existe opressão nacional, mas na qual o desejo do povo oprimido nacionalmente não se expressou claramente, nós só podemos defender uma solução que minimize as divisões nacionais entre o proletariado da região, ou seja, o direito do povo curdo à autodeterminação. Essa demanda é negativa – nenhuma solução forçada pelas burguesias dominantes da região para a questão curda – e deixa aberta a questão sobre o que os curdos decidirão – direitos iguais, autonomia regional ou independência.

Ao lidarem com a questão curda na Turquia, é vital que os trotskistas exponham impiedosamente a posição nacional-chauvinista do Partido Comunista Turco (TKP). Em sua tentativa de se aproximar do partido burguês RPP, o TKP essencialmente nega o direito dos curdos à autodeterminação e apoia o “direito” da burguesia turca de continuar a oprimir os curdos que vivem dentro das atuais fronteiras da Turquia. A posição da liderança da WSL sobre a questão curda rejeita o nacional-chauvinismo do TKP stalinista apenas para adotar um programa nacionalista.

A posição da liderança do grupo turco da WSL é desavergonhadamente nacional-divisionista: “A tarefa política dos trotskistas no Curdistão deve consistir na luta por um partido independente e [na] luta para ganhar e preservar a independência política da classe trabalhadora com relação aos nacionalistas burgueses”. Enquanto um partido de vanguarda na Turquia possa ter organizações especiais para o trabalho entre os curdos, isso apenas refletirá uma divisão de trabalho dentro do partido. Essa divisão de trabalho é simplesmente para realizar a organização e mobilização das massas curdas. Nós ficamos com Lenin contra a divisão em partidos separados dos proletários de diferentes nações dentro das mesmas fronteiras de um mesmo poder de Estado:

“Os trabalhadores grão-russos e ucranianos devem trabalhar juntos e, enquanto viverem no mesmo Estado, agir na mais íntima unidade e coordenação organizativa, rumo a uma cultura internacional do movimento proletário, agindo na mais absoluta tolerância sobre a questão do idioma com o qual a propaganda é conduzida, e nos detalhes puramente locais ou puramente nacionais de tal propaganda. Essa é uma exigência imperativa do marxismo. Toda reivindicação de separação dos trabalhadores de uma nação dos trabalhadores da outra, todos os ataques contra a ‘assimilação’ marxista… é nacionalismo burguês, contra o qual é essencial realizar uma luta implacável.”

Comentários Críticos Acerca da Questão Nacional, páginas 20-21.

O documento da liderança projeta um programa de trabalho entre os curdos que defende uma concepção etapista:

“Tal programa irá focar em demandas democráticas (independência nacional, uma assembleia constituinte, o direito de falar a língua curda, etc.), mas também deve apontar para o caráter permanente da revolução.” [ênfase de Spartacist Britain]

Isso foi colocado de forma ainda mais clara na reunião em Londres sobre a Turquia, em 11 de dezembro, quando o camarada H. declarou que: “A tarefa diante da nação curda não é se unir com o proletariado turco, mas atingir a sua unidade nacional primeiro”. Na reunião, o camarada H. estava apenas repetindo o que lhe havia sido dito na conferência sobre o Curdistão, realizada em Londres em novembro. Nós não aceitamos a revolução permanente como um mero adendo a documentos internos enquanto a atividade real da organização foca apenas em demandas democráticas. Nas palavras do Programa de Transição:

“Nessa luta, as palavras de ordem democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, mas decorrem umas das outras. Apenas havia iniciado a organização de sindicatos, o proletariado chinês foi obrigado a pensar nos conselhos. É neste sentido que o presente programa é plenamente aplicável aos países coloniais e semicoloniais, pelo menos àqueles onde o proletariado já é capaz de possuir uma política independente.”

Argumentar que o proletariado curdo não se tornou capaz de possuir uma política independente (como classe) seria ignorar o importante potencial que foi demonstrado pelas lutas dos petroleiros de Kirkuk no Pós-Segunda Guerra.

Finalmente, nós defendemos a palavra de ordem leninista do direito dos curdos à autodeterminação e contra a capitulação ao nacionalismo que é expresso no chamado da liderança por um Curdistão independente. Lenin lidou em particular com a questão de reivindicar a separação:

“A exigência de uma resposta, ‘sim’ ou ‘não’, à questão da separação no caso de cada nação pode parece muito ‘prática’. Na realidade, ela é absurda – ela é metafísica em teoria, enquanto na prática leva à subordinação do proletariado à política da burguesia. A burguesia sempre coloca as demandas nacionais em primeiro plano, e o faz de forma categórica. Com o proletariado, entretanto, essas demandas são subordinadas aos interesses da luta de classes. Teoricamente, você não pode dizer de antemão se a revolução democrático-burguesa vai terminar com uma determinada nação se separando da outra, ou em uma situação de igualdade com a outra; em todo caso, o importante para o proletariado é garantir o desenvolvimento de sua classe. Para a burguesia, o importante é atrapalhar esse desenvolvimento forçando os interesses da sua ‘própria’ nação antes dos interesses do proletariado. É por isso que o proletariado se limita, por assim dizer, às demandas negativas pelo reconhecimento ao direito de autodeterminação, sem dar garantias a nenhuma nação, e sem prometer nadaa custas de outra nação.”

O Direito das Nações à Autodeterminação, páginas 53-54.

A questão nacional no Chipre

Embora o Chipre não seja parte da Turquia, a considerável população turca e o envolvimento do Estado turco nos assuntos do Chipre fazem com da questão cipriota uma questão chave para os revolucionários turcos. Até 1974, a população turca no Chipre era oprimida nacionalmente pela população grega – mas desde a invasão do exército turco, os gregos têm estado na posição de oprimidos. Em razão de as duas populações estarem completamente entrelaçadas nessa pequena ilha, fica claro que a “autodeterminação” não é aplicável. Nós, portanto, chamamos pela retirada de todas as tropas estrangeiras (sejam turcas, gregas, da ONU, da OTAN, ou quaisquer outras) e pela união do povo trabalhador grego e turco do Chipre para derrubar o capitalismo e estabelecer um Estado operário liderado por um partido trotskista. Apenas através de uma revolução dos trabalhadores unidos, a opressão nacional no Chipre pode ser encerrada de uma forma que seja justa para ambos os povos.

A importância dos Estados operários

Em razão da localização estratégica da Turquia, a questão da atitude dos revolucionários em relação aos Estados operários é extremamente importante. A flagrante omissão de qualquer menção a essas questões no documento da liderança é uma indicação da incapacidade dela para entender as tarefas diante dos revolucionários turcos. Nós defendemos a revolução política nos Estados operários e por sua defesa incondicional contra ataques imperialistas.

Pelo centralismo democrático leninista

A forma organizativa interna do nosso grupo turco é muito distante do centralismo democrático. Ao invés disso, são panelinhas na forma de um rígido centralismo. Na Grã-Bretanha, o camarada H., “secretário-geral” do grupo turco, e o camarada I. agiram em unidade disciplinada no Comitê Executivo contra os outros camaradas. Esse centralismo ridiculamente rígido chegou ao cúmulo na Turquia. Em Istambul, havia um comitê regional de três e dois membros fora do comitê regional. Em Ankara, antes havia dois membros no comitê regional e um camarada que não fazia parte do comitê. A consequência política dessa forma de organização é que os membros não participam das discussões do grupo – e, portanto, tem sua formação política atrofiada. Discussões reais acontecem apenas nos “órgãos de liderança” – o resto dos membros simplesmente recebe as decisões, as quais devem aceitar ou lançar uma luta contra a direção.

Os métodos burocráticos da liderança não podem ser separados da forma com a qual os membros foram recrutados na Turquia – não com base em um acordo com a linha política da WSL, mas simplesmente por terem concordado em participar das atividades do grupo e aceitar a sua disciplina. Nós defendemos a forma leninista de centralismo democrático – os membros devem estar envolvidos com a discussão e a elaboração da linha política, e depois de uma decisão ser tomada de forma democrática, ela deve ser aplicada lealmente por todos os camaradas. Apenas dessa forma é possível corrigir os erros da liderança e desenvolver os membros.

A disciplina leninista não é apenas um acordo vago entre indivíduos simpáticos para trabalharem juntos. James P. Cannon, o fundador do trotskismo norte-americano, disse o seguinte:

“Não é uma questão de 50 por cento de democracia e 50 por cento de centralismo. A democracia deve cumprir o papel dominante em épocas normais. Em tempos de ação, atividade intensa, crises… e giros no partido, como o movimento de proletarização depois do racha, e assim por diante, o centralismo deve tomar a frente, como foi nos últimos anos.”

O método e forma de organização leninista fluem do programa, das tarefas e dos objetivos estabelecidos pelo partido, em completa harmonia, em uma concepção inteiramente harmônica.

O Socialist Workers Party na Segunda Guerra Mundial, página 352 [ênfase nossa].

Por uma tendência internacional democrático-centralista! Pela reconstrução da Quarta Internacional!

Embora no seu início o documento da direção turca defenda a necessidade de pertencer a um movimento internacional principista, ele se coloca contra ser parte de uma tendência internacional democrático-centralista: “… nós propomos estabelecer grupos de ‘Enternasyonal’ em uma base centralizada em cada região, como um passo preliminar rumo a um partido trotskista turco, autônomo, mas em aliança política com a WSL” (página 10). Nós nos opomos à criação de mais um grupo como o CIL grego ou a SL (DC) norte-americana, com os quais a WSL pode se “aliar” sem colocar nenhum empenho ou tomar nenhuma responsabilidade política. Esse é o tipo de “internacionalismo” federativo e frouxo do Bureau de Londres nos anos 1930 ou o do Secretariado Unificado de hoje – mas nada tem a ver com o internacionalismo bolchevique da Oposição de Esquerda. Nós defendemos a organização de uma tendência internacional leninista democrático-centralista que irá lutar pela reconstrução da Quarta Internacional. Tal tendência internacional não pode ser uma coleção de grupos politicamente aliados porém organizativamente autônomos, e sim funcionar como o embrião de um partido mundial da revolução socialista – a Quarta Internacional.

O estabelecimento de uma tendência revolucionária internacional democrático-centralista não é simplesmente uma questão organizativa – é primeiramente uma questão política. A internacional revolucionária, e todas as suas seções, devem firmemente levantar as posições programáticas básicas do Programa de Transição: oposição a todas as formas de colaboração de classes; reconhecimento da validade da estratégia da revolução permanente; e uma determinação a liderar a revolução política contra os dirigentes burocráticos stalinistas no Estados operários degenerados e deformados, combinada com uma política de defesa militar incondicional desses Estados contra o imperialismo. Antes que a WSL possa realizar um trabalho principista revolucionário na Turquia (ou em qualquer outro lugar) deve haver um completo realinhamento programático do movimento de acordo com as posições apresentadas neste documento e no documento “Em Defesa de um Programa Revolucionário”, ao qual nós, desde já, declaramos nosso apoio.

Rumo a um partido trotskista turco, seção de uma Quarta Internacional reconstruída, partido mundial da revolução socialista!

E. (Grupo turco, filial de Hackney)

F. (Grupo turco, filial de Hackney)

28 de janeiro de 1978

(Nós reconhecemos a ajuda do camarada Jim Saunders na preparação desse documento).

James Cannon sobre o Pablismo

 

James Cannon sobre o Pablismo 

[Este é um pequeno trecho do discurso de James P. Cannon ao pleno do Comitê Central do Socialist Workers Party (Partido dos Trabalhadores Socialistas – SWP) dos Estados Unidos em 3 de novembro de 1953 (disponível em espanhol na íntegra), em sequência ao seu rompimento com os pablistas. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em 2013].

A direção é o problema por resolver da classe trabalhadora de todo o mundo. O único obstáculo entre a classe trabalhadora do mundo e o socialismo é o problema não resolvido da direção. É isso que significa “a questão do partido”. É isso que quer dizer o Programa de Transição quando declara que a crise do movimento proletário é a crise de direção. Isso significa que até que a classe trabalhadora resolva o problema de criar o partido revolucionário, a expressão consciente do processo histórico que possa dirigir as massas em luta, a questão seguirá sem ser resolvida. É a questão mais importante de todas: a questão do partido. 

Se o nosso rompimento com o pablismo, como nós agora vemos claramente, for resumido a um ponto e puder ser concentrado em um ponto – esse ponto é a questão do partido. Isso nos parece claro agora conforme nós temos visto o desenvolvimento do pablismo na prática. A essência do revisionismo pablista é o abandono daquela parte do trotskismo que é hoje a sua parte mais vital – a concepção da crise da humanidade como a crise de liderança do movimento proletário resumida à questão do partido.
 
O pablismo busca não apenas destruir o trotskismo; ele busca destruir aquela parte do trotskismo que Trotsky aprendeu de Lenin. A maior contribuição de Lenin a toda sua época foi sua compreensão e sua luta determinada para construir um partido de vanguarda capaz de liderar os trabalhadores na revolução. E ele não confinou sua teoria à sua própria época de atividade. Ele voltou a 1871 e disse que o fator decisivo na derrota da primeira revolução proletária, a Comuna de Paris, foi a ausência de um partido de vanguarda marxista revolucionário capaz de dar ao movimento de massas um programa consciente e uma liderança resoluta. Foi a aceitação por Trotsky dessa contribuição de Lenin em 1917 que fez de Trotsky um leninista.
  
Isso está escrito no Programa de Transição, esse conceito leninista do papel decisivo do partido revolucionário. E é isso que os pablistas estão jogando pela janela a favor de uma concepção de que as ideias vão de alguma forma se filtrar para dentro das cabeças da burocracia traidora, dos stalinistas ou dos reformistas, e de que de uma forma ou de outra, no “dia de São Nunca”, a revolução socialista vai ser realizada e levada adiante sem um partido marxista revolucionário, isto é, leninista-trotskista. Essa é a essência do pablismo. Pablismo é a substituição do partido e do programa por uma fé e uma crença mística.

Carta de Farrell Dobbs para Gerry Healy

Carta de Farrell Dobbs para G. Healy
25 de outubro de 1953
[Farrell Dobbs foi um dos dirigentes do Socialist Workers Party (Partido dos Trabalhadores Socialistas – SWP). A presente carta foi publicada originalmente no boletim do Comitê Internacional no contexto do rompimento do SWP com Pablo. A maior parte deste documento foi traduzida ao português pela Editora Tykhe, como uma citação de “A Herança que Nós Defendemos” disponível em http://www.tykhe.com.br/extras/mv/mv3_08.pdf. A parte restante da carta foi traduzida pelo Reagrupamento Revolucionário para publicação em outubro de 2013].

Caro Jerry [G. Healy],
Nós recebemos sua carta de 12 de outubro e o artigo de discussão de Tom, o qual nós estamos incluindo no boletim. Nós ainda estamos esperando sua opinião sobre o memorando a respeito da ‘Ascensão e Declínio do Stalinismo’. Parece melhor que esse documento não seja circulado para além das lideranças de seu próprio grupo até depois de nossa plenária.
Desde a chegada de Jim [James P. Cannon] a Nova Iorque,estivemos estudando o curso da luta internacional e avaliando os seus mais recentes desenvolvimentos. Lemos atentamente todas as suas cartas, que tiveram uma profunda influência no nosso pensamento sobre a questão internacional.
O mais sinistro de tudo é o ultimato de Pablo mostrando a intenção de promover e ajudar a minoria revisionista a derrubar e subjugar a maioria em seu partido. Observamos que, enquanto empreende esse violento ataque sobre vocês ele permanece muito mais cauteloso com sua atitude perante nós. Existe um motivo para isso. Ele quer manter-nos imobilizados na arena internacional e preocupados com a luta contra nossos próprios revisionistas, aos quais ele tem dado apoio clandestino, enquanto tenta fazer em pedaços, um por um, outros grupos trotskistas ortodoxos e o seu grupo.
Pensamos que o melhor serviço que podemos prestar ao movimento internacional é romper com toda a teia pablista de intrigas através de um desafio aberto à sua linha revisionista liquidacionista. Pensamos que chegou a hora de realizar um apelo aberto aos trotskistas ortodoxos do mundo para reagruparem-se em socorro à IV Internacional e derrubar a camarilha revisionista usurpadora. O movimento deve ser posto de sobreaviso contra a tática de Pablo de causar rachas e realizar expulsões, contra o abuso de poder administrativo na tentativa de repetir numa escala internacional o truque da França de subjugar uma maioria com uma minoria.
Na linha dessa decisão, de passar da defensiva à ofensiva, estamos alterando todo o caráter do esboço do apelo que mandamos a você. Aquele esboço limitava-se a uma descrição do revisionismo em nosso partido e do apoio de Pablo aos revisionistas, com um apeloaos trotskistas ortodoxos do mundo para a nossa batalha. Agora, nossa plenária pretende lançar um manifesto aberto para o movimento mundial com um chamado para nos armarmos contra os pablistas no campo internacional.
O manifesto terá como ponto de partida as políticas criminosas do pablismo com referência aos eventos revolucionários na Alemanha Oriental, França, Irã, e os novos desenvolvimentos na União Soviética. Demonstraremos que as linhas de clivagem política se tornaram tão profundas e os métodos organizativos pablistas tão estranhos ao nosso movimento que um modus vivendi não é mais possível. A conduta dos pablistas mostra seu desdém pelas reais relações de forças no movimento. Eles atuam como se Pablo e sua corja fossem donos da internacional. Os trotskistas ortodoxos devem expulsar Pablo e toda a camarilha ao seu redor, que não deixam qualquer espaço para um modus vivendidiferente da completa submissão à sua linha criminosa.
É necessário reconhecer que essa exposição não pode esperar até o próximo congresso, como muitos haviam pensado anteriormente. Os pablistas já mostraram através de seus atos na França e de suas manobras e ameaças contra você na Inglaterra que não permitirão um congresso democrático. Seu plano é livrarem-se dos trotskistas ortodoxos antes do congresso sequer começar. Devemos agir já e de maneira decisiva. Isso quer dizer que devemos iniciar o contra-ataque sem demora. Não podemos ter ilusões de que pode haver comprometimento ou acordo pacífico com esse bando.
Essa mudança na tática, que foi decidida por unanimidade por aqui, surgiu particularmente das nossas deliberaçõessobre como podemos melhor ajudá-lo na sua batalha. Atualmente, sabemosque você encontra-se preso numa teia de calúnias e falsos legalismos que o têm mantido na defensiva. Você é compelido a lutar no terreno pablista juntamente com camaradas inexperientes, que podem ser levados pelo germe de confusão política de Pablo e o uso que faz de intrigas organizacionais.
O desafio político direto e aberto de Pablo por nossa plenária faz a coisa mudar de figura, corta a sua estratégia de confundir e provém a todos com um excelente embasamento para passar da defensiva à ofensiva em apoio ao nosso manifesto. Você pode assim mobilizar e armar rapidamente para a batalha todos os trotskistas ortodoxos.
A luta em que entramos agora não é menos vital e decisiva para o futuro do que foram as grandes batalhas ocorridas 25 anos atrás, nas quais o grupo trotskista original estava reunido. Em face desses imperativos políticos, pequenos escândalos e manobras organizacionais perdem força. Através de um desafio político não comprometedor você irá rapidamente unir suas forças numa facção que se tornará o movimento futuro na Inglaterra.
Se deixarmos a luta ser conduzida muito mais adiante do nível em que se encontra, você corre o inevitável risco de ver a desmoralização e a confusão racharem seu movimento. E isso é o que mais tememos no momento atual.
Já tivemos um teste preliminar da efetividade dessa mudança de tática em um debate interno sobre a greve geral na França que aconteceu aqui em Nova Iorque, na última quinta-feira. Nessa discussão, pela primeira vez atacamos Pablo abertamente. Os cochranistas [aliados de Pablo no SWP] pareciam surpresos e chocados que ousássemos fazê-lo, enquanto nossas forças animaram-se com a abertura da guerra contra Pablo. A surpresa dos cochranistas diante de nosso ataque cortante a Pablo parece confirmar nossa desconfiança de que ele pensava que tínhamos medo de iniciar uma batalha aberta contra ele. Ele pensava que fazendo um engenhoso jogo duplo conosco poderia manter-nos imobilizados na batalha internacional até que terminasse o golpe à francesa no partido britânico.
O fator mais decisivo do debate foi a avidez com que nossas bases responderam ao sinal de que uma guerra aberta contra o revisionismo e liquidacionismo pablista iniciava-se no movimento mundial. Pensamos que essa reação saudável será duplicada por todo lado entre aqueles que não esqueceram o que lhes ensinou Trotsky e que esperam, como você mencionou diversas vezes, o SWP falar. Por toda a parte o nosso movimento se formou sobre os ensinamentos de Trotsky. Como disse Morris em nossa reunião de ontem, todos leram os mesmos livros que nós, e sabem tanto quanto nós sabemos. Como você indicou em sua recente carta, há múltiplos sinais de desconforto ao longo do movimento a respeito da linha revisionista de Pablo.
Por todas essas razões, nós estamos absolutamente confiantes que uma vez feito o desafio aberto, nós rapidamente mobilizaremos uma decisiva maioria do movimento mundial em defesa dos nossos princípios ortodoxos. Mas para fazê-lo, chegou a hora de chamar a as coisas por seus nomes corretos, de falar abertamente e sem atraso.
Ao adotar um manifesto aberto contra Pablo em nossa plenária, nós estaremos pondo uma arma na cabeça de seus apoiadores cochranistas em nosso partido. Isso significa que o verdadeiro quase-racha que tem existido em nosso partido nas últimas semanas vai rapidamente se transformar em um rompimento aberto. Da nossa parte, não temos absolutamente nada a perder com isso e tudo a ganhar. Nós não contemplamos nenhum tipo de reconciliação futura com essas pessoas.
Várias ações naturalmente irão fluir a partir dessa decisão básica que será tomada em nossa plenária. Nós trabalharemos nelas conforme avançarmos. A principal linha delas já está clara. O cerne disso é que nós não iremos cair na teia de quaisquer legalismos por parte dessa camarilha usurpadora. Nós teremos uma luta aberta pelo controle do movimento mundial.
Imediatamente após a plenária, nós devemos estabelecer íntimas relações organizativas e consultivas com os trotskistas ortodoxos de toda a parte, incluindo aqueles que foram injustamente expulsos. Nós achamos que um comitê de coordenação deve ser estabelecido sem atraso desnecessário. Nós enviaremos alguém logo depois da nossa plenária para discutir esse problema diretamente com você.
Saudações camaradas,
Farrell Dobbs
P.S.: Haverá umagrande quantidade de materiais em nosso jornal que serão bastante úteis para vocês em sua luta. Se você nos enviar uma lista de todas as suas pessoas que você deseja que recebam nossa imprensa – sejam cópias individuais ou pacotes – nós os colocaremos em nossa lista de entrega.

Os Trotskistas Chineses e o Pablismo

A experiência chinesa com o revisionismo e o burocratismo pablista

Por Peng Shuzi

[Esta carta aberta para James P. Cannon foi escrita pelo líder veterano do trotskismo chinês à luz da decisão da organização trotskista chinesa de aderir ao Comitê Internacional. A tradução para o português foi realizada em agosto de 2013 pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão disponível em inglês em http://www.marxists.org/archive/peng/1953/dec/30.htm].

30 de dezembro de 1953

Caro camarada Cannon,

Bem no começo deste ano eu pretendia escrever a você sobre os eventos e coisas pela quais passei e observei em pessoa a partir de minha participação no SI [Secretariado Internacional da Quarta Internacional], e sobre a séria tendência organizativamente burocrática e politicamente revisionista representada por Pablo que, eu temia, iria acabar trazendo uma crise à nossa Internacional. Mas por “prudência” (também foi isso que Manuel [George Novack] me aconselhou a fazer naquela época) essa carta foi continuamente adiada. Agora a crise realmente explodiu com ferocidade. Eu, portanto, sou obrigado a escrever essa carta já atrasada.

A razão para eu escrever a você é não apenas por você ser o fundador e líder do SWP, a seção líder do movimento trotskista mundial, mas também porque você colaborou proximamente com Trotsky em completar o Programa de Transição e em fundar nossa Internacional, e liderou várias lutas vitoriosas por um longo período de tempo contra o oportunismo, o sectarismo e o revisionismo. Não menos importante é o fato de que você lutou por toda a época da Comintern [Internacional Comunista], em sua ascensão sob a liderança de Lenin e Trotsky e seu subsequente período de degeneração inicial sob o controle de Stalin, e dessa forma obteve ricas e profundas experiências, que desde então se tornaram parte das mais preciosas lições para preservar e fazer avançar o nosso movimento. Eu acredito que com sua rica experiência e as capacidades do SWP, e sua colaboração com os genuínos trotskistas de outros países, é possível superar a presente crise.

A “Carta aos Trotskistas do Mundo Inteiro”, recentemente publicada pelo SWP, apesar de bastante excepcional e sem precedentes, é, no entanto, necessária para salvar a Internacional de um perigo imediato extremamente grave. Essa “ação excepcional” pode ser provada necessária e justificada aqui também pelas dolorosas experiências da minha participação pessoal no SI durante esses dois anos.

Apesar do fato de que eu me tornei responsável pela atividade do movimento trotskista na China há mais de vinte anos, foi pouco possível manter uma relação íntima com a Internacional e participar em suas atividades em razão das condições particulares nas quais eu estava: constante opressão e extrema perseguição por todos os tipos de forças reacionárias, frequentemente resultando em um estado de isolamento. Quando o partido de Mao chegou ao poder, eu fui obrigado a deixar a China e vir para o exterior. Eu nutria então grandes esperanças de que, por um lado, eu poderia oferecer à Internacional um relato detalhado dos eventos que ocorreram na China nos anos recentes para facilitar uma discussão comum que resultaria em uma resolução e uma orientação geral correta para o movimento trotskista na China e nos outros países economicamente atrasados do oriente. Por outro lado, eu estava pronto a contribuir dentro dos limites da minha capacidade e de minhas próprias experiências com a liderança da Internacional para ajudar a fazer avançar o nosso movimento. Mas as experiências desses dois anos e meio mostraram que a realidade é completamente diferente das minhas aspirações originais, já que eu vi com meus próprios olhos uma assustadora crise ganhar forma, crescer, se espalhar e penetrar mais e mais nas diferentes seções da Internacional. Isso me perturbou e me doeu bastante, e dificultou que eu permanecesse em silêncio.

Agora permita que eu relacione em ordem cronológica o que eu testemunhei e experimentei em pessoa durante todo esse período, como se segue:

No Terceiro Congresso Mundial, uma “Comissão do Extremo Oriente” foi estabelecida com o intento de realizar uma discussão mais ou menos profunda sobre a questão chinesa e propor uma resolução sobre essa importante questão ao Congresso Mundial para seguir para uma discussão mais ampla e a eventual adoção de uma resolução elaborada de forma mais correta e completa. Eu fui então designado como relator para essa questão. Mas antes que meu relato tivesse chegado à metade, o representante do SI, o camarada A. da Índia, que estava encarregado da Comissão, repentinamente fez uma moção interrompendo o meu relato sobre pretexto de “segurança” e exigiu que essa Comissão procedesse para votar a adoção das duas resoluções prévias sobre a questão chinesa, ou seja, aquelas adotadas nas sétima e oitava plenárias do CEI [Comitê Executivo Internacional]. Eu fiquei bastante surpreso e expressei minha indignação e protesto. Eu declarei que a Comissão do Extremo Oriente havia sido criada pelo Congresso, que se impunha acima de todos os outros organismos, e, portanto, não podia simplesmente se submeter a quaisquer instruções de cessar seu funcionamento que fossem emitidas pelo SI, que em si era um corpo que seria reeleito. Se a Comissão do Extremo Oriente tinha a tarefa de meramente proceder para votar as resoluções prévias, então ela era completamente supérflua. E eu lembrei a eles que ela havia sido constituída para o propósito de chegar a uma decisão mais correta depois de uma discussão ampla de acordo com os desenvolvimentos dos acontecimentos e novas realidades. Ao mesmo tempo, eu afirmei que, uma vez que havia sido pedido que eu fizesse o relato, eu tinha a responsabilidade e o direito não apenas de completar minha apresentação, mas também de ouvir posteriormente as opiniões dos delegados presentes (independente de que eles concordassem ou discordassem do meu relato) e assim obter uma conclusão aprovada pela maioria da Comissão para oferecer ao Congresso. Graças ao meu protesto e à objeção da grande maioria da Comissão à intervenção de A., eu relutantemente pude terminar meu relato. Mas sem passar a nenhuma discussão, a Comissão do Extremo Oriente foi encerrada; na realidade, ela foi abortada.

A falta de conclusão da Comissão do Extremo Oriente deveu-se principalmente ao fato de que o representante do SI, ouvindo o meu relato na primeira sessão e percebendo que minhas visões não conformavam com as deles, e receando que minhas visões influenciassem os camaradas presentes, não hesitou em me interromper no meio do meu relato de uma maneira autoritária. Isso foi posteriormente revelado na “explicação” de Livingstone, que compareceu à segunda sessão no lugar de A. Ele disse que “O SI não havia esperado tal desenvolvimento da Comissão”. Em outras palavras, eles não esperavam que eu expressasse no meu relato visões diferentes das deles. Para o representante do SI, parecia que as Comissões criadas pelo Congresso tinham a tarefa única de justificar ou provar que estavam corretas as resoluções ou visões prévias do SI utilizando novos fatos e argumentos. Se decorresse de outra forma, eles não hesitariam em emitir ordens para interromper os procedimentos da Comissão.

Adotar tal atitude arbitrária com relação a problemas políticos importantes (uma vez que todos os delegados do Congresso consideravam a questão chinesa como o problema imediato mais importante) e exercer tal controle sobre as Comissões criadas pelo Congresso é uma prática muito distante da tradição do bolchevismo. Essa foi minha primeira impressão desagradável depois de chegar aqui.

Meu descontentamento sobre a Comissão do Extremo Oriente foi, é claro, percebido por Pablo. As explicações dele foram feitas por Burns [Gerry Healy] e nelasa responsabilidade foi atribuída ao companheiro A. Além disso, Burns disse que Pablo estava disposto a aceitar as opiniões de outros e esperava que eu participasse do SI para colaborar com ele, especialmente tomando responsabilidades sobre a questão colonial e semicolonial no Oriente. Embora eu não estivesse muito satisfeito com as explicações de Burns, eu ainda estava pronto com toda sinceridade a colaborar com Pablo e outros para servir ao desenvolvimento do nosso movimento.

Imediatamente depois do Congresso, explodiram novamente as divergências e o conflito entre a maioria e a minoria no partido francês. A crise envolvida nesse conflito culminou no início de 1952. Durante as duas reuniões do SI em que a questão francesa foi discutida, Pablo sempre reiterou a incorrigibilidade da má tendência representada pelos líderes da maioria e a necessidade de adotar medidas severas. A opinião que eu expressei invariavelmente foi de que, em razão de a maioria representar a esmagadora maior parte do partido, dentre os quais estava um grande número de trabalhadores industriais em importantes setores, nós deveríamos ainda fazer o máximo possível para convencer a maioria dos camaradas, especialmente os camaradas proletários, apesar de que certos líderes na direção manifestassem más tendências. (Na época, eu também tinha certas más impressões sobre alguns líderes da maioria. Mas eu devo admitir agora que minhas más impressões foram formuladas principalmente como resultado da minha confiança e crédito excessivos em Pablo e caracterização feita dos líderes da maioriapela minoria). Para esse propósito, disse eu, era necessário levar em frente uma discussão universal e profunda no partido francês e, se necessário, estender essa discussão às outras seções da Internacional. Dessa maneira, seria não apenas possível encontrar uma demarcação das diferentes visões políticas em ambos os lados, mas também aproveitar essa ocasião para elevar o nível político dos membros como um todo. Essa opinião não encontrou nenhuma objeção. Pablo, entretanto, procedeu inteiramente de acordo com seu próprio plano.

Aconteceu então que Pablo compareceu à Plenária do Comitê Executivo do partido francês em janeiro (1952) e anunciou na mesma hora uma suspensão de suas funções dos 16 membros da maioria no CE. O fato é que o SI não havia tomado nenhuma decisão desse tipo. Dentre os cinco membros do SI, três eram completamente ignorantes a respeito dessa decisão: Germain [Ernest Mandel] e Manuel ambos estavam fora do país, e eu não fui informado antecipadamente, apesar de estar em Paris. Além disso, apenas o CEI tem o direito de sancionar ou suspender membros de um comitê executivo ou uma seção formalmente eleita, mesmo se eles tiverem cometido graves erros políticos, e mesmo violado a disciplina em ação, enquanto o SI não tem de forma alguma esse direito. E ainda mais, o SI não tomou essa decisão! A suspensão de suas funções de 16 membros do CE do partido francês feita por Pablo, tomando o nome e a autoridade do SI, expôs completamente sua irrestrita conduta pessoal ditatorial ao abusar da autoridade e ao violar a tradição de nossa organização.

Depois da suspensão dos líderes da maioria por Pablo, Germain retornou a Paris; ele veio me ver e perguntou minhas opiniões sobre esse evento. O cerne do que eu disse a ele foi o que se segue: as visões políticas da maioria do partido francês ainda estavam limitadas a divergências sobre táticas, e ainda não haviam passado para uma discussão geral. Tomar uma medida organizativa naquele momento era inteiramente inapropriado. Além do mais, a medida aplicada por Pablo não havia sido aprovada por todos os membros líderes da Internacional e, portanto, nada mais era que uma ação arbitrária em violação da nossa tradição organizativa. Expressando seu completo acordo com minha posição, ele me disse ainda que os líderes da maioria eram todos muito ativos, e Pablo e outros antes haviam os considerado em alta estima; e agora eles de repente eram descritos como se não valessem um centavo, e mesmo ameaçados com sua completa expulsão do movimento! Ao dizer isso, Germain não pôde conter sua indignação.

Para poder discutir a agravada situação produzida por este ato de suspensão adotado por Pablo, o SI chamou uma reunião expandida (que poderia ser considerada como uma conferência preparatória para a Plenária de janeiro de 1952 do CEI). Nessa reunião, Germain, J. da seção alemã, L. da seção italiana [LivioMaitan] e eu nos posicionamos contra a medida tomada por Pablo. Mas este ainda tentou obstinadamente se defender, dizendo que “A sessão prévia do SI decidiu sobre a necessidade de adotar medidas severas, e os membros que estavam presentes nessa sessão deveriam se responsabilizar por ela”. Mas qual foi o verdadeiro conteúdo dessaassim-chamada “medida severa”? Sob quais condições ela deveria ser aplicada? Sobre isso Pablo nunca disse uma palavra e é claro que não poderíamos ter tomado nenhuma decisão formal sobre isso, e na realidade de forma alguma o havíamos feito. Mas Pablo se utilizou da “medida severa” mencionada antes como uma “fórmula algébrica” e ele fingiu que havia obtido a concordância de todos para completar ele próprio a fórmula com “caracteres aritméticos”, ou seja, a suspensão de 16 membros da maioria do CE do partido francês de suas funções. Isso expôs ainda mais Pablo como um deliberado e sistemático causador de intrigas.

Essa reunião expandida do SI deveria ter examinado seriamente o erro na ação de Pablo de suspender os membros do CE do partido francês e deveria ter desafiado sua autoridade para fazer isso, para abrir caminho para uma solução razoável para a questão da maioria francesa. Mas Pablo exerceu sua mais forte pressão ao ameaçar e manobrar para impedir qualquer discussão sobre esse problema, e aproveitou sua brecha para propor uma negociação com a maioria francesa em outra tentativa de compromisso. Isso nada mais foi do que anular na prática a suspensão dos membros da maioria do CE e formar um Comitê de liderança contendo ambas as frações, com Germain representando o SI, como árbitro. Esse foi o único resultado da sessão de fevereiro do CEI. Aqui, novamente, era evidente que Pablo estava fazendo intrigas para encobrir temporariamente sua absurda conduta com relação à liderança de uma seção e preparar o caminho para sua vingança. Assim, a questão da maioria francesa se tornou mais e mais envolvida em confusão e não podia ser resolvida corretamente, o que é provado pelo resultado subsequente.

Tendo visto a ação arbitrária de Pablo sobre a questão da maioria do partido francês e suas intrigas, eu senti fortemente que consequências assustadoras resultariam se o SI se submetesse completamente ao manejo e controle de Pablo. Com essa apreensão, em uma viagem para o sul da França eu tive uma conversa formal com Manuel, que já estava lá. Eu apontei a ele que a suspensão de suas funções de 16 membros do CE do partido francês por Pablo, feito por conta própria, revelou uma fraqueza muito séria no próprio SI, que merecia nossa mais séria observação e atenção; desde que perdemos Trotsky, somente a formação de uma liderança coletiva poderia evitar a crise interna e confrontar os eventos externos. Nesse momento, eu ainda considerava Pablo como indispensável para a liderança, mas que ele não deveria ter a permissão de agir arbitrariamente segundo sua própria vontade. Além disso, eu acreditava que quanto mais importantes fossem as questões organizativas e políticas, não apenas o SI não era competente para tomar certas decisões, mas que mesmo o CEI não era adequado (já que os membros que podiam estar presentes nas reuniões do CEI eram limitados) e que o SI deveria buscar opiniões de líderes e colaboradores responsáveis e experientes ao redor do mundo.

Depois de eu ter expressão essas visões declaradas acima, Manuel disse que concordava com a ideia fundamental expressada por mim sobre liderança coletiva e iria reexaminar a questão fundamental da maioria francesa, e que ele pretendia ter uma conversa sincera com Pablo no dia seguinte. Mas antes de Manuel poder falar com Pablo, este começou um ataque brutal e violento contra mim na presença de Manuel. Talvez tenha sido por isso que Manuel cancelou sua planejada reunião com Pablo.

Quando eu retornei do sul para Paris (em meados de maio de 1952), Pablo havia feito duas acusações de escracho para lançar um ataque de força por eu “tentar ferir o prestígio da Internacional” e “ação liberal” (que significava violação de disciplina). Os “fatos” que ele enumerou eram: nós (minha mulher e eu) havíamos caluniado a Internacional na frente de um casal australiano; depois de retornar a Paris, nós havíamos novamente caluniado a Internacional diante dos camaradas vietnamitas; e nós tínhamos nos mudado de um hotel para outro alojamento sem avisar com antecedência. Quando eu ouvi pela primeira vez essas acusações sem fundamento, apesar de extremamente enraivecido, eu ainda me contive e pedi a Pablo que se encontrasse comigo para esclarecer esses mal entendidos. Mas ele foi tão arbitrário a ponto de recusar o meu pedido, e declarou que as “histórias mencionadas por ele eram fatos verídicos”. Portanto, eu percebi que Pablo estava tentando deliberada e sistematicamente me fazer cair numa armadilha de calúnias para me desacreditar e posteriormente me excluir do SI. Eu fui então obrigado a exigir do SI que discutisse o assunto dessas calúnias de Pablo contra mim.

Na reunião do SI, eu provei com fatos indiscutíveis que todas as acusações feitas por Pablo contra mim, tais como ferir o prestígio da Internacional, etc. eram completamente falsas, e podiam ser provadas falsas pelo testemunho do casal australiano e dos camaradas vietnamitas. Quanto à acusação de “ação liberal”, era ainda mais absurda. A explicação é muito simples: como eu não pude pagar o alto custo do hotel, eu fui forçado a buscar a ajuda dos camaradas vietnamitas para conseguir um alojamento mais barato, e não foi necessário avisar com antecedência o camarada Pablo. Eu pedi que ele respondesse e explicasse as calúnias contra mim com fatos concretos. Não apenas ele não foi capaz de explicar, mas começou a gritar e declarou: “Eu sou o Secretário Geral, eu tenho minhas normas sobre as coisas!”. Eu disse a ele: “O Secretário Geral não tem privilégios, e nossa norma é o centralismo democrático. Ninguém tem o direito de ser ditador, de caluniar ou constranger os outros”. Finalmente uma resolução foi proposta por Germain sobre a disputa entre Pablo e eu, que foi mais ou menos como se segue: não havia fatos para provar que eu tentara desacreditar a Internacional e violar a disciplina, mas também de que Pablo tentara me caluniar. Essa foi uma resolução inteligente para agradar a ambos os lados sem fazer justiça à verdade. Minha declaração foi: eu não aceitaria tal tipo de resolução e eu me reservava o direito de apelar à consideração de um corpo superior.

Eu considero que, quando o Secretário Geral do SI calunia outro secretário à bel prazer, com acusações de “descreditar a Internacional” e “violar a disciplina”, não é de forma alguma uma mera e nem trivial “disputa pessoal”, mas um fenômeno sério dentro do aparato de liderança no que diz respeito à questão da organização e funcionamento de seus membros componentes. Em outras palavras, essa é uma expressão nua de métodos burocráticos baixos para excluir oponentes pessoais. Esse tipo de fenômeno foi visto bastante frequentemente nos partidos stalinistas, mas ele não tinha precedentes no nosso movimento.

Depois disso, Burns disse para nossa filha que, através da observação independente do casal australiano, ele tinha compreendido os detalhes de como a esposa de Pablo tinha nos tratadotiranicamente, especialmente minha mulher, e que não passava de loucura, e que ele era simpático a nós. Mas ele disse que foi por erro que Pablo aceitou como verdade o relato de sua esposa, e nos pediu para que não insistíssemos em um “apelo”. Enquanto isso, Manuel também fez o que pôde para me dissuadir de fazer isso, dizendo que se eu tornasse esse assunto público, Pablo não poderia continuar sua função, mas quem poderia então substituí-lo? Em suma, ele me persuadiu a deixar isso para lá. Para o bem de “preservar a integridade do movimento em geral”, eu deixei de levar além meu protesto. Apesar disso, eu sempre achei que as calúnias feitas por Pablo são não apenas indesculpáveis, mas expressam uma perigosa tendência considerando a posição que ele mantém. Se ele estivesse no poder, ele teria muito provavelmente cometido todas aquelas perseguições que Stalin havia feito no passado.

Durante um ano inteiro, da minha chegada à Europa até a décima primeira Plenária do CEI em junho de 1952, eu só havia podido fazer um relato sobre a questão chinesa no Terceiro Congresso e na Comissão do Extremo Oriente, e nunca houve qualquer troca de opiniões ou discussão sobre essa questão no SI. Mesmo quando o rascunho de resolução foi submetido à discussão no SI, eu não fui convidado para expressão minhas visões. Além disso, eu não havia ouvido pessoalmente que posição havia sido adotada por Pablo antes de ele expressar sua visão na décima primeira plenária. Apenas indiretamente eu compreendi que Pablo havia assumido que Mao Tse-Tung havia completado todas as teses fundamentais da Revolução Permanente, que o PC chinês já tinha se tornado um partido centrista, e que o regime de Mao era uma ditadura proletária. A posição de [Pierre] Frank me era completamente desconhecida nesse momento. Apenas Germain havia trocado algumas visões comigo, mas ele havia declarado que sobre a questão chinesa ele era mais moderado. Assim, em uma questão tão importante quanto a China, a liderança do SI não havia sequer compartilhado suas posições comigo, ou havia evitado deliberadamente fazer isso desde o começo. Não foi de forma alguma planejada uma discussão coletiva para poder-se chegar a uma posição correta como base para a resolução que seria submetida ao CEI para discussão e aprovação. Ao contrário, a liderança do SI lançou um ataque repentino na reunião do CEI contra as visões que eles consideravam errôneas, com o propósito único de ganhar uma maioria para adotar seu próprio rascunho de resolução, e apressadamente encerrou toda a discussão sobre esse tema. Dessa forma eu descobri que os membros dirigentes do SI não estavam preparados para uma discussão sincera e consulta mútua para facilitar a colaboração, mas ao invés disso lançava golpes de todas as maneiras contra as visões divergentes. Isso é particularmente notável em Pablo, que abertamente enfatizou na sessão do CEI que existia uma fração sectária da qual se deveria livrar. (Essas palavras não foram incluídas nos apontamentos publicados de Pablo na edição especial do boletim internacional sobre “Relato e Discussão sobre a Terceira Revolução Chinesa”). O sectário ao qual ele se referia era obviamente eu; e a referência foi uma ameaça e um prelúdio para me jogar para fora da Internacional. Eu não me intimidei por essa ameaça burocrática, mas uma vez mais foi demonstrado que Pablo estava pronto a lidar com os camaradas chineses com os mesmos métodos que ele havia empregado contra a maioria da seção francesa.

Eu acredito que você já conhece o conteúdo da resolução sobre a Terceira Revolução Chinesa; minhas críticas a essa resolução, como, por exemplo, em “Alguns apontamentos para servirem como adendos ao rascunho de resolução sobre a Terceira Revolução Chinesa”, foram enviadas a você há dois meses, então não é necessário repeti-las aqui. Eu só tenho um ponto a acrescentar sobre isso. Quando essa resolução chegou à China, ela não apenas falhou em esclarecer as visões originais divididas, mas aumentou a confusão e a perplexidade. Além dos camaradas que se opõem à resolução com argumentos teóricos e fatos, mesmo aqueles que estão de acordo com ela tem variadas interpretações entre eles próprios. Consequentemente, não foi possível para eles elaborar um programa de ação com acordo majoritário com base nessa resolução. A pior coisa é que ninguém pode encontrar uma perspectiva para os trotskistas chineses nessa resolução. Por exemplo, um camarada responsável, F., que está em completo acordo com a resolução disse: “Nós devemos dissolver nossa organização para poder participar efetivamente das atividades de massa lideradas pelo partido de Mao”. Isso evidentemente é uma atitude liquidacionista. Outro camarada, Y., disse mais francamente: “A resolução da Internacional está correta, mas não há nenhuma perspectiva para nós trotskistas”. Isso é pessimismo de cabo a rabo. Assim toda a organização foi desarmada politicamente e desorientada, e dessa forma se envolveu em disputas organizativas sem fim, e estava cada vez mais à beira da desintegração.

Naturalmente, eu não pretendo dizer que a resolução do SI é inteiramente responsável por tal perigoso estado ao qual a organização chinesa foi conduzida. Eu diria que esse é principalmente um resultado da situação objetiva da vitória do partido de Mao, suas perseguições e a pressão incomparável que pesava sobre nós. Mas é um fato inegável que a resolução da Internacional não fez uma análise razoável e correta e uma explicação dessa situação objetiva, e nem apontou para uma perspectiva e uma orientação convincente para a organização chinesa.

Antes de tudo, essa resolução é uma mistura do revisionismo de Pablo e do conciliacionismo de Germain (ou seja, conciliação com Pablo), recheado de falácias teóricas, erros factuais e autocontradições. Essas se juntam a uma idealização do regime de Mao e ilusões sobre sua perspectiva, fazendo dela uma forte expressão da tendência de conciliação com o stalinismo. O liquidacionismo e o pessimismo que prevaleceram entre os camaradas chineses se originou daqui. Portanto, eu posso dizer que o revisionismo de Pablo, ou seja, a sua conciliação em relação ao stalinismo, já causou consequências desastrosas na organização chinesa. Isso merece uma séria atenção entre todos os camaradas.

Na décima segunda Plenária do CEI, em novembro de 1952, o SI me deixou fazer um relato sobre a situação organizativa na seção chinesa pela primeira vez. Quando eu relatei as notícias sobre a perseguição incessante e sistemática dos trotskistas chineses pelo regime de Mao durante esses últimos anos, toda a reunião foi fortemente abalada. L., o italiano, corou e questionou por que o SI não havia dado às seções essa informação sobre a perseguição dos camaradas chineses. Em meio a essa atmosfera tensa, Pablo, evidentemente desconcertado, se levantou para se defender, dizendo que o massacre dos trotskistas pelo regime de Mao não era uma ação deliberada, mas um equívoco, ou seja, os trotskistas haviam sido confundidos com agentes do Kuomintang; e que mesmo se a perseguição de Mao aos trotskistas fosse um fato, isso só poderia ser considerado como uma exceção. Então Germain colocou outra questão: sob quais condições os trotskistas foram massacrados? Eu citei todos os fato e “condições” para demonstrar que a perseguição dos trotskistas pelo regime de Mao havia se originado de uma tradição profundamente enraizada de hostilidade stalinista em relação aos trotskistas, e que era uma tentativa deliberada e sistemática de exterminar os trotskistas. Eu também apontei que essa perseguição não era de forma alguma uma “exceção”. Não fazia muito tempo, Ho Chi Minh havia assassinado toda a liderança trotskista no Vietnã, e na Guerra Civil Espanhola a GPU do partido stalinista perseguira brutalmente incontáveis trotskistas; todas essas eram provas de ferro. Mas Pablo virou para mim o questionamento: “Então você invalidou a tática de entrismo no partido stalinista e nas organizações de massa sob seu controle, que você havia aprovado?”. Eu respondi: “Essa tática de entrismo no partido stalinista foi iniciada por nós há quatro anos, isto é, desde 1949. Mas precisamente por causa das severas perseguições que Mao infligiu sobre os trotskistas, nós temos que ser particularmente cuidadosos e sérios ao realizar essa tática, e não deveríamos ter nenhuma ilusão nos stalinistas”. Eu instei às seções francesa e italiana a examinar as lições da seção chinesa e a se organizar muito seriamente ao aplicar essa tática. De outra forma, cairiam no perigo de se arruinarem e, nesse caso, o CEI seria responsável. Em suma, dessa ilustração da defesa que Pablo fez da perseguição stalinista aos trotskistas chineses você pode ver a extensão da idealização e ilusões dele em relação ao regime de Mao.

Nesse meio tempo, eu recebi a versão em inglês da edição especial do BoletimInternacional contendo o relato e discussão sobre a Terceira Revolução Chinesa e eu descobri que o meu documento criticando o rascunho de resolução sobre a Terceira Revolução Chinesa não havia sido impresso nele. Eu, portanto, apontei isso na reunião expandida do SI e questionei Pablo sobre a razão para não publicar o documento. A resposta foi que o documento fora publicado em outra edição do Boletim Internacional. Mas depois eu procurei por todos os Boletins Internacionais e não pude encontrar minha crítica ao rascunho da resolução. Era óbvio que Pablo havia deliberadamente suprimido esse documento, já que minha crítica apontava com fatos irrefutáveis vários erros fundamentais no rascunho de resolução: a revisão da teoria da Revolução Permanente, a distorção do “governo operário e camponês”, a ficção de uma suposta “violação das intenções do Kremlin pelo partido de Mao” e a ilusão de uma “transformação de todo o partido de Mao Tse-Tung em um partido centrista”. Nenhuma dessas críticas foi refutada ou rejeitada nem pelo relator, nem pelos participantes da discussão com argumentos teóricos ou fatos. Precisamente por essa razão, Pablo estava decidido a esconder minha crítica ao rascunho de resolução dos camaradas ao deixa-la no escuro. Essa é uma típica manifestação dos métodos burocráticos do stalinismo, e foi precisamente o que nós resolutamente combatemos dentro da Comintern em seu estágio inicial de degeneração 25 anos atrás, e uma das principais causas para constituir a Oposição de Esquerda. Mas Pablo não parou aí. Quando eu perguntei a ele por que ele não havia publicado meu documento, ele mentiu abertamente dizendo que havia sido publicado em outra edição do Boletim Internacional. Isso acrescentou mentira e trapaça, o cúmulo dos métodos burocráticos arbitrários.

Aqui eu devo mencionar que particularmente desde o começo de 1952, quando eu me opus à medida arbitrária de Pablo na questão francesa, pelo período de um ano ele não apenas empregou vários métodos burocráticos contra mim, mas também informalmente me privou do direito de participar em todas as reuniões do SI; ou seja, durante todo esse ano, Pablo nuncame chamou para comparecer a qualquer reunião do próprio SI. Os membros do SI eram oficialmente eleitos pelo CEI. Mas sem passar por nenhuma discussão formal e decisão na reunião do CEI, ele me privou informalmente do direito de participar nas reuniões do SI. Isso é claramente outra manifestação do burocratismo mais arbitrário e insolente!

Por volta do mesmo período, eu descobri que Manuel fora excluído das reuniões do SI por outro método: ele foi enviado para outro país com a tarefa de ajudar o trabalho lá, ficando assim efetivamente impedido informalmente do seu direito de participar e trabalhar no SI. Mas todos sabiam que Manuel viera com o único propósito de participar das atividades do SI. Isso prova inteiramente que, para monopolizar o SI, Pablo não tinha nenhum limite em seus métodos burocráticos e intrigas para gradualmente excluir do SI os representantes do Hemisfério Ocidental e da Ásia.

Por outro lado eu me familiarizei com o fato de que Clarke havia iniciado uma luta fracional no SWP e lançado ataques contra a liderança do partido em uma tentativa de ganhar a direção. Isso foi evidentemente instigado por Pablo por trás dos panos. Eu ouvia frequentemente dos lacaios de Pablo que “Clarke é o melhor líder nos EUA”, que era equivalente a dizer que o SWP deveria ser liderado por ele. Ao mesmo tempo, um camarada chinês, H., que estava estudando aqui me disse pessoalmente que desde a primavera passada (1952) Pablo havia agido de forma particularmente amigável e confidencial com ele e havia oferecido várias vezes manda-lo de volta à China para “reorganizar o partido”. Esse camarada respondeu: “Eu não tenho autoridade e prestígio na organização chinesa”. Então Pablo o encorajou dizendo: “Não tenha receio, nossa Internacional vai apoiá-lo. Basta você agir ousadamente”. Dessas palavras ditas por Pablo, H. entendeu claramente não apenas que Pablo não confiava em mim nem um pouco, como também era hostil a mim e, portanto, queria lhe dar essa missão especial de começar um trabalho fracional na organização chinesa. Naturalmente, ele não estava nem um pouco disposto a se envolver nesse assunto, e consequentemente nos disse isso francamente.

A partir dos fatos enumerados acima, eu senti profundamente que Pablo havia manifestado uma tendência revisionista, e especialmente que ele estava empregando terríveis métodos burocráticos para exercer controle sobre o SI e tinha começado a construir suas próprias frações nas diferentes seções em uma tentativa de dominar todo o movimento internacional. Por essa razão, quando Manuel estava indo embora e veio se despedir de nós, eu enumerei alguns desses fatos e disse a ele francamente que um sério perigo estava escondido no aparato de liderança da Internacional, e estava se desenvolvendo em velocidade acelerada. Eu expressei esperança de que ele iria encontrar um modo de tornar essa opinião conhecida à liderança do SWP e especialmente a você, de forma que você fosse alertado em tempo e tentasse consertar a situação. Entretanto Manuel não tenha expressado nenhuma reação às minhas palavras, ele prometeu encaminhar minhas opiniões a você e alguns outros líderes do partido.

Na plenária do CEI de maio de 1953, houve duas coisas dignas de nota:

1. Na discussão da resolução sobre o problema da URSS depois da morte de Stalin, uma disputa importante surgiu. Nessa disputa, Burns apontou primeiramente que o espírito da resolução era otimista demais; ele alertou que da falha em absorver completamente o significado dos eventos da Iugoslávia, os quais tinham resultado em uma avaliação exageradamente otimista, nós deveríamos ter aprendido certas lições. Ele também declarou que os partidos stalinistas permaneciam sendo stalinistas, e que nós não deveríamos ter muitas ilusões sobre eles. Mas Pablo fez um ataque ameaçador contra essas observações. O resumo de suas palavras era que, como um líder responsável, Burns deveria evitar expressar visões em violação à linha da Internacional. De acordo com ele, todas as resoluções rascunhadas pelo SI conformavam a “linha da Internacional” e nenhuma dúvida ou objeção era permitida. Portanto, os membros do CEI tem simplesmente que levantar suas mãos para adotar qualquer resolução que dissesse respeito a eventos que haviam acabado de ocorrer sobre problemas importantes. Quaisquer dúvidas ou visões opostas ao rascunho de resolução do SI são consideradas “violar a linha da Internacional”. Isso é diferente da atitude burocrática dos PCs no que diz respeito à “linha geral” de Stalin, a qual era proibido se criticar?

2. Nessa Plenária, Pablo propôs a eleição de um novo SI. A razão era que não havia número suficiente membros efetivos para participar das atividades do SI, então dois membros das seções britânica e italiana foram adicionados como membros permanentes do SI. Dessa maneira, representantes do Hemisfério Ocidental e da Ásia foram formalmente eliminados, e o SI virou praticamente um SE (Secretariado Europeu). Desde então, Pablo tem modificado “legalmente” a composição do SI para poder controlar livremente e manipulá-lo e proceder “legalmente” com sues desígnios de excluir e eliminar seus oponentes e seguir com sua trama de usurpar a Internacional.

Na Plenária de maio do CEI, eu submeti dois documentos, “Um apelo dos Trotskistas Chineses por Ajuda” e a minha “Carta Aberta à Liderança do PC Chinês”, protestando pela perseguição dos trotskistas, na esperança de que a Plenária fosse discutir e comentar sobre eles e decidir publicá-los nos órgãos públicos de diferentes seções, para poder realizar uma ampla campanha para ajudar os trotskistas perseguidos na China. Mas Pablo me disse através de Germain que esses documentos deveriam ser discutidos e a decisão seria tomada só no SI. Na reunião do SI (dessa vez só Pablo e Frank estavam presentes), eu declarei que eu esperava que ambos os documentos fossem transmitidos às seções para publicação, e que fosse aproveitada a ocasião para uma campanha para resgatar os camaradas perseguidos. Ambos Pablo e Frank concordaram em publicar “Um apelo dos Trotskistas Chineses”, mas disseram que não podiam concordar com os vários pontos contidos em minha carta de protesto, e iriam se consultar comigo para tomarem uma decisão final.

De maio a setembro, quatro meses se passaram, mas eu ainda não vi aparecer “Um apelo dos Trotskistas Chineses”. Então eu comecei a suspeitar que Pablo houvesse novamente suprimido o documento. No começo de setembro eu enviei uma cópia desse documento para os Estados Unidos, pedindo que ele fosse enviado para o Militant [jornal do SWP norte-americano], e questionando se ele já havia chegado lá por parte do SI. A resposta que eu recebi foi: “Nunca recebido”. Uma vez mais eu descobri que Pablo estava fazendo joguinhos para me enganar. Sobre os seus motivos para recorrer a tais truques para suprimir esse documento: primeiro, ele sempre idealiza o regime de Mao. A publicação desse apelo teria exposto a realidade contradizendo suas ilusões e idealização. Em segundo lugar, ele vinha por muito tempo propagando nas diversas seções a noção de que os trotskistas chineses eram sectários, fugitivos de uma revolução, etc. A publicação desse documento teria desmascarado categoricamente suas mentiras e calúnias. Em terceiro lugar, Pablo temia que a publicação do documento iria interferir com seu ideal mais ardorosamente defendido de “entrismo”, ou seja, ele temia que ao ver a cruel perseguição dos comunistas chineses pelo partido de Mao, como revelado nesse apelo, os camaradas franceses, italianos e vietnamitas começariam a duvidar da sua idealizada “tática de entrismo” e exigiriam uma nova discussão.

Ao suprimir esse documento, Pablo não apenas enganou conscientemente a mim e aos camaradas chineses, mas também cometeu dois crimes indesculpáveis: (1) objetivamente ajudou o PC chinês a esconder das massas os fatos mais horríveis e concretos da sua perseguição aos trotskistas chineses. (2) Ele tornou impossível para os camaradas de diferentes países que estivessem aplicando ou se preparando para aplicar a “tática de entrismo” aprender as lições das brutais perseguições infligidas sobre os camaradas chineses. Isso é como coloca-los para trabalhar numa zona de perigo sem deixá-los saber do perigo. Uma verdadeira política de avestruz! Deixe-me citar outro incidente para ilustrar essa atitude. Quando os camaradas vietnamitas estavam prontos para retornar ao seu país para aplicar a “política de entrismo”, e fizeram uma reunião na qual eu fui convidado para fazer um discurso, o organizador da mesa nessa reunião fez um pedido para que eu não mencionasse aos camaradas as perseguições recentes experimentadas pelos camaradas chineses. Eu sabia muito bem que isso era uma instrução ou sugestão de Pablo. Embora eu tenha observado o pedido do organizador, eu ainda o alertei pessoalmente que a “política de avestruz” era a mais perigosa.

Minha Carta Aberta foi escrita como resultado de uma proposta de Manuel na Plenária de novembro de 1952 do CEI, que foi então decidida e aprovada unanimemente. Seu objetivo era tornar públicos internacionalmente os fatos sobre as perseguições aos trotskistas chineses para angariar simpatia da classe trabalhadora mundial e grupos progressivos e exercer pressão sobre o partido de Mao para impedi-lo de continuar a perseguir os trotskistas chineses e outros elementos revolucionários. Em razão de um desejo de coletar as informações mais confiáveis, essa carta foi terminada apenas em abril. Já estava um bocado atrasada. Mas sob o pretexto de enviar alguém para me consultar sobre o conteúdo dessa carta, Pablo novamente teve sucesso em retê-la por mais dois meses (durante esses dois meses, Frank discutiu comigo duas vezes, escolhendo alguns pontos não muito importantes para discutir comigo e, é claro, não houve conclusão alguma). Finalmente, no começo de julho, Germain veio conversar comigo. Ele começou criticando o formato da carta como completamente errado, e pediu que ela fosse reescrita. De acordo com suas ideias, eu deveria ter aberto a carta expressando um total apoio ao movimento sob a liderança do partido de Mao, elogiando suas conquistas revolucionárias, e então por fim chegar ao ponto da enumeração dos fatos sobre as suas perseguições e protestar. Em segundo lugar, Germain notou que as visões expressas nessa carta divergiam consideravelmente da linha da resolução da Internacional, e por essa razão ele me denunciou como um “sectário sem esperança”. Por fim, ele disse que o SI não poderia tomar a responsabilidade de enviar esse documento para as diferentes seções para publicação. Se eu insistisse em tê-lo publicado, eu próprio deveria me responsabilizar por qualquer medida a respeito.

Para mim foi uma grande surpresa ver o quanto a atitude de Germain tinha mudado desde a sua postura anterior “moderada” e conciliatória com relação a mim. Dessa vez ele era pablista de cabo a rabo. Eu já havia entendido que Pablo não tinha a menor disposição em ter essa carta publicada; em geral as razões eram as mesmas que aquelas referentes a “Um Apelo dos Trotskistas Chineses”. Quanto a essa carta ter sido ou não escrita “de um jeito completamente errado” em sua “forma” e com um “sectarismo sem esperança” em seu conteúdo, uma vez que agora ela é publicada no Militant aqueles que a leram podem fazer um julgamento aberto. A última das minhas intenções é me defender. Entretanto, a partir das visões expressas acima por Germain, enquanto representante do SI, pode-se ver claramente que eles esperavam que eu submetesse um elogio ao partido de Mao para buscar conciliação com ele. A tendência conciliacionista em direção ao stalinismo novamente se reflete indiretamente aqui.

Nesse ponto, eu gostaria de fazer um breve comentário sobre a modificação da atitude de Germain durante esses dois anos, que pode ser alguma ajuda para que você entenda o papel dele no SI e na presente luta.

Eu posso dizer que desde o meu primeiro contato com Germain depois de chegar aqui eu tenho sempre tido a maior simpatia por ele. Esse sentimento se derivou da minha observação da sua seriedade e de sua devoção ao trabalho, sua sinceridade e cordialidade com os camaradas, sua considerável maturidade política e respeito por nossa tradição nos assuntos organizativos, e certa vez eu o considerei um dos mais promissores novos líderes do nosso movimento. Apesar de que eu também ter notado sua falta de uma análise penetrante ao observar vários problemas, seu temperamento impressionista, vacilação e espírito conciliacionista manifestado muito frequentemente em importantes questões, e sua facilidade em modificar suas posições, eu ainda confiava que ele seria capaz de superar essas fraquezas através da experiência no movimento conforme ele se desenvolvesse. Então quando eu ouvi entre os seguidores de Pablo todo o tipo de propaganda depreciativa sobre ele por um longo período, retratando ele como alguém sem visões independentes, ou mesmo como um mero “secretário com a função de coletar materiais para Pablo” (nas palavras de A.), eu me senti bastante indignado pela injustiça cometida a seu respeito. Quando a crise do partido francês explodiu novamente, Germain se opôs abertamente à medida arbitrária tomada por Pablo. Eu vi a mim mesmo enquanto ele era violentamente atacado por Pablo e pela minoria francesa, e frequentemente me senti mal por ele. Eu havia enviado uma mensagem de simpatia através da minha filha, e ele disse que sem o apoio das seções alemã e italiana ele teria sido derrubado há muito tempo. Precisamente porque ele tinha tal apoio, Pablo fez compromissos especiais com ele e o promoveu como representante do SI para participar da “coalizão de liderança” da maioria e da minoria francesa, e fez dele o “árbitro”. Daí em diante, Germain foi posto na linha de frente do conflito direto com a maioria francesa, e executou para Pablo o plano preconcebido que outrora ele havia sido violentamente contra. Por volta da mesma época, Pablo deu a ele a tarefa de rascunhar a resolução sobre a questão chinesa para coloca-lo em oposição a mim. Desde então, sob os “compromissos” e “promoções” de Pablo (elevado quase à altura do próprio Pablo), Germain gradualmente abandonou sua posição conciliatória e se envolveu mais e mais na armadilha do burocratismo de Pablo.

Hoje, o fato de ele estar tomando uma posição completamente ao lado do pablismo, em oposição à luta liderada pelo SWP contra o revisionismo e o burocratismo, indica o quão inconscientemente ele caiu na armadilha de Pablo. Eu ainda estou muito triste pela degeneração dele. Se Pablo não tivesse o apoio de Germain agora, ou seja, o apoio das lideranças alemã e italiana através dele, ele não teria sido capaz de seguir seu percurso sozinho, e um racha poderia ser evitado. Desse ponto de vista, o papel criminoso desempenhado por Germain nessa luta é de uma natureza decisiva. Em suma, eu tenho de tirar as seguintes conclusões das minhas observações e experiências com Germain durante esses dois anos: em muitos aspectos, especialmente em seu temperamento, ele se parece com Bukharin. Ele frequentemente vacila entre a consciência revolucionária e a consideração momentânea de forças. Quando uma é adotada por um tempo, a outra é posta de lado. Só será possível que ele retorne ao trotskismo ortodoxo quando sua consciência revolucionária for despertada ao descobrir toda a conspiração de Pablo, e quando ele perceber que já está envolvido em uma armadilha terrível.

Eu aprendi que o conflito entre a maioria e a minoria no seu partido, que vinha acontecendo por mais de um ano e meio, foi acentuado depois da Plenária de maio e então ficou cada vez mais à beira de um racha. Se o secretário do SI estivesse realmente preocupado com os interesses do nosso movimento, ele teria chamado a tempo uma sessão extraordinária do CEI para discutir e examinar as diferenças de ambos os lados, e adotar uma posição correta de forma a ajudar a vitória do lado correto. Mesmo se isso não pudesse ser feito, ao menos o SI deveria ter enviado para os membros do CEI e para as lideranças das diferentes seções os documentos da disputa no seu partido para permitir que eles os estudassem, discutissem e expressassem suas opiniões e críticas, para ajudar indiretamente o conflito no seu partido a proceder de maneira objetiva. Entretanto, o SI sob o controle de Pablo encobriu completamente as notícias sobre a sua luta e todos os documentos de discussão dos membros do CEI e das lideranças das seções. No meu caso, por exemplo, foi só no começo de setembro que eu soube vagamente dos principais argumentos de ambos os lados através de um amigo. Sem essa fonte eu teria permanecido completamente no escuro até o momento em que você publicou a Carta Aberta. O fato é simplesmente que os membros responsáveis do SI jamais me informaram sobre a situação da luta interna no seu partido. Pablo e companhia adotaram métodos burocráticos para guardar de nós a informação porque em seus esquemas eles queriam mantê-la escondida. E agora está bastante claro: a minoria do seu partido é não apenas a propositora, defensora e elaboradora do revisionismo de Pablo, mas foram inspirados e dirigidos por trás dos panos por Pablo na luta, como é inteiramente revelado pelos métodos que eles adotaram em sua conduta de sabotagem. Em outras palavras, o grau e a consequência do racha provocado pelo conflito no seu partido é causado diretamente pela conduta de Pablo no interesse de sua própria fração.

De todos esses fatos narrados acima, que eu testemunhei e experimentei pessoalmente, uma conclusão geral pode ser tirada conforme se segue: politicamente, a tendência revisionista de Pablo, de conciliação com o stalinismo, é totalmente revelada por sua idealização do partido de Mao e de seu presente regime, das ilusões nutridas ao seu respeito, e especialmente as desculpas oferecidas e a defesa do partido de Mao em sua perseguição aos trotskistas. O conciliacionismo já envolveu a seção chinesa em confusão extrema, e até mesmo a levou à beira da desintegração através do liquidacionismo e pessimismo derivado das teses de Pablo. Organizativamente, o nível impressionante e perigoso de burocratismo atingido por Pablo pode ser demonstrado pelos fatos de que ele abusou livremente do nome do SI ao suspender por conta própria os membros da maioria do CE do partido francês e excluir seus oponentes conforme sua vontade; que ele monopolizou o SI e controlou o CEI através do SI; que ele tentou e conseguiu criar uma panelinha pessoal, conspirando para tomar a liderança das seções; que ele suprimiu documentos que deveriam ter sido publicados, e mesmo aqueles que ele prometeu publicar; e que ele isolou e desfez as relações normais entre camaradas de liderança, e que calunia, inventa e mente sobre eles e os engana. Todos esses crimes, que eu vi pessoalmente e havia encontrado 25 anos atrás na Comintern degenerada sob Stalin, eu agora vi aplicados no órgão de liderança da Internacional sob o controle de Pablo! O rompimento dos partidos conduzido pelas minorias nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha recentemente, e as atividades conspiratórias aceleradas de Pablo para rachar toda a Internacional agora são o desenvolvimento lógico da sua ambição pessoal de usurpar toda a Internacional e do seu burocratismo.

Os fatos enumerados acima e suas conclusões justificaram suficientemente a ação adotada pelo SWP como necessária e correta.

Recentemente um camarada responsável da seção chinesa (que concorda politicamente com a nossa posição) me escreveu e perguntou: “Por que o SWP não agiu de acordo com o centralismo democrático, tentando, através da discussão internacional, ganhar o apoio da maioria, ao invés de fazer antes de tudo uma carta aberta (se referindo à Carta Aberta aos Trotskistas do Mundo Inteiro), apelando para todas as seções para se livrarem de Pablo?”. Camaradas como ele, que não entendem o verdadeiro estado de coisas e ainda nutrem inocentes concepções legalistas, não são pouco numerosos. É precisamente numa tentativa de explorar essa situação que Pablo e seus apoiadores estão fazendo um grande alarde: “A carta aberta publicada por Cannon está em completa violação da tradição organizativa trotskista, e em violação da disciplina do centralismo democrático”, esperando dessa forma confundir e enganar camaradas e encobrir a própria conspiração de Pablo para usurpar a autoridade da Internacional por métodos burocráticos, das suas próprias trapaças na tradição organizativa e das suas próprias violações da disciplina do centralismo democrático. Portanto, eu sei a seguinte resposta no dia 8 desse mês à seção chinesa sobre a questão colocada acima:

Embora haja tais sérias divergências entre as visões políticas de ambos os lados (me referindo a vocês e ao lado representado por Pablo), ainda assim, se o SI tivesse mantido seu funcionamento normal e razoável, poderia e deveria ter havido a possibilidade de uma completa discussão interna, e de se chegar a uma solução através do centralismo democrático. Mas o dado extremamente infeliz é que o SI tem estado inteiramente controlado e usurpado por Pablo, que utiliza esse ‘aparato legal’ para agir arrogantemente com a organização de sua conspiração, excluindo arbitrariamente seus oponentes do SI e estabelecendo secretamente sua própria panelinha ou facção com o objetivo de tomar a liderança de uma seção ou rachar a organização. Isso tornou impossível qualquer discussão normal de acordo com o princípio do centralismo democrático e assim obrigou o SWP, liderado por Cannon, a adotar hoje essa ação excepcional, publicando a Carta Aberta exigindo a expulsão de Pablo e de seus agentes dos órgãos de liderança da Internacional. Isso é realmente sem precedentes na história do nosso movimento internacional, e é uma ação de natureza revolucionária. Essa ação se tornou necessária não apenas para esmagar as tentativas de usurpação de Pablo, mas também para ganhar tempo para resgatar o movimento, e reorganizar e coordená-lo em tempo para confrontar a nova guerra mundial e revolução que se aproxima. Se a mobilização dessa luta se prolongasse até a explosão da Terceira Guerra Mundial, seria tarde demais.”

Eu também devo apontar que a conspiração de Pablo para usurpar o órgão de liderança da Internacional durante esses anos recentes, e todos os tipos de métodos burocráticos de natureza absurda e extremamente arbitrária, foram mais ou menos revelados de muitos lados. O fato é que a nossa Internacional como um todo e os líderes responsáveis das diferentes seções não foram vigilantes o suficiente e não exerceram cedo o suficiente uma fiscalização severa, crítica, intervenção e contenção. O resultado, essa situação extremamente perigosa e descontrolada, merece o nosso exame especial e revisão. Todo membro responsável e todo trotskista ortodoxo deveria tirar uma séria lição desse caso Pablo. (Sobre isso, caso você queira, eu posso oferecer alguns materiais e opiniões para discutir com você).

Como último ponto, eu quero lhe dizer de passagem que desde que a organização chinesa recebeu a carta aberta do SWP, seu órgão de liderança, o Comitê Nacional, realizou imediatamente uma série de reuniões devotadas à mais séria discussão. Como resultado, aprovou quase unanimemente (com apenas uma abstenção) as visões e posições contidas na sua Carta Aberta, e expressou uma vontade resoluta em participar nessa luta liderada por você contra o revisionismo e o burocratismo. Tendo passado por essa discussão, eles recuperaram sua confiança original, e estão começando a se desprender das confusões, conflitos e desorientação dos anos recentes. Eles estão agora iniciando uma discussão geral na base em uma tentativa de reexaminar todas as questões políticas fundamentais de acordo com a tradição trotskista ortodoxa, e a obter unanimidade e unidade para marchar adiante rumo a um partido revolucionário. Eu considero isso como o primeiro sinal mais otimista no processo de luta contra o revisionismo.

Fraternalmente,

S. T. Peng

A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado

A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado da Sociedade

George Novack
[Esta obra, produzida em 1957 por George Novack quando era dirigente do então trotskista Socialist Workers Party (SWP – Partido dos Trabalhadores Socialistas) norte-americano, ofereceu a gerações de marxistas uma análise mais profunda sobre a importância da Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado ao longo da história das sociedades humanas. Publicamos aqui, não como uma forma de adesão acrítica a todos os argumentos de sua formulação (alguns dos quais bastante controversos), mas sim como reconhecimento de sua importante explicação deste aspecto da teoria marxista. Esta versão foi copiada daquela disponível no Marxists Internet Archive:
http://www.marxists.org/portugues/novack/1968/lei/cap01.htm#ti1].

O Curso Desigual da História
Este ensaio pretende dar uma explicação compreensível e coerente de uma das leis fundamentais da história humana, a lei do desenvolvimento desigual e combinado. É a primeira vez, em minha opinião, que se tenta fazer isto. Procurarei demonstrar o que é esta lei, como funcionou nas principais etapas da história e também como pode clarificar alguns dos mais importantes fenômenos sociais e problemas políticos de nossa época.
A Dupla Natureza da Lei
A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla aplicação no processo histórico. Tem um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma fusão de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta destes fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico.
Os aspectos fundamentais da lei podem ser brevemente exemplificados da seguinte maneira: O fato mais importante do progresso humano é o domínio do homem sobre as forças de produção. Todo avanço histórico se produz por um crescimento mais rápido ou mais lento das forças produtivas neste ou naquele segmento da sociedade, devido às diferenças nas condições naturais e nas conexões históricas. Essas disparidades dão um caráter de expansão ou compressão a toda uma época histórica e conferem distintas proporções de desenvolvimento aos diferentes povos, aos diferentes ramos da economia, às diferentes classes, instituições sociais e setores da cultura. Esta é a essência da lei do desenvolvimento desigual. Essas variações entre os múltiplos fatores da história dão a base para o surgimento de um fenômeno excepcional, no qual as características de uma etapa inferior de desenvolvimento social se misturam com as de outra, superior.
Essas formações combinadas; têm um caráter altamente contraditório e exibem acentuadas peculiaridades. Elas podem desviar-se muito das regras e efetuar tal oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e capacitar povos que eram atrasados a superar, durante certo tempo, os mais avançados. Esta é a essência da lei do desenvolvimento combinado. É óbvio que estas duas leis, estes dois aspectos de uma só lei, não atuam ao mesmo nível. A desigualdade do desenvolvimento precede qualquer combinação de fatores desproporcionalmente desenvolvidos. A segunda lei cresce sobre a primeira e depende desta. E, por sua vez, esta atua, sobre aquela, afetando-a no seu posterior funcionamento.
O Enquadramento Histórico
A descoberta e formulação desta lei é o resultado de mais de dois mil e quinhentos anos de investigações teóricas sobre as formas de desenvolvimento social. As primeiras observações sobre ela foram feitas pelos filósofos e historiadores gregos. Mas a lei como tal foi levada a primeiro plano e efetivamente aplicada, pela primeira vez, pelos fundadores do materialismo histórico, Marx e Engels, há aproximadamente um século. Esta lei é uma das maiores contribuições do marxismo à compreensão científica da história e um dos mais poderosos instrumentos de análise histórica.
Marx e Engels, por sua vez, derivaram a essência desta lei da filosofia dialética de Hegel. Hegel utilizou a lei em suas obras sobre a história universal e a história da filosofia, porém sem lhe dar um nome especial nem reconhecimento explícito.
Da mesma maneira, muitos pensadores dialéticos, antes e depois de Hegel, utilizaram esta lei em seus estudos e aplicaram-na mais ou menos conscientemente, para a solução de complexos problemas histórico-sociais e políticos. Os mais destacados teóricos do marxismo, desde Kautsky e Luxemburgo até Plekhanov e Lênin, reconheceram a sua importância, observaram seu funcionamento e consequências e usaram-na para a solução de problemas que confundiam a outras escolas de pensamento.
Um Exemplo de Lênin
Citemos um exemplo de Lênin, que baseou nesta lei sua análise da primeira etapa da revolução russa de 1917. Em suas “Cartas de Longe” escrevia, da Suíça, aos seus colaboradores bolcheviques:
“O fato de que a revolução (de fevereiro) tenha ocorrido tão rapidamente… deve-se a uma conjuntura histórica incomum, na qual se combinavam, de maneira ‘altamente favorável’, movimentos absolutamente distintos, interesses de classe absolutamente diferentes e tendências políticas e sociais absolutamente opostas”. (Collected Works, Book I, pág. 31).
O que havia ocorrido? Um setor da nobreza e dos proprietários rurais russos, a oposição burguesa, os intelectuais radicais, os operários e soldados insurretos, junto com os aliados do imperialismo – forças sociais absolutamente antagônicas – haviam se unido momentaneamente contra a autocracia czarista. Cada qual pelas suas próprias razões. Todas juntas sitiaram, isolaram e derrubaram o regime dos Romanov. Essa extraordinária e irrepetível conjuntura de circunstâncias e combinações de forças surgiu da totalidade de desigualdades prévias do desenvolvimento histórico russo por seus largamente adiados e não resolvidos problemas sociais e políticos exacerbados pela primeira guerra imperialista mundial.
As diferenças, que haviam desaparecido superficialmente na ofensiva contra o czarismo, se manifestaram imediatamente e não passou muito tempo até que esta aliança de fato, de forças opostas por natureza, se desintegrasse e rompesse. Os aliados da revolução de fevereiro de 1917 se transformaram nos inimigos irreconciliáveis de outubro de 1917.
Como se chegou a isto? A queda do czarismo, na época, produziu uma desigualdade nova e superior, na situação, que pode ser sentida na seguinte fórmula: por um lado, as condições objetivas estavam maduras para a tomada do poder pelos operários; por outro, a classe operária russa – e, sobretudo, sua direção – não haviam apreciado corretamente a situação real nem experimentado, a nova relação de forças. Ou seja, subjetivamente, não estavam amadurecidas para realizar a tarefa suprema. Pode-se dizer que o desenvolvimento da luta de classes, de fevereiro a outubro de 1917, consistiu no reconhecimento crescente, por parte da classe operária e seus líderes revolucionários, do que era preciso fazer, bem como das condições objetivas e da preparação subjetiva. A brecha aberta entre eles foi preenchida na ação pelo triunfo dos bolcheviques na Revolução de Outubro, que combinou a conquista operária do poder com o mais amplo levante camponês.
O Formulador da Lei
Este processo está totalmente explicado por Trotsky em sua “História da Revolução Russa”. A própria revolução russa foi o exemplo mais claro do desenvolvimento desigual e combinado na história moderna. Em sua análise clássica deste acontecimento, Trotsky deu ao movimento marxista a primeira formulação explícita da lei.
Trotsky, como teórico, é, célebre sobretudo pela formulação da teoria da Revolução Permanente. Contudo, sua exposição da lei do desenvolvimento desigual e combinado poderia ser comparada àquela em importância. Trotsky não só deu nome a essa lei, como também foi o primeiro que a expôs em seu pleno significado e lhe deu expressão acabada.
Estas duas contribuições à compreensão científica dos movimentos sociais estão, de fato, intimamente ligadas. A concepção de Trotsky da Revolução Permanente resultou de seu estudo das peculiaridades do desenvolvimento histórico russo, à luz dos novos problemas que se apresentaram ao socialismo mundial na época do imperialismo. Esses problemas eram particularmente agudos e complexos em países atrasados, onde a revolução democrático-burguesa não tinha ocorrido, e exigiam a solução de suas tarefas mais elementares em um momento em que estava colocada a revolução proletária. Os frutos de suas ideias sobre esta questão, confirmados pelo desenvolvimento real da Revolução Russa, prepararam e estimularam sua subsequente elaboração da lei do desenvolvimento desigual e combinado.
Certamente, a teoria de Trotsky da Revolução Permanente é a aplicação mais frutífera desta verdadeira lei aos problemas cruciais da luta de classes internacional de nosso tempo – época de transição da dominação capitalista ao mundo socialista – e oferece o mais alto exemplo de seu penetrante poder. Contudo, a lei é aplicável não apenas aos acontecimentos revolucionários da época presente como também, como veremos, a toda evolução social. Possui também aplicações mais amplas.
Desenvolvimento Desigual na Natureza
Deixando de lado o enquadramento histórico do qual surgiu a lei do desenvolvimento desigual e combinado, passemos agora à análise do alcance de sua aplicação.
Embora tenha se originado do estudo da história moderna, a lei do desenvolvimento desigual e combinado tem raízes em acontecimentos comuns a todos os processos de crescimento, tanto na natureza como na sociedade. Os investigadores científicos enfatizaram o prevalecimento das desigualdades dominantes em muitos campos. Todos os elementos constituintes de um objeto, todos os aspectos de um acontecimento, todos os fatores de um processo em desenvolvimento não se realizam na mesma proporção ou em igual grau. Mais ainda, sob diferentes condições materiais, as mesmas coisas exibem diferentes proporções e graus de crescimento. Qualquer camponês ou trabalhador urbano sabe disso.
Em “Life of the Past”, G. G. Simpson, uma das mais notáveis autoridades em matéria de evolução, desenvolve este mesmo ponto, dizendo:
“O mais importante a respeito das proporções da evolução é que variam enormemente e que as mais rápidas delas parecem ao mesmo tempo as mais lentas para os seres humanos (incluindo os paleontólogos, poderia dizer-se). Se seguirmos uma linha de filogenia em seu registro fóssil, é quase certo que verificaremos que distintos caracteres e partes evoluem em proporções bastante diferentes e, em geral, que nenhuma parte evolui por longo tempo na mesma proporção. O cérebro do cavalo evolui rapidamente enquanto o resto do corpo muda muito pouco. A evolução do cérebro é muito mais rápida, durante um espaço de tempo relativamente curto, do que em qualquer outro momento. A evolução do pé fica praticamente estacionada durante toda a evolução do cavalo, mas em três oportunidades sofre mudanças relativamente rápidas em seu mecanismo”.
“As proporções da evolução também variam muito de uma família a outra, e igualmente entre famílias ligadas. Há uma série de animais atualmente existentes que mudaram muito pouco em longos períodos de tempo: um pequeno branquiópode chamado Lingula, por cerca de 400 milhões de anos; o Limidus, o ‘caranguejo ferradura’ – mais um escorpião que um caranguejo -, em 175 milhões de anos ou mais; o Esphenodon, um réptil parecido a uma lagartixa, agora confinado à Nova Zelândia, por cerca de 15 milhões de anos; o Didelphis, um gambá americano, por cerca de 75 milhões de anos. Estes e outros animais, para os quais a evolução se deteve há muito tempo, tiveram que evoluir todos numa proporção comum relativamente rápida.”
“Há, por outro lado, diferentes características de proporções nos distintos grupos. A maior parte dos animais terrestres evoluiu mais rápido que a maioria dos aquáticos – esta generalização não contradiz o fato de que alguns animais aquáticos tenham evoluído mais rápido que alguns terrestres.” (pág. 137-138.)
A evolução de uma ordem inteira de organismos passou, durante um ciclo completo, por uma fase inicial de crescimento lento, restrito, seguido por um período mais curto mas intenso de “expansão explosiva”, voltando a cair em uma prolongada fase de mudanças menores.
Em “O Significado da Evolução” (pág. 72-73), G. G. Simpson assinala:
“O tempo de expansão rápida, alta variabilidade e começo de radiação adaptativa… são períodos que aumentam as oportunidades que se apresentam aos grupos capazes de continuá-la. Tal oportunidade para uma expansão explosiva se abriu aos répteis quando evoluíram, ao ponto de ficarem independentes da água como meio de vida e passarem a viver na terra, na árida vida dos vertebrados. Quando um ‘período mais tranquilo, posterior à radicação, se completou’, o grupo pode entrar indulgentemente no gozo progressivo da conquista obtida”.
A evolução de nossa própria espécie logrou, através da primeira fase de tal ciclo, entrar na segunda. Os antecessores animais imediatos do gênero humano passaram por um prolongado período de crescimento restrito, como o demonstra o seu pequeno cérebro, comparado a outros. O gênero humano atingiu a sua fase de “expansão explosiva” só no último milhão de anos, aproximadamente, após o primata do qual descendemos ter adquirido os necessários poderes sociais. Contudo, o posterior desenvolvimento do gênero humano não duplicou o seu cicio de evolução animal, porque o crescimento da sociedade provém de uma base qualitativamente diferente e é governado por suas leis específicas.
A evolução dos distintos organismos humanos é marcada por uma considerável irregularidade. O crânio desenvolveu suas atuais características entre nossos antecessores símios, muito antes das nossas mãos articuladas com o polegar oposto. Somente depois de nossos antecessores terem adquirido a postura ereta e as mãos para trabalhar, é que o cérebro dentro do crânio desenvolveu as suas atuais proporções e complexidades.
O que é válido para ordens inteiras e para espécies de animais e plantas também o é para espécimes individuais. Se a igualdade prevalecesse no crescimento biológico, cada órgão do corpo poderia desenvolver-se simultaneamente e no mesmo grau de proporções, mas tão perfeita simetria não existe na vida real. No crescimento do feto humano, alguns órgãos aparecem e amadurecem antes dos outros. A cabeça e o pescoço formam-se antes dos braços e pernas, o coração na terceira semana e os pulmões mais tarde. A culminação de todas estas irregularidades se manifesta nos recém-nascidos, que são gerados em diferentes condições, com deformações e em distintos intervalos entre a concepção e o nascimento. O período de nove meses de gestação não passa de uma média estatística. A data do nascimento pode variar dias, semanas ou meses dessa média. O sinus frontal, um desenvolvimento tardio que só possuem os primatas e os homens, não se dá nos jovens humanos e sim depois da puberdade e, em muitos casos, nunca chega a ocorrer.
A Evolução Desigual das Sociedades Primitivas
O desenvolvimento da organização social e das estruturas sociais particulares exibe desigualdades não menos pronunciadas que a história biológica dos antecessores: da raça humana. Os diversos elementos da existência social apareceram em tempos diferentes, evoluíram em proporções enormemente distintas e se desenvolveram, sob distintas condições, em graus diferentes. Os arqueólogos dividem a história humana em idade da Pedra, do Bronze e do Ferro, em função dos principais materiais usados na fabricação de ferramentas e armas. Essas três etapas de desenvolvimento tecnológico tiveram imensas diferenças temporais de duração. A Idade da Pedra durou cerca de novecentos mil anos; a Idade do Bronze, de três a quatro mil anos A.C.; a Idade do Ferro tem menos de quatro mil anos. Contudo, os diversos grupos do gênero humano atravessaram essas etapas em diversas épocas, em várias partes do mundo. A Idade da Pedra acabou por volta de 3.500 A.C. na Mesopotâmia; cerca de 1.600 A.C. na Dinamarca; em 1492 na América e ainda não se encerrara em 1.800 na Nova Zelândia.
Uma desigualdade parecida pode ser assinalada na organização social. A etapa de selvageria, baseada na coleta de ervas alimentares, caça e pesca, estende-se por muitas centenas de milhares de anos, ao passo que a barbárie, baseada na criação de animais e no cultivo de cereais, data de oito mil anos A.C.. A civilização tem menos de seis mil anos de existência.
A produção regular, ampla e crescente de alimentos produziu um avanço revolucionário no desenvolvimento econômico, e elevou a produção alimentícia das aldeias muito acima daquela das tribos atrasadas, que continuavam subsistindo com base na coleta de alimentos. A Ásia foi o lugar de nascimento da domesticação de animais e da horticultura. É incerto qual desses ramos da produção se desenvolveu antes, mas os arqueólogos descobriram remanescentes de comunidades camponesas mistas, com os dois tipos de produção de alimentos, que remontam a oito mil anos A.C.
Existem tribos puramente pastoris que dependem exclusivamente do rebanho de animais para a sua existência, como também povos completamente agrícolas, cuja economia está baseada no cultivo de cereais ou tubérculos.
A cultura desses grupos especializados tem um desenvolvimento unilateral, em consequência de seu tipo particular de produção dos meios básicos de vida. O modo de subsistência puramente pastoril não tem, porém, as potencialidades inerentes ao desenvolvimento agrícola. As tribos pastoris não podem incorporar na sua economia os tipos mais elevados de produção de alimentos, em qualquer escala, sem abandonar e mudar inteiramente seu modo de vida. Isto acontece especialmente depois da introdução, do arado, que supera as técnicas de queimada e de semeadura da horticultura. Não podiam desenvolver uma divisão extensa do trabalho nem avançar da aldeia à cidade enquanto continuassem como simples guardadores do seu rebanho de gado.
A superioridade inerente da agricultura sobre a criação de gado é demonstrada pelo fato de que as populações densas e as mais avançadas civilizações, como a asteca, a inca ou a maia o provaram, se desenvolveram com base na agricultura.
Os agricultores puderam incorporar facilmente a domesticação de animais; ao seu modo de produção, mesclando ou combinando o cultivo do alimento com o pastoreio de animais, assim como transferindo animais de tração à tecnologia da agricultura, com a invenção do arado.
Foi a combinação da criação de gado com o cultivo de cereais em áreas mistas que ajudou os povos agrícolas, dentro da sociedade bárbara, a superar as tribos meramente pastoris, e a se transformarem, nas condições favoráveis dos vales dos rios da Mesopotâmia, Egito, Índia e China, nos berços da civilização.
Desde o advento dos povos civilizados, existiram três; diferentes níveis essenciais de progresso, que correspondem a seus modos de assegurar as necessidades vitais: a coleta de alimentos, a produção elementar de alimentos e a produção mista, com um alto desenvolvimento da divisão do trabalho e uma crescente troca de mercadorias.
Os gregos da época clássica eram altamente conscientes desta disparidade de desenvolvimento entre eles próprios e os povos que ainda se mantinham numa, etapa mais atrasada de desenvolvimento social. Assinalaram esta diferença fazendo uma distinção marcante entre os gregos civilizados e os bárbaros. A conexão e distância histórica entre eles foi explicitamente assinalada pelo historiador Tucídides, ao afirmar:
“Os gregos viviam anteriormente como os bárbaros vivem hoje”.
O Novo e o Velho Mundo
A desigualdade do desenvolvimento histórico mundial raras vezes foi tão notável como quando os nativos da América se enfrentaram pela primeira vez com os invasores brancos que vinham da Europa. Encontraram-se ali duas rotas de evolução social completamente separadas, produtos de dez a vinte mil anos de desenvolvimento independente nos dois hemisférios. Ambas se viram obrigadas a comparar suas proporções de crescimento e a medir seus respectivos resultados globais. Esta foi uma das mais marcantes confrontações de diferentes culturas em toda a História.
Naquele momento a Idade da Pedra chocou-se com o final da Idade do Ferro e o começo da mecanização. Na caça e na guerra, o arco e a flecha tiveram que competir com o mosquete e o canhão; na agricultura, a enxada e o bastão, com o arado e os animais de tração; no transporte aquático, a canoa com o navio; na locomoção terrestre, as pernas humanas com o cavalo e os pés descalços com a roda. Na organização social, o coletivismo tribal contra as instituições e costumes feudal-burgueses; a produção para o consumo imediato da comunidade contra uma economia monetária e o comércio internacional.
Poderíamos multiplicar estes contrastes entre os índios americanos e os europeus ocidentais. Contudo, a desigualdade dos produtos humanos de enormes etapas separadas de desenvolvimento econômico foi, aparentemente, demasiado violenta. Surgiram grandes antagonismos; trataram de manter-se separados uns dos outros e, assim como no princípio os chefes astecas identificaram os recém-chegados brancos com deuses, os europeus, reciprocamente, olhavam e tratavam os nativos como animais.
Como sabemos, a desigualdade de produtividade e poder destrutivo na América do Norte não foi superada pela adoção, pelos índios, dos métodos dos brancos e sua assimilação gradual e pacífica à sociedade de classes. Pelo contrário, nos quatro séculos seguintes chegou-se à expropriação e aniquilação das tribos indígenas.
O Atraso da Vida Colonial
Se os colonizadores brancos desenvolveram sua superioridade material sobre os povos nativos, eles pr6prios estavam atrasados em relação à pátria de origem.
O atraso geral do continente norte-americano e suas colônias, em comparação ao ocidente europeu, predeterminou as principais linhas de seu desenvolvimento desde o começo do século X-VI até meados do século XIX. Neste período, a tarefa central dos americanos foi alcançar a Europa e superar a disparidade no desenvolvimento social dos dois continentes. Como e por quem foi feito isto é o principal tema da história norte-americana ao longo destes três séculos e meio.
Isto exigiu, entre outras coisas, duas revoluções para completar a tarefa. A revolução colonial, que coroou a primeira etapa de progresso, deu ao povo americano instituições políticas mais avançadas que as de qualquer outro lugar do velho mundo e aplainou o caminho para a rápida expansão econômica. De toda maneira, depois de haver conquistado a independência nacional, os EUA tiveram ainda que conquistar a independência econômica dentro do mundo capitalista. A diferença econômica entre esse pais e as nações do ocidente da Europa limitou-se à primeira metade do século XIX e encerrou-se virtualmente com o triunfo do capitalismo industrial do Norte sobre os poderes escravistas, na guerra civil. Não foi necessário muito tempo para que os Estados Unidos superassem a Europa Ocidental.
As Desigualdades dos Continentes e Países
Estas mudanças na posição dos Estados Unidos ilustram a desigualdade de desenvolvimento entre os centros metropolitanos e as colônias, entre os diferentes continentes e entre os países de um mesmo continente.
Uma comparação entre os diversos modos de produção nos diversos países demonstraria mais abruptamente suas desigualdades. O escravismo havia virtualmente terminado como modo de produção, nos países da Europa, antes de ser introduzido na América, em virtude das necessidades dos próprios europeus. A servidão havia desaparecido na Inglaterra antes de surgir na Rússia e houve tentativas de implantá-la nas colônias norte-americanas depois de ter sido varrida na metrópole. Na Bolívia, o feudalismo floresceu sob os conquistadores espanhóis e fez deteriorar o escravismo, ao passo que, nos Estados Unidos, este surgiu freando o feudalismo.
O capitalismo estava altamente desenvolvido no ocidente da Europa, enquanto que no Leste era implantado só superficialmente. Uma disparidade similar no desenvolvimento capitalista prevaleceu entre os Estados Unidos e México.
A desigualdade é a “lei mais geral do processo histórico” (História da Revolução Russa, pág. 5). Estas desigualdades são a expressão específica da natureza contraditória do progresso social e da dialética do desenvolvimento humano.
Desigualdades Internas
A desigualdade do desenvolvimento entre os continentes e países é acompanhada por semelhante crescimento desigual dos distintos elementos dentro de cada grupo social ou organismo nacional.
Em uma obra sobre a classe operária norte-americana, escrita por Karl Kautsky no começo do século, o marxista alemão assinalava alguns dos contrastes marcantes no desenvolvimento social da Rússia e dos Estados Unidos nessa época.
“Dois estados existem” -escreveu – “diametralmente opostos um ao outro. Cada um deles contém um elemento extremamente desenvolvido em comparação com o seu nível capitalista. Na Rússia é o proletariado. Em nenhum outro país como na América do Norte se pode falar com tanta propriedade da ditadura do capital, ao passo que em nenhum o proletariado adquiriu tanta importância como na Rússia”.
Esta diferença no desenvolvimento, que Kautsky descreve nos seus primórdios, se acentuou enormemente em suas etapas ulteriores. Trotsky fez uma análise extraordinária do significado de tais desigualdades para explicar o curso de uma história nacional, no primeiro capítulo de sua “História da Revolução Russa”, sobre “as peculiaridades do desenvolvimento russo”. A Rússia czarista continha forças sociais que pertenciam a três diferentes etapas do desenvolvimento histórico. No alto estavam os elementos feudais: uma monstruosa autocracia asiática, um clero estatal, uma burocracia servil, uma nobreza territorial privilegiada. Mais abaixo, havia uma fraca e impopular burguesia e uma intelectualidade covarde. Estes fenômenos opostos estavam organicamente inter-relacionados. Constituíam distintos aspectos de um processo social unificado. As condições históricas que fortificaram e preservaram o predomínio das forças feudais – a lentidão do desenvolvimento russo, a sua economia atrasada, o primitivismo de suas formas sociais e seu baixo nível de cultura – haviam freado o crescimento das forças sociais e acentuado sua debilidade social e política.
Este foi um aspecto da situação. Por outro lado, o extremo atraso da história russa havia deixado sem resolver os problemas agrários e nacionais, provocando descontentamento, fome de terra no campesinato e anseio de liberdade nas nacionalidades oprimidas. Enquanto isso, aparecia a indústria capitalista, dando origem a empresas altamente concentradas, sob a dominação do capital financeiro estrangeiro, e a um proletariado não menos concentrado, armado com as últimas ideias, organizações e métodos de luta.
Esta violenta desigualdade na estrutura social da Rússia czarista forneceu a base para os acontecimentos revolucionários que explodiram, quando da queda da decadente estrutura medieval em 1917, e culminaram em poucos meses levando ao poder o proletariado e o partido bolchevique. Somente analisando e compreendendo isto, é possível captar porque a revolução russa se deu desta maneira.
Irregularidades na Sociedade
As pronunciadas irregularidades que se produziram na história induziram alguns pensadores a negar que haja, ou possa haver, alguma causalidade ou lei no desenvolvimento social. A escola mais conhecida de antropólogos norte-americanos, encabeçada pelo falecido Franz Boas, nega explicitamente que possa haver alguma sequência determinada de etapas que possam ser descobertas na evolução social, ou que as expressões culturais estejam ligadas à tecnologia ou à economia. Segundo R. H. Lowitt, o expositor mais conhecido deste ponto de vista, os fenômenos culturais apresentam meramente o caráter de “um caos sem plano”, uma “selva caótica”. A “selva caótica” está na cabeça desse anti-materialista e anti-evolucionista, e não na história ou na constituição da sociedade.
É possível que os povos que vivem, no século XX, sob as condições da Idade da Pedra, possuam um rádio – resultado do desenvolvimento combinado. Mas é categoricamente impossível encontrar tal produto da eletrônica contemporânea enterrado com os resquícios humanos da Idade da Pedra depositados há muitíssimos anos.
Não é preciso ser muito esperto para perceber que um coletor de alimentos, de ervas, um caçador, um pescador ou um caçador de aves, existiram muito antes que a produção de alimentos em forma de horticultura ou criação de gado. Ou que as ferramentas de pedra precederam as de metal; que a palavra precedeu a escrita; que as cavernas existiram antes das aldeias; que a troca de bens precedeu a moeda. Numa escala histórica geral, estas sequências são absolutamente invioláveis.
As principais características da estrutura social simples dos selvagens são determinadas por seus primitivos métodos de produzir os meios de vida, que dependem, por sua vez, do baixo nível de suas forças produtivas.
Estima-se que os povos coletores de alimentos requerem, em média, 40 milhas quadradas per capita para se manterem. Não podem produzir nem manter grandes concentrações de população sobre tais fundamentos econômicos. Geralmente agrupam menos de quarenta pessoas e raras vezes excedem a cem. A iniludível estreiteza de sua produção de alimentos e a dispersão de sua força limitam estritamente seu desenvolvimento.
Da Barbárie à Civilização
Que se pode dizer a respeito da etapa seguinte de desenvolvimento social, a barbárie? 0 notável arqueólogo V. Gordon Childe publicou recentemente, num livro chamado “Evolução Social”, um resumo, dos “sucessivos passos através dos quais as culturas bárbaras entram na via da civilização, em contraste com seu ambiente natural”. Childe reconhece que o ponto de partida na esfera econômica foi idêntico em todos os casos, “na medida em que as primeiras culturas bárbaras examinadas estavam baseadas no cultivo dos mesmos cereais, e no pastoreio das mesmas espécies de animais”. Ou seja, a barbárie separa-se das formas selvagens de vida pela aquisição e aplicação de técnicas produtivas mais elevadas para a agricultura e a criação de gado.
A chegada ao resultado final – a civilização – exibe diferenças concretas em cada caso, “contudo, em toda parte, significa a agregação de grandes populações nas cidades, assim como a diferença entre a produção primária (pescadores, agricultores etc.) e a de artesãos especializados em tempo integral, mercadores, burocratas, clero e governantes; uma efetiva concentração do poder político e econômico; o uso de símbolos convencionais para lembrar e transmitir informações (escrita) e também padrões convencionais de pesos e medidas e de medidas de tempo e espaço que levam a um tipo de ciência matemática e calendário”.
Ao mesmo tempo, Childe assinala que “os passos que integram este desenvolvimento não apresentam, igualmente, um paralelismo abstrato”. A economia rural do Egito, por exemplo, tem um desenvolvimento diferente do da Europa de clima temperado. Na agricultura do velho mundo, a enxada foi substituída pelo arado, ferramenta que não era conhecida pelos maias.
A conclusão geral que Childe tira destes fatos é que “o desenvolvimento da economia rural bárbara das regiões estudadas não apresenta paralelismo e sim convergências e divergências” (pág. 162). Mas isto não é suficiente.
Considerados em sua totalidade e em sua inter-relação histórica, a maioria dos povos que entram na barbárie surge das mesmas atividades econômicas essenciais, o cultivo de cereais e criação de gado. Tiveram um desenvolvimento diversificado de acordo aos diferentes habitats naturais e circunstâncias históricas e comprovam, ao percorrer o caminho rumo à civilização, que não foram detidos na rota ou obliterados, e atingiram por fim o mesmo destino: a civilização.
A Marca da Civilização
Que ocorreu com a evolução da civilização? É um “caos sem plano”? Quando analisamos a marcha do gênero humano através da civilização, vemos que seus segmentos avançados passaram sucessivamente pelo escravismo, feudalismo e capitalismo e agora estão a caminho do socialismo. Isto não significa que cada setor da humanidade tenha passado por esta sequência invariável de etapas históricas, como cada um dos povos bárbaros passou através da mesma sequência de etapas. Mas a sua efetiva consecução permite a quem chega mais tarde combinar ou comprimir etapas históricas inteiras.
O curso real da história, a passagem de um sistema social a outro, de um nível de organização a outro, é muito mais complicado, heterogêneo e contraditório do que aquele que se pode dar num esquema histórico geral. O esquema histórico universal das estruturas sociais – selvageria, barbárie, civilização – com suas respectivas etapas, é uma abstração. É uma abstração indispensável e racional, que corresponde às realidades essenciais do desenvolvimento e serve como guia para a investigação, mas não pode subestimar diretamente a análise de nenhum segmento concreto da sociedade.
Uma linha reta pode ser a distância mais curta entre dois pontos, mas a humanidade frequentemente deixou de lado esse adágio e seguiu aquele que diz que “o caminho mais longo é o mais perto de casa”.
Na história mesclam-se ambas: regularidades e irregularidades. A regularidade é fundamentalmente determinada pelo caráter e desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produzir os meios de vida. Contudo, este determinismo básico não se manifesta no desenvolvimento real da sociedade de maneira simples, direta e uniforme, e sim por meios extremamente complexos, desviados e heterogêneos.
A Evolução Desigual do Capitalismo
Isto está exemplificado com maior ênfase na evolução do capitalismo e suas partes componentes. O capitalismo é um sistema econômico mundial. Nos últimos cinco séculos se desenvolveu de país a país, de continente a continente, e passou através das fases sucessivas do capitalismo comercial, industrial, financeiro e capitalismo estatal monopolista. Cada país, mesmo que atrasado, foi levado à estrutura das relações capitalistas e se viu sujeito às suas leis de funcionamento. Enquanto cada nação entrou na divisão internacional do trabalho sobre a base do mercado mundial capitalista, cada uma participou de forma peculiar e em grau diferente na expressão e expansão do capitalismo, e jogou diferente papel nas distintas etapas de seu desenvolvimento.
O capitalismo surgiu com muito maior força na Europa e América do Norte do que na Ásia e África. Estes foram fenômenos interdependentes, lados opostos de um único processo. O fraco desenvolvimento capitalista nas colônias foi produto e condição do superdesenvolvimento das áreas metropolitanas, que se realizou às custas das primeiras.
A participação de várias nações no desenvolvimento do capitalismo não foi menos irregular. A Holanda e a Inglaterra tomaram a direção no estabelecimento das formas e forças capitalistas nos séculos XVI e XVII, enquanto a América do Norte estava ainda, em grande medida, em posse dos índios. Contudo, na fase final do capitalismo, no século XX, os Estados Unidos superaram amplamente a Inglaterra e a Holanda. À medida que o capitalismo ia captando dentro de sua órbita um país após o outro, aumentavam as diferenças mútuas. Esta crescente interdependência não significa que sigam pautas idênticas ou possuam as mesmas características. Quando mais se estreitam as suas relações econômicas, surgem profundas diferenças que os separam. O seu desenvolvimento nacional não se realiza, em muitos aspectos, ao longo de linhas paralelas, e sim através de linhas angulares, às vezes divergentes como ângulos retos. Adquirem troços não idênticos, mas complementares.
Causas Iguais, Efeitos Diferentes
A regra que diz que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos não é incondicional e geral. A lei só é válida quando a história produz as mesmas condições, mas geralmente há diferenças para cada país e constantes mudanças e intercâmbios entre eles. As mesmas causas básicas podem conduzir a resultados muito diferentes e até opostos.
Por exemplo, na primeira metade do século XIX, a Inglaterra e os EUA eram ambos governados pelas mesmas leis do capitalismo industrial. Mas estas leis operavam sob diferentes condições nos dois países e produziram resultados muito diferentes na agricultura. A enorme demanda da indústria britânica por algodão e alimentos baratos estimulou poderosamente a agricultura norte-americana, ao mesmo tempo em que os mesmos fatores econômicos sufocaram os camponeses da Inglaterra. A expansão da agricultura num país e sua contração no outro foram consequências opostas, mas interdependentes, das mesmas causas econômicas.
Passando do processo econômico ao intelectual, o marxista russo Plekhanov assinalava, no seu notável trabalho “Em defesa do materialismo” (pág. 126), como o desenvolvimento desigual dos diversos elementos que compõem uma estrutura nacional permite ao mesmo conjunto de ideias produzir um impacto social muito diferente sobre a vida filosófica.
Falando do desenvolvimento ideológico no século XVIII, Plekhanov assinalava:
“O mesmo conjunto de ideias levou ao ateísmo militante dos materialistas franceses, ao indiferentismo religioso de Hume, e à religião ‘prática’ de Kant. A razão foi que a questão religiosa na Inglaterra, nesse tempo, não jogava o mesmo papel que na França, nem nesta como na Alemanha. E esta diferença no significado da questão religiosa tinha suas raízes na distinta relação em que estavam as forças sociais em cada um desses países. Similares em sua natureza, mas díspares em seu grau de desenvolvimento, os elementos da sociedade combinavam-se de modo diferente nos distintos países europeus e conduziam, cada um deles, a um estado de consciência muito particular, que se expressava na literatura nacional, na filosofia, na arte, etc. Como consequência disto, uma mesma questão pode apaixonar os franceses e deixar indiferentes os britânicos. Um mesmo argumento pode ser considerado com respeito por um alemão progressista, enquanto um francês progressista o verá com ódio amargo”.
Peculiaridades Nacionais
Desejaria terminar este exame do processo de desenvolvimento desigual com uma discussão do problema das peculiaridades nacionais. Os marxistas são amiúde acusados por seus inimigos de negar, ignorar ou subestimar as peculiaridades nacionais em favor das leis históricas universais. Não é verdade. Não é correta essa crítica, embora alguns marxistas individualmente possam ser acusados de tais erros.
O marxismo não nega a existência e a importância das peculiaridades nacionais. Seria teoricamente estúpido e praticamente sem valor se o fizesse, dado que as diferenças nacionais podem ser decisivas para orientar a política do movimento operário, de uma luta nacional ou de um partido revolucionário, durante certo período num dado país. Por exemplo, a maior parte dos ativistas operários da Grã-Bretanha seguem o partido trabalhista.
Este monopólio é uma peculiaridade fundamental da Grã-Bretanha e do desenvolvimento político dos seus trabalhadores. Os marxistas que não levarem em conta este fator, como chave de sua orientação organizativa, estarão violando o espírito do seu método. Há outro exemplo remoto: na maior parte dos países coloniais, hoje em dia, as raças de cor estão lutando contra o imperialismo pela independência nacional contra a opressão das nações brancas. Nos Estados Unidos, pelo contrário, a luta dos negros contra seu caráter de cidadãos de segunda classe se caracteriza por não ser um movimento pela separação e sim pela demanda de integração incondicional à vida americana, sobre bases iguais.
Sem ter em conta este caráter específico é impossível compreender as principais tendências da luta dos negros americanos na atual etapa. Longe de rejeitar as diferenças nacionais, o marxismo é o único método histórico, a única teoria sociológica que as explica adequadamente, demonstrando quais são suas raízes nas condições materiais de vida e considerando suas origens históricas, desenvolvimento, desintegração e desaparecimento. As escolas burguesas de pensamento veem as peculiaridades nacionais com um critério distinto, como acidentes inexplicáveis, como produto da vontade divina ou de características fixas e finais de um determinado povo. O marxismo as vê como um produto histórico que surge de combinações concretas de forças e condições internacionais.
Este procedimento de combinar o geral com o particular e o abstrato com o concreto está de acordo não somente com as exigências da ciência como também com nossos hábitos diários de raciocínio. Cada indivíduo tem uma expressão facial diferente, o que nos permite reconhecê-lo e separá-lo dos outros. Ao mesmo tempo, compreendemos que este indivíduo tem o mesmo gênero de olhos, ouvidos, boca, fronte e outros órgãos que o restante da raça humana. De fato, a fisionomia particular que produz sua expressão diferente é só a manifestação fundamental de um conjunto específico dessas estruturas e características humanas comuns. O mesmo ocorre com a vida e a fisionomia de uma dada nação.
Cada nação tem seus próprios traços característicos. Mas essas peculiaridades surgem como consequência da modificação de leis gerais em função das condições materiais e históricas específicas. São, em última instância, a cristalização particular de um processo universal.
Trotsky concluiu que as peculiaridades nacionais são o produto mais geral do desenvolvimento histórico desigual, seu resultado final.
Os Limites das Peculiaridades Nacionais
Contudo, por mais profundamente assentadas que estejam estas peculiaridades na estrutura social e por mais poderosa que seja sua influência sobre a vida nacional, elas são limitadas. Em primeiro lugar, são limitadas na ação. Não substituem o processo superior da economia e política mundial nem podem abolir o funcionamento de suas leis.
Consideremos, por exemplo, as diferentes consequências políticas da crise mundial de 1929, nos EUA e Alemanha, devidas às diferenças no contexto histórico, na estrutura social específica e na evolução política nacional. Num caso, o New Deal de Roosevelt chegou ao poder e no outro, o fascismo de Hitler. O programa de reforma sob os auspícios democrático-burgueses, e o programa da contrarrevolução sob a fria ditadura totalitária, foram métodos totalmente diferentes utilizados pelas respectivas classes capitalistas para salvar a pele.
Este contraste entre as forças capitalistas americana e alemã de autopreservação foi explorada até a exaustão pelos apologistas do capitalismo norte-americano, os quais o atribuíram ao espírito democrático inerente à nação americana e aos seus governantes capitalistas. Na realidade, a diferença se deveu à maior riqueza e recursos do imperialismo dos EUA, por um lado, e à imaturidade das relações de classe e conflitos, por outro. Contudo, na etapa seguinte e antes que sobreviesse a decadência, o processo do imperialismo levou ambas as potências a uma segunda guerra mundial, para determinar quem dominaria o mercado mundial. Apesar de significativas diferenças em seus regimes políticos internos, ambas chegaram ao mesmo destino. Continuaram subordinadas às mesmas leis fundamentais do imperialismo capitalista e não puderam impedir seu funcionamento nem evitar suas consequências.
Em segundo lugar, as peculiaridades nacionais têm limites historicamente definidos. Não estão fixadas para sempre nem têm um destino absolutamente determinado. Condições históricas as geram e as suplantam; novas condições históricas podem alterá-las, eliminá-las e ainda transformá-las em seus opostos.
No século XIX, a Rússia era o país mais reacionário da Europa e da política mundial; no século XX transforma-se no mais revolucionário. Em meados do século XIX os Estados Unidos eram a nação mais revolucionária e progressista; em meados do século XX, substituíram a Rússia como fortaleza da contrarrevolução mundial. Mas este papel tampouco pode ser eterno, como assinalaremos no próximo capítulo, onde estudaremos o caráter e consequências do desenvolvimento desigual e combinado.
O Desenvolvimento Combinado e suas Consequências
Analisaremos agora o segundo aspecto da lei do desenvolvimento desigual e combinado. Seu nome indica de qual lei geral é ela uma expressão particular, ou seja, a lei da lógica dialética chamada “lei da interpenetração dos opostos”. Os dois processos – desigualdade e combinação – que estão unidos nesta formulação representam dois aspectos ou etapas da realidade opostos e, não obstante, integralmente relacionados e interpenetrados.
A lei do desenvolvimento combinado parte do reconhecimento da desigualdade nas proporções de desenvolvimento de vários fenômenos das mudanças históricas. A disparidade no desenvolvimento técnico e social, e a combinação fortuita de elementos, tendências e movimentos pertencentes a diferentes etapas da organização social, dão a base para o surgimento de algo novo e de qualidade superior.
Esta lei permite-nos observar como surge a nova qualidade. Se a sociedade não se desenvolvesse num caminho diferencial, ou seja, através do surgimento de diferenças, às vezes tão agudas que se tomam contraditórias, não haveria possibilidade de combinação e integração de fenômenos contraditórios. Contudo, a primeira fase do processo evolutivo – desigualdade – é o pré-requisito indispensável para a segunda fase: a combinação de características que pertencem a diferentes etapas da vida social nas distintas formações sociais, desviando-se dos padrões deduzidos abstratamente ou tipos “normais”.
Esta combinação surge como a necessária superação da desigualdade pré-existente. Podemos ver como ocorrem quase sempre juntas e ligadas na simples lei da combinação e desigualdade do desenvolvimento. Partindo do fato dos níveis diversos de desenvolvimento que resultam da progressão desigual dos distintos aspectos da sociedade, poderemos agora analisar a próxima etapa e a necessária consequência desta situação: a sua combinação.
Fusão de Diferentes Fatores Históricos
Antes de mais nada, devemos perguntar-nos o que significa combinado. Pudemos ver como características que pertencem a uma etapa da evolução se ligam a outras que são essencialmente próprias de uma etapa mais elevada. A igreja católica, cujo centro está no Vaticano, é uma característica instituição feudal. Na atualidade, o papa usa rádio e televisão – invenções do século XX – para disseminar a doutrina da igreja. Isto conduz a uma segunda questão: como se combinam as diferentes características? Aqui, as combinações dos metais nos proporcionam uma analogia útil. O bronze, que joga um grande papel no desenvolvimento das mais antigas construções de ferramentas, que deu seu nome a toda uma etapa do desenvolvimento histórico, compôs-se de dois metais elementares, o cobre e o estanho, misturados em proporções específicas. A sua fusão produz uma liga com propriedades importantes que diferem de ambos os metais que o constituem. Algo semelhante Ocorre na história quando se unem elementos que pertencem a diferentes etapas da evolução social. Esta fusão dá origem a um novo fenômeno, com suas próprias características especiais. O período colonial da história norte-americana une-se à selvageria e barbárie, quando a civilização europeia mudava do feudalismo para o capitalismo. Deste modo, proporcionou um magnífico caldo de cultivo para as combinações e deu o mais instrutivo campo para seu estudo. Quase todos os gêneros de relações sociais conhecidos, desde a selvageria às companhias por ações, podiam ser encontradas no novo mundo durante o período colonial. Várias colônias, como Virgínia e Carolina do Norte e do Sul, foram originalmente civilizadas por empresas capitalistas por ações, cujas licenças haviam sido garantidas pela Coroa. As formas mais avançadas de capitalismo regiam a empresa acionária que entrou em contato com os índios que viviam ainda sob primitivas condições tribais.
As formas pré-capitalistas de vida com as que depararam foram combinadas num grau ou outro com as características fundamentais da civilização burguesa. Tribos indígenas, por exemplo, foram anexadas ao mercado mundial através do comércio de peles; e é verdade que os índios se tomaram, em certa medida, civilizados. Por outro lado, os colonos brancos europeus, caçadores, lenhadores e pioneiros da agricultura barbarizaram-se parcialmente por terem sobrevivido no deserto das planícies e nas montanhas dos campos “virgens”. Contudo, o lenhador europeu que penetrava nos desertos da América, com seu rifle e sua enxada de ferro, e também com sua concepção e hábitos de civilização, foi muito diferente do índio Pele-Vermelha, ainda que muitas das atividades da sociedade bárbara do lenhador também lhe correspondessem.
Em sua obra sobre as forças sociais na história norte-americana, A. M. Simon, um dos principais historiadores socialistas, escreveu: “O curso da evolução seguiu em cada colônia uma linha de desenvolvimento muito parecida à que a raça havia seguido” (pág. 30-31). No começo – assinalou – houve um comunismo primitivo. Depois, uma pequena produção individual, e assim prosseguiu até chegar ao capitalismo.
Contudo, a concepção segundo a qual a colônia americana, ou algumas delas, substancialmente repetiram as sequências das etapas que as sociedades avançadas haviam atravessado antes delas, é excessivamente esquemática e ignota o principal ponto relativo ao seu desenvolvimento e estrutura. A peculiaridade mais significativa da evolução das colônias britânicas na América deriva do fato de que todas as formas de organização e as forças impulsionadoras pertencentes às primeiras etapas do desenvolvimento social, desde a selvageria e igualmente no caso da escravidão, foram incorporadas e condicionadas pelo sistema em expansão do capitalismo internacional. Não há, no solo americano, repetição mecânica das etapas historicamente superadas. Pelo contrário, a vida colonial testemunha uma mescla dialética de todos esses variados elementos; da qual resultam deformações sociais combinadas de um tipo novo e especial. A escravidão nas colônias americanas foi muito distinta da escravidão na Grécia clássica e em Roma. A escravidão norte-americana foi uma escravidão burguesificada, não se tratando apenas de um braço subordinado do mercado capitalista mundial, senão que cada ramificação dessa fusão de escravidão e capitalismo resultou na aparição de traficantes de escravos entre os índios Creek, no Sul. Poder-se-ia encontrar algo mais contraditório que índios comunistas, agora proprietários de escravos, vendendo seu produto num mercado burguês?
Dialética da Combinação
O resultado desta fusão de diferentes etapas ou elementos de progresso histórico é, por consequência, uma mescla ou ligação particular de coisas. Na união de elementos diferentes e opostos, a natureza dialética da história manifesta-se por si mesma mais poderosa e proeminente. Aqui a contradição simples, óbvia, flagrante, predomina.
A história prega peças a todas as formas rígidas e às rotinas fixas. Surgem todos os gêneros de desenvolvimentos paradoxais que confundem e deixam perplexas as mentes limitadas e formalizadas.
Como um importante exemplo disto, permita-nos considerar a natureza do stalinismo. Na Rússia atual, a mais avançada forma de propriedade, a propriedade nacionalizada, e o mais eficiente modo de organização industrial, a economia planificada, ambas logradas através da revolução proletária de 1917, uniram-se numa só massa com o tipo mais brutal de tirania, criada por uma contrarrevolução política da burocracia soviética. Os fundamentos econômicos do regime stalinista historicamente pertencem à era socialista do futuro. Contudo, este fundamento econômico está unido a uma superestrutura política que mostra os aspectos mais malignos das ditaduras de classe do passado. Não devemos admirar-nos com o fato de que este fenômeno extraordinariamente contraditório tenha confundido muita gente e as tenha levado pelo mau caminho.
O desenvolvimento desigual e combinado apresenta-se como uma mescla particular de elementos atrasados com os fatores mais modernos. Muitos católicos devotos levam imagens em seus carros, supondo que os protegerão contra os acidentes. Este costume combina o fetichismo dos crédulos selvagens com o produto da indústria automobilística, uma das indústrias mais automatizadas, mais avançadas do mundo moderno.
Por outro lado, estas anomalias são mais evidentes nos países mais atrasados. Existem curiosidades como haréns com ar condicionado!
“O desenvolvimento das nações historicamente atrasadas leva necessariamente a uma combinação peculiar de diferentes etapas do desenvolvimento histórico”, escreveu Trotsky na “História da Revolução Russa” (pág. 5).
Carlton. S. Coone escreveu:
“… Há, todavia, regiões marginais onde a difusão cultural é desigual, onde simples caçadores da Idade da Pedra surpreendentemente se enfrentam com estranhos caçadores com rifles, onde trabalhadores neolíticos estão mudando suas enxadas de pedra por outras de aço e seus potes de barro por vasilhas de lata para carregar água, onde orgulhosos cidadãos dos antigos impérios costumavam receber as notícias algumas semanas depois das caravanas de camelos, ouvem agora a propaganda através de rádios públicas. E na calçada de ladrilhos azuis e brancos das cidades o claro apelo dos muçulmanos, incitando a fé do crente, será substituído um dia por uma caixa metálica pendurada no minarete. Fora, no aeroporto, os peregrinos dos lugares santos saltam diretamente do lombo de seus camelos aos assentos do DC-4. Estas mudanças na tecnologia levam ao nascimento de novas instituições nestes lugares, como em qualquer outro, mas o recém-nascido geralmente é uma criatura não familiar, que não se recorda nem dos parentes próximos nem dos distantes, superando a ambos”. (“The History of Man”, pág. 113-114).
Na África atual, entre os kikuyos do Quênia, como também entre os povos da Costa do Ouro, as antigas ligações e costumes ajudam a fortalecer sua solidariedade na luta pelo avanço social e pela independência nacional contra o imperialismo britânico. No movimento nacionalista de Nkrumah, o partido parlamentar nacional está ligado aos sindicatos e ao tribalismo – os três pertencem a diferentes etapas da história social.
A mescla de elementos atrasados com os mais modernos fatores pode ser vista quando comparamos a China moderna com os Estados Unidos da América. Atualmente, muitos camponeses chineses de pequenas aldeias têm retratos de Marx e Lênin em suas paredes e inspiram-se em suas ideias. O operário norte-americano médio vive em cidades mais modernas e tem, em contraste, pinturas de Cristo ou fotografias de Eisenhower ou do Papa sobre suas paredes pré-fabricadas. Contudo, os camponeses chineses não têm água corrente, estradas asfaltadas, automóveis, rádios ou televisão, como têm os operários norte-americanos.
Desta maneira, ainda que os Estados Unidos e a sua classe operária tenham progredido mais que a China em seu desenvolvimento industrial e padrão de vida e de cultura, em certos aspectos os camponeses chineses superaram o operário norte-americano.
“A dialética histórica não conhece nada semelhante ao atraso absoluto ou ao progresso quimicamente puro” como assinalou Trotsky.
A Estrutura Social da Grã-Bretanha
Se analisarmos a estrutura social da Grã-Bretanha contemporânea, poderemos ver que a mesma conserva características de três períodos histórico-sociais distintos, inextricavelmente relacionados. No cume de seu sistema político há uma monarquia e uma igreja estabelecidas, ambas herdadas do feudalismo. Estas estão conectadas à estrutura de propriedade capitalista monopolista pertencente à etapa mais elevada do capitalismo. Junto a essa indústria capitalista existe a indústria socializada, sindicatos e um partido trabalhista, todos precursores do socialismo.
É significativo que esta particular combinação contraditória na Grã-Bretanha deixe perplexos os norte-americanos. Os norte-americanos liberais não podem compreender porque os ingleses têm uma monarquia e uma igreja estabelecidas. Os norte-americanos com mentalidade capitalista surpreendem-se com o fato da classe dominante britânica tolerar o Partido Trabalhista.
Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha é atingida pelo mais formidável de todos os movimentos combinados de forças sociais de nosso tempo em escala mundial, ou seja, a combinação do movimento anticapitalista da classe operária com a revolução anticolonial dos povos de cor. Estes dois movimentos muito diferentes, ambos opostos ao domínio imperialista, reforçam-se mutuamente.
Contudo, estes dois movimentos não têm o mesmo efeito em todos os países imperialistas. São sentidos, por exemplo, mais forte e diretamente na França e Grã-Bretanha que nos EUA. Não obstante, nos EUA a luta dos povos coloniais pela independência e da minoria negra pela igualdade influenciam-se mutuamente.
Os Saltos Progressivos na História
A manifestação mais importante da interação do desenvolvimento desigual e combinado é o surgimento de “saltos” no fluxo histórico. Os maiores saltos tornam-se possíveis pela coexistência de povos de diferentes níveis de organização social. No mundo atual, estas organizações sociais variam muito, desde a selvageria até o verdadeiro limiar do socialismo. Na América do Norte, enquanto os esquimós no Ártico e os índios Seri na Baixa Califórnia vivem ainda na selvageria, os banqueiros de Nova Iorque e os operários de Detroit vivem na mais elevada etapa do capitalismo monopolista. Os “saltos” históricos se tomam inevitáveis porque os setores atrasados da sociedade enfrentam tarefas que só podem ser resolvidas com a utilização dos métodos mais modernos. Sob a pressão das condições externas, veem-se obrigados a saltar ou precipitar etapas da evolução que originalmente requerem um período histórico inteiro para desenvolver as suas potencialidades.
Quanto mais amplas são as diferenças do desenvolvimento e maior o número de etapas presentes num dado período, mais dramáticas são as possíveis combinações de condições e forças, e mais rápida a natureza dos saltos Algumas combinações produzem extraordinárias erupções e rápidos movimentos na história. O transporte fez evoluir lentamente a locomoção humana e animal, desde os veículos de rodas até o trem, automóveis e aviões. Recentemente, contudo, os povos da América do Sul e da Sibéria passaram diretamente, e de um só salto, do animal ao uso de aviões.
Tribo, nação e classe são capazes de comprimir etapas ou de saltar sobre elas, assimilando as conquistas dos povos mais avançados. Usam isto como uma alavanca para se elevarem sobre as etapas intermediárias e ultrapassam obstáculos de um só salto. Mas não podem fazer nada até que os países pioneiros na vanguarda do gênero humano tenham previamente aberto o caminho, pré-fabricando as condições materiais. Outros povos preparam os meios e modelos para, uma vez maduros, adaptá-los às suas condições peculiares.
A indústria soviética foi capaz de progredir tão rápido porque, entre outras razões, pôde importar as técnicas e maquinários do Ocidente. Agora também a China pode marchar em um ritmo mais acelerado em sua industrialização porque se baseia não somente nas conquistas técnicas dos países capitalistas avançados, como também em métodos de planificação da economia soviética.
Em seus esforços para superar a Europa Ocidental, os colonizadores da costa do Atlântico Norte passaram através da “barbárie selvagem”, saltando virtualmente, por cima do feudalismo, implantando e extirpando a escravidão, constituindo grandes povoações e cidades sobre uma base capitalista. Isto se fez em ritmo acelerado. Aos povos europeus foram necessários três mil anos para saltar da etapa superior da barbárie da Grécia homérica à Inglaterra vitoriosa da revolução burguesa de 1849. A América do Norte cobriu as mesmas transformações em trezentos anos, ou seja, a um ritmo de desenvolvimento dez vezes mais rápido. Mas isto foi possível pelo fato de que a América do Norte pôde beneficiar-se com as aquisições prévias da Europa, combinando-as com a impetuosa expansão do mercado capitalista em todos os cantos do globo.
Ao longo desta aceleração e compressão do desenvolvimento social foi-se acelerando também o tempo de desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários. O povo britânico tardou oito séculos desde o começo do feudalismo no século IX, até a sua revolução burguesa vitoriosa no século XVII. Os colonos norte-americanos somente em cento e setenta e cinco anos passaram de seus primeiros assentamentos no século XVII à sua revolução vitoriosa no último quarto do século XVIII.
Nestes saltos históricos as etapas do desenvolvimento são algumas vezes comprimidas e outras omitidas, o que depende das condições e das forças particulares. Nas colônias norte-americanas, por exemplo, o feudalismo – que floresceu na Europa e na Ásia por muitos séculos – mal conseguiu existir. As instituições características do feudalismo (feudo, servos, monarquia, a igreja estabelecida e as corporações medievais) não tiveram um ambiente favorável e foram comprimidas entre a escravidão comercial por um lado, e a sociedade burguesa enxertada por outro. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o feudalismo ia sendo atrofiado e estrangulado nas colônias norte-americanas, adquiria uma vigorosa expansão no outro lado do mundo, na Rússia.
Reversões Históricas
A história tem as suas reversões, assim como seus movimentos para frente, seus períodos de reação, formas infantis e características caducas próprias de etapas primitivas de desenvolvimento. Podem unir-se com estruturas avançadas para gerar formações extremamente regressivas e impedir o avanço social. Um exemplo primário de tal combinação regressiva foi a escravidão na América do Norte, onde um modo de propriedade e uma forma de produção anacrônica, pertencente à infância da civilização se inseriu num ambiente burguês que pertencia a uma sociedade de classe madura.
A recente história política familiarizou-nos com os exemplos do fascismo e do stalinismo, que são fenômenos históricos do século XX simétricos, ainda que não idênticos. Ambos representam reversões de formas de governos democráticos pré-existentes que tinham bases sociais completamente diferentes. O fascismo foi o destruidor e substituto da democracia burguesa no período final da decadência e destruição do imperialismo. O stalinismo foi o destruidor e substituto da democracia operária da Rússia revolucionária no período inicial da revolução socialista internacional.
Desta forma, encontramos misturadas duas etapas no movimento dialético da sociedade. Primeiro, algumas partes do gênero humano e certos elementos da sociedade movem-se mais rapidamente e desenvolvem-se antes que outros. Mais tarde, sob o choque de forças externas produz-se um retrocesso, ou uma estagnação, em relação ao ritmo de progresso de seus precursores, pela combinação das últimas inovações com velhos modos de existência.
A Desintegração das Combinações
Mas a história não se detém neste ponto. Cada síntese única surgida do desenvolvimento desigual e combinado engendra em si mesma posteriores crescimentos e mudanças, as quais, por sua vez, podem levar a uma eventual desintegração e destruição da síntese.
Uma formação combinada é um amálgama de elementos derivados de diferentes níveis de desenvolvimento social. A sua estrutura interna é, portanto, altamente contraditória. A oposição dos seus polos constituintes não só provoca instabilidade na formação, senão que leva diretamente a posteriores desenvolvimentos. Mais claramente que a qualquer outra formação, a luta dos opostos caracteriza o curso de vida de uma formação combinada.
Há dois tipos principais de combinação. Em um caso, o produto de unia cultura avançada é absorvida na estrutura de um organismo social arcaico. Em outro, aspectos de uma ordem primitiva são incorporados a um organismo social em grau mais elevado de desenvolvimento.
O efeito que produz a assimilação de elementos mais modernos numa estrutura depende de muitas circunstâncias. Por exemplo, os índios puderam substituir a enxada de pedra pela de ferro sem deslocamentos fundamentais da sua ordem social, porque esta mudança significou apenas uma dependência mínima da civilização branca, da qual a enxada de ferro foi tomada. A introdução do cavalo mudou consideravelmente a vida dos índios das pradarias, ao estender o alcance de seus campos de caça e de suas habilidades guerreiras. Contudo, o cavalo não transformou sua relação tribal básica. Mas, em contrapartida, a participação num nascente comércio e a penetração da moeda teve consequências revolucionárias sobre os índios destruindo seu sistema tribal, opondo os interesses privados aos costumes comunitários, lançando uma tribo contra outra e subordinando os novos comerciantes e caçadores índios ao mercado mundial.
Sob certas condições históricas a introdução de novas coisas pode, também, prolongar por algum tempo a vida das instituições mais arcaicas. A entrada dos grandes consórcios de petróleo capitalistas no Oriente Médio fortaleceu temporariamente os sheiks, dando-lhes enormes quantidades de riquezas. Mas em longo prazo, a invasão de técnicos e ideias modernas não pode ajudar, e sim minar os velhos regimes tribais, porque rompem as condições sobre as quais eles se apoiam e criam novas forças que se lhes opõe para substituí-los.
Um poder primitivo pode afirmar-se rapidamente sobre um mais moderno, ganhando renovada vitalidade, e pode também aparecer por um certo período como superior ao outro. Mas o poder menos desenvolvido levará uma existência essencialmente parasita e não poderá sustentar-se indefinidamente às expensas do mais desenvolvido. Falta-lhe adequado terreno e atmosfera para seu crescimento, enquanto as instituições mais desenvolvidas não só são superiores por natureza, como além disso, podem contar com um favorável ambiente para a sua expansão.
Escravidão e Capitalismo
O desenvolvimento da escravidão na América do Norte dá uma excelente ilustração dessa dialética. Do ponto de vista da história mundial, a escravidão foi um anacronismo desde o seu nascimento neste continente. Como modo de produção pertencia à infância da sociedade de classes; havia praticamente desaparecido da Europa Ocidental. Contudo, a importância das demandas, por parte da Europa Ocidental, de matérias-primas como açúcar, algodão e tabaco, combinada com a carência de trabalhadores para levar a cabo operações agrícolas em grande escala, obrigaram a implantar a escravidão na América do Norte. A escravidão colonial cresceu como um braço do capitalismo comercial. Desta maneira um modo de produção e uma forma de propriedade superados há muito tempo, surgiram novamente como consequência das exigências de um sistema mais moderno e fizeram parte dele.
Esta contradição agudizou-se quando o surgimento do capitalismo industrial na Inglaterra e nos Estados Unidos incrementou a produção de algodão dos estados do Sul levando a um lugar de destaque na vida econômica e política da América do Norte. Durante décadas os dois sistemas opostos funcionaram como equipe. Quando a guerra civil norte-americana estourou, os mesmos se romperam. O sistema capitalista que numa etapa de seu desenvolvimento alentou o crescimento da escravidão, em outra criou uma nova combinação de forças que a destruiu.
A formação combinada do velho e do novo, do mais baixo e do mais alto, da escravidão e do capitalismo demonstrou não ser permanente nem indissolúvel; foi condicional, temporária, relativa. A associação forçada dos dois tendia para a dissolução e para um conflito crescente. Se uma sociedade anda para frente, a vantagem preponderante corresponderá, em larga escala, à estrutura superior, que prosperará à custa de características inferiores, superando-as e deslocando-as eventualmente.
A Substituição de Classes
Uma das consequências mais importantes e paradoxais do desenvolvimento desigual e combinado é a solução dos problemas de uma classe através de outra. Cada etapa do desenvolvimento social gera, coloca e resolve os seus próprios complexos específicos de tarefas históricas. A barbárie, por exemplo, desenvolveu as técnicas produtivas de cultivo das plantas, do pastoreio de animais e a agricultura, como ramos de sua atividade econômica. Estas atividades foram também pré-requisitos para a suplantação da barbárie pela civilização.
Na época burguesa, a unificação de províncias separadas em estados centralizados nacionais e a industrialização destes estados foram tarefas históricas colocadas pelo surgimento da burguesia. Mas, em alguns países, o baixo desenvolvimento da economia capitalista e a consequente debilidade da burguesia toma insustentável a realização destas tarefas históricas da burguesia. No coração da Europa, por exemplo, a unidade do povo alemão foi lograda desde 1866 a 1869 não pela burguesia ou pela classe operária, senão por uma casta social já superada, os proprietários rurais “junkers” prussianos, encabeçados pela monarquia Hohenzollern e dirigida por Bismarck. Neste caso, a tarefa histórica da classe capitalista foi levada a cabo por forças capitalistas.
No século atual, a China representa outro exemplo oposto, num nível histórico mais elevado. Sob a dupla exploração de suas velhas relações feudais e da subordinação imperialista, a China não podia ser unificada nem industrializada. Tomou-se necessário nada menos que uma revolução proletária, (ainda que deformada em seu começo) que, apoiando-se numa insurreição camponesa, abriu caminho para a solução dessas tarefas burguesas longamente adiadas. Hoje em dia, a China está unificada pela primeira vez e industrializa-se rapidamente. Contudo, estas tarefas não foram levadas a cabo pelas forças capitalistas ou pré-capitalistas, senão pela classe operária e sob sua própria direção. Neste caso, as tarefas não completadas da abortada era de desenvolvimento capitalista foram realizadas por uma classe pós-capitalista.
O desenvolvimento extremamente desigual da sociedade fez necessária esta mudança de papel histórico entre as classes: a grandiosidade da etapa histórica fez possível a substituição. Como Hegel assinalou, a história recorre frequentemente aos mecanismos mais indiretos e astutos para lograr seus fins.
Um dos maiores problemas que a revolução democrático-burguesa dos Estados Unidos deixou sem resolver foi a abolição dos velhos estigmas da escravidão, com a integração sem restrições dos negros na vida norte-americana. Esta tarefa foi parcialmente solucionada pela burguesia industrial do norte durante a guerra civil. Este fracasso da burguesia industrial foi igualmente uma grande fonte de problemas e dificuldades para os seus representantes. A questão que agora está colocada é se os atuais governantes capitalistas ultrarreacionários dos EUA poderão levar a cabo uma tarefa nacional que foram incapazes de completar em sua época revolucionária.
Os porta-vozes dos democratas e republicanos consideram necessário dizer que poderão de fato cumprir esta tarefa; os reformistas de todo tipo juram que o governo burguês poderá fazê-lo. É nossa opinião, contudo, que só a luta conjunta do povo negro e das massas operárias contra os governantes capitalistas será capaz de combater os restos da escravidão até sua conclusão vitoriosa. Nesse sentido, a revolução socialista completará o que resta realizar da revolução democrático-burguesa.
Os Inconvenientes do Progresso e os Privilégios do Atraso
Aqueles que fazem um culto do progresso puro creem que grandes conquistas num certo número de campos pressupõem equivalente perfeição em outros. Muitos norte-americanos tiram a conclusão imediata de que os Estados Unidos ultrapassam o resto do mundo em todas as esferas da atividade humana, justamente porque assim ocorre na tecnologia, na produção material. e no padrão de vida. Contudo, na política e na filosofia, para não mencionar outros campos, o desenvolvimento geral dos Estados Unidos não foi mais além do século XIX, enquanto que países da Europa e Ásia, muito menos favorecidos economicamente, estão muito além dos EUA nestes campos.
Nos últimos anos do seu governo, Stálin tratou de impor a noção de que somente “cosmopolitas sem raízes” podiam sustentar que o Ocidente superava a URSS em algum ramo do esforço humano desde as invenções mecânicas até a ciência da genética. Esta expressão do nacionalismo “pan-russo” não foi menos estúpida que a concepção ocidental de que nada superior pode derivar da barbárie asiática da União Soviética.
A verdade é que cada etapa do desenvolvimento social, cada tipo de organização social, cada nacionalidade, tem suas virtudes e defeitos essenciais, vantagens e desvantagens. O progresso tem os seus inconvenientes: há que pagar por ele. Avanços em certos terrenos podem significar retrocessos em outros. Por exemplo, a civilização desenvolveu o poder de produção e a riqueza do gênero humano sacrificando a igualdade e a fraternidade das sociedades primitivas que suplantou. Por outro lado, sob certas condições o atraso tem seus benefícios. Mais ainda, o que é progressivo numa etapa de desenvolvimento pode tornar-se uma pré-condição para o estabelecimento de um atraso numa etapa subsequente ou num terreno a ele ligado. E o que é um atraso pode tornar-se a base para um salto adiante.
Parece ridículo dizer a povos oprimidos pelo atraso, e que desejam vivamente superá-lo, que o seu arcaísmo tem suas vantagens. Para eles o atraso aparece como um mal evidente. Mas a consciência deste “mal” aparece em primeiro lugar depois destes povos terem tomado contato com formas superiores de desenvolvimento social. É o contato das duas formas, atrasada e adiantada, que demonstra as deficiências da cultura atrasada. Na medida em que a civilização é desconhecida, o selvagem primitivo mantém-se contente. É somente a justaposição das duas que introduz a visão de algo melhor e planta as sementes do descontentamento. Nesse sentido, a presença e o conhecimento da etapa superior toma-se um motor do progresso.
A crítica e condenação resultante da velha situação gera a urgência de superar a disparidade no desenvolvimento e leva os atrasados para frente por fazer surgir neles o desejo de superar os mais avançados. Cada pessoa que conhece o que é aprender já sentiu isto pessoalmente.
Quando povos atrasados fazem novas e imperativas reivindicações, a ausência de instituições acumuladas e intermediárias pode ser positiva, pelos poucos obstáculos que se apresentam para obstruir o avanço e a assimilação do novo. Se as forças sociais existem e atuam efetiva e inteligentemente e no momento oportuno, o que tem sido um inconveniente pode tomar-se uma vantagem.
Os Dois Cursos da Revolução Russa
A recente história da Rússia dá o exemplo mais extraordinário desta conversão de um inconveniente histórico num privilégio. No início do século XX, a Rússia era, entre as grandes nações da Europa, a mais atrasada. Este atraso abarcava todos os estratos, desde o campesinato até a dinastia absolutista dos Romanov. O povo russo e as suas nacionalidades oprimidas sofriam, ambos, as misérias do feudalismo decadente e do atraso do desenvolvimento burguês na Rússia.
Contudo, quando chegou o momento da solução revolucionária destes problemas acumulados, esse atraso demonstrou suas vantagens em muitos terrenos. Primeiro, o czarismo estava totalmente separado das massas. Segundo, a burguesia era muito fraca para tomar o poder em seu próprio nome e mantê-lo. Terceiro, o campesinato, ao não receber satisfações por parte da burguesia, foi obrigado a virar-se para a classe operária em busca de direção. Quarto, a classe operária não tinha formas de atividade petrificadas ou sindicatos pelegos e burocracias políticas que a fizessem retroceder. Foi mais fácil para essa jovem e enérgica classe, que tinha muito pouco a perder e muito a ganhar, adotar rapidamente a mais avançada teoria, o mais claro programa de ação e o mais elevado tipo de organização partidária. A revolta camponesa contra o feudalismo, um movimento que no ocidente da Europa caracterizou o surgimento de revoluções democrático-burguesas, misturou-se com a revolução proletária contra o capitalismo, exclusiva do século XX. Como Trotsky assinalou na “História da Revolução Russa”, foi a conjunção destas duas revoluções diferentes que deu o poder expansivo ao levante do povo russo e quê explica a extraordinária rapidez do seu triunfo.
Mas os privilégios do atraso não são inesgotáveis; estão limitados por condições históricas e materiais. Efetivamente, o atraso herdado da Rússia dos czares reagiu, na etapa seguinte de seu desenvolvimento, sob novas condições históricas e sobre uma base social inteiramente nova. Os privilégios prévios deveriam ser pagos nas próximas décadas pelos amargos sofrimentos, privações econômicas e perda das liberdades que o povo russo suportou sob a ditadura stalinista. O grande atraso que havia fortalecido a revolução e impulsionado as massas russas à cabeça do resto do mundo, transformou-se então no ponto de partida da reação política e da contrarrevolução burocrática, em consequência da qual a revolução internacional fracassou na conquista dos países industriais mais avançados. O atraso econômico e cultural da Rússia combinado com o atraso da revolução mundial foram as condições básicas que permitiram à camarilha stalinista golpear o partido bolchevique e à burocracia usurpar o poder político. Por estas razões, o regime stalinista se converteu no mais contraditório da história moderna, uma coagulação das mais avançadas formas de propriedade e conquistas sociais surgidas da revolução, com uma ressurreição das mais repulsivas características do domínio de classe. Fábricas gigantes, providas das maquinarias mais modernas, eram mantidas por operários aos quais, como os servos, não se lhes permitiam deixar seus lugares de trabalho; aviões que voavam por intransitáveis caminhos cheios de barro; uma economia planificada que funcionava junto a “campos de trabalho escravo”; colossais avanços industriais paralelos à regressão política; enfim, o prodigioso crescimento da Rússia como poder mundial acompanhado por uma igualmente prodigiosa decadência interna do regime.
Contudo, o desenvolvimento dialético da revolução russa não se deteve nesse ponto. A extensão da revolução no Leste europeu e na Ásia, depois da Segunda Guerra Mundial, a expansão da indústria soviética e o ascenso em número e nível de cultura dos operários soviéticos, prepararam condições para uma transformação das velhas tendências, o renascimento da revolução em uma etapa superior e a decadência e parcial superação da calamidade do stalinismo. A primeira manifestação desse movimento frente às massas na Rússia e seus satélites, com a classe operária na sua direção, já foi anunciada ao mundo.
Desde o discurso de Kruschev até a revolução húngara, produziu-se uma série contínua de acontecimentos que demonstra a dialética do desenvolvimento revolucionário. A cada passo da revolução russa, podemos ver a interação de seu atraso e de seu progresso com a conversão de um no outro, de acordo com as circunstâncias concretas do desenvolvimento internacional e nacional. Somente a compreensão da dialética dessas mudanças pode dar-nos uma imagem exata do desenvolvimento extremamente complexo e comtradit6rio da URSS, durante os 40 anos de sua existência revolucionária. As dezenas de caracterizações ultra simplificadas da natureza da atual sociedade moderna russa, que servem apenas para confundir o movimento revolucionário, derivam de uma falta de compreensão das leis da dialética, e do uso de métodos metafísicos nas análises do processo histórico.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma ferramenta indispensável para analisar a revolução russa e para precisar seu crescimento e decadência através de suas complexas fases, seus triunfos, sua degeneração e sua próxima regeneração.

Ted Grant e a Seção Britânica da Quarta Internacional

Carta Aberta para a S.B.Q.I. (Seção Britânica da Quarta Internacional)

Por Ted Grant

Setembro/outubro de 1950

Traduzido para o português pelo Reagrupamento Revolucionário em janeiro de 2013, a partir da versão disponível em http://www.tedgrant.org/archive/grant/1950/bsfi.htm.

Nota do Reagrupamento Revolucionário: Esta carta foi escrita imediatamente depois de Ted Grant ter sido expulso do “Clube”, a seção britânica da Quarta Internacional. Ela aponta corretamente o desenvolvimento de revisionismo tanto na seção britânica quanto na Internacional como um todo, em uma época de grande confusão interna. Devido à sua expulsão burocrática por Gerry Healy, o grupo de Grant foi excluído da participação no racha de 1953 contra os apoiadores de Pablo. Tragicamente, o isolamento de Grant levou-o a se aliar com Pablo, em um processo que selou o seu destino como revolucionário. Em seu comentário satírico sobre a esquerda britânica, John Sullivan concluiu: “O histórico encontro de Grant com Pablo pode ser visto como o marco da morte do trotskismo britânico, certa vez uma das melhores seções da Quarta Internacional. O encontro criou o pablismo britânico, essa estranha mutação combinando o vocabulário trotskista com capitulação ao que quer que esteja na moda.” (“Go Fourth and Multiply”). A política de Grant nessa carta aberta está em completo contraste com suas formulações em anos posteriores, assim como difere bastante do apetite político daquelas organizações que reivindicam o seu legado, a Tendência Marxista Internacional (TMI) de Allan Woods e o Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores (CIT) de Peter Taaffe.

* * *

O trotskismo britânico atingiu um impasse no caminho que tem sido seguido pela organização trotskista oficial; à frente dele não existe caminho rumo ao desenvolvimento de uma tendência revolucionária saudável enraizada nas massas.

Por três razões, enquanto tendência revolucionária, a Quarta Internacional na Grã-Bretanha foi destruída:

(1) Capitulação ao Tito-stalinismo internacionalmente;

(2) Política e programa na Grã-Bretanha;

(3) Falta de democracia interna.

Titoísmo

Como resultado dos desenvolvimentos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, uma relação de forças inesperada se desenvolveu em escala mundial entre stalinismo, reformismo e capitalismo. O prognóstico da Quarta Internacional de antes da guerra, de que o problema do stalinismo seria resolvido ou durante a guerra ou imediatamente após o seu fim, foi provado falso pelos eventos.

Devido ao sucesso da propriedade estatizada, da decadência assustadora e do colapso do capitalismo e do imperialismo, da onda revolucionária que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e da fraqueza da tendência revolucionária internacionalista, o stalinismo foi capaz de tirar vantagem de todos esses fatores e emergiu com a URSS como segunda potência mundial, enormemente fortalecida ao redor do mundo. O stalinismo se tornou a tendência de massas na Europa e na Ásia.

O colapso do capitalismo na Europa Oriental permitiu ao stalinismo, enquanto uma tendência bonapartista, manipular os trabalhadores e manobrar entre as classes – estabelecendo Estados operários deformados de um caráter bonapartista com maior ou menor apoio. O stalinismo, na peculiar relação de forças atual, baseando-se em última instância no proletariado – no sentido de colocar-se em defesa de uma nova forma econômica de sociedade – é um bonapartismo de um novo tipo, manobrando entre as classes com o objetivo de estabelecer um regime seguindo o modelo de Moscou.

Na China e na Iugoslávia, os partidos stalinistas chegaram ao poder na base de apoio avassalador de massas e estabeleceram regimes relativamente independentes da burocracia de Moscou.

O fato de que a revolução na China e na Iugoslávia pôde ser desenvolvida de uma forma distorcida e degradada deve-se aos fatores mundiais de:

(a) Crise do capitalismo mundial;

(b) A existência de um poderoso Estado operário deformado adjacente a esses países e que poderosamente influenciava o movimento dos trabalhadores;

(c) A fraqueza da corrente marxista da Quarta Internacional.

Esses fatores resultaram em um desenvolvimento sem paralelos, que não poderiam ter sido previstos por nenhum dos mestres marxistas: a extensão do stalinismo como um fenômeno social através de metade da Europa, pelo subcontinente chinês e com a possibilidade de se espalhar pela Ásia.

Isso coloca novos problemas teóricos a serem resolvidos pelo movimento marxista. Sob condições de isolamento e escassez de forças, novos fatores históricos não poderiam deixar de resultar em uma crise teórica do movimento, levantando a questão a sua própria existência e sobrevivência.

Depois de um período de extrema vacilação e confusão pela Internacional, incluindo todas as tendências, três posições distintas emergiram:

(a) Um movimento de desespero e revisionismo, conhecido como Capitalismo de Estado; o menchevismo organizativo de Haston e a desintegração ideológica de Morrow, Goldman, Craipeau, etc.;

(b) Uma tendência que vai na direção do neoestalinismo (o SI [Secretariado Internacional] e a seção britânica);

(c) A corrente marxista lutando para levar adiante as melhores tradições do trotskismo.

Diante de problemas formidáveis, o SI e a liderança britânica revelaram-se em uma bancarrota teórica. Sem qualquer explicação teórica adequada ou análise consensual da sua posição anterior, eles giraram 180 graus do dia para a noite, em um estilo típico de um Zinoviev: desde a sustentação de que a Europa Oriental e a China eram regimes capitalistas, até a concepção de que a Iugoslávia – desde o rompimento com Stalin – misteriosamente transformou-se em um Estado operário saudável.

Na Grã-Bretanha, fazendo eco com o SI e sem nem mesmo tentar uma compreensão teórica, a liderança de Healy dá a isso uma aplicação crua. O seu método de raciocínio vai ao longo destas linhas: (a) a Quarta Internacional previu que o stalinismo não poderia fazer uma revolução; (b) o stalinismo fez a revolução e, portanto (c) ele não é mais stalinismo! A segunda linha de argumentação da qual são culpados ambos Healy e o SI, é de que só pode haver um Stalin! Por quê? Pode haver mais de um ditador fascista porque eles tem uma base de classe nos capitalistas, mas Stalin, aparentemente, não teria base de classe alguma.

Idealizando e encobrindo a liderança de Tito em razão do seu rompimento com Moscou, a liderança britânica suprimiu todas as críticas fundamentais a essa tendência, e considera a Iugoslávia sob essa luz como uma ditadura do proletariado “normal”, ou seja, um Estado operário saudável com tal ou qual probleminha menor e sem importância real. Tomando como plataforma o fato de que, desde o seu rompimento com Moscou, a liderança de Tito foi compelida a pegar emprestados muitos dos argumentos do arsenal do marxismo em sua crítica à oligarquia de Moscou, eles não veem o conflito como um reflexo da luta nacional contra a opressão e a exploração exercida pelos burocratas de Moscou, e como um conflito que se refletiu ao redor da Europa Oriental e mesmo dentro das fronteiras da União Soviética – a Ucrânia, os Tártaros da Crimeia, a República Alemã do Volga, etc. A única diferença importante é a possibilidade de uma resistência bem sucedida em razão do caráter relativamente independente do aparato de Estado na Iugoslávia.

Apesar de ziguezagues para a esquerda, em parte demagógicos e em parte sinceros, a base fundamental do regime na Iugoslávia permanece como antes: socialismo em um só país (e dessa vez a Iugoslávia), manobrando entre o imperialismo mundial e o bloco russo (graças ao qual a Iugoslávia pode se manter). O regime permanece totalitário – não existe democracia operária.

A tentativa de desculpar essas ideias como um mero detalhe secundário do stalinismo é criminosa e falsa. Algumas críticas corretas ao regime de Moscou não transformam o regime de Tito, assim como algumas autocríticas corretas feitas pela Cominform não mudam a natureza do regime nos países onde a Cominform mantém o poder.

Essa crise no seio do stalinismo torna o problema de construir a Quarta Internacional mais complexo do que antes. A criação de novos Estados sob domínio stalinista – independentes ou semi-independentes de Stalin – adicionou mais confusão às mentes da classe trabalhadora mundial. A Quarta Internacional, enquanto tira vantagem da disputa dentro do stalinismo para poder expor a verdadeira natureza dessa doença bonapartista, não deve fazer concessões ao neoestalinismo. Enquanto dá total apoio à luta pela autodeterminação por parte da nação iugoslava contra os brutais ataques do chauvinismo grão-russo, a Quarta Internacional não deve, por conta disso, apoiar a posição política de Tito.

Enquanto representa as aspirações nacionais das massas iugoslavas, a liderança de Tito – em uma escala menor – usa métodos que cumprem um papel similar aos da casta do Kremlin. Não deve ser esquecido que o racha não partiu do lado iugoslavo, mas que foi imposto à burocracia iugoslava pela tentativa implacável e sem ressalvas de dominação por Moscou. Desde o rompimento não houve mudança significativa nos princípios e métodos dos iugoslavos… Como poderia ser de outra forma? Socialismo em um só país permanece o eixo ao redor do qual circulam as ideias dos iugoslavos. Para eles, a degeneração da burocracia russa é puramente um fenômeno acidental, o qual eles não explicam de um ponto de vista marxista, a partir do qual o ser determina a consciência. Nem poderia ser de outra forma – em uma escala menor, as condições da Iugoslávia são similares àquelas na União Soviética (país atrasado, proletariado pequeno e minoritário, ambiente hostil, imperialismo e stalinismo). Causas parecidas produzem resultados parecidos. Na política interna e externa, a posição dos iugoslavos não é fundamentalmente diferente da do stalinismo em suas fases iniciais. A longo prazo ela terá as mesmas consequências.

Ao invés de tomar vantagem do conflito para demonstrar a verdadeira natureza do stalinismo e os atributos vitais necessários de um Estado operário saudável, [eles] se converteram em uma réplica dos “Amigos da União Soviética”. A organização se tornou uma agência turística produtora de álibis para a Iugoslávia.

Desde o nascimento da Socialist Fellowship [Associação Socialista] de Ellis Smith, até a crise da Coreia, a organização passou por um período de colaboração e acomodação a vários elementos dentro do Partido Trabalhista. Estes variaram desde os reformistas de esquerda socialdemocratas, tais como Ellis Smith e Brockway, até companheiros de viagem stalinistas, como Tom Braddock e Jack Stanley. Na ausência de uma genuína ala esquerda, a liderança de Healy ajudou a construir uma sombra. Para poder manter essa sombra, eles foram forçados a se acomodar a ela. Assim, quando a Socialist Fellowship formulou sua política depois das eleições gerais, a liderança [de Healy] cumpriu um papel chave em escrever um programa que era falso e oportunista.

Ao mesmo tempo, ilusões se disseminaram sobre os assim chamados líderes operários, Ellis Smith, Braddock, etc.

Na primeira crise séria, quando surgiu a disputa da Coreia, o racha inevitável dessa organização aconteceu, com Ellis Smith e companhia se retirando. Com a saída dos importantes reformistas de esquerda, o grupo desviou-se mais abertamente para a direção de acomodar-se à ala dos companheiros de viagem stalinistas. Eles permanecem no que restou da Socialist Fellowship com uma posição semi-stalinista.

No fundo, os trotskistas formam o esqueleto dos membros, da organização e da atividade da Socialist Fellowship.

Os trotskistas tem gasto as suas energias propagando uma política oportunista ao invés de construírem um núcleo revolucionário ao redor de si.

“Socialist Outlook”

Durante o período de desenvolvimento da Socialist Fellowship, o jornal Socialist Outlook [Perspectiva Socialista] cumpriu a tarefa que tomou para si: “refletir a confusão da ala esquerda” (Documento da Conferência de 1949). O papel político do Socialist Outlook era determinado não pelos seus editoriais anêmicos, mas pelos artigos principais daqueles parlamentares e demais, cujas políticas eram transparentemente de tentar adoçar a política amarga da ala direita.

Ao mesmo tempo, os editoriais eram coloridos pela necessidade de “não ofender” os companheiros de viagem stalinistas do Comitê Editorial.

O editorial produziu uma linha de “crítica” que é digna dos notórios “Amigos da União Soviética”: “Nós estamos longe de sugerir que o governo russo em todos os momentos e sob todas as condições apoie os movimentos progressivos”. “Há uma característica distinta de política de poder na tentativa de Moscou de assegurar a paz na Coreia em troca de um assento extra no Conselho de Segurança [da ONU]”. Esses seriam exemplos de “críticas trotskistas sérias”! Entre tais declarações – que tem uma característica muito distinta – está o seguinte: “A política externa russa é determinada pelo que o governo daquele país considera que está nos interesses da União Soviética, mas isso, como o caso da Índia provou, nem sempre coincide com o que é do interesse da classe trabalhadora internacional. Ou mesmo, em longo prazo, no que é do interesse da própria União Soviética”!

Na base dessa acomodação política, a tendência de Healy se vangloria na Grã-Bretanha e internacionalmente de seus sucessos numéricos e organizativos em “construir a ala esquerda” do Partido Trabalhista. Afirmações que foram largamente sem fundamentação nos fatos.

Mesmo com os seus esforços mais energéticos, ela permanece uma organização sem importância e semifictícia. Se eles não a impulsionassem, ela iria desmoronar imediatamente.

O Socialist Outlook é um “fórum” sem nenhuma tendência revolucionária refletida nele. Nem a crítica revolucionária é permitida no jornal. Por exemplo, o ataque de S.L. [Sam Levy] ao editorial de abril e o ataque de M.L. [Marion Lunt] à posição da Iugoslávia não foram publicados, enquanto grandes quantidades de material completamente reformista e stalinista foram publicadas. A esse respeito ele se compara negativamente mesmo com o [jornal] centrista Socialist Leader. O ponto importante a manter em mente é que as forças dominantes no Socialist Outlook são de trotskistas.

Sendo o Socialist Outlook em realidade o jornal do grupo, ele deveria ser o organizador do grupo, mas ao invés disso, se tornou uma fonte para influência stalinista no Partido Trabalhista.

Toda a linha do jornal e a política desse agrupamento tiveram sua expressão mais crassa no notório suplemento sobre a Coreia. Não houve qualquer crítica ao papel da burocracia stalinista. Houve um acobertamento do papel dos iugoslavos na ONU. Enquanto apoiava corretamente a luta [da Coreia] do Norte, não havia uma sílaba sobre o estabelecimento stalinista.

Na Liga da Juventude [ala jovem do Partido Trabalhista], onde há as condições mais favoráveis para o trabalho, nós não vemos nenhuma proposição trotskista de disseminar nossas ideias e ganhar para elas apoio, mas o conceito de controle organizativo da Liga. Em sua luta na Liga da Juventude, enquanto corretamente luta por demandas democráticas e organizativas, isso é feito a custa da posição política. Toda a relação com o Partido Trabalhista é stalinista, de controlar aparatos, a Socialist Fellowship, o Socialist Outlook, toda a Liga da Juventude, a custo das ideias políticas e do programa. Entretanto, ele não tem nem mesmo a vantagem de que, lado a lado com apêndices organizativos, os stalinistas simultaneamente organizam um poderoso partido e uma imprensa própria de forma independente.

A política liquidacionista torna-se a mistura de bandeiras, política e programa.

Falta de democracia interna

Sem um senso de proporção e ampliando perigos, a conferência [da organização] foi realizada sob as condições mais desvantajosas. Com exceção de alguns favorecidos, apenas delegados tiveram o direito de comparecer. Membros individuais, sob o argumento de motivo de segurança, tiveram negado seu direito de comparecer ou mesmo de saber onde se realizaria a conferência.

O documento dos partidários do Capitalismo de Estado teve sua publicação recusada depois de o Secretariado Geral ter aceitado tal pedido, sob a justificativa de que o seu autor havia sido expulso (ex-poste facto). Isso constituiu uma provocação que, é claro, ajudou os defensores do Capitalismo de Estado. Eles foram uma tendência representada na conferência e deveriam ter tido o direito de publicar um documento que expressasse suas ideias, mesmo que o autor estivesse fora da organização.

O documento da filial de Liverpool não foi publicado sob a justificativa de que ele foi apresentado tarde demais, embora algumas das suas ideias tenham sido incorporadas no documento de última hora, sem divulgação.

O principal documento “com emendas” era, na verdade, um documento inteiramente novo. Ao adicionar novas ideias em um amálgama com o velho, só poderia resultar em desorientação e confusão dos membros. A liderança apresentou um documento inteiramente novo enquanto ao mesmo tempo afirmava que só tinha feito emendas no antigo. Isso é um truque típico de um Zinoviev.

Na conferência, a discussão política e os votos aconteceram sob uma atmosfera de ameaças disciplinares. Na resolução sobre reformismo os delegados foram informados de que qualquer um que votasse contra a sua implementação seria expulso, apesar do fato de que alguns delegados discordavam do documento. Em todas as organizações bolcheviques, os membros tem o direito de votar contra documentos, embora a decisão da maioria determine automaticamente a política. A resolução sobre a implementação foi proposta para forçar a minoria a votar por uma resolução à qual eles se opunham, sob a ameaça de expulsão. Essa atitude ultimatista tem mais em comum com o monolitismo stalinista do que com o bolchevismo.

Eles não aproveitaram a oportunidade para permitir a ventilação das ideias dos partidários do Capitalismo de Estado, tendo uma ampla discussão na conferência, apesar do fato de que um número crescente de membros estava se tornando simpáticos à teoria do Capitalismo de Estado em reação à linha semi-stalinista da direção.

Arbitrariamente e burocraticamente, a direção dissolveu e misturou as filiais, sem levar em conta as necessidades do partido, mas apenas as necessidades da panelinha. Por exemplo, o Secretário Geral foi para a filial de Kilburn e decretou que a filial estava dissolvida para poder “separá-la de influências ‘malignas’”. Isso não foi ratificado pelo Comitê Executivo (E.C.) até uma semana depois.

Em Liverpool, houve uma tentativa deliberada de rachar a filial em dois, por propósitos de dividir a “família Deane” do resto dos camaradas de Liverpool.

Filiais foram deliberadamente isoladas umas das outras como forma de facilitar o controle desde o centro. Não houve reconhecimento do que estava sendo feito na organização como um todo, a correspondência entre as filiais foi restringida e as declarações que vieram através do C.E. tinham o propósito específico de aprovar as ações do C.E. Filiais e indivíduos que discordavam eram ameaçados de expulsão ou atacados violentamente como camaradas antipartido.

Como consequência desse regime, o descontentamento político foi obrigado a refletir-se tanto na infração da disciplina como na saída de membros.

A única resposta à infração de disciplina foi a expulsão imediata (Percy Downey em Birmingham). A decisão de expulsar foi levada às filiais para ratificação. Aqueles que votaram contra a decisão do C.E., sob o argumento de que toda uma discussão era necessária e que essas violações eram um resultado da falta de discussão política e da falta de democracia dentro da organização, foram também imediatamente expulsos (Birmingham, West London). Assim, eles insistiram no princípio monolítico da unanimidade.

Camaradas que lideravam a oposição, como J.D. [Jimmy Deane] e S.L. [Sam Levy] e que eram membros do Comitê Nacional foram expulsos sob pretextos sem solidez ou por infrações técnicas de disciplina.

Ao restringir os direitos dos membros, ao usar argumentos técnicos, pela atitude ditatorial da direção e pela intimidação geral dos membros, o grupo encolheu. Devido ao número de membros que saíram ou às expulsões, ele se reduziu a um matadouro. Nas províncias, ele se tornou um mero esqueleto. Em Londres, os membros estão perdendo a confiança em tal liderança. Essas foram grandes perdas.

Apenas os camaradas mais jovens e inexperientes e os elementos rígidos da direção permanecem. O fato de que um número crescente de membros está deixando o grupo, somado ao fato da expulsão de camaradas de liderança, um deles membro do Comitê Nacional e o único representante da oposição nesse importante órgão, mostra que é ao mesmo tempo impossível e deixa de ter algum sentido lutar por uma liderança alternativa em tal caricatura de uma organização bolchevique.

Um apelo

Camaradas, essas questões que nós levantamos não são leves. Elas são questões fundamentais, que afetam o destino do trotskismo, nacionalmente e internacionalmente. Nós não chegamos facilmente à decisão de romper com essa tendência que se desintegra ideológica e organizativamente. Se a preciosa herança das ideias deixadas por Leon Trotsky deve ser preservada, expandida e desenvolvida, é necessário romper com aqueles que seguem os passos do stalinismo. Hoje, grupos da Quarta Internacional, devido a vários fatores históricos, são pequenos e fracos. É ainda mais necessário, então, que os princípios fundamentais do trotskismo devam ser mantidos intactos. Hoje, a principal tarefa é uma de preparação ideológica para o desenvolvimento de uma organização de massa em uma etapa futura. Com um programa de neoestalinismo, apenas desastre pode ser preparado. Apenas o treinamento de quadros revolucionários desenvolvidos pode preparar o caminho para o futuro.

Com a situação mundial e as condições existentes como estão, é impossível prever um desenvolvimento de um movimento trotskista de massas na Grã-Bretanha muito rapidamente. Isso vai exigir anos de trabalho paciente.

Nessa etapa, a principal atividade do grupo terá de ser dentro do movimento trabalhista e nas organizações de massa da classe trabalhadora, como um grupo entrista. Uma ala esquerda irá sem dúvida se desenvolver no Partido Trabalhista nos próximos anos. Mas o esforço tolo de criar uma ala esquerda saída do nada e declarar que a ala esquerda já existe só demonstrou a impotências dos seguidores de Healy, a não ser na própria imaginação deles. Para poder preparar a ala esquerda é necessário agora fazer críticas sérias e equilibradas de todas as tendências no Partido Trabalhista, a serem veiculadas na imprensa e dentro do Partido Trabalhista. Ao mesmo tempo, uma exposição implacável do stalinismo, assim como do imperialismo, devem ser levadas adiante consistentemente, para impedir a possibilidade de que seções do Partido Trabalhista em desespero sejam ganhas para o stalinismo.

Para a condução do trabalho, democracia escrupulosa e total liberdade de discussão dentro da organização devem ser mantidas. Sem isso não será possível para um agrupamento revolucionário ser criado e sobreviver no difícil período que existe pela frente.

Por todas essas razões nós fazemos um apelo para todos os camaradas sinceros no movimento para juntarem-se a nós nessa tarefa. Somente dessa forma pode ser criado um movimento com vida e de luta. Trabalho cotidiano paciente dentro do Partido Trabalhista vai atingir resultados se for conduzido em uma base correta. Os anos que estão pela frente podem ser muito frutíferos. As tarefas são difíceis, mas as oportunidades para uma perspectiva de longo prazo são sem limites. Em frente pela construção da tendência revolucionária na Grã-Bretanha!

A Juventude do SWP e a Legalização do Aborto (1958)

Garota de 17 anos morre de aborto
Onde estão os verdadeiros culpados?

Por Judy Mage
[Originalmente impresso em The Young Socialist, Vol. 1 #5, publicação da juventude de Nova Iorque do Socialist Workers Party (SWP) norte-americano, de fevereiro de 1958. Tradução realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em março de 2013].
“Garota de 17 anos encontrada morta: vítima de um aborto mal feito”. Assim estava escrito nas manchetes dos jornais de Nova Iorque em uma noite fria de dezembro passado. Lendo mais, descobrimos mais uma cruel e típica história: uma gravidez indesejada, o namorado ajudante, o “cirurgião”, nesse caso de uma recepcionista, a operação no chão de um quarto de hotel, a moça morta dentro de meia-hora, um enterro secreto em uma sepultura cheia de lixo; e depois, a descoberta, e as acusações de homicídio não premeditado.

Sim outra tragédia, outra vítima – de que? De um “aborto mal feito” de uma recepcionista operada em um chão sujo com instrumentos rústicos? Ou então outra vítima de uma lei que ilegaliza essa operação, transformando o que poderia ser uma cirurgia pequena e relativamente segura, se realizada em condições completamente antissépticas por um especialista treinado, em algo perigoso, muitas vezes danoso e algumas vezes fatal.
QUANTAS VÍTIMAS?
Quão perigoso? Especialistas estimam que de 100 a 150 mulheres e meninas morrem a cada semana nos Estados Unidos como resultado direto de “abortos criminosos”. Estimativas do número total de abortos ilegais que ocorrem nesse país cada ano variam de aproximações conservadoras de 330 mil – cerca de mil por dia – até mais de dois milhões.
São as mulheres e meninas mais pobres, é claro, as principais vítimas do aborto de “açougue”, também conhecido medicamente como “aborto suicida”. Aqueles com mais dinheiro para gastar conseguem mais facilmente um médico “de verdade” que pode incrementar sua renda consideravelmente em troca de correr um pequeno risco. Os preços atuais, de acordo com um estudo feito há dois anos, variam de $250, uma média baixa entre os médicos, até $400, $600 e até mais que $1000.
Particularmente chocante para qualquer um que faça alguma pesquisa sobre esse assunto, é descobrir que entre oitenta e noventa por cento dos abortos ilegais são realizados não em adolescentes selvagens, “delinquentes” (ou mesmo em adolescentes gentis e ingênuas, como a de 17 anos descrita acima), mas em mulheres casadas, a maioria das quais já são mães. Além disso, alguns pesquisadores estimam que metade dos abortos ilegais são realizados em mulheres que nem mesmo estão grávidas.
Qual é a solução? Em alguns países, avançou-se ao ponto de permitir abortos por outros motivos que não “terapêuticos”. Na Dinamarca, Áustria, Cuba, Suíça e na União Soviética (depois de um retrocesso de 20 anos), Suécia, Japão e alguns outros países, motivos legais incluem fatores econômicos, psiquiátricos, eugênicos e outros de ordem social.
Nos Estados Unidos, oponentes de qualquer “relaxamento” nas leis de aborto levantam uma série de argumentos, mas há dois que predominam dentre os outros. O primeiro é mantido em particular pela Igreja Católica, que diz que já que o embrião é uma “pessoa com vida”, seria um pecado tirar sua vida. Pode-se contestar a consistência de uma organização que permaneceu calada quando embriões sem batismo foram destruídos em grandes quantidades em Hiroshima e Nagasaki; e que justificou e continua justificando o assassinato, em grandes e pequenas guerras, de centenas de milhares de “pessoas com vida” que inconvenientemente estão fora do útero.
GUARDIÕES DA MORAL
O outro argumento, também levantado pela Igreja, mas por muitos outros também, diz respeito à torrente de promiscuidade, especialmente entre a juventude, em que presumivelmente se resultaria caso o medo de uma gravidez deixasse de existir como obstáculo. Mas com que direito essas pessoas se declaram árbitros do que é certo e errado? Quem os elegeu? Por que não deixar os jovens decidirem por si mesmos quais seus padrões de moralidade devem ser, ao invés de impor o padrão de alguém sobre eles?
É verdade que a legalização do aborto não é a resposta completa. Ainda mais importante é o encorajamento de uma forma de “medicina preventiva”, ou seja, controle de natalidade. Embora a disseminação de informação sobre controle de natalidade não seja ilegal na maior parte dos Estados Unidos, a maior agência nesse campo, a secretaria de Planejamento Familiar, encontra grandes barreiras organizadas, novamente, pela Igreja Católica. Embora exista outro importante fator atrapalhando o sucesso de um controle da natalidade difundido e acessível, que é a ausência que um contraceptivo realmente simples, barato e acessível.
As pesquisas ainda continuam naquilo que é popularmente chamado de “pílula”, uma substância aplicada oralmente que seria ao mesmo tempo segura e confiável em prevenir a concepção. A secretaria de Planejamento Familiar mantém um programa de pesquisa, mas os recursos aplicados nisso são extremamente pequenos. Como uma mulher envolvida nessa pesquisa colocou: “Nós poderíamos ter a resposta dentro de dez anos. O que é preciso é um Projeto Manhattan – um programa intensivo!”.
Mas não há programa intensivo – e na ausência da adequada informação e orientação sobre controle da natalidade, na ausência de leis de aborto humanas e realistas, garotas de 17 anos e mães de 35 anos vão continuar a morrer como vítimas de facões desajeitados.

James P. Cannon sobre Anarquismo

James P. Cannon Sobre Anarquismo

[Esta carta de James P. Cannon à dirigente do SWP norte-americano, Myra Tanner Weiss (companheira de Murray Weiss), foi traduzida a partir da versão publicada como um suplemento de 1917” No. 20, revista da outrora revolucionária Tendência Bolchevique Internacional. A carta foi publicada originalmente em “Os Primeiros Dez Anos do Comunismo Norte-americano”. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em abril de 2013].

Los Angeles, Califórnia
29 de Julho de 1955
Querida Myra:
Eu recebi sua carta de 9 de julho. Enviar meu livreto sobre o IWW [1] foi realmente um movimento astuto da minha parte. Eu sabia que meu livreto sobre o IWW iria tocar a velha libertária dentro de você.
Murry pode estar parcialmente certo em interpretar meu envio do livreto como um reconhecimento de que você é uma “anarquista”. Mas ele está totalmente errado em desaprovar o termo como tal. Está tudo bem com o anarquismo quando está sob o controle de uma organização. Isso pode parecer uma contradição em termos, mas se não fosse pelo anarquismo dentro de nós enquanto indivíduos, nós não precisaríamos da disciplina de uma organização. O partido revolucionário representa uma unidade dialética de opostos. Por um lado ele é, de fato, a fusão dos instintos rebeldes de indivíduos com o reconhecimento intelectual de que sua rebelião só pode ser efetiva se eles estiverem combinados e unidos em uma única força de ataque, que apenas uma organização disciplinada pode fornecer.
Em meus dias de juventude eu era bastante simpático aos anarquistas, e eu mesmo era um anarquista por natureza. Eu realmente amava aquela palavra “liberdade”, que é a principal palavra no vocabulário anarquista. Mas meu impulso de ir até o fim com eles era bloqueado pelo reconhecimento de que a reorganização da sociedade, que é a única forma de tornar a verdadeira liberdade possível, não pode ser atingida sem organização, e que essa organização significa disciplina e a subordinação do indivíduo à maioria. Eu queria ter o meu objetivo e cumpri-lo também – na verdade, eu ainda tenho a mesma ideia – mas eu ainda não tinha sido capaz de descobrir exatamente como isso poderia ser feito.
As pessoas que cresceram desde a Revolução Russa e da Primeira Guerra Mundial não sabem e não podem ter uma ideia real de como era o movimento anarquista antes desse tempo, antes de seus pressupostos teóricos terem sido postos à prova. Naquela época o anarquismo era tido como a forma mais extrema de radicalismo. Os anarquistas tinham algumas pessoas maravilhosas; eles reivindicavam a herança dos mártires de Haymarket [2], e eles eram altamente respeitados em todos os círculos radicais. Quando Emma Goldman e Alexander Berkman vinham para Kansas City em suas turnês de seminários, nós libertários costumávamos nos inscrever e ajudar a divulgar, como algo naturalmente esperado.
Goldman era uma grande oradora, uma das melhores que eu já ouvi, e Berkman era uma figura heróica de pura nobreza. Foi ele quem organizou a primeira rede de comitês do movimento em defesa de Tom Mooney [3], e eu lembro afetuosa e orgulhosamente do fato de que eu fui um membro ativo desse primeiro comitê organizado por Berkman. (Eu e Browder!)
Os impulsos dos anarquistas originais eram maravilhosos, mas sua teoria era falha, e não poderia sobreviver ao teste da guerra e da revolução. É vergonhoso lembrar que os anarquistas espanhois se tornaram ministros em um gabinete burguês durante a Revolução Espanhola; e que os velhos anarquistas de Nova York, ou o que sobrou deles, se tornaram socialpatriotas durante a Segunda Guerra Mundial. Nada é tão fatal quanto uma falsa teoria.
Se eu me recuperar algum dia, eu escreverei algo sobre o movimento anarquista nos Estados Unidos, sobre como ele era nos tempos de antes da Primeira Guerra Mundial.
. . .
Então você realmente tem vivido como uma funcionária em tempo integral do partido e como dona de casa. É melhor você não deixar Murry ler meu capítulo de “America’s Road to Socialism” [O Caminho dos Estados Unidos para o Socialismo] sobre a futura libertação das donas de casa de suas cozinhas. Ele pode ficar tão assustado com a possibilidade ao ponto de se virar contra o socialismo, e nós não queremos arriscar isso.
O clima está bom e fresco aqui hoje, como de costume nessa época do ano. Como está o clima em Nova York? Os jornais de Los Angeles tem publicado um monte de matérias assustadoras sobre o calor devastador em todas as partes do país fora da Califórnia. Como é o mau tempo? Eu não consigo me lembrar.
Fraternalmente,
J. P. Cannon
Notas da Tradução
[1] Industrial Workers of the World – Trabalhadores Industriais do Mundo. Uma histórica federação anarcossindicalista norte-americana da qual James P. Cannon foi militante em seus primeiros anos como ativista político.
[2] Referência às vítimas de um brutal ataque policial a um comício sindical em Chicago, em 1886.
[3] Tom Mooney foi um líder operário condenado injustamente por um atentado a bomba em São Francisco em 1916. Mooney foi finalmente solto e suas acusações retiradas em 1939.

Chapter 11 – The Bureaucratized Workers’ States and the Tasks of the Transitional Epoch

After years of fierce civil war and foreign invasion, during which the proletarian vanguard was physically destroyed to a large extent, proletarian democracy, the necessary regime for the transition to socialism, could not take hold in Soviet Russia. This was also influenced by the inexperience and errors of the Bolsheviks. Despite this, democracy still persisted in the party’s internal debates, in the soviets and in the factories in the early 1920s. In subsequent years, the dictatorship of the proletariat was increasingly bureaucratized, that is, power was concentrated in the hands of state officials, a layer also composed of many elements without political commitment to socialism. The control of companies and the management of the planned economy were increasingly removed from the workers’ grassroots organizations by all-powerful apparatchiks, and not just as a temporary or emergency measure. Debates within the Bolshevik Party were closed and the bureaucracy became uncontrollable.

Many historical leaders of the Bolshevik Party declared war on this process, starting with Lenin himself. Each in their own time and with different degrees of error, were defeated by the political force of the state bureaucrats, a group or social stratum with their own interests, whose power was consolidated in Stalin’s autocracy in the 1930s. With the Moscow Trials, the Soviet Union’s bureaucracy eliminated the remaining political cadres of the Bolshevik Party that had carried out the 1917 revolution, thus consolidating their regime. This outcome was not only the result of an internal struggle, but was also caused by the context of international defeats and the isolation of the revolution, which led to a swelling of the state apparatus and to a weakening of revolutionary disposition among the workers. As a result, the USSR became what Trotsky called a degenerated workers’ state, with a Bonapartist regime of bureaucratic dictatorship (Stalinism).

World War II was the turning point for the Soviet bureaucratized workers’ state. Despite the beheading of the leadership of the Red Army on the eve of the conflict in a wave of executions and arrests by the Stalinist circle, the USSR emerged victorious due to the heroic struggle of millions of combatants and workers. This destroyed the Nazi beast and restored hope for humanity in the twilight of the 20th century, avoiding a colossal catastrophe. The breathing space obtained with this victory, which reduced the isolation of the USSR, allowed the Soviet workers’ state to survive for another 45 years.

The military victory of the Soviet workers’ state led to the occupation of territories in Asia and Europe, although not all were later claimed in the agreements with the triumphant imperialist powers of the US and the UK. In North Vietnam, North Korea and Eastern Europe, the colonial apparatus and the former Nazi-collaborating bourgeois states were effectively destroyed by the Red Army, paving the way for power to come under its protection and influence. In face of enormous pressure from the workers and oppressed masses on the one hand, and the hostility of the native bourgeoisies in collusion with the imperialist powers on the other, this new power proceeded to expropriate the capitalist class. New workers’ states were built “from above”, with the ruling bureaucracy exercising a prominent role from the beginning, eliminating and preventing at all costs the construction of mass democratic organizations of the working class. This bureaucracy used repressive methods to assure its rule, but it also enjoyed enormous popularity following the defeat of Nazism.

Almost at the same time as the USSR’s military expansion into Eastern Europe took place, indigenous revolutions won in Yugoslavia and Albania, which were freed from the Nazi yoke by militias of local resistance headed by the Communist Parties. Having destroyed the bourgeois state apparatus and with the bulk of the economy already previously nationalized by the Nazi occupation, the native bourgeoisies were extremely fragile. Despite initial attempts to include bourgeois representatives in the new regimes, the Communist Parties quickly took the path of establishing deformed workers’ states (bureaucratized since their formation) as a way of securing their power against counterrevolutionary threats, and working class threats to the bureaucracies. They did so in a context of massive proletarian and peasant mobilization for better living conditions and with great expectations in a socialist transformation.

Socialist revolutions also triumphed shortly afterwards in formerly imperialist-dominated nations. The most impressive revolution was undoubtedly the Chinese revolution, in which the Communist Party of China faced the decrepit regime of the nationalist Kuomintang party after the defeat of Japanese occupation and the withdrawal of Allied troops. Even with very little Soviet support, the troops of the People’s Liberation Army led by the CPC destroyed the Kuomintang regime in 1949, relying heavily on the uprisings of rural workers, as well as poor peasants uprooted from their land, and other elements of the country’s rural labor force. Subsequently, urban workers also played a role, with insurrections and factory occupations, leading to an empirical break with the leadership around Mao Zedong with and their project of building a bourgeois-democratic regime, the “New Democracy”. This ultimately forced them onto the path of effective elimination of capitalism in the most populous nation on the planet.

In 1959, an uprising with similar characteristics triumphed in Cuba, destroying the dictatorial bourgeois regime of Fulgencio Batista. This time, the revolution was led by a movement of petty-bourgeois and democratic-radical origin, the M-26 of Fidel Castro and Che Guevara. After almost two years of polarization within the movement, with significant pressure from workers, and after a failed attempt of an American imperialist invasion supported by the native bourgeoisie in the Bay of Pigs, the wing inclined to the expropriation of the capitalist class and an alignment with the USSR triumphed.

The counter-pressure to imperialism embodied by the Soviet state gave petty-bourgeois political tendencies in both China and Cuba an alternative to the “democratic” capitalist route. The proletarian movement was not yet sufficiently organized or prepared to fulfill this task of polarizing the oppressed masses around itself, and the workers’ movement did not have Marxist leadership. But even with wobbly leadership, which at various times was inclined to class collaboration, and which did not have an internationalist perspective of transition to socialism, class struggle can, in exceptional cases, lead to the destruction of the bourgeois state and the creation of a different type of power. Later, in the 1970s, there was an expansion of the deformed workers’ state from North Vietnam to the south of the country, reunifying it, and a revolutionary process in Laos, similar to those described above.

The absence of Marxist proletarian parties in these revolutionary events is no reason to ignore their importance and achievements. However, the workers’ movement must not count on exceptional circumstances or that similar events can be repeated without a revolutionary party. Unlike the revisionists in the Trotskyist movement at the time, we do not see in these processes supposed “new strategic paths” for socialist revolution. In the vast majority of cases, class-collaborationist, reformist or centrist leaders at the head of the workers’ movement drown them into frustration, betrayal or demoralization, leading to defeat and into one or another variant of the capitalist regime.

In the cases where revolutions did in fact triumph the elements of bureaucratic deformation make them far from models. In the countries where workers’ states were established, it was still crucial to build Marxist parties, so that they could represent the interests of workers against the ruling bureaucratic elite. This layer acts under the pressure of workers at times and of imperialism at others, but always lacks commitment to the process of transition to socialism, both in its political prerequisites (proletarian democracy), as well as material ones (democratic economic planning and the struggle for the victory of the revolution worldwide).

It was the accumulation of the contradictions of the bureaucratic regime, added to the tremendous imperialist pressure and the delay of the international revolution which led to counterrevolutions in Eastern Europe (1989-90) and the Soviet Union (1991). Such processes were not the result of imperialist invasions, but of the tendencies towards capitalist restoration within the countries, especially pro-capitalist wings in the governing circles of the bureaucracy, eager to become individual proprietors. These events were huge defeats for the workers’ movement across the world.

The bureaucratized workers’ states that still exist today are China, Cuba, North Korea, Vietnam and Laos. We unconditionally defend these states and their right to defend themselves against imperialist threats, coups and attacks. We denounce the lies and defamation campaigns of the capitalist media monopolies against these countries. We are also opposed to economic sanctions and blockades which weaken their economies and starve and deprive their peoples.

The governing bureaucracies have undergone different ideological realignments and correlations of forces with imperialism over the years. Experience has shown the impossibility of managing an industrialized economy efficiently with bureaucratic planning alone. Two possibilities emerge from this: incorporating workers into the administration (democratic planning), which conflicts with the political monopoly of the bureaucracy; or accepting the role of the market as a means of allocating investment. Currently, this second road has been taken, supported by the increase in economic pressure from the world bourgeoisie for openings after the fall of the USSR. It led to the creation of a (non-dominant) capitalist sector in the economies of these countries, with which the state has a relation of acceptance and growing dependence. The bureaucratic Bonapartism of these regimes was based from the beginning on mediation between the pressures of the workers and the international bourgeoisie. The creation of native bourgeoisies with social influence did not decisively destroy this balance, but placed it in increasing instability.

We reject the claims that China, Cuba, etc. have become capitalist dictatorships (or even an imperialist power in the case of China) after the economic reforms of the last decades. But we also criticize those who minimize the enormous risks and inequalities created by these reforms and who support the direction taken by the ruling Communist Parties. The statements by the Chinese government, for example, that claim to be “building socialism”, are totally deceptive. If workers do not take the helm of these transitional societies, they will increasingly suffer the risk of counterrevolutions that will re-establish the bourgeois state and realize the full restoration of the capitalist mode of production. The leaders of the Communist Party of China have come up with a new doctrine by proclaiming the perfect harmony between market economy and collectivized state property, so-called “market socialism with Chinese characteristics”. Such an aberration will have a concrete end if it is not defeated in time: the ruin of what remains of the social achievements of the Chinese revolution, leading to a brutal worsening of the workers’ living conditions.

The question of capitalist counterrevolution is posed in the remaining workers’ states, but has not yet been resolved by history. It tends to acquire a clearer shape as economic and social crises arise in these countries. This is especially true in China, where the immensity of the contradictions is only possible due to high rates of economic growth, waiting for moment of crisis to explode with full force. Two possible paths exist: to move ahead towards proletarian democracy based on workers’ councils, or to retreat into an authoritarian bourgeois regime, even if it seeks a “democratic” facade at first. The question of the future Chinese crisis is central to the global revolution and revolutionaries must be able to develop a correct perspective on it.

In the remaining bureaucratized workers’ states, it is necessary to establish proletarian democracies, that is, a political power based on workers’ councils, from which a system of regional and national management bodies is built. The elected representatives of these bodies will be revocable at all times by the proletarian organizations that appointed them, so that they are politically subordinate to the working class and are not, as is the bureaucracy in these countries today, a parasitic layer with enormous autonomy.

Workers’ organizations must review the economy from top to bottom, which in the current circumstances includes renationalizing a large part of private industry and commerce, and expropriating capitalist investments without compensation. They must also carry out a review of the state sector (which is still the fundamental component of the economy) in the interest of the real producers – the workers – eliminating the parasitism of bureaucracy. One of the most immediate effects will be a severe reduction of social inequality.

Marxists fight for the end of all privileges to the ruling bureaucracy. Each state official must receive only the average salary of a worker. Costs for official functions will be payed by the workers’ state, but officials must be prevented from using positions for personal gain. The wealth accumulated by the bureaucrats must be immediately confiscated, unveiling their secrecy.

It is necessary to immediately halt the use of the police apparatus against the movements of workers and the youth who are fighting capitalist restoration and bureaucratic oppression. We want the corrupt despots who contributed to the growth of inequalities and the advance of capitalist relations to face an independent trial by the workers’ organizations. This struggle must lead to the expansion of democratic rights for the working class and its organizations, but not for the bourgeoisie and political groups acting directly under its interest. The newspapers, websites and books of Marxists, militant workers, radical student circles and leftist activists must have full freedom of expression. Full freedom of organization for unions and political parties committed to the defense of the revolution and of its social achievements!

We also want the involvement of the workers’ states in the international arena in favor of proletarian and anti-imperialist struggles, actively supporting them materially and raising a program based on the need for the dictatorship of the proletariat. No country can reach socialism on its own – revolutionary victory is necessary in several countries, including imperialist centers. For the effective fulfillment of this internationalist role, and of all the other tasks presented here, the rise of a proletarian leadership is necessary – a political revolution of the workers that removes the governing bureaucratic clique from power through an insurrection and subordinates the political-administrative apparatus to working-class organs.

In face of any attempts at counter-revolution coming from imperialists, from native bourgeois forces, from sections of the bureaucracy or even a combination of these elements, we call workers to stand up for the defense of the workers’ states by all available means. Workers in other countries must carry out movements in solidarity, especially those workers in the capitalist countries that are participating in counter-revolutionary attempts. In the event that certain groups of the bureaucracy also oppose the counterrevolutionary forces (even for their own interests), we would defend a practical unity of action on this issue, without at any time abandoning the workers’ political independence and our criticisms of the bureaucracy.

Down with the bureaucratic elite! Long live proletarian democracy! Long live the international socialist revolution!

Chapter 12 – The Theoretical and Programmatic Heritage We Claim

The Marxist proletarian movement reached its highest point in the 20th century with the organization of the Communist International in 1919. Up until its Fourth Congress in 1922, it sought to develop a consistent revolutionary strategy, as well as give material support, to workers’ movements around the world. In 1924, at the Fifth Congress, concessions were made to bourgeois nationalism, with the joining of the Kuomintang party as a sympathizing section, and of Chiang Kai-Shek, soon-to-be executioner of the Chinese Communists in the 1927 revolution, as an honorary member. After this, the CI always took several years to meet, whereas before, even during times of civil war, it had held annual congresses. The last two congresses were marked by debilitating turns for the workers’ movement. The sixth congress (1928) defended an ultra-leftist course that aborted the possibility of unity of action in the workers’ movement against Fascist reaction. At the seventh (1935), it proposed the dissolution of working class independence in coalitions with the “democratic” bourgeoisie (popular fronts). The final formal dissolution of the International by Stalin in 1943 was only the last act in a process of adapting the organization to collaboration with the capitalists.

Several tendencies emerged from the Communist International. We agree with the criticisms and statements of the International Left Opposition, led by Leon Trotsky, and of the Fourth International it founded in 1938. It was built around the best elaborations of the Communist International, while also being critical of the course which began in the Fifth Congress, and expanded, in a creative way, on the most important developments of class struggle in the 1930s. Their analysis is still relevant today for understanding the Marxist political method. Despite this, with the exception of the American (SWP), Bolivian (POR) and Sri Lankan (LSSP) sections, the Fourth International did not achieve a significant rooting in the working class. It suffered the impact of Stalinist slander and persecution, both in the workers’ movement and during World War II, with many of its most important figures in Europe and Asia murdered by Fascists or Stalinist agents (a fate that Trotsky himself received in his exile in Mexico).

The Fourth International was partially rebuilt in the post-war period, but with a leadership that, although skilled in underground work, contained a number of weaknesses. Since the more experienced cadres died during the war and the SWP leadership abstained from playing a more active international role, reorganization was left to the Europeans. This new leadership brought together figures who had not played any prominent role in pre-war Trotskyism (such as Michel Pablo and Sal Santen), some who were very young and politically inexperienced (at the Second World Congress, held in 1948, Ernest Mandel and Livio Maitan were only 25 years old). They also made the mistake of reintroducing directly into the leadership of the movement, people who had left or been expelled from the organization previously, without any serious balance of past disagreements (the case of Pierre Frank). Faced with differences arising from the complexity of the events unfolding in the immediate post-war period, this leadership also resorted to bureaucratic measures to suppress dissenting voices. All this led to multiple political zigzags and theoretical confusion between the mid-1940s and the early 1950s.

In 1951, after a period of intense debate, the new international leadership took a course of adaptation to Stalinism, to the Social Democratic Left and to left-bourgeois nationalism. According to this course, Marxists should play a role of pressuring these political forces to serve as “blunted instruments”, supposedly able to perform the central tasks of the socialist revolution, or at least the beginning of it, in the form of “workers and peasants governments” – re-interpreted as a middle stage in the path to the dictatorship of the proletariat. This amounted to abandoning or hiding criticisms against these political tendencies and largely abandoning the Marxist program itself. Along the same lines, there was the prospect of partial or total organizational dissolution of the sections of the International through “deep entry” into these organizations. There was much acquiescence and little effective resistance to such a course, largely due to the weakness of most national sections and the limited international interest taken by the Americans.

The adoption of Stalinist methods against dissenting voices and grotesquely anti-Marxist explanations to justify political opportunism led to expulsions in the sections in Britain (RCP) and France (PCI), which were the first to rise up against this course. We claim the analyses and criticisms presented by the majority of these two groups (who opposed the International leadership) as an important link of continuity with the program of the Trotskyism. A similar contribution came from the Vern-Ryan tendency, from the Los Angeles local of the American SWP. Such contributions presented a more coherent analysis of the social transformation process in Eastern Europe and China (similar to our current understanding) than was presented by Pablo and Mandel (for whom a gradual transformation had occurred through “structural assimilation” to the USSR). The mentioned groups denounced the liquidationist course contained in the re-evaluation of the role of Stalinism and in the proposal of “deep entry” of Trotskyists into the Social Democratic and Stalinist parties. Because we believe that such contributions are a central part of revolutionary continuity, we have made a systematic effort to translate and make them available in our Historical Archive, to be used in the education of our members and contacts.

The course taken by the International’s leadership in the second half of the 1940s and early 1950s paved the way for the adaptation of the F.I. to the treacherous position of the Bolivian section (POR) in the Bolivian revolution of 1952-53. The POR was oriented towards a utopian, class collaborationist government with the left wing of the nationalist party MNR, with whom they believed it was possible to build a “workers and peasants government” instead of a position of class independence and the establishment of the dictatorship of the proletariat. They also adjusted their demands and program to the limits accepted by the left-wing of the MNR. The failure of the Bolivian revolution to advance, in which the POR could have played a central role, marked the adaptation of the Fourth International to an inconsistent and vacillating (centrist) policy. Few criticized the path adopted by the POR, which was fully endorsed by the international leadership. The documents of the Vern-Ryan tendency are an important exception and a reference for this issue.

In face of attempted internal manipulation by the European leadership to get rid of the historical leadership of the American section, the SWP launched, albeit very belatedly, a struggle against “Pabloism” in 1953. It identified in the figure of the main European leader, the Greek Michel Raptis (Pablo), the cause of the degeneration of the Fourth International. The American SWP broke from the Fourth International and organized the “International Committee” with some important sections. Despite very correct criticisms, with which we agree, this reaction was not only long overdue, but inconsistent. The International Committee did not organize itself as an opposing pole dedicated to re-building the Marxist movement and reviewing the course of the International Secretariat of the Fourth International, but was mainly a formal reunion of all those who wanted to stay outside the F.I. and still associate themselves with the legacy of Trotskyism, not always for good reasons. The groups involved in the International Committee, despite rejecting the liquidationist adaptation of the F.I.’s International Secretariat, did not review the theoretical confusion and the positions developed in the 1940s and early 1950s to explain the transformation of Eastern Europe, Yugoslavia and China, which were the background to the subsequent capitulation – and which were based on an incorrect understanding of Stalinism. The 1953 split meant the end of the Fourth International as a coherent political organization. We value the struggle of the International Committee against liquidation, despite its many limitations and contradictions.

In 1963, as the result of the absence of a serious balance sheet of events, and also of the stagnation of the self-proclaimed “orthodox” and “anti-Pabloist” groups over the years, there was a partial reunification of the movement, which originated the so-called “United Secretariat of the Fourth International”. It maintained the key perspectives developed by Pablo and Mandel in the previous period, which had been partially embraced by the American SWP and other elements of the International Committee, such as the group of Nahuel Moreno in Latin America, in the face of the impact of the Cuban Revolution.

For us, the “revolutionary continuity” of Trotskyism is very fragile, and is not related to a single tendency that was able to maintain and develop the revolutionary program throughout the movement’s years of crisis. Instead, we see revolutionary continuity as the sum of contributions made at different times, by different groups, which have contributed to maintaining, developing and passing on the ideas and practices of Trotskyism. These contributions are for us a fundamental starting point for the reconstruction of the revolutionary Marxist movement.

Throughout the second half of the 20th century, the “Trotskyist movement” became increasingly involved in splits; many caused by relevant political events, but usually also involving bureaucratic practices, as well as political confusion. A culture of marginalization in relation to the proletariat started to develop, which was also reinforced by the small size of the organizations. Today one can no longer speak of Trotskyism as a movement with a coherent political view. There are several tendencies that may eventually have agreements, but that do not have the same theoretical or political principles and sometimes produce diametrically opposed conclusions and actions. As shown by several events in the second half of the 20th century and the beginning of the 21st century, some “Trotskyist” currents leave little to offer when compared to reformist Social Democracy or Stalinist class-collaborationism in their perspectives, except that they are numerically insignificant. In other cases, they shamelessly capitulate to pro-imperialist movements.

The Spartacist League/US (SL), despite its limitations and imperfections, was a positive exception to the complete lack of principles of the rest of the “Trotskyist” currents in the 1960s and 1970s, being yet another link of revolutionary continuity that we claim. Unlike RCP, PCI (which later became the “Lambertist” group) and the Vern-Ryan tendency, the SL managed to develop as a revolutionary organization for some years, inserting itself in the working class and participating in some important struggles. It also managed to break national isolation and launch the embryo of a new revolutionary international organization, with presence in some countries in Europe, Latin America and Oceania. However, due to the accumulated pressure of isolation and the defeats of the working class, it also degenerated, becoming a bureaucratic sect with erratic positions, starting in the 1980s. As this degeneration deepened over the 1990s and 2000s, it is now a grotesque caricature of what it was in the past. Still, we regard their contributions from the 1960s and 70s as fundamental, which is why we also make a systematic effort to translate and publish materials from that time in our Historical Archive.

Similarly, we claim the effort made by the cadres who broke with this organization in the 1980s to rebuild their legacy, which culminated in the International Bolshevik Tendency (IBT). The IBT, however, never managed to reach the same level of solidity and insertion in the working class as the SL, due in part to arising in a period of much deeper defeats. Despite important analyzes, the IBT was never able to build any kind of lasting political work in the proletariat or carry out a significant regroupment of Marxists, which culminated in a gradual loss of members, its transformation into a bureaucratic sect with no presence in class struggle, and a repetition of many of the mistakes of the SL. More recently, what was left of IBT split into three tiny competing organizations.

An international proletarian Marxist nucleus (the embryo of a new revolutionary proletarian International) can only be forged around fusions with other groups that are moving towards the same goal, and merging with factions of the workers’ movement in periods of advancing struggles, having clarity at every moment of its objectives. Lessons from previous generations will be important, but such a nucleus will also have much to discover on its own in a new historical moment. We want to intervene to change history: to participate in a regroupment that brings us closer to binding the vanguard of the working class with the consistent Marxist positions, actions and strategy, which are so necessary in our time. This is the most important step in preparing for the socialist revolution. We must not shy away from daring to seek to bring closer and fuse with other currents around the ideas presented here, just as we must not hide them in order to achieve a “unity” that would be false and unstable.

Marxism is not a dogma, but a guide to action! The future presents enormous opportunities for the development of a political current that knows its place – with the working class – and how to intervene as part of it. The future of humanity without a socialist perspective is bleak. The working class cannot achieve socialism without socialist revolution and transition, tasks for which its vanguard needs to be confident, conscious and selfless. Forging this tradition, this culture of revolutionary Marxist theory and militancy among the working class, is our goal.

Chapter 10 – Permanent Revolution

The theory of the Permanent Revolution was formulated in the early 20th century to describe the dynamics and class character of the upcoming Russian Revolution. Then, it was generalized in the 1930s to the capitalist periphery (the non-industrialized or belatedly industrialized countries). It remains crucial to our understanding of the relationship between classes and nations in the global capitalist system and of the transition to socialism on an international level.

Due to the weakness and dependence of the bourgeoisie in peripheral countries in relation to imperialist capitals, the presence of pre-capitalist or feudal landlordism, and their fear of mobilizing an already numerous proletariat with access to socialist ideas, democratic-bourgeois revolutions would not be possible in these nations as they had been in countries of early modernization such as France, England and the US. The conclusion of the theory for these peripheral nations of the imperialist order was that they will no longer be able to rely on independent democratic development. Since they are surrounded by and immersed in imperialist pressure, independence in these conditions tends to be semi-fictitious as long as a dependent local bourgeoisie remains in power. “The complete and genuine solution of their tasks of achieving democracy and national emancipation is conceivable only through the dictatorship of the proletariat as the leader of the subjugated nation, above all of its peasant masses.” (Trotsky). The proletariat should therefore carry out these tasks at the same time that it begins the tasks of socialist transition.

This theory is out of date only as to the weight of specific democratic and national liberation tasks that the proletariat must carry out once it becomes the ruling class. To eliminate feudal or pre-capitalist property forms; to achieve formal independence by breaking the colonial apparatus; and to establish republican regimes overthrowing pre-capitalist monarchies were tasks for the global periphery in the early 20th century, but which today only subsist in specific cases. Nevertheless, there are still characteristics resulting from these nations’ belated capitalist development which demand a solution. The destruction of the agencies of imperialist pressure and interference in the country; rejection of the payment of debts and loans from the imperialist powers; democratization of the agrarian structure still controlled by the heirs of former feudal or slaveholding lords; building a republican democratic regime that is not often shaken by coups and pressure from the imperialist powers.

As before, the bourgeoisies of peripheral nations are unable to solve these tasks, due to their dependence on imperialist capital since their formation, and only the proletarian revolution can implement them decisively. This makes the class independence of the working class crucial to the realization of consistent anti-imperialist measures.

In a country where the revolution was victorious and the dictatorship of the proletariat was established, the theory of the Permanent Revolution states that in no way does this mean the complete triumph of socialism. Such a society will continue being made up of different classes, even if the bourgeoisie has been expropriated. There are still internal contradictions and external pressures from global capital. The workers’ state will not immediately begin vanishing (and concretely cannot do so). A whole historical period, which may be shorter or longer depending on the course of events, and which will certainly contain advances and setbacks, is still necessary. Class struggle continues in new conditions. The proletariat needs to reinforce its power by bringing ever wider layers of its class into political life and to the exercise of power. The revolutionary party continues to play a crucial role, which is why it must avoid losing its independence from the workers’ state itself.

In international prospects, the theory points to the impossibility of indefinite peaceful coexistence between a workers’ state and the surrounding imperialist world, in part due to the material scarcity of an isolated country, which cannot achieve socialist development alone, but only start this process. In the 1920s and 1930s, Stalinism repeatedly affirmed the possibility that a single country, Russia, could “by its own efforts build a new classless society, a complete socialist society”. But the existence of an isolated proletarian republic, even if at temporary peace with other nations, already presumes the existence of enormous economic pressure. A workers’ state cannot fail to trade with the capitalist world according to rules it does not choose. Isolation also forces it to divert a considerable portion of its resources to maintain a swollen military apparatus in response to imperialist menace. Such conditions hinder the construction of an increasingly participatory proletarian democracy and the process of the disappearance of the state. Thus, the socialist transition does not advance.

In his last writings, Lenin (who was then fighting a battle against the bureaucratization of the Soviet state) commented on the statement of a social-democrat who condemned the Russian Revolution for the fact that “Russia had not reached a level of development of the productive forces that makes socialism possible”. Lenin replied that this was an indisputable fact, but that it did not justify not taking the step of realizing the proletarian revolution, which could initiate the transitional process and assist in triggering the socialist revolution internationally.

The theory of Permanent Revolution resolves this issue by stating that: “The conquest of power by the proletariat does not complete the revolution, but only opens it. Socialist construction is conceivable only on the foundation of the class struggle, on a national and international scale… The socialist revolution begins on the national arena, unfolds on the international arena, and is completed on the world arena… Different countries will go through this process at different tempos. Backward countries may, under certain conditions, arrive at the dictatorship of the proletariat sooner than advanced countries, but they will come later than the latter to socialism.” (Trotsky).

Chapter 8 – Bourgeois Democracy and the Proletariat

Whether it has a democratic, semi-democratic, or dictatorial character, the apparatus of the bourgeois state remains “a committee for managing the common affairs of the whole bourgeoisie” (Marx) and the “historical expression of the unity of the ruling class” (Gramsci). It would be fatal for workers to believe that they can change their fundamental condition as an oppressed class by selecting one or two components of this apparatus through “open” elections – in which the capitalist class generally ensures they remain in their hands through electoral restrictions and campaign lies.

Elections are periods where the bourgeoisie uses political competition among its various factions for popular support, to strengthen the facade of representation that is the essence of its “democracy”. As the state seeks at all times to conceal its class character working-class parties can sometimes also compete, although there are generally restrictions of all kinds. The visibility of the electoral dispute can be used as an opportunity for Marxist propaganda: to reinforce the slogans of the proletariat, to publicize and defend their struggles, as an auxiliary instrument to prepare the class, denouncing the role of the bourgeois state and pointing out the need for a socialist alternative to capitalism. Marxists need not abdicate anything in their program, nor must they commit to anything contrary to their program to seek short term success in elections. Such a tactic, however, is of a secondary order, and is not a priority for a small Marxist organization.

In the case of larger organizations, independent participation with a revolutionary program is the only principled way of participating in bourgeois electoral systems. The party must seek to project the clearest possible expression of its program and methods to the masses, which would not be possible in blocks with other organizations. However, especially for a small tendency with no presence in national political life, such a form of participation is not viable. Is electoral support for parties that are not revolutionary possible in this case? Let us return to the basic question involved in electoral participation: propagandizing in service of the socialist perspective and the interests of the working class. The central objectives of the participation of Marxists in elections are to publicize their program and their methods, and also to unmask the attempts of the bourgeoisie to influence the proletariat. Support for other working class partiescan be provided critically by revolutionaries, as long as they are running independently of the capitalist class, with a program that clearly defends the interests of workers against the bosses and their parties (never in coalition or with the desire of a coalition with them). Critical support is given by also presenting a systematic exposure of the disagreements and limitations of such campaigns.

We believe that any electoral support for capitalist parties, politicians or electoral blocs is a betrayal of class independence. This applies to liberal bourgeois electoral projects disguised as “progressive”. It is also the case with bourgeois campaigns that are also composed of workers’ parties or organizations (so-called “popular fronts”). In the latter case, the tactic of a Marxist tendency is to call for breaking the workers and their organizations from the coalition of collaboration with the capitalists, which necessarily excludes electoral support of any kind while the coalition persists.

A Constituent Assembly is not an institution capable of resolving the fundamental contradictions of society, or of giving real voice to workers. Some ostensible socialists present it as a “radically democratic” form of government or as a means by which the experience of popular participation would lead to socialist revolution. This is mistaken. The slogan for a Constituent Assembly can play a role as an auxiliary democratic demand in contexts of police or military dictatorships. But that is the limit of what it can be: a democratic demand. Class struggle will not advance through dispute within an institution like this, but through direct confrontation with the ruling class. For this reason, the Constituent Assembly cannot be the “crux of the matter” for revolutionaries, nor should they spread the false idea that it could be a solution to the needs of workers or the fundamental contradictions in capitalist society.

This does not mean that there is no difference between a democratic regime and a dictatorial regime with regard to the interests of the proletariat. Bourgeois democracy differs from bourgeois dictatorship in three fundamental aspects: freedom of organization, freedom of expression and formal participation of the broad masses in politics, especially with the choice of certain political positions in the state through elections. The importance of the first two is evident. Freedom of organization and expression means that the state apparatus tolerates a certain degree of public activity by proletarian organizations, especially that of trade unions and political parties.

Marxists must fight not only to defend workers’ democratic rights, but also to expand them, to free proletarian organizations from restrictions and to bring workers more and more into the political sphere, to get used to thinking politically and preparing ourselves for revolution. In countries where bourgeois dictatorships are in place, the struggle for the achievement of democratic rights for workers is a task that is especially on the agenda, but it should not be a barrier or replacement for agitation on the necessity of overcoming capitalism. On the contrary, the defense of democratic rights is subordinated to (and a means for) the defense of the socialist program. Democratic rights under capitalism must be seen as preparatory means for the real emancipation of the proletariat, and are not an end in themselves.

Bourgeois democracies are constantly in crisis as a symptom of the crises of capitalism. Countries at the periphery of the system feel even more strongly the effects of imperialist decay, being subject to ruptures in their fragile democracies by palace coups, military uprisings, manipulations in their electoral systems, and interventions of all kinds. Two frequent phenomena that undermine bourgeois democratic regimes are Fascist movements and coups d’état.

A Fascist party or a Fascist group is a reactionary organization that seeks to create its own paramilitary apparatus, mobilizing the petty bourgeoisie and sections of the proletariat (usually the unemployed) to attack the movements of the working class and oppressed, targeted as scapegoats for the crisis. This characteristic of mobilizing combat organizations is what differentiates them from the police and other reactionary organizations. Partly releasing the state apparatus from its responsibility as a repressive organ, the function of the Fascists for the bourgeoisie is to crush the resistance of the proletariat with their own hands, to pave the way for the liquidation of workers’ organizations.

A coup d’état is a deposition of one or more state organs by another, to resolve conflicts that could not be resolved by law or by the constitutionally provided procedure. Usually such coups happen when a faction of the ruling class sees the need to override others to impose tougher measures or conditions against the working class, whether in the sphere of social and democratic rights, in the arrangement of exploitation, in submissiveness to imperialists, etc. The level of violence and the depth of a coup d’état varies greatly with the context, from completely dismantling the configuration of the regime to simply imposing a temporary hiatus in the rules of bourgeois democracy. The establishment of police regimes is a means of attempting to destroy the organizations of the workers’ movement completely, crushing by force any resistance to the will of the victorious bourgeois faction. Often, coups d’état include legal facades to cover up their realization.

When there is resistance to Fascist insurrections or reactionary coups d’état, Marxists and workers have a side with such resistance, as the victory of the other side means the imposition of much harsher and more severe conditions for the working class. The defeat of these reactionary movements by the working class, in a context when proletariat is sufficiently organized, may put the bourgeois order as a whole in check. If the workers’ movement is not sufficiently prepared to harvest the fruits of the defeat of the reactionaries, it would at least prevent the immediate execution of overtly reactionary measures against the proletariat. In neither case should the position of the working class be dissolved in a bourgeois opposition camp, and Marxists must maintain their political independence and criticisms against all bourgeois factions.

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