Guerra civil síria, Estado Islâmico e a batalha por Kobane

Defender a Síria contra o imperialismo! Por um polo proletário independente!

Por Icaro Kaleb

[Este artigo foi originalmente escrito entre junho e julho de 2015. Devido a dificuldades internas, ele não pôde ser publicado e acabou se desatualizando parcialmente devido à rapidez dos acontecimentos na guerra civil síria. Não obstante, ele ainda responde a uma série de questões políticas que permanecem centrais nesse complexo conflito e também lida com as posições problemáticas de certas organizações que se reivindicam trotskistas. Por conta disso, decidimos publicá-lo em janeiro de 2016 acrescentando alguns comentários entre colchetes. Acréscimos e pequenas correções posteriores foram feitos em agosto de 2016.]

Durante os últimos anos, a população da Síria estava espremida entre uma ditadura de décadas, por um lado, e um conjunto de forças burguesas que queriam formar um novo regime nacional, por outro. Mais recentemente ela também tem se visto diante do avanço territorial dos fundamentalistas do Estado Islâmico e de ataques militares efetuados no país pelos Estados Unidos e outras potências imperialistas. Dedicamos esse texto a aprofundar algumas questões já abordadas há algum tempo, em nosso artigo de setembro 2012 (O Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários) e a atualizar certos aspectos, levando em conta esses novos acontecimentos.

Mais uma vez, frisamos aquilo que a maior parte da esquerda, inclusive muitos grupos que se reivindicam trotskistas, tem deixado de lado ao tratar da situação nesse país: a necessidade de uma linha de independência de classe diante das várias forças burguesas que no momento disputam o poder na região. Os marxistas não caem no mito de uma “revolução” supostamente incorporada e liderada pelos exércitos “rebeldes” que combatem o governo circunscritas aos interesses de frações da burguesia. Os rumos da guerra civil, embora não decididos mesmo depois de quase quatro anos, apontam a necessidade de formar um pólo da classe trabalhadora, oposto tanto ao governo Assad quanto às forças reacionárias que querem derrubá-lo para sua própria vantagem. De forma semelhante, o mesmo dilema da necessidade de independência de classe também está centralmente colocado na atual situação política em Kobane.

O caráter das principais forças em disputa na Síria

O regime Assad é um regime capitalista de partido único de duas décadas, que governa uma nação pobre confinada à ordem mundial do imperialismo. De todas as violações aos direitos humanos que aconteceram desde o começo da guerra, a maioria veio das mãos do governo sírio. Ele tem como aliado internacional a Rússia, com quem tem acordos comerciais relevantes. Da parte da classe trabalhadora, porém, tal regime ditatorial não merece nenhum apoio político.

Já a Coalizão Nacional Síria (CNS) tenta administrar as diferentes unidades do Exército Livre da Síria (ELS), que é um racha das forças armadas do país. Desde 2011, o ELS ganhou importantes posições no país, mas muitas foram perdidas de volta para Assad ou tomadas pelo Estado Islâmico. Em nosso artigo de 2012, nós explicamos a composição política e militar do CNS/ELS: as ligações dos seus componentes principais com os imperialistas e o seu programa burguês. Desde então, o ELS foi pouco a pouco dominado por forças de orientação religiosa (principalmente os líderes sunitas insatisfeitos com os aspectos seculares do regime alauita de Assad). O ELS também passou a operar junto com outras forças, tais quais a “Frente Islâmica” que se originou em 2014.

Apesar das ilusões na esquerda de que suas operações contra o regime Assad constituíam parte da “revolução síria”, deixamos claro naquele artigo que esses “rebeldes” não são uma força política que vá trazer conquistas para os trabalhadores sírios, menos ainda para as minorias nacionais do país.

Os Estados Unidos não conseguiram uma aliança duradoura com a maioria dos rebeldes, que não foram considerados “moderados” o suficiente. Washington tem tomado mais cuidado com seus aliados desde a desastrosa experiência na Líbia, onde muitas das armas enviadas acabaram caindo nas mãos de extremistas antiamericanos. Algumas unidades específicas do ELS, entretanto, receberam significativa ajuda militar dos Estados Unidos e, nesse momento, Obama já começou a treinar o seu próprio “grupo rebelde”, o qual deve ser denunciado enquanto uma tropa terrestre do imperialismo. Conforme noticiado:

Os EUA decidiram fornecer caminhões com metralhadora e rádios para chamar bombardeios aéreos a alguns rebeldes sírios moderados, disseram oficiais da Defesa. Mas não foi combinado o alcance de nenhum bombardeio – um reflexo das complexidades do campo de batalha na Síria.

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O plano chega enquanto os EUA preparam-se para começar a treinar rebeldes moderados, que estão travando uma luta em duas frentes contra os extremistas e o regime sírio. Oficiais da Defesa disseram que o treinamento vai começar em meados de março, na Jordânia, com um segundo acampamento previsto para abrir logo depois na Turquia.”

Os EUA darão a alguns rebeldes sírios a capacidade de chamar bombardeios, 17 de fevereiro de 2015.

Disponível em: http://tinyurl.com/kojxzx5

[Janeiro de 2016: a entrada da Rússia no conflito a partir de outubro 2015, incluindo tanto ataques aéreos como envio de grandes quantidades de tropas terrestres – inicialmente favorecendo Assad e posteriormente dando apoio logístico e militar também a certas forças rebeldes – complexificou o cenário. Atualmente, tudo aponta para a construção de um governo de transição que contemple os interesses econômicos tanto da Rússia quanto dos EUA, bastante distintos, é bom que se diga, dos interesses dos trabalhadores e do povo sírio.]

Outro competidor reacionário na guerra civil síria que tem ganhado força recentemente é o autodenominado Estado Islâmico da Síria e do Levante (EI). Ele era antes parte de uma mesma operação militar fundamentalista com o Al-Qaeda na Síria (Frente Al-Nusra). Foi a Frente Al-Nusra quem rompeu relações com EI no início de 2014, afirmando que eles eram “intransigentes demais”.

A essa altura, o EI já tinha tomado importantes posições no Iraque. Financiado largamente por barões do petróleo muçulmanos dos países que também estavam dando apoio aos rebeldes, os chamados “Amigos da Síria” (Turquia, Catar e Arábia Saudita), o EI se beneficiou de suas ligações com a oposição síria para obter armas e recrutar combatentes. Chegou ao poder em importantes cidades iraquianas como ponta de lança de uma revolta sunita contra o governo xiita apoiado pelos Estados Unidos. A partir de então, o EI controlava um território maior do que o Al-Qaeda jamais foi capaz. Muitas das cidades sob seu poder tem uma grande produção petrolífera, que o EI exporta para financiar seu esforço expansionista. Ele está em guerra contra o governo iraquiano (que recebe ajuda de tropas americanas no terreno) com a intenção de construir um “Califado” sob seu rígido controle. Por volta da mesma época, o EI reforçou suas posições na Síria e tomou províncias no desértico leste do país, e toda a região de fronteira entre o Iraque e a Síria. Ele tem lutado ao mesmo tempo contra Assad e forças oposicionistas, especialmente unidades do ELS.

O EI parece ser a mais bem treinada e equipada das forças de oposição ao governo. Cerca de 8 milhões de pessoas vivem nas cidades que ele controla nos dois países e o grupo conseguiu estabelecer um tipo de “economia de guerra” na qual a população fica dependente deles para obter comida e outras necessidades, o que até agora garantiu uma colaboração passiva com a sua ocupação. Eles tem perseguido severamente minorias não-muçulmanas (e mesmo alguns grupos muçulmanos) e se gabam a respeito de escravizar e vender mulheres de outras religiões, assim como de massacrar grupos de aldeões não-muçulmanos. O EI controla cerca de um terço do território sírio, onde impuseram a Lei Islâmica / Sharia.

Consideramos o Estado Islâmico uma forma de reação fundamentalista que busca eliminar mesmo os direitos políticos, sociais e seculares mais básicos do povo. Se o EI for vitorioso em todo o território sírio, isso significaria a queda de muitas minorias étnicas e religiosas em uma condição de escravidão, ou sua simples execução. Um partido revolucionário de trabalhadores na Síria buscaria defender o povo oprimido e organizar as massas trabalhadoras das cidades e do campo contra esses bandidos cruéis. A sua derrota é essencial para os trabalhadores. Porém, nosso chamado para derrotar o EI não muda nossa denúncia e oposição à intervenção aérea conduzida pelos Estados Unidos.

Os imperialistas não apresentam uma alternativa de melhoria de vida para o povo sírio e já foram capazes de ações dezenas de vezes mais bárbaros que as do EI. O crescimento do EI é, em última instância, um subproduto da sua desastrosa ocupação do Iraque, apenas para dar um exemplo. Enquanto o governo e a grande mídia americana expõem as crueldades do Estado Islâmico, escondem os atos de terror cometidos pelos seus aliados na Síria, que também incluem muitas atrocidades (sem mencionar o alto número de vítimas e ferimentos provocados pela morte que cai do céu na forma de bombardeios).

Nós não temos nenhuma pena pelas derrotas que os imperialistas sofrerem no Iraque e na Síria. Não nos esquecemos dos crimes cometidos pelos imperialistas no Iraque (incluindo as mortes de cerca de 120.000 civis iraquianos) e consideramos sua expulsão do Oriente Médio, assim como a derrota de suas “tropas terrestres”, como uma prioridade. Mas apesar do fato de que o EI tem sido o alvo dos bombardeios imperialistas, a sua conquista de cidades iraquianas e sírias com objetivo de estabelecer regimes de terror não é nenhuma forma de “luta anti-imperialista” e sim uma ação reacionária.

As “boas intenções” de Obama em bombardear o EI para supostamente salvar minorias na Síria são mentirosas. A intervenção americana tem o propósito único de garantir seu poder sobre o país. Qualquer um que duvide das intenções dos EUA (e de outras grandes potências) na Síria deveria olhar para os “grandes experimentos de democracia” que se tornaram a Líbia e o Iraque. Os bombardeios americanos tem a intenção de ganhar tempo e conter o EI (ao mesmo tempo em que o usa para cansar o regime Assad) enquanto Washington organiza melhor as forças leais a si no território sírio.

[Janeiro de 2016: Atualmente, esse parágrafo parece ter se desatualizado diante da aparente decisão dos EUA, França e Grã-Bretanha de destruir o EI, pressionados pelos bombardeios russos em defesa de Assad e pelo alarme mundial com relação aos fundamentalistas. Porém, na altura em que esse texto foi escrito, tudo indicava que a estratégia dos EUA girava em torno de “administrar” a situação, deixando o EI enfraquecer Assad e buscando fortalecer as posições dos rebeldes mais “moderados”.]

Além de levar em conta as ameaças dos imperialistas de um lado e do Estado Islâmico de outro, não se pode perder de vista que uma revolução proletária na Síria só pode vencer por cima do cadáver morto da brutal ditadura de Assad. O ditador e seu partido impuseram a ordem capitalista sobre a classe trabalhadora por décadas, com os mais brutais métodos. Seria prioritário organizar autodefesas entre os trabalhadores, especialmente das minorias perseguidas contra os vários exércitos em disputa, garantindo assim um polo politicamente independente das forças reacionárias que lutam pelo poder.

[Agosto de 2016: Todas as grandes forças envolvidas são inimigas dos interesses dos trabalhadores, mas nós reconhecemos que não tem o mesmo calibre. A Síria está em um pântano de confrontos entrelaçados e combinações de forças em constante mudança, de forma que não é fácil tomar uma posição tática militar em cada momento específico. Os revolucionários que estão distantes do terreno tem ainda mais dificuldade em seguir todos os eventos. Seria contraprodutivo emitir uma posição tática geral para todos os diferentes cenários e disputas que ocorrem na guerra. Há, porém, alguns princípios gerais que os marxistas devem seguir. O mais importante é que nos opomos à intervenção dos imperialistas e suas ‘tropas terrestres’ como uma prioridade. Isso significa que iríamos, em princípio, tomar o mesmo lado militar com o regime Assad ou grupos rebeldes jihadistas em ocasiões em que eles se confrontassem com forças imperialistas. Em segundo lugar, nos opomos aos avanços do EI e buscaríamos defender a classe trabalhadora e as minorias religiosas e étnicas oprimidas por seu ataque. Em terceiro, nos opomos a ambos os lados na guerra entre o regime de Assad e os rebeldes que não estão subordinados às potências imperialistas.]

A esquerda sem independência de classe

Os grupos na esquerda que afirmam defender a vitória de uma inexistente “revolução síria” contra Assad usam a ausência de um processo como esse como fachada para apoiar os esforços do Exército Livre da Síria. O argumento principal é de que muitas das unidades que nele participam não são subordinadas à Coalizão Nacional Síria. Seriam, em vez disso, forças populares emergindo das ruas e dos protestos da Primavera Árabe.

Essa é a posição, por exemplo, do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU), cuja seção no Brasil é a corrente Insurgência, do PSOL. Em seu site internacional, foi publicada uma entrevista com um membro de um desses grupos aderentes do ELS e que se reivindicaria marxista. Quando foi perguntado sobre a cooperação com outras unidades do ELS, o combatente respondeu:

Existe cooperação e coordenação, mas de forma limitada. Por um lado por conta das diferentes visões e objetivos, ou disparidades entre posições devido à localização geográfica onde os camaradas estão lutando e a natureza das outras organizações. Por outro, essas organizações em geral não aceitam ninguém mais….”

Nossa falta de armas nos põe em uma situação de fraqueza”, 18 de janeiro de 2015.

Disponível em: http://tinyurl.com/nhjea3b

Não surpreende a dificuldade de coordenação com as outras unidades do ELS, já que muitas delas são lideradas por oficiais leais e subordinados ao CNS, e através deste aos seus patrões imperialistas. Isso para não mencionar aquelas unidades que mencionamos, que recebem treinamento e armas diretamente dos imperialistas. Isso sem esquecer os vários grupos islâmicos que também estão sob o teto do ELS.

O ELS é certamente um exército heterogêneo. Mas a pergunta que o site do SU não fez a esses combatentes, e que deveria ser o primeiro questionamento é: por que essa organização (que o SU considera “marxista revolucionária”) está trabalhando lado a lado com esses tipos? Por que eles, em vez disso, e já que afirmam representar a classe trabalhadora síria, não organizam uma brigada independente, oposta aos elementos que estão mancomunados com os imperialistas para vender o país caso consigam derrotar Assad?

De certa forma, o dilema desses combatentes é o mesmo dilema do SU e das demais correntes que apoiam os rebeldes contra Assad. Não querem defender uma posição proletária independente do CNS e do ELS e só veem possibilidade imediata de derrubar o regime junto com essas forças reacionárias. Por isso, abandonam qualquer pretensão de uma política marxista e passam a embelezar a natureza e o programa do ELS, ainda que criticando sua liderança.

Conclusão muito semelhante é compartilhada por outros grupos que dizem reivindicar o trotskismo, como aquela da morenista Unidade Internacional dos Trabalhadores, cuja seção brasileira é a corrente CST, do PSOL, com a qual polemizamos de forma mais extensa em artigo de outubro de 2012 (O Morenismo e a Posição da CST/UIT na Síria), ou como pela também morenista Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT – dirigida pelo PSTU brasileiro).

Apesar da aderência inevitável de elementos iludidos por uma ideologia pretensamente “democrática”, reafirmamos que o ELS é, como um todo, controlado por oficiais do CNS e outras forças burguesas. Não há nada para ser ganho para a classe trabalhadora ao ajudar esse exército. A não ser que o SU e outros grupos, como a UIT ou a LIT, acreditem em algum tipo de “dinâmica” mágica que vá colocar a classe trabalhadora no poder ou numa posição melhor no instante em que Assad cair pelas mãos dos rebeldes ou do imperialismo. Já vimos esse filme na Líbia, na Ucrânia e em muitas outras ocasiões em que tais grupos apoiaram o “movimento de massas” com uma liderança reacionária.

A questão curda e a batalha por Kobane

No cenário já complexo que é a guerra civil na Síria, as coisas ficam ainda mais densas ao levar em conta o elemento curdo. O Curdistão é a maior nação sem Estado no mundo. Estamos falando de cerca de 30 milhões de pessoas divididas pelo território da Turquia, Irã, Iraque, Armênia e uma pequena região no norte da Síria (Rojava). Tal ordem de coisas é um legado da prática de “dividir para dominar” do imperialismo britânico após a queda do Império Otomano.

Os marxistas defendem os direitos nacionais dos curdos, incluindo o direito à autodeterminação, ao uso do idioma em todas as esferas da vida e contra todas as formas de segregação. Mas isso não significa que consideramos a separação territorial das regiões curdas como uma “solução” para os problemas dos trabalhadores dessa nacionalidade. Tomaríamos o lado curdo em uma guerra pela independência ou por autonomia regional (incluindo o apoio militar) se esse for o desejo desse povo em qualquer momento.

Ao mesmo tempo, a separação nacional é, para os marxistas, um interesse subordinado à luta proletária. Há questões políticas de maior prioridade, como a independência de classe dos trabalhadores e a defesa das nações oprimidas contra os ataques imperialistas. Eis um exemplo ilustrativo. Em 2003, quando os EUA atacaram o Iraque, os líderes nacionalistas burgueses do Curdistão iraquiano apoiaram a invasão imperialista contra o regime de Saddam Hussein, em busca de promessas de maior autonomia regional.

Defendemos todo e qualquer ganho de autonomia para a população curda. Mas quando o Peshmerga (o exército dos curdos iraquianos) estava lutando sob comando do exército americano, não era uma força pela independência curda contra Bagdá, mas um braço do projeto imperialista de subjugar toda a região. Assim, nos oporíamos aos esforços dos capitalistas curdos para apoiar a invasão imperialista, ao mesmo tempo em que seguiríamos defendendo os direitos nacionais curdos.

Hoje, uma situação parecida ressurge no Iraque, com a coalizão liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico. Os principais partidos políticos curdos no território iraquiano, KPD (Partido Democrático Curdo) e PUK (União Patriótica do Curdistão), apesar de sua suposta rivalidade, usam sua posição à frente do governo regional no norte do Iraque para apoiar os imperialistas.

Mas enquanto no Curdistão iraquiano a cena é dominada pelos capachos imperialistas, na Síria a força política mais influente entre a população curda é atualmente o Partido da União Democrática (PYD), que é o associado sírio do antes maoista Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que opera na Turquia. Em 2012, as tropas leais a Assad se retiraram completamente das regiões curdas, o território conhecido como Rojava. Não está claro se devido a limitações militares ou como uma tentativa demagógica de ganhar apoio dos curdos, ou ambos. E desde então Rojava basicamente ficou sob controle do PYD. Através de sua organização militar, as Unidades de Proteção Popular (YPG), o PYD entrou em confrontos com ambos o regime Assad e a oposição, em diferentes ocasiões. Mas desde que o avanço do Estado Islâmico no norte começou, o YPG tem entrado consistentemente em choque com ele.

As investidas do EI no território sírio colocaram-no em conflito com os curdos em julho de 2014 em Kobane (um dos três cantões sob o governo do PYD próximos da fronteira com a Turquia). Isso chamou atenção mundial e a resistência curda ganhou vasta simpatia, ficando conhecidos como os “revolucionários que enfrentam o Estado Islâmico”. O EI finalmente foi derrotado na região no começo de 2015 através de uma combinação da luta incansável dos curdos (que estiveram sempre em inferioridade técnica) e bombardeios imperialistas. Kobane ficou sitiada por meses, durante os quais muitos grupos na esquerda (especialmente alguns anarquistas) falavam de um caráter revolucionário da resistência curda.

O PYD é um partido fundado em 2003 por ativistas simpatizantes do PKK na Síria. Ele era considerado pelo governo sírio como um fator de instabilidade devido a seu apoio popular e por operações clandestinas nas regiões curdas. Sua principal fonte de orientação ideológica é o PKK, que foi criado em 1978 como um grupo maoista dedicado à resistência armada contra a opressão da população curda na Turquia e que tem uma longa história de resistência contra o governo.

Mas, aparentemente, o PKK não é mais um aderente do maoismo, com suas práticas stalinistas de perseguição a oposicionistas internos e um programa de “guerra popular” cambaleando entre um programa democrático burguês de “Nova Democracia” e a perspectiva de reproduzir um regime burocrático de economia estatizada, como a China de Mao. De acordo com muitos relatos, desde a prisão de Abdullah Ocalan (seu líder histórico) em 1999, o PKK tem passado por uma transformação programática rumo ao que é descrito pelo próprio Ocalan como “Confederalismo Democrático”. Esse é um ponto de vista inspirado por autores libertários e que busca a construção de “autogovernos populares” sem Estado, em cada localidade.

O PKK ainda é considerado pela OTAN e pelo governo turco como uma “organização terrorista” e os marxistas por todo o mundo tem o dever imperativo de defender o grupo contra todos os ataques vindo do brutal regime de Erdogan. Com exceção de alguns breves períodos de trégua (o último dos quais vem desde 2013), o PKK tem continuamente lutado contra o regime turco por autonomia para as regiões curdas. Mas embora seja difícil dizer quão consolidado é esse giro (é preciso lembrar que o PKK segue uma organização clandestina), ele parece ter mudado definitivamente a feição do grupo.

Para os trotskistas, os trabalhadores e camponeses precisam construir um poder baseado em suas próprias forças para esmagar a dominação militar, política e econômica da burguesia e impedir suas tentativas de retornar ao poder após uma insurreição vitoriosa. Esse autêntico “governo de trabalhadores” deve abranger todo o território e se basear em representantes eleitos democraticamente pelos proletários e camponeses (e revogáveis pelas assembleias que os elegeram). Essa é a fórmula capaz de equilibrar a natureza local da gestão democrática direta com os interesses de grande escala da classe trabalhadora em todas as áreas.

Por último, mas não menos importante, esse governo deve dar apoio internacionalista e suporte material e político aos proletários dos outros países nas lutas para derrotar as “suas” burguesias. O socialismo não pode ser alcançado em bases nacionais e, em última instância, nenhum governo de trabalhadores pode sobreviver isolado em um mundo dominado pelo imperialismo. O programa político do PKK/PYD parece passar por cima da necessidade de construir essa “ditadura proletária” baseada em uma economia coletivizada e no poderio militar centralizado dos trabalhadores.

Como foi mencionado, o PYD tem o controle militar da região de Rojava. Ele adotou uma “Carta do Contrato Social de Rojava” no início de 2014 e esse documento constitucional não faz nenhuma menção ao socialismo, controle coletivo dos meios de produção ou democracia operária. Trata-se de uma combinação confusa de participação comunitária e manutenção da propriedade privada. O artigo 41 assegura que “Todos tem o direito de possuir propriedades e a posse pessoal é garantida”, enquanto o artigo 42 diz que o sistema econômico busca “garantir a economia participativa enquanto promove a competição de acordo com o princípio da gestão democrática ‘A cada um de acordo com seu trabalho’.”

[Janeiro de 2016: Com a derrota do EI, o PYD se estabeleceu em uma região onde todos os partidos e governos burgueses haviam sido derrotados ou se retirado. Ele não é um partido burguês, mas um grupo originado na mobilização de trabalhadores e camponeses da região. As condições são as mais propícias para o estabelecimento de um governo proletário, com controle democrático dos trabalhadores e camponeses sobre os meios de produção, a política e o exército. No entanto, vemos que o PYD não tem clareza sobre a natureza do regime que ele quer construir. Embora tenha um discurso democrático, a manutenção da propriedade capitalista coloca limites claros de desigualdade e de democracia na sociedade. Diante do que aconteceu até o momento, parece que o governo do PYD não romperá com a burguesia de forma definitiva. Os lutadores da região devem lutar por uma direção revolucionária e combater as vacilações da atual.]

Durante e após a batalha contra o Estado Islâmico em Kobane, o PYD também propagou perigosas ilusões nas unidades Peshmerga do governo regional curdo no Iraque (das quais recebeu armas) e na intervenção aérea dos EUA. Eles soltaram uma declaração pública “agradecendo” a ambos por sua luta contra o EI, durante a qual o PYD deu aos EUA aconselhamento militar tático (onde realizar os bombardeios). Um líder do PYD, Saleh Muslim, expressou essa postura em várias declarações à imprensa:

De acordo com Muslim, a coalizão internacional ‘salvou as vidas de muitos civis’ na sua guerra contra o EI.… Ele também agradeceu à coalizão internacional liderada pelos EUA por apoiar os curdos em sua dificuldade e por ajudar as forças do YPG a resistirem ao grupo radical EI. ‘Tais operações reforçam a relação entre os curdos e os Estados que defendem a democracia e a paz’, concluiu Muslim.”

Curdos sírios instam coalizão liderada pelos EUA a intensificar os ataques contra o EI em Kobane”, 13 de outubro de 2014.

Disponível em: http://tinyurl.com/pkzaufb

Apesar disso, acreditamos que os marxistas deveriam defender Kobane contra o avanço dos reacionários fundamentalistas do EI. O que os trabalhadores e militantes com intenções revolucionárias em Rojava precisam urgentemente é de uma orientação política que seus líderes não tem a oferecer: a construção de um poder direto dos trabalhadores. Mais importante, é preciso garantir que não se desenvolvam expectativas ou ilusões no caráter dos governos burgueses do Curdistão iraquiano ou nos bombardeios americanos.

Os EUA tinham a intenção de conter o avanço do EI em Kobane (na fronteira com a Turquia) para os seus próprios propósitos reacionários, e não “ajudar” o povo curdo. Tampouco o governo americano está entre os defensores da “democracia e paz” no mundo. Não esqueçamos que Washington é um grande aliado do regime turco de Erdogan, que durante todo o tempo fez de tudo para impedir que o PYD recebesse ajuda das bases do PKK na Turquia. Não condenamos o PYD por ter conseguido armas de qualquer fonte que as estivesse oferecendo (desde que sem imposição de condições). E ele certamente tinha o direito de se beneficiar taticamente do fato de que o EI estava sendo alvo dos imperialistas, desde que tivesse clareza sobre a natureza dos bombardeios.

[Agosto de 2016: Desde janeiro de 2016, quando esse artigo foi publicado, esse curso do PYD se aprofundou. No começo do ano, ele cooperou com a força aérea dos EUA com o objetivo de se expandir para a região não-curda de Raqqa, um dos redutos do EI. Agora, está cooperando com Assad no cerco de Aleppo e com as forças imperialistas em Manbiji, cidades que estão sendo completamente destruídas, com alto número de perdas civis. Além disso, com o objetivo de empurrar o EI para longe de Rojava, o PYD uniu forças com vários outros partidos e organizações para formar as “Forças Democráticas Sírias”, uma coalizão militar na qual o YPG é a principal unidade, assim como um “Conselho Democrático Sírio”, uma entidade que diz lutar por uma “Síria federada, democrática e secular” – claramente uma posição de colaboração de classes. Se não fosse pela falta de confiança dos imperialistas no PYD, a FDS/CDS seria provavelmente um aliado bastante apropriado para eles no território sírio.]

O sectarismo de parte da esquerda em Kobane

Alguns grupos na esquerda se basearam nas posições oportunistas da liderança do PYD para justificar tomar o lado do Estado Islâmico (!!!) em Kobane. Esse é o caso da seita degenerada (mal) disfarçada de organização trotskista que é a Liga Espartaquista dos EUA. Em uma edição do seu jornal, eles expuseram suas razões:

Forças do governo iraquiano e peshmerga curdos no Iraque estão novamente conduzindo operações militares conjuntas com os EUA, como fizeram por anos sob a ocupação. Mais recentemente, nacionalistas curdos sírios também selaram uma aliança traiçoeira com os EUA na batalha por Kobane no norte da Síria, agindo como auxiliares de bombardeios dos imperialistas e coordenando movimentos militares como um todo. O fato de que todas essas forças são ‘tropas terrestres’ para a intervenção imperialista significa que os marxistas revolucionários [sic] tem seu lado militar com o EI quando ele atacar os imperialistas e seus agentes, incluindo os nacionalistas curdos sírios, o peshmerga, o governo de Bagdá e suas milícias xiitas.”

Abaixo a guerra dos EUA contra o EI!, 31 de outubro de 2014.

Disponível em: http://www.icl-fi.org/english/wv/1055/isis.html

Em sua investida para conquistar Kobane, o Estado Islâmico não estava lutando contra um reduto imperialista, já que não havia quaisquer tropas dos EUA no terreno. O YPG era a única força combatendo os fundamentalistas com armas nas mãos em Kobane e, apesar das posições vacilantes de sua direção, ele não pode ser seriamente considerado uma “tropa terrestre” dos imperialistas. O YPG resistiu ao cerco do EI em Kobane por muitos meses mesmo antes de os imperialistas se envolverem.

Os revolucionários devem criticar as ilusões propagadas por Muslim e pelo seu “agradecimento” cheio de ilusões à coalizão internacional. Mas o que está em questão para determinar que lado tomar em Kobane é se essas posições ou a colaboração militar tática com os imperialistas tornam o PYD uma força subordinada aos EUA em seus esforços para subjugar a Síria.

Acreditamos que o exército americano se aproveitou do conflito em Kobane para bombardear o EI, mas não tinha a pretensão de usar o PYD, que ele ainda considera uma organização terrorista, como uma alavanca para controlar o norte da Síria. Afinal, terminada a batalha, os EUA não foram capazes de ter qualquer controle real sobre Rojava. O PYD, por sua vez, estava se beneficiando dos bombardeios dos EUA, mas não está integrado e subordinado aos esforços militares dos imperialistas na região.

Portanto, a batalha por Kobane não consistiu em agentes dos EUA lutando contra o Estado Islâmico (como quer a Liga Espartaquista), mas sim uma força de resistência curda coordenada (mas não subordinada) com bombardeios americanos, lutando contra os reacionários fundamentalistas. Em tal luta, os revolucionários tinham um lado – com o PYD/YPG contra o EI, enquanto ao mesmo tempo diziam aos trabalhadores e militantes no Curdistão sírio a não confiar que os EUA ou o Peshmerga pudessem ser considerados, mesmo momentaneamente, seus “aliados”.

O que essa posição demonstra é que a Liga Espartaquista perdeu completamente seu senso de proporção (se é que tinha algum). A vitória do YPG em Rojava não é a mesma coisa que a vitória dos rebeldes na Líbia em 2011. Não se tratou de uma queda de governo orquestrada pelos imperialistas para colocar um fantoche em seu lugar. O resultado foi a manutenção no poder de um partido curdo com bases populares que havia subido ao poder como fruto da própria dinâmica da guerra civil. A resistência vitoriosa contra o EI foi um contraponto importante para evitar o avanço da reação fundamentalista.

[Agosto de 2016: Para reforçar essa declaração, na recente terceira rodada de reuniões de paz patrocinadas pelos imperialistas em Genebra, nenhum representante do PYD-Rojava foi convidado, devido à falta de confiança dos Estados Unidos neles, o que levou os representantes do Conselho Democrático Sírio a recusar os convites que receberam.]

Por resistências proletárias em meio à guerra civil

Diante do elemento de sectarismo religioso presente nas guerras que se desenrolam no Iraque e na Síria (envolvendo a rivalidade sunita/xiita) e o derramamento de sangue de ambos os lados, existe espaço para o surgimento de uma resistência não-sectária da classe trabalhadora contra esses crimes. Se acompanhada do impulso revolucionário de expulsar os imperialistas do Oriente Médio, impedir a vitória dos reacionários fundamentalistas e defender os curdos e outras minorias étnicas, essa posição tem potencial para desenvolver-se rapidamente entre os trabalhadores que não veem nenhuma alternativa entre os competidores pelo poder.

Não existe na Síria nenhum partido de massas da classe trabalhadora (nem mesmo reformista) devido a décadas de opressão do regime de Assad sobre o país. A única federação sindical legalizada é inteiramente submetida à estrutura de Estado controlada pelo Partido Socialista Árabe Baath (o partido do regime). Uma posição de contraste com as que estão postas pela guerra iria imediatamente ganhar simpatia da classe trabalhadora, mesmo se inicialmente representada apenas por um grupo pequeno de quadros programaticamente sólidos e dedicados. Entretanto, embelezar qualquer das forças principais da disputa só pode levar a desastres.

Ações de solidariedade operária sem fronteiras são uma pedra de toque do trotskismo e seriam essenciais para preparar os trabalhadores e camponeses sírios, iraquianos, turcos e curdos contra “suas” respectivas classes dominantes e as maquinações ferozes dos imperialismos. A única forma de assegurar uma paz de longo prazo na região é através de revoluções socialistas vitoriosas que ponham fim às rivalidades reacionárias entre clãs capitalistas competidores e sua constante dependência de alianças traiçoeiras com os imperialistas.

Além disso, é preciso começar o quanto antes a construção de um partido revolucionário dos trabalhadores na Síria. Junto a um programa socialista completo de controle operário sobre as principais indústrias e revolução agrária no campo, uma organização trotskista na Síria também defenderia um conjunto de demandas democráticas contra o regime e seus adversários reacionários. Isso demonstraria o desejo sem compromissos dos revolucionários em construir uma democracia proletária, em oposição às falsas promessas “democráticas” dos imperialistas.

Declaração sobre Sam Trachtenberg

Informamos aos nossos leitores que rompemos relações com Sam Trachtenberg. Ele foi expulso do Reagrupamento Revolucionário (por voto unânime dos outros membros) por desrespeitar a democracia interna depois de, de forma autoritária, sorrateiramente mudar as senhas do web site e do e-mail da organização para impedir outros membros de usá-los, o que inclui postar nossos artigos.
 
Isso aconteceu em meio a uma disputa interna na qual Trachtenberg sordidamente tentou exercer controle sobre o restante da organização exigindo que não se publicassem artigos sem a SUA aprovação. Ele não estava conseguindo participar no processo de edição devido a uma difícil situação pessoal e de saúde. De acordo com ele, o Reagrupamento Revolucionário deveria, portanto, não publicar os artigos que já estavam escritos havia vários meses (mesmo que isso significasse tais artigos ficarem ultrapassados e oportunidades de intervenção fossem perdidas) porque ELE não podia participar da edição (processo no qual nós sempre buscamos democraticamente incluir todos os companheiros dentro de um cronograma razoável).
 
Depois de perceber que estava isolado em sua posição de que a sua contribuição pessoal era tão crítica que o grupo não poderia sobreviver sem ela, ele começou a lançar ataques contra os outros membros. Enquanto se recusava a realizar uma reunião na qual ficaria em minoria, Trachtenberg proferiu calúnias contra os membros do RR, incluindo de que o havíamos “torturado” – supostamente via e-mail, já que não houve contato pessoal e nem mesmo por telefone nesse período. É desnecessário dizer que isso é uma mentira (entre muitas que ele fabricou).
 
Queremos notificar o público de que o site “Regroupment.org”, o e-mail “Revolutionary_Regroupment@yahoo.com” e a caixa postal de Nova Iorque não mais representam ou falam em nome da nossa organização – somente de Sam Trachtenberg. Futuramente, escreveremos uma explicação e descrição elaborada do que aconteceu, assim como responderemos a quaisquer calúnias que Trachtenberg venha a levantar contra nossa organização.

Os vaivéns centristas da Fração Trotskista

Os vaivéns centristas da Fração Trotskista

Da FIT argentina ao #MRTnoPSOL 

Rodolfo Kaleb, novembro de 2015

Há cerca de dois anos, publicamos uma longa polêmica com a Fração Trotskista [1], organização internacional do PTS argentino e cuja seção no Brasil é o MRT (antiga LER-QI) [2]. Essa polêmica tratava da construção do partido revolucionário e do que, para nós, consiste na estratégia centrista da Fração Trotskista nesse terreno: apostar na aproximação e no amálgama com correntes oportunistas da “família do trotskismo”. Essa postura se revela nas suas publicações, ao longo dos anos, de recorrentes chamados de unidade endereçados a vários grupos revisionistas. Nessas publicações da FT, geralmente são ignoradas ou minimizadas as muitas vezes em que esses grupos renegaram a independência de classe e os princípios do marxismo.

Conforme discutimos a fundo em tal polêmica, a FIT (Frente de Esquerda e dos Trabalhadores) da Argentina tem sido o principal cenário para aplicação dessa política pelo PTS nos últimos anos. A FIT é uma coalizão eleitoral entre o PTS e duas outras organizações que reivindicam o trotskismo – o Partido Obrero (PO) e a Esquerda Socialista (IS – seção argentina da corrente morenista UIT). 

Reconhecemos que a FIT não é um bloco de colaboração de classes, se diferenciando, portanto de uma “frente popular” com partidos burgueses. Dessa forma, em casos específicos, o apoio eleitoral crítico à FIT seria válido. Por outro lado, ela também não é, diferentemente do que a FT afirma em certas ocasiões (e nega em outras), um mero bloco eleitoral com o propósito limitado de viabilizar candidaturas proletárias nas eleições burguesas. Porém, como demonstramos naquela polêmica, o PTS pretende da FIT um trampolim para a unidade política com as outras correntes, especialmente o Partido Obrero de Jorge Altamira. O PTS frequentemente pressiona os outros grupos para manter essa unidade para além das eleições, na forma de uma frente permanente. De forma emblemática, reiteradas vezes o PTS e o MRT afirmaram encarar a FIT como uma “frente revolucionária”, como um embrião de um partido revolucionário.

Desde que escrevemos nossa crítica, tivemos muitas conversas com militantes da Fração Trotskista  no Brasil (então organizados na LER-QI) sobre esse assunto. Uma resposta que comumente recebemos foi de que a intenção do PTS não era se aproximar dos grupos revisionistas, mas que a FIT era uma “frente única”, uma simples colaboração prática, com o objetivo de superar a legislação eleitoral restritiva da Argentina, e concorrer às eleições com uma chapa classista. Significativamente, essa posição já foi divulgada pela seção alemã da Fração Trotskista, conforme apontamos em nossa polêmica anterior:

Outra característica importante para a formação da FIT é a questão de frentes eleitorais como uma frente única temporária baseada em acordos parciais em uma situação concreta, em oposição a projetos de longo prazo, baseados em acordos mais profundos em termos de programa, estratégia e prática. A FIT não é de forma alguma um projeto que foi designado em termos de um alinhamento de longo prazo do PTS com o PO, mas sobre a necessidade concreta de uma frente única dos trabalhadores contra a repressão burguesa…”. [3]

Certamente que não haveria nada de errado com isso, não fossem as afirmações claras do próprio PTS de que a FIT não é isso. Recentemente, a FIT tem passado por uma dura divisão em relação à formação da chapa para as eleições presidenciais. Nesse contexto, aqui está uma resposta da liderança do PTS à afirmação de Altamira (PO), feita no fim do ano passado, de que a FIT era uma “frente única”:

A FIT é um bloco de agitação de três partidos que se reivindicam trotskistas que defendem um programa de reivindicações transitórias, a independência da classe e propõem um governo dos trabalhadores. Isso não é uma ‘frente única’, e sim um reagrupamento de formações de esquerda que se reivindicam revolucionárias que ainda não são partidos grandes e seu objetivo é agitar um programa revolucionário em comum nos processos eleitorais. O programa da FIT, mais que o de ‘frente única’, abre o caminho para o debate da necessidade de um partido revolucionário, proposta que temos feito em várias oportunidades e à qual os nossos aliados lamentavelmente tem se negado sistematicamente.” (nossa ênfase)

O Partido Obrero no Luna Park e o discurso de Jorge Altamira, 9 de novembro de 2014. Disponível em:

http://tinyurl.com/ofbu7tt


Essa declaração da liderança do PTS deixa explícito aquilo que dizíamos, e que alguns militantes da FT sempre negaram: que a atuação do PTS na FIT é buscar a unidade, uma aproximação política, com correntes reconhecidamente oportunistas.

Outra resposta (verbal) que recebemos à nossa polêmica foi o reconhecimento de que, sim, a Fração Trotskista faz convites para discussões de unidade a essas correntes oportunistas (o que fica evidente lendo a citação acima). Mas que isso nada mais seria que uma “tática” para incidir sobre a base desses grupos. Ou seja, o objetivo seria mostrar que o PTS não se recusa ao debate, que não é um grupo sectário. Isso implicaria que a FT não pretende, de fato, unidade com os grupos que corteja, mas que afirma isso somente como uma forma de disputar seus militantes.

Temos sérios problemas com essa “explicação”. Antes de tudo, porque ela é dissimulada. A “tática” da FT seria desonesta com a base das correntes oportunistas ao proclamar uma coisa (o desejo de aproximação ou discussão de unidade) tendo outro interesse por trás. Além do mais, se realmente fosse essa a intenção da Fração Trotskista, essa seria uma “tática” muito ruim para o propósito de convencer esses militantes. A FT faz muitas críticas acertadas às posições oportunistas do PO e dos morenistas da Esquerda Socialista. Porém, joga fora a sua consistência quando, volta e meia, considera que eles “defendem um programa de reivindicações transitórias, a independência da classe e propõem um governo dos trabalhadores” (como afirma que fazem na FIT).

Para ganhar a base de um grupo oportunista, é necessário demonstrar cabalmente os problemas incorrigíveis da sua direção. Afinal, todo militante dedicado permaneceria em sua organização (mesmo que nela visse problemas e erros) se considerasse que eles são solucionáveis. Deve-se explicar calmamente à base dessas correntes como a política de seus dirigentes conduz ou conduziria o proletariado a derrotas, e não fazer concessões ou chamados de unidade. Como disse Trotsky, “Se um livro de física contiver, ainda que fosse só duas linhas sobre Deus como a causa primeira, estaria no meu direito concluir que o autor é um obscurantista” [4]. De nada adiantam as críticas muitas vezes corretas que a Fração Trotskista faz a esses grupos oportunistas se ela afirma (em bem mais de duas linhas) que os três partidos da FIT (Partido Obrero e Esquerda Socialista, além do próprio PTS) defendem um “programa revolucionário em comum” e então demanda unidade política com os mesmos.


Quantas vezes esses grupos não cruzaram a independência de classe? Vem à mente as várias vezes em que o PO apoiou candidaturas burguesas nas eleições [5]. Ou quando a IS defendeu a vitória de uma “revolução” em unidade com a OTAN na Líbia em 2011 [6]. Em 2012, o PO levantou no contexto da Grécia a proposta de um “governo da esquerda” para assumir o Estado burguês [7]. E que dizer então dos morenistas, que viram uma “revolução vitoriosa” no Egito enquanto os militares subiam ao poder em 2013 [8]? A FT conhece muito bem todos esses exemplos, pois os criticou. Portanto, a sua afirmação de que esses partidos defendem a “independência de classe” e “propõem um governo dos trabalhadores”, é umacapitulação centrista. Centrista porque, não obstante criticar tais grupos em diferentes ocasiões, são quase que periódicos os chamados à construção de organizações “revolucionárias” junto com eles, seja no âmbito argentino, via PTS, seja internacional. Veja-se esse exemplo de chamado do PTS, de 2009:

Na Argentina, o PTS está chamando as correntes trotskistas que não adotaram a política de dissolver-se ou de aliar-se com setores da centro-esquerda (como o Partido Obrero e aquelas que, como a Esquerda Socialista e o MAS, nas últimas eleições nacionais formaram junto com o PTS o FITS) a abrir a discussão para avançar na construção de um partido comum marxista revolucionário, com centralismo democrático, que supõe a liberdade de tendências, e numa intervenção comum na luta de classes, que permita mediante a experiência e a discussão, superar a dispersão atual das forças que nos reivindicamos do marxismo revolucionário.”

Que partido para qual estratégia?, 23 de fevereiro de 2009. Disponível em:
http://tinyurl.com/nef63aa

Ou, ainda mais significativa, a campanha iniciada pela Fração Trotskista cerca dois anos atrás, em prol de um “Movimento por uma Internacional da Revolução Socialista” (a qual ela acabou abandonando silenciosamente após certo estardalhaço de alguns meses). Essa campanha partia de um manifesto onde se chamava ao “reagrupamento” uma série de grupos oportunistas sem qualquer consistência, baseando-se em posições bastante isoladas acerca de uma série de fenômenos importantes da luta de classes que então ocorriam mundo afora, em especial aqueles relacionados à “Primavera Árabe” e à luta de classes na Grécia:

Chamamos especialmente os companheiros do Novo Partido Anticapitalista (NPA) da França, tanto os que integram conosco a ‘Plataforma Z’ como aqueles que se agrupam na ‘Plataforma Y’ (…) e os companheiros do ex-Secretariado Unificado (SU) de outros países que enfrentam a orientação majoritária de generalizar este tipo de blocos com reformistas (…); os companheiros do Partido Obrero da Argentina e a Coordenação pela Refundação da Quarta Internacional (CRCI), com quem integramos na Argentina a Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT) e temos coincidido em diversos fatos da luta de classes nacional e internacional; os grupos da esquerda trotskista grega que combatem a adaptação ao Syriza; e a todas aquelas organizações da esquerda revolucionária ou da vanguarda operária e juvenil que busquem o caminho à revolução.”

Manifesto por um Movimento por uma Internacional da Revolução Socialista, agosto de 2013. Disponível em:http://tinyurl.com/qetl3tn

Em todos esses casos, a Fração Trotskista dizia querer construir um partido conjunto com as organizações revisionistas do trotskismo. Para nós, diferente das duas supostas explicações que mencionamos acima para esses chamados de aproximação e de unidade, há uma terceira que realmente faz sentido.

Alguns dirigentes da FT parecem compreender essas propostas como um tipo de “manobra”. Porém, essa manobra não pode ter a intenção de disputar a base das correntes oportunistas, pois o efeito só poderia ser enfraquecer suas críticas diante desse público, conforme explicamos. Essa manobra se destina aos próprios dirigentes dos grupos oportunistas, com o objetivo de atrair essas correntes a uma aproximação. Daí o seu formato mais comum ser uma carta ou carta aberta, com a intenção de pressionar os dirigentes a debater o assunto. Por sua vez, muitos militantes da Fração Trotskista ou ignoram a existência desses chamados ou são convencidos pela desculpa de que se trata de “táticas” para disputar a base dos centristas.

Os líderes da FT estão errados em achar que podem manobrar ou influenciar os dirigentes de grupos oportunistas a uma fusão onde seu programa tenha alguma chance de prevalecer. Via de regra, esses dirigentes são muito pouco ingênuos e bastante experientes nesse tipo de jogada. Além disso, fazer essa aposta implica também acreditar na capacidade desses dirigentes de efetivamente assumir o programa do marxismo revolucionário, ainda que sob algum tipo de indução ou pressão, o que é uma ilusão. Como apontamos em nossa polêmica de dois anos atrás, essa era precisamente a expectativa dos velhos pablistas com relação aos stalinistas e reformistas, com a diferença de que a FT quer fazer isso com grupos da “família trotskista”.

Hoje o PO argentino, ontem o PSTU brasileiro

Se hoje em dia o PTS faz elogios e propostas de unidade ao PO/IS, enaltecendo a FIT enquanto um bloco com um “programa revolucionário em comum”, quase dez anos atrás a FT preferia fazer isso com os morenistas do PSTU brasileiro. Daí a “carta aberta aos militantes do PSTU e da LIT”, que eles publicaram em 2006: 

Nossa corrente, assim como a LIT, vem corretamente criticando o giro à direita da maioria das correntes do trotskismo internacional, fenômeno que vocês chamam de ‘vendaval oportunista’. (…) Recentemente, o PO dá passos no mesmo caminho e chama a votar na Frente Popular de Evo Morales na Bolívia, e depois, em Romano Prodi na Itália. Consideramos que, assim como nós, os companheiros do PSTU e da LIT tiveram o mérito de não cometer nenhuma dessas capitulações citadas e são esses acordos políticos que nos levam a propor abrir uma discussão nacional e internacional.”

Carta aberta aos militantes do PSTU e da LIT, 5 de maio de 2006. Disponível em:
http://tinyurl.com/opzzca6

Isso só mostra que não se trata de um fenômeno novo ou isolado. Em 2014, os companheiros da FT aparentemente haviam “se esquecido” dessas posições oportunistas do PO e afirmaram que ele defendia a independência de classe e um governo de trabalhadores. Em 2006, por sua vez, a antiga LER-QI “se esquecia” de toda a história oportunista do morenismo, seu apoio também recorrente a frentes populares com a burguesia, incluindo o PT brasileiro, que o PSTU havia apoiado eleitoralmente apenas quatro anos antes [9]. A então LER-QI via “acordos políticos que nos levam a propor abrir uma discussão nacional e internacional” com os morenistas.

Certamente as intenções da FT foram frustradas com o giro à direita no próprio PSTU, que nos últimos anos apoiou uma série de quedas de governo hegemonizadas por partidos burgueses ou pelo próprio imperialismo como supostas “revoluções democráticas vitoriosas” (Líbia, Ucrânia, duas vezes no Egito). Mas podemos seriamente esperar que esses chamados de unidade não voltarão a se repetir diante de um realinhamento político? Os revolucionários precisam ser a “memória política” da vanguarda proletária para orientá-las diante das armadilhas reformistas e oportunistas. Mas nesse caso, a FT não lembrava (ou melhor, fingia não lembrar – o que é ainda pior) do que eles próprios escreveram.

Há algo de novo na criação do MRT?

A recente transformação da LER-QI em MRT indicou uma intenção em realizar um giro de massas, dando um salto qualitativo em sua situação organizativa, a qual ainda era em grande parte a de um grupo de propaganda. Isso implicou também a transformação do site da organização num portal de notícias mais amplo, o Esquerda Diário[10]

Em seu congresso (julho passado), o MRT deu uma nova forma a esse giro através de sua decisão de pedir o ingresso no PSOL. Depois dos últimos resultados eleitorais do PSOL, o MRT considerou-o como “um partido que pode expressar crescentemente parte importante das tendências de massas que se desenvolverão à esquerda da crise do PT” [11]. Ao pedir sua entrada à direção do partido, o MRT fez algumas críticas ao rumo que ela tem tomado, apontando como tem sido incapaz de tirar vantagem do enorme desgaste do PT com a classe trabalhadora e outros setores populares, e expressando em seguida o desejo de tornar-se uma tendência interna com liberdade programática. A direção do PSOL recusou a entrada do MRT até esse momento, apontando que ela só poderia dar-se por aprovação do congresso partidário em 2016, o que o MRT denunciou como antidemocrático. Isso fez com que lançasse uma campanha pelas redes sociais com o slogan #MRTnoPSOL.

Não há nenhuma questão de princípios que impeça a entrada (temporária) de organizações que se reivindicam revolucionárias em partidos reformistas mais amplos, como uma tendência de esquerda. Os trotskistas europeus e americanos, por exemplo, realizaram nos anos 1930 um movimento (que ficou conhecido como “entrismo”) de adesão organizativa aos partidos socialdemocratas de massas, que recentemente haviam ganho muitos setores jovens e radicalizados da classe trabalhadora. Somos contra a crítica ultraesquerdista que considera qualquer tática dessa natureza como uma “traição” imediata.

Porém, é inegável que há entradas oportunistas, assim como revolucionárias. O objetivo dos trotskistas com táticas de entrada é polarizar um setor ao redor do programa revolucionário para posteriormente construir um partido marxista independente. Nisso, como sempre, é preciso plena independência programática do oportunismo. Um exemplo pela negativa é a atuação de muitas correntes da ala de esquerda do próprio PSOL (algumas das quais se reivindicam trotskistas). Apesar de criticarem os passos mais abusivos da direção desse partido em questões de falta de democracia interna e posturas oportunistas de colaboração de classe (dentre as quais está, mais recentemente, de querer fazer uma “frente de esquerda” com o PT/PCdoB e outros partidos burgueses [12] [ver o ADENDO ao final deste artigo para os fatos mais recentes]), acabam se adaptando a uma convivência com tal direção.

As principais correntes que compõem o “bloco de esquerda” do PSOL chamaram a votar na candidata do partido, Luciana Genro, mesmo sabendo que ela havia recebido financiamento de campanha de empresas. Também fazem elogios e uma verdadeira tietagem com figuras parlamentares como Marcelo Freixo, cujas posições políticas passam longe de qualquer ideal socialista. Veja-se o “apoio crítico” que Freixo deu ao projeto das UPP e a propaganda eleitoral que fez para Dilma no segundo turno das eleições em 2014.

O que surpreende na decisão do MRT de entrar no PSOL é porque se dá num momento em que nenhum setor combativo da juventude ou da classe trabalhadora brasileira caminha em direção a esse partido. Os movimentos de “entrismo” originais foram motivados por uma grande leva de militantes radicais (assim como de jovens e interessantes grupos centristas) que adentravam a socialdemocracia. Nenhum movimento desse tipo existe no PSOL brasileiro nesse momento.

O crescimento eleitoral (pouco expressivo) do PSOL foi o principal argumento usado pelo MRT para sua decisão. Mas esse resultado não implicou, nem necessariamente o fará, nenhuma perspectiva de crescimento qualitativo do seu corpo militante (em número e em radicalidade política), que é o que interessa para construção do partido. As correntes que se reivindicam “trotskistas” no PSOL estão adaptadas à direção do partido, conforme ficou patente com o seu respeito à disciplina partidária mesmo depois que o último congresso foi ganho com base em delegados eleitos fraudulentamente pela corrente majoritária de Randolfe Rodrigues.

Impressiona também a mudança de tom do MRT com relação ao PSOL. Em dezembro de 2013, a então LER-QI afirmava com bastante certeza que, embora pudesse crescer eleitoralmente, o PSOL só poderia aprofundar o seu eleitoralismo, que era “incapaz de romper com a tradição petista”: 

O PSTU faliu como alternativa revolucionária, e o PSOL…. nunca se colocou essa perspectiva. Quando dizemos que faliram, não quer dizer que não podem até vir a crescer (coisa que não se deu qualitativamente pós junho), por exemplo, capitalizando eleitoralmente (nas eleições burguesas, mas também nos sindicatos) a mudança da consciência das massas pós junho. Mas isso se dará aprofundando os problemas que aqui apontamos, pois não poderão resistir às pressões de adaptação, como se expressou em junho, pois fazem parte de uma tradição arraigada. (…) E seguirá sendo assim, pois são incapazes de romper com a tradição petista, o que só poderia se dar fazendo uma ruptura com sua própria tradição, marcada pelo sindicalismo e eleitoralismo.”

O PSOL e o PSTU não passaram a prova de junho, 11 de dezembro de 2013. Disponível em:http://tinyurl.com/obadk2y

Agora, parece que é fundamental que o PSOL “concentre forças” a favor da classe trabalhadora, o que é apresentado com uma aposta válida, na qual os revolucionários deveriam colocar esforços:

Para que a luta dos trabalhadores seja consequente, é necessário que o PSOL, com seus militantes e parlamentares, concentre forças a favor das lutas e da organização da classe trabalhadora e da juventude, abrindo portas para as organizações revolucionárias que queiram fazer parte dessa perspectiva.”

Manifesto do MRT em campanha pelo #MRTnoPSOL, 6 de agosto de 2015. Disponível em: http://tinyurl.com/og75csl 

É claro que não há como saber de antemão como será (caso seja concretizada) a atuação da tendência do MRT no PSOL. Mas com base na sua estratégia centrista de buscar unidade com correntes oportunistas, imaginamos que não se daria no sentido de polarizar um setor do partido contra a direção (e de forma independente do atual “bloco de esquerda”). Ao contrário, podemos prever chamados de unidade a certas correntes revisionistas da “família trotskista” da esquerda do partido, semelhantes aos que a Fração Trotskista já faz regularmente do lado de fora. Inclusive, uma das correntes do “bloco de esquerda” do PSOL é a morenista CST (Corrente Socialista dos Trabalhadores), organização irmã da IS argentina à qual o PTS já endereça os seus chamados.

Apesar do seu novo nome, o MRT brasileiro é herdeiro dessa política, já que nunca fez uma crítica à mesma, demonstrando claro alinhamento com a linha centrista da direção internacional da FT. Assim como todos os centristas que oscilam entre uma política pretensamente revolucionária e posições abertamente oportunistas, também a FT realiza vaivéns na sua posição em relação aos grupos revisionistas do trotskismo. Ora crítica acertada, ora capitulação e desejo de unidade. Mas não se pode reconstruir a Quarta Internacional com “manobras” desse tipo. Somente uma crítica certeira e consistente ao oportunismo pode avançar para a reconstrução do partido mundial da revolução socialista.

ADENDO

Desde que a versão preliminar deste artigo ficou pronta, o PSOL formou a “Frente Povo sem Medo”, em conjunto com o MTST e setores governistas do PT e do PCdoB, organizados na CUT, na CTB, na UNE, e em outros agrupamentos menores. O objetivo dessa frente seria o de enfrentar as medidas de austeridade do governo e a ameaça de impeachment que a direita está lançando contra ele, mas blindando Dilma e o PT, ao focar as críticas somente em Levy (como se fossem coisas diferentes!). Em resposta a esse giro à direita por parte do PSOL, o MRT deixou de lado a postura mais “branda” que vinha adotando e lançou duras críticas ao partido [13]. Ademais, parece ter removido de sua agitação cotidiana a campanha #MRTnoPsol, que vinha priorizando em sua atuação pública. Não podemos prever de antemão se o MRT irá manter o pedido de entrada no PSOL ou se presenciaremos um novo zigezague na orientação política dessa organização, mas está clara a confusão que gera a sua orientação estratégica que aqui criticamos.

NOTAS

[1] Fração Trotskista e sua ruptura incompleta com o morenismo (maio de 2013). Disponível em: http://tinyurl.com/nkbz9bl

[2] Nós do Reagrupamento Revolucionário possuímos com as companheiras e companheiros do MRT outras diferenças estratégicas que nos separam. Desde 2013, algumas de nossas diferenças políticas se aprofundaram ou se mantiveram, sobretudo com relação à política nos processos de guerra civil e intervenção imperialista no Oriente Médio e Norte da África (caso da Líbia e da Síria), onde observamos um abandono do princípio de defesa das nações oprimidas e uma aproximação com o oportunismo morenista de apoiar setores desse processo independentemente de seu conteúdo de classe. Veja Os rebeldes na Líbia e na Síria e a posição revolucionária (janeiro de 2014), disponível em http://tinyurl.com/oubqhar . E também em questões nacionais, como quando a então LER-QI chamou “voto crítico” no PSTU “onde este partido não estivesse coligado com o PSOL” (nacionalmente). Isso sendo que o PSTU estava coligado com o PSOL nos principais estados do país, inclusive em São Paulo e, no Rio Grande do Sul, onde era parte de uma campanha que recebeu dinheiro de financiamento capitalista. Veja Os comunistas e as eleições de 2014(setembro de 2014), disponível em: http://tinyurl.com/oh34asr .

[3] A campanha eleitoral da FIT na Argentina, 27 de julho de 2011, disponível em inglês em: http://tinyurl.com/no6ebjg

[4] De um arranhão ao perigo de gangrena (janeiro de 1940). Disponível em: http://tinyurl.com/pwue93x

[5] Conforme nossa crítica em PCO, Partido Obrero e as frentes populares (fevereiro de 2013). Disponível em:http://tinyurl.com/n9r9zbg

[6] La revolución árabe y el final de Kadafi. 

Disponível em: http://tinyurl.com/p8twb53 Para nossa crítica à posição semelhante tomada pelo PSTU brasileiro, ver PSTU, Fração Trotskista e a defesa da Líbia contra o imperialismo (novembro de 2011), disponível em:http://tinyurl.com/od7f3e5

[7] La pulseada entre el FMI y Syriza. Disponível em: http://tinyurl.com/ngbjezc Para a crítica publicada pelo PTS argentino, ver Los revolucionarios y la cuestión del “gobierno de izquierda”, disponível em: http://tinyurl.com/oao8toq

[8] Egipto: la movilización revolucionaria derribó a Mursi! Disponível em: http://tinyurl.com/pac6u7n Para nossa crítica à posição semelhante tomada pelo PSTU brasileiro, ver O golpe militar no Egito e a posição escandalosa do PSTU/LIT (outubro de 2013), disponível em:http://tinyurl.com/o6vjpnh

[9] PSTU chama voto em Lula (outubro de 2002). Disponível em: http://www.pstu.org.br/node/3435 Para uma crítica nossa à prática do morenismo e do PSTU em apoiar frentes populares, ver PSTU “justifica” seu bloco com PSOL e PCdoB (agosto de 2012), disponível em:http://tinyurl.com/qbau88k

[10] O MRT está claramente experimentando neste giro. Pouco antes da mudança de nome, havia dado um tom muito mais superficial aos materiais publicados em seu jornal Palavra Operária – um clássico erro em tentar atingir as massas reduzindo o programa, contra o qual Trotsky advertira seus camaradas franceses em 1935 (em um texto que recomendamos fortemente aos membros do MRT e do qual citamos abaixo um trecho). Depois, extinguiram o jornal impresso para lançar o portal de notícias online Esquerda Diário, tendo apenas recentemente voltado com uma versão impressa do Palavra Operária, dessa vez com um tom mais parecido com o original, com matérias se diferenciando de grupos adversários e fazendo polêmicas.

Mas, muito frequentemente, a impaciência revolucionária (que facilmente se transforma em impaciência oportunista) leva à seguinte conclusão: as massas não vem até nós porque nossas ideias são complicadas demais e nossas palavras de ordem avançadas demais – ou seja, deve-se jogar fora alguns entulhos. Basicamente, isso significa: nossas palavras de ordem devem corresponder não à situação objetiva, não à relação de classes analisada pelo método marxista, mas a observações subjetivas (e extremamente superficiais e inadequadas) sobre o que as “massas” podem e não podem aceitar. Mas quais massas? A massa não é homogênea. Ela se desenvolve. Ela sente a pressão dos eventos. Ela aceitará amanhã o que não aceita hoje. Nossos quadros vão desbravar o caminho com crescente sucesso para nossas ideias e palavras de ordem, as quais vão se mostrar corretas porque são confirmadas pela marcha dos eventos e não por observações subjetivas e pessoais.” (Leon Trotsky, O que é um jornal de massas? Novembro de 1935, disponível emhttp://tinyurl.com/pqou98n)

[11] Congresso do MRT aprova proposta de entrada no PSOL, 20 de julho de 2015, disponível em: http://tinyurl.com/q5466nb .

[12] Negociação avança e frente de esquerda é batizada de “Grupo Brasil”, 27 de junho de 2015, disponível em:http://folha.uol.com.br/#noticia/567616

[13] Uma Frente pra deixar Dilma e o PT sem medo, de 13 de outubro de 2015, disponível em:http://www.esquerdadiario.com.br/Uma-frente-pra-deixar-Dilma-e-o-PT-sem-medo

FCT: um ótimo exemplo de como NÃO construir um partido

A Frente Comunista dos Trabalhadores: um ótimo exemplo de como NÃO se deve construir um partido

Pedro Abreu, setembro de 2015

Recentemente, diversas pequenas correntes pretensamente revolucionárias da esquerda brasileira se uniram, depois de formar um “Comitê Paritário”, numa organização chamada Frente Comunista dos Trabalhadores (FCT). São elas a Liga Comunista, o blog Espaço Marxista, a Tendência Revolucionária (corrente interna do PSOL), o Coletivo Socialistas Livres [*]e os nossos velhos conhecidos do Coletivo Lenin [1]. A base política dessa unidade é expressa por seus membros mais ou menos da seguinte forma:

1) No segundo turno das eleições presidenciais defendemos o voto em Dilma para derrotar Aécio e a direita golpista, manipulados pelo imperialismo, e fizemos a crítica ao voto nulo sectário da esquerda (PSTU, PCO, PSOL, PCB, etc.). O voto na candidatura de Dilma no segundo turno não implicou em qualquer acordo com o programa burguês desta candidatura, nem qualquer apaziguamento de nosso combate contra seu governo neoliberal. O giro à direita no governo Dilma, produto da pressão golpista, já havia sido previsto por nós ainda durante a campanha. Nossa defesa heterodoxa do voto em Dilma segue a nossa política geral de combate ao golpismo pró-imperialista e se inspira na política dos bolcheviques de “apoiar a burguesia contra o tzarismo (na segunda fase das eleições ou nos empates eleitorais, por exemplo) e sem interromper a luta ideológica e política mais intransigente contra o partido camponês revolucionário burguês, os ‘socialistas revolucionários’, que eram denunciados como democratas pequeno-burgueses que falsamente se apresentavam como socialistas.” (Lenin, “Nenhum Compromisso?” em Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo, 1920).

2) A atual articulação golpista no Brasil é movida diretamente pelo imperialismo, no Brasil, como na Venezuela e Argentina, a exemplo dos golpes já impostos em outros países da América Latina, como Honduras e Paraguai). As experiências recentes “bem-sucedidas” ou parciais na Líbia, Síria, Ucrânia, demonstram que o imperialismo não se furta de recorrer ao armamento de mercenários, bandos fascistas e massacres sangrentos para impor seus objetivos. Trata-se de um contra-ataque para recuperar o terreno perdido após a crise de 2008 para o bloco capitalista Eurásico, nucleado a partir da expansão comercial da China e da Rússia. Trata-se de uma nova guerra fria que atravessa todos os atuais conflitos de envergaduras mundiais, como a reorientação da tática dos EUA em relação a Cuba, tentando simultaneamente cooptar a burocracia dirigente do Estado operário com o fim do bloqueio e acelerar a restauração capitalista.

3) Mesmo que a primeiro momento o Golpe de Estado não se apresente na forma de um golpe militar, mas como um “golpe parlamentar”, um impeachment articulado entre o Legislativo e o Judiciário para estrangular uma Dilma cada vez mais isolada, qualquer que seja sua forma inicial, o resultado do processo será de maior repressão militar e policial contra a esquerda em geral e a população trabalhadora e oprimida nacional, para derrotar qualquer foco de resistência à recolonização imperialista do Brasil.

Socialistas Livres ingressam no CP, 22 de março de 2015.
http://lcligacomunista.blogspot.com.br/2015/03/socialistas-livres-ingressam-no-cp.html

A FCT adotou o jornal que até então era da Liga Comunista – a Folha do Trabalhador. No entanto, os grupos mantiveram suas páginas na internet e publicações próprias. Nós do Reagrupamento Revolucionário não concordamos nem com a plataforma de união dessa nova organização e tampouco com o método usado para impulsionar tal unidade. Ambos oferecem um exemplo de como não proceder na luta pela construção de um partido revolucionário.

Uma “unidade” enganosa

Não é preciso ser nenhum grande observador para perceber que a esquerda mundial, em especial a que se reivindica revolucionária, está atomizada e isolada, com diversas pequenas organizações envoltas em polêmicas intermináveis, muitas com desonestidade e burocratismo. Nós do RR também reconhecemos esse cenário (e a necessidade de sair dele). Mas de qual forma? Para contribuir com o ressurgimento de uma organização revolucionária internacional em meio a muitas variantes oportunistas e centristas, é necessário defender intransigentemente um programa revolucionário coerente. Estamos de acordo com a tradição política do marxismo revolucionário que luta para construir o partido através da hegemonia do programa revolucionário na vanguarda, disputando-a politicamente com o revisionismo. Não desejamos uma “unidade” que esconda diferenças programáticas importantes, acordos que isentam de críticas os “aliados” reais ou desejados. O isolamento não é nenhuma virtude, mas tampouco o é uma “unidade” artificial, que é só o que esses métodos podem produzir.

O método empregado na construção da FCT não é novo. Já existiram inúmeros casos de organizações que se agruparam em torno de programas de “menor denominador comum” e invariavelmente esses blocos terminaram em fracasso [2]. Existem diversas táticas para a construção do partido, mas elas não devem nunca envolver negociações de programa ou se basear em alguns poucos pontos de conjuntura, que nada revelam do método e das perspectivas dos distintos grupos. Todas as organizações que compõem a FCT apresentam uma série de divergências. Vamos mencionar apenas algumas mais aparentes e graves, que mostram que não foi feito qualquer esforço de chegar a um acordo político mais profundo sobre importantes questões políticas.

A Tendência Revolucionária/PSOL foi (com razão) contrária ao voto em Dilma Rousseff no segundo turno [3], posição oposta à dos demais grupos da FCT. Isso não configuraria um “voto nulo sectário da esquerda” (conforme afirmou o Coletivo Socialistas Livres)? O Coletivo Socialistas Livres, diferentemente dos outros grupos da FCT, não defende o centralismo democrático [4]. Portanto, sequer existe um acordo sobre qual deve ser o formato da “organização”. O blog Espaço Marxista fala dos “esforços (antigos!) dos EUA no sentido de fazer soçobrar a Revolução Bolivariana” [5], mas essa “revolução” não é reconhecida pela Folha do Trabalhador e rejeitada pelos companheiros do Coletivo Lenin. Por meio dessa posição, seria possível deduzir que a FCT aposta tanto em uma revolução socialista contra o Estado burguês quanto na possibilidade de uma estratégia “bolivariana”. O Coletivo Lenin afirma ser contra a reivindicação de “melhores condições” para os policiais militares e civis, mas o Coletivo Socialistas Livres defende melhorias para os agentes armados do Estado burguês [6].

Como uma organização construída com base em tantas diferenças pode intervir com coesão nas lutas de classes? Por enquanto, o método da FCT tem sido o de colocar as divergências para debaixo do tapete. A FCT se reivindica enquanto uma “organização com tendências”. Mas obviamente não se tratam de tendências temporárias surgidas de divergências conjunturais. As “tendências” da FCT são a continuidade dos seus grupos formadores, cada um com sua coleção de posições políticas distintas entre si. Que diferença existe entre uma “unidade” aonde cada grupo possui posições próprias e a não-existência da unidade? De fato, a FCT é muito mais um “guarda-chuva” de organizações que mantém sua existência separada (algumas na mesma cidade!) para parecer um bloco de maior tamanho. A sua “unidade” baseada em alguns pontos não é suficiente para sustentar uma organização séria. Um documento interno publicado recentemente por alguns companheiros do Coletivo Lenin confirma esse diagnóstico:

A FCT está hoje presente em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Ceará. É uma organização com tendências.
      Esperamos ter deixado claro que a FCT não é uma organização. A mera existência desse documento prova que não pode haver organização enquanto as divergências não forem devidamente discutidas. E também sobre como funcionaria tal organização visto que as divergências não serão sanadas na base do convencimento.
 “A FCT possui mais de seis meses de existência. Internacionalmente, a FCT é seção do Comitê de Ligação pela IV Internacional, tendência internacional composta também pelo Socialist Fight britânico e pela Tendência Militante Bolchevique argentina com que as tendências da FCT passam a estabelecer relações fraternais.
     Há algo de “longe demais” neste trecho. A FCT, além de organização, é agora uma seção nacional de um Comitê que nunca tivemos qualquer contato antes da FCT. Relação de seção é algo muito sério que não pode ser simplesmente estabelecido com uma frente. A frente está aberta para qualquer militante ou organização que tenha acordo com os seus princípios mínimos, mas não está aberta para se tornar seção de outra organização. Além disso, o Coletivo Lenin não passou a estabelecer relações fraternais com quaisquer dessas organizações. Essa discussão não foi levantada dentro do CL. Relações fraternais, apesar do nome legal, exigem de fato, relações fraternais e não somente reconhecimento público. Pouco conhecemos do programa e atuação de tais organizações. E do que conhecemos, temos sérias discordâncias.

O que é e para onde vai a FCT?, 14 de agosto de 2015.
http://coletivolenin.blogspot.com.br/2015/08/o-que-e-e-pra-onde-vai-frente-comunista_14.html

Nós, enquanto revolucionários, defendemos a fusão com outras organizações sempre sobre marcos de programa bem claros e amplamente discutidos. Organizações devem se fundir quando as diferenças existentes entre elas não justificam que continuem existindo separadamente, podendo ser resolvidas ao longo do trabalho político conjunto. Esse claramente não é o caso do que acontece com a FCT, aonde o desejo de se agrupar, impulsionado por marcos programáticos insuficientes (e errados, como explicaremos a seguir), se sobrepõe à defesa coerente do programa marxista, ou de qualquer programa coerente, por sinal.

Um “programa” enganoso

Agora que já explicamos nossas diferenças com o método de construção de partido empregado pela FCT, vamos criticar os pontos de unidade desse agrupamento. Começaremos pelo voto crítico em Dilma Rousseff no 2º turno das eleições presidenciais de 2014. A premissa desse apoio é que a vitória eleitoral do PT/PMDB viria a conter profundos ataques à classe trabalhadora e aos setores oprimidos da população em geral. Será que é isso que verificamos desde então? Em um momento em que presenciamos a mais brutal onda de ataques aos direitos trabalhistas desde o golpe de 1964, acompanhada de profundos cortes nas políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia) nem a própria FCT é capaz de sustentar tal absurdo. Porém, mais uma vez utilizam o argumento do “golpismo” para explicar tal realidade, negando assim o inteiro comprometimento do PT (que tem protagonizado muitos desses ataques) com a agenda burguesa: “o giro à direita no governo Dilma, produto da pressão golpista, já havia sido previsto por nós ainda durante a campanha”. Mesmo que esse argumento de “causa externa” para os ataques do PT aos trabalhadores fosse válido, a reeleição de Dilma alterou alguma coisa, seja em termos dos ataques em si ou do fortalecimento dos direitistas? Valeu a pena orientar o proletariado a escolher essa candidatura? É impossível que se dê resposta afirmativa a essas perguntas.

Os imperialistas podem hipoteticamente preferir a direita no poder, mas não tem tido nenhum atrito significativo com o governo petista nos últimos 12 anos, e este tem cumprido bem os planos da burguesia. O que a FCT nunca explica é como o seu voto em Dilma impediu o fortalecimento dos direitistas. Desde sua eleição, tudo que o governo fez lançar ataques reacionários contra a classe trabalhadora e levar adiante um “ajuste” draconiano. Nada faz para evitar o crescimento desses setores, ao contrário: se aliou a boa parte deles (a começar pelo PMDB) para garantir a sua “governabilidade”. É senso comum achar que o “voto no PT” é derrotar a direita, mas os marxistas, que veem o conteúdo de classe de ambos os projetos sabem que isso nada mais é que um mito.

Para tentar justificar essa capitulação induzida pelo medo do crescimento da direita, a FCT faz um falso uso da literatura marxista. Cita Lenin quando ele lembrava aos “esquerdistas” alemães que os bolcheviques já haviam feito alguns blocos de colaboração prática com partidos camponeses, partidos oportunistas da classe trabalhadora e mesmo apoiado o partido da burguesia liberal (Cadetes) contra o czarismo no segundo turno eleitoral (em 1905!).

Esquecem que nesse período os bolcheviques e a maioria dos socialdemocratas de esquerda não tinham clareza sobre o caráter da revolução russa e previam uma revolução democrático-burguesa. Lembramos também que o marxismo apoiou condicionalmente a burguesia nas revoluções democráticas contra a reação monárquica ou feudalno século XIXEssa é precisamente a diferença. Onde, no Brasil de 2014 (!), estava a reação feudal ou monárquica? Ambos o bloco PT/PMDB e a oposição PSDB/DEM eram burgueses. A Quarta Internacional foi construída em cima da clareza de que não há mais revoluções democrático-burguesas na época imperialista e que as tarefas históricas “não resolvidas” (ou resolvidas de forma incompleta) tem de ser solucionadas pela revolução proletária. Por isso mesmo, Trotsky sempre denunciou o “apoio tático” a frentes populares ou quaisquer blocos burgueses como uma forma de encobrir capitulações [7]Tudo isso é esquecido pela FCT.

Intimamente relacionada com essa posição está a estimativa de que se aproxima um golpe de Estado contra o governo do PT. É inegável que a oposição de direita tem se fortalecido há mais de um ano. A sordidez das suas táticas e sua infiltração no Poder Judiciário e no Parlamento (ajudadas pelos “aliados” direitistas do PT) tornam possível uma tática de impeachment. Nesse momento, porém, a oposição está dividida entre pressionar o governo pelas medidas de “ajuste” que a burguesia brasileira precisa, e o “plano B” de forçar a saída da presidente. É evidente que essa seria uma jogada reacionária para o caso de o PT não conseguir cumprir bem o papel que a burguesia lhe confiou.

Porém, um impeachment é diferente de um golpe militar armado. Para este não existe conjuntura, uma vez que as cúpulas militares permanecem inativas e majoritariamente indiferentes a essa disputa [8]. A própria FCT muda a todo tempo sua caracterização: falava de “golpe de Estado” na época das eleições para depois falar de “golpe parlamentar” ou simplesmente de impeachment.Evidentemente, não fez um balanço público, que seria a atitude honesta. Isso demonstra que o essencial para a FCT não é uma análise acertada da conjuntura, mas sim justificar a sua política de frente com o PT em todos os casos. Inclusive nas eleições (que não são nem golpe, nem impeachment), o voto em Dilma “segue a nossa política geral de combate ao golpismo pró-imperialista” (como?). Nessa mesma linha, a FCT propõe uma “frente única anti-imperialista” mundial:

A presença de um núcleo burguês em contrapeso aos EUA [China e Rússia] potencializa lacunas em todo o sistema mundial, e objetivamente cria contradições que podem ser vantajosamente exploradas para a causa do proletariado internacional e todos os povos oprimidos sem por isso deixarmos de fazer a defesa intransigente da independência de classe e não depositarmos expectativas que qualquer fração da burguesia mundial possa realizar as tarefas históricas progressivas a serviço do progresso da humanidade. A FCT luta por uma frente única anti-imperialista unindo os BRICS, os bolivarianos, Estados operários remanescentes, o nacionalismo islâmico, o Irã, africanos e terceiro mundistas sempre que estiverem sob o ataque ou em contradição com o imperialismo.

Frente Comunista dos Trabalhadores: quem somos e pelo que lutamos, 16 de agosto de 2015
http://coletivolenin.blogspot.com.br/2015/08/frente-comunista-dos-trabalhadores-quem.html

Essa “frente única” (as aspas não são acidentais) é uma falácia. Primeiro porque a FCT é um pequeno grupo com alguns militantes. Não acontecerá nenhum acordo para fins práticos (frente única) entre qualquer dessas forças mundiais e a FCT. Isso não é impedimento, é claro, para tomar a defesa das nações oprimidas sob intervenção imperialista, por exemplo, ou combater um golpe de Estado na mesma fileira que forças burguesas que eventualmente também se oponham (e delas se delimitando politicamente).

Mas a proposta de “frente única” da FCT não aponta nenhum objetivo concreto, nem uma situação específica. Ela seria uma frente sem data, sem local, sem objetivo imediato, para “lutar contra o imperialismo” em geral, “unindo” uma série de governos burgueses. Apesar de dizer que não deposita expectativas, essa proposta ampla implica que a FCT espera que essas forças burguesas (BRICS, bolivarianos, nacionalismo islâmico, Irã, terceiro-mundistas etc. etc.) podem conduzir lutas “anti-imperialistas”. O blog Espaço Marxista chega a afirmar explicitamente que governos como o de Assad, na Síria, são “anti-imperialistas” [9]. A FCT como um todo espera se apoiar no “bloco capitalista Eurásico”, o qual imagina que irá se confrontar com o imperialismo americano, como uma oportunidade para avançar “a causa do proletariado e dos povos oprimidos”.

Qual postura a FCT indicaria para os revolucionários no Irã, na Síria, na Venezuela, na Rússia? Aparentemente que busquem formar frentes com as lideranças burguesas “sempre que estiverem sob o ataque ou em contradição com o imperialismo”. Mas e durante a maior parte do tempo (de fato 99% do tempo, ou talvez todo) em que essas forças estiverem conduzindo a política imperialista (e não resistindo a aspectos secundários da mesma)? O principal na declaração não é construir o partido, consolidar as forças proletárias, temperá-las na independência contra qualquer setor da burguesia. O elemento principal é formar a suposta “frente única anti-imperialista” unindo governos capitalistas. E para qual tarefa específica (além da suposição de que esses governos vão se enfrentar com o imperialismo)? Nunca somos informados de forma concreta. Porém, no caso brasileiro, já vimos como tal “frente única” se expressou em, por exemplo, dar apoio eleitoral ao PT.

A proposta da FCT transforma posições táticas circunstanciais, como a de eventualmente tomar o mesmo lado militar que essas forças para defender uma nação atacada pelo imperialismo ou lutar contra um golpe antidemocrático, em uma orientação estratégica de fazer bloco com setores burgueses. Algumas vezes, FCT revela sua capitulação na forma mais crua, como quando o seu Comitê de Ligação pela Quarta Internacional (CLQI) embelezou o exército pró-Rússia dos separatistas do leste da Ucrânia:

 A grande base trabalhadora dos exércitos de Donbass deseja o socialismo e as relações de propriedade nacionalizada que existiam nos dias da URSS, quando as condições de vida dos trabalhadores eram muito melhores e os oligarcas capitalistas não haviam tomado toda a riqueza coletiva do país, com o apoio de Yeltsin e dos EUA.

Ucrânia: O império contra-ataca, 21 de março de 2015.
http://lcligacomunista.blogspot.com.br/2015/03/ucrania-o-acordo-de-minsk-e-queda-de.html

Não temos informações diretas do fronte para fazer uma avaliação tão precisa do que a base do exército deseja (e duvidamos que a FCT tenha). Porém, sabemos que há uma poderosa influência pró-Rússia, assim como um enorme saudosismo nacionalista/stalinista nesse exército. Defendemos o direito da população de fala russa do leste da Ucrânia se separar, especialmente diante da poderosa russofobia desencadeada com a chegada de setores protofascistas ao poder depois do “EuroMaidan”. Esse é um direito democrático básico. Porém, não temos nenhuma ilusão em algum caráter “socialista” dos exércitos dessas Repúblicas, que estão politicamente alinhadas com o governo russo.

No quadro geral, todo o conteúdo político do “programa” da FCT é chamar uma “frente única” (recorrente e sem objetivos concretos) com setores da burguesia nacional e internacional (neles gerando expectativas). Seu objetivo político utópico é a consolidação de um bloco burguês “alternativo” a nível mundial.

A nova encarnação de um cadáver político

Todos que acompanham nossas publicações sabem da nossa origem. O Reagrupamento Revolucionário no Brasil surgiu de um racha do Coletivo Lenin em 2011. Vale a pena recontar essa história, especialmente quando fica claro o quanto nossos grupos se distanciaram desde então. O Coletivo Lenin surgiu em 2009 e adotou um programa baseado na tradição da Tendência Bolchevique Internacional (TBI), que ele considerava a melhor atualização do programa trotskista. Após uma longa e frustrante discussão com a TBI, que culminou com essa se revelando uma seita desonesta [10], o CL passou por um processo de disputa interna. A ala majoritária defendeu o abandono do programa original da organização e rejeitava elementos fundamentais do trotskismo. Uma tendência minoritária foi contra tal mudança. 

Essa minoria acabou rompendo com o Coletivo Lenin e fundindo com o RR estadunidense no mesmo ano, com o qual o CL havia antes estabelecido relações fraternais com base no seu programa. Assim teve origem nosso grupo no Brasil: somos aqueles que, reconhecendo a degeneração da TBI, continuamos a defender suas contribuições para o marxismo e seu programa revolucionário original, apesar do apodrecimento moral e político de sua liderança, que se tornou inútil para a construção de um partido revolucionário.[11]

O líder da então maioria do Coletivo Lenin entendeu a falência da TBI como a falência do trotskismo. Abriu mão de princípios que iam desde o combate consistente à colaboração de classes até a oposição ao revisionismo que destruiu a Quarta Internacional [12]. Tudo isso foi chamado de “cascas de banana sectárias do programa da TBI”. O grupo acabou adotando uma perspectiva segundo a qual existem diversas “estratégias revolucionárias” diferentes, sendo todas igualmente válidas. Concluíram que são várias as tradições e organizações “revolucionárias”, ainda que inteiramente dispares umas das outras. Por conta disso, o CL se tornou uma organização amorfa disposta a se aproximar, em busca de unidade política, de grupos supostamente “revolucionários” com o qual tinha ele próprio muitas diferenças (como tentou durante meses com o Espaço Socialista após nosso racha, discussões essas que foram silenciosamente abandonadas) [13].

A FCT nada mais é do que a última tentativa esdrúxula de “fusão” baseada nessa falsa perspectiva. A dura verdade é que o CL abandonou a construção de um partido revolucionário conforme o compreendiam Lenin e Trotsky. O medo do isolamento, de ser chamado de “sectário”, falou mais alto do que a consistência programática. Esse mesmo impulso que antes gritou contra nós e nos acusava de “dogmáticos” durante nossa luta fracional por clareza e coerência política, acabou levando o CL a se afundar na lama de um bloco oportunista da FCT.

Nem todos os membros do CL estão satisfeitos com a absorção do grupo pela FCT e percebem os efeitos liquidacionistas dessa ação, assim como criticam os pontos programáticos oportunistas dessa “Frente” [14]. Porém, esses companheiros seguem sustentando a presença do grupo na FCT como uma perspectiva válida. É necessário compreender a relação entre os rumos da organização após nosso racha em 2011 e a decisão do CL de adentrar a FCT. Essa entrada assinalou (mais uma vez) que o Coletivo Lenin já tinha esquecido o que é centralismo democrático, o que é frente única, o que é um partido de vanguarda… isto é, o que é leninismo!

Aos militantes honestos que existem no CL, não existe outra saída além daquela que nós do Reagrupamento Revolucionário já tomamos em 2011, que é sair desse barco afundando. Pode ser que o atual CL se dissolva na FCT, ou talvez essa unidade fajuta venha a ruir e cada organização vá para seu canto. Mas de um forma ou de outra, o Coletivo Lenin que foi fundado por militantes que romperam com o morenismo por ousar lutar pela construção de um partido revolucionário baseado no programa trotskista atualizado para nossos dias, este já deixou de existir há muito tempo.

NOTAS

[*] Apesar de estar escrito na página principal do site do Coletivo Socialistas Livres que este grupo é membro da FCT e o seu documento de adesão ao “Comitê Paritário” ter sido reproduzido pelos demais membros da Frente, o CSL não tem aparecido nas declarações públicas mais recentes, o que nos leva a questionar se ele ainda é membro. Porém, como o CSL já havia sido descrito na versão original deste artigo e não pudemos encontrar nenhuma declaração de qualquer dos lados informando ao público sua suposta retirada, preferimos manter a afirmação de que ele faz parte da Frente. Caso estejamos errados nessa suposição, a responsabilidade cabe à FCT de informar se o CSL não é mais membro e porquê.

[1] Para ler nossa carta de ruptura com o Coletivo Lenin: “Morre um embrião para a reconstrução da Quarta Internacional”.
http://rr4i.milharal.org/2011/07/16/carta-de-ruptura-com-o-coletivo-lenin/ 

[2] Nós recomendamos aos companheiros especialmente os artigos polêmicos de Trotsky contra a brevíssima “Internacional de Londres”. Eis um exemplo das suas contradições:

O “partido de unificação marxista” [espanhol] pertence à famosa associação de Londres dos “partidos socialistas revolucionários” (ex-IAG). A direção desta última encontra-se atualmente nas mãos de Fenner Brockway, secretário do Independent Labour Party [inglês]. Já dissemos que pese aos antiquados e previsivelmente incuráveis preconceitos pacifistas de Maxton e de outros, o ILP assumiu na questão da Sociedade das Nações e das sanções uma posição revolucionária honesta, e todos nós lemos com satisfação uma série de excelentes artigos a este respeito no New Leader. Nas últimas eleições parlamentares o Independent Labour Party recusou-se até mesmo a apoiar no plano eleitoral os trabalhistas justamente porque estes últimos sustentavam a Sociedade das Nações. Em si, esta recusa constituía um erro tático: ali onde o Independent Labour Party não tinha condições de apresentar seus próprios candidatos devia apoiar os trabalhistas contra os conservadores. Mas isto é, apesar de tudo, um pormenor. Em todo caso, não havia nenhuma possibilidade de um “programa comum” com os trabalhistas. Os internacionalistas deviam ligar o apoio eleitoral (aos trabalhistas) com a denúncia do modo como os social-patriotas britânicos rastejavam diante da Sociedade das Nações e das suas “sanções”. Nós nos permitimos formular a seguinte pergunta a Fenner Brockway: o que admite como correto a “internacional” da qual é secretário? A seção inglesa desta “Internacional” se recusa a dar um simples apoio eleitoral a candidatos operários, se eles são partidários da Sociedade das Nações. A seção espanhola conclui um bloco com partidos burgueses sobre um programa comum de apoio à Sociedade das Nações. Será possível ir mais longe no domínio das contradições, da confusão, da degeneração? Ainda não há guerra e as seções da “Internacional” de Londres tendem desde agora em direções diametralmente opostas. Até onde irão quando ocorrerem os acontecimentos decisivos?

A traição do “Partido Operário de Unificação Marxista”, 22 de janeiro de 1936.
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/01/22.htm

[3] Na declaração inicial de adesão do Coletivo Socialistas Livres ao então “Comitê Paritário”, publicado novamente pelo site da Liga Comunista, aparece uma nota de rodapé afirmando que “A RPR [nome anterior da TR] não chamou voto crítico em Dilma no segundo turno das eleições presidenciais de 2014”. Não há mais nenhuma indicação de como essa importante divergência seria resolvida. Ver também a declaração da TR “Agora é voto nulo!”
http://tendenciarevolucionaria.blogspot.com.br/2014/10/agora-e-voto-nulo.html 

[4] Na mesma declaração do Coletivo Socialistas Livres, está escrito que “A principal diferença entre o CP e o CSL, reside na questão do centralismo, o qual o CSL se opõe. Uma vez que o atual estágio de construção do CP se caracteriza por ser um Comitê não centralizado, esta diferença situa-se no campo teórico, ao qual buscaremos superar a partir da experiência comum e da confiança mútua.”

[5] Esse comentário sutil foi feito numa introdução (sem quaisquer críticas) à republicação de um texto da “Rede em defesa da humanidade”, que “Reafirma a solidariedade ao governo legitimamente eleito, o de Nicolas Maduro, bem como exorta a oposição a respeitar a constituição do país.”
http://espacomarxista.blogspot.com.br/2015/02/intelectuais-e-artistas-contra.html 

[6] Num texto de 2014, o CSL afirma: “Na segurança pública, o PSDB de Aécio Neves e Anastasia desconsiderou as reivindicações dos policiais civis e militares, impondo apenas metas e metas de mais produtividade, sem a contrapartida salarial aos que trabalham (…)”
https://socialistalivre.wordpress.com/2014/10/28/psdb-foi-derrotado-em-minas-gerais-e-nao-entendeu-o-porque-entao-eu-re-explico/ 

[7] Aqui estão alguns comentários de Trotsky sobre o “apoio tático” a blocos de colaboração de classes e também sobre a orientação eleitoral diante de uma “concorrência” entre partidos burgueses tradicionais e a “Frente Popular”:

A questão das questões atualmente é a Frente Popular. Os centristas de esquerda procuram apresentar esta questão como tática ou mesmo como uma manobra técnica, a fim de poder vender as suas mercadorias na sombra da Frente Popular. Na realidade, a Frente Popular é a questão principal da estratégia da classe operária nesta época. Também confere o melhor critério para diferenciar o menchevismo do bolchevismo.
A seção holandesa e a Internacional, julho de 1936.

Como não se concebe a democracia parlamentar na França sem os radicais, façamos com que os socialistas os sustenham, ordenemos aos comunistas que não incomodem o bloco Blum-Herriot se possível, façamos com que entrem, eles mesmos, no bloco. Nem distúrbios nem ameaças! Esta é a orientação do Kremlin (…) Se o partido de Herriot-Daladier tem raízes nas massas pequeno-burguesas e, em certa medida, até nos meios operários, é unicamente com o objetivo de enganá-los em benefício do regime capitalista. Os radicais são o partido democrático do imperialismo francês: qualquer outra definição é uma mentira (…). As próximas eleições parlamentares, qualquer que seja o resultado, não trarão, por si mesmas, mudanças sérias na situação: definitivamente, os eleitores estão obrigados a escolher entre um árbitro do tipo de Laval e um árbitro do tipo de Herriot-Daladier Mas como Herriot colaborou tranquilamente com Laval e Daladier apoiou ambos, a diferença que os separa, se medida com a escala dos problemas históricos colocados, é insignificante.
A França na Encruzilhada, março de 1936.
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/03/28.htm 

[8] Nós escrevemos uma polêmica direcionada ao PCO sobre a sua perspectiva alarmista de um golpe como forma de capitular ao PT. Ver “As capitulações do PCO ao governismo”.
http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2014/07/as-capitulacoes-do-pco-ao-governismo.html

[9] “O que o imperialismo pretende é derrubar o regime anti-sionista e anti-imperialista de Assad, e para isso tem fomentado o mesmo ISIS que finge combater.”
http://espacomarxista.blogspot.com.br/2015/05/otan-treina-rebeldes-sirios.html 

[10] Ver “Coletivo Lenin rompe relações com a Tendência Bolchevique Internacional”
http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2011/07/cl-rompe-relacoes-com-ibt-dezembro-de.html

[11] Ver “A Tendência Bolchevique Internacional ‘explica’ sua falência”
http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2012/07/a-tendencia-bolchevique-internacional.html 

[12] Além da nossa carta de ruptura, na nota número 1, ver também “Revisando a história do trotskismo”.
http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2011/10/polemica-com-o-coletivo-lenin-sobre.html 

[13] Ver “Balanço das discussões do Coletivo Lenin com o Espaço Socialista”
http://coletivolenin.blogspot.com.br/2012/04/balanco-das-discussoes-do-coletivo.html

[14] Ver especialmente a “Declaração da maioria do Coletivo Lenin ao Congresso da FCT”
http://coletivolenin.blogspot.com.br/2015/09/declaracao-da-maioria-do-cl-ao.html

Polêmica com a LIT / PSTU sobre a Palestina

Internacionalismo proletário ou adaptação ao nacionalismo burguês?

Polêmica com a LIT / PSTU sobre a Palestina

  
Rodolfo Kaleb e Marcio Torres, janeiro de 2015
  
Recentemente nós do Reagrupamento Revolucionário publicamos uma declaração sobre a questão palestina e o massacre perpetrado pelo regime sionista de Israel contra a população de Gaza (Defender os palestinos! Nenhuma confiança no Hamas e no Fatah!, de agosto de 2014). [1] Nessa declaração, além de apontarmos nossa oposição em relação aos ataques israelenses e a defesa da Palestina de forma mais geral, também tecemos algumas breves críticas a algumas posições presentes na esquerda que se reivindica revolucionária. Esta frequentemente defende uma política desorientadora e oportunista sobre tarefas concretas para levar à emancipação do povo palestino e a um governo dos trabalhadores. Dessa forma, queremos aprofundar algumas dessas críticas, mais especificamente as que se aplicam ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e à organização internacional por ele dirigida, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT).


Capitulação ao programa e aos partidos nacionalistas burgueses
  
Comumente, o PSTU/LIT resume seu programa para a luta de classes na Palestina através do slogan “Por uma Palestina livre, laica e democrática” (acrescentando, às vezes, também “não racista”). Não é acaso que essa síntese de sua posição não coloque em questão o caráter de classe da Palestina que almejam. Analisando de perto o conteúdo desse slogan, vemos que ele se limita ao programa original da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), como o próprio PSTU já afirmou explicitamente:
  
 “Estamos juntos com as massas palestinas, libanesas e árabes na defesa da destruição do Estado de Israel. Contudo, diferentemente das correntes fundamentalistas islâmicas, fazemos esta defesa dentro da mesma perspectiva que existia na raiz da OLP: a criação de uma Palestina laica, democrática e não racista.”
  
― Pela destruição do “Estado policial” de Israel, de agosto de 2006. Ênfase nossa.
  
Criada em 1964, a OLP começou como uma coalização de forças políticas variadas adotando táticas de guerrilha, reivindicando o fim do sionismo, o direito de retorno dos palestinos expulsos de suas terras e o retorno à “Palestina histórica”, isto é, às fronteiras existentes antes de 1948. Como acontece com toda organização de massas sem uma delimitação classista, a OLP passou rapidamente a atender fundamentalmente aos interesses dos setores mais favorecidos economicamente da população palestina. Logo nos primeiros anos, o partido Fatah (Movimento pela Libertação Nacional da Palestina) dirigido por Yasser Arafat tornou-se a liderança da organização, o que lhe conferiu um caráter político nacionalista, sem nenhuma pretensão de confrontar o capitalismo. Com o tempo, esse programa levou à sua conclusão lógica: disposição a “negociar” os direitos dos palestinos em troca de alguma estabilidade econômica e política para os palestinos mais prósperos. Na década de 1980, sob a orientação do Fatah, a OLP aceitou negociar com Israel um “mini Estado” palestino, que compreendesse a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, abandonando abertamente as pretensões de derrotar o controle do Estado sionista sobre o território palestino e reconhecendo a legitimidade deste.
  
Qual força política é capaz de construir uma Palestina “laica, democrática e não racista”? Para os marxistas, só há duas classes na sociedade moderna que são capazes de realmente estabelecer seu poder: ou a burguesia ou os trabalhadores. A camada bastante frágil dos empresários palestinos já demonstrou sua completa bancarrota política ao aceitar uma “coexistência” sob o tacão dos sionistas. Cabe ao proletariado da região, em aliança com as massas camponesas pobres e os oprimidos pelo capitalismo sionista, lutar contra esse regime. Mas ao se organizar como vanguarda da luta contra o sionismo, o proletariado não irá se limitar ao programa democrático da pequena-burguesia. Ele vai necessariamente iniciar a construção do seu próprio governo, estabelecido sob as bases de expropriação da propriedade burguesa, administração democrática das empresas e armamento dos trabalhadores.
  
Ao reivindicar o programa original da OLP, abandonado pelo próprio Fatah em razão dos interesses de classe burgueses e pequeno-burgueses que ele representa, os dirigentes do PSTU “esquecem” o “detalhe” de que uma Palestina realmente “livre, soberana, democrática e não racista” só é possível sob um regime de democracia proletária, e que isso jamais esteve no programa da OLP e nem estará, pois vai contra seu compromisso de manter o capitalismo. O resultado é que o PSTU se coloca em defesa de um programa pequeno-burguês. Muitos dos seus materiais de propaganda sequer colocam a tarefa de construção de um poder dos trabalhadores [2], ou colocam essa tarefa de forma deslocada da luta (considerada prioritária) por uma Palestina “democrática”. Sob essa configuração, a Palestina “democrática” defendida pelo PSTU seria um regime burguês para substituir Israel. É nos próprios partidos da burguesia e da pequena-burguesia que o PSTU busca um instrumento para realizar essa tarefa. Por muitos anos, chamou para que a OLP liderasse o povo palestino e lhe conferiu apoio político praticamente acrítico. Mas como nos últimos anos a capitulação da OLP ao sionismo ficou explícita demais, foi necessário ao PSTU buscar outra força política da qual esperar o objetivo utópico da “Palestina livre” sem menção ao caráter de classe. Em 2007, em um artigo publicado em seu site, o PSTU defendeu a seguinte “alternativa”:
  
“Nesse momento é muito importante realizar um chamado a todos os que desejam resistir a Israel e seus parceiros. O Hamas precisa estar à frente desse chamado a todas as organizações da resistência palestina, da esquerda e das próprias bases do Fatah, a romper com seu corrupto presidente e repudiar seu golpe. A paz só virá com a luta intransigente e até o fim contra o Estado de Israel e a construção de uma Palestina soberana, laica, democrática e não racista, com retorno de todos os refugiados.”
  
― Hamas toma controle da Faixa de Gaza, julho de 2007. Disponível em:
  
O Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) surgiu em 1987 como uma dissidência da Irmandade Muçulmana, sendo um partido que defende a construção de um Estado teocrático islâmico na Palestina. Em 2007, no ano do artigo escrito pelo PSTU, ele chegou ao governo da Faixa de Gaza e hoje controla a maioria dos assentos no parlamento organizado pela Autoridade Nacional Palestina. O Hamas ganhou bastante prestígio com as massas palestinas em razão da capitulação gritante da OLP ao regime sionista e, devido à situação extrema da Faixa de Gaza, ele frequentemente toma medidas de resistência armada contra Israel. Contudo, seus interesses nada tem a ver com os do proletariado. Não só ele também sustenta o capitalismo, como também é abertamente antidemocrático, sendo contra os direitos seculares das mulheres da Palestina e igualando todos os trabalhadores israelenses com os assassinos governantes de Israel.
  
Ao chamar para que o Hamas “esteja à frente” de toda a resistência palestina, o PSTU conferiu a esse partido nacionalista islâmico o “direito” de liderar inclusive os trabalhadores palestinos. Indiretamente, está abdicando da luta por um partido revolucionário para ganhar o proletariado da influência nociva do nacionalismo islâmico, dizendo inclusive que é o Hamas que deve chamar a romper a base do Fatah. Além do mais, como é possível que os dirigentes do PSTU acreditem que o Hamas seja capaz de levar a cabo uma luta por um programa que ele jamais teve, ou mesmo que seja possível que seus membros lutem por uma Palestina “laica” (sendo defensores da teocracia islâmica), “livre e soberana” (sendo que estão à frente de um governo capitalista num mundo dominado pelo capital imperialista); ou mesmo “democrática” (quando são fanáticos religiosos profundamente misóginos e homofóbicos)? O resultado de uma hegemonia do Hamas na resistência palestina contra Israel seria aprisionar as massas palestinas ao nacionalismo islâmico, alienar (ainda mais) os trabalhadores israelenses de qualquer oposição ao regime sionista e garantir que, de uma forma ou de outra, os interesses sujos da burguesia seriam assegurados. Nenhum marxista digno do nome pode sustentar tal posição.
  
A escandalosa caracterização do proletariado israelense
  
Se a palavra de ordem do PSTU por uma “Palestina livre, laica e democrática” é uma clara limitação a um programa democrático burguês, fruto de sua capitulação ao nacionalismo árabe procapitalista, há ainda outro aspecto da sua política que também é um enorme obstáculo para qualquer perspectiva de revolução proletária. Segundo a caracterização feita pela LIT em 2011:
  
“Assim como o Estado sionista não é um Estado normal, mas sim um enclave militar, tampouco o é a classe operária que lá vive. Ao ser Israel um Estado artificial, baseado no roubo e superexploração dos palestinos, a classe operária judia em Israel é também parte da ocupação, ou seja, recebe privilégios da ocupação. Em outras palavras, tem um nível de vida melhor do que o dos trabalhadores árabes exatamente porque recebe migalhas derivadas da exploração destes, e pelo dinheiro que Israel recebe dos EUA.
  
“Nenhuma classe operária no mundo, como já dizia Marx, luta para piorar seu nível de vida ou para perder seus privilégios. Por isso a classe operária israelense não é (e nem será) revolucionária, sequer reformista. É intrinsecamente reacionária. Seu bem-estar depende da continuidade e da ampliação da ocupação do território palestino, de seu caráter de Estado policiesco. Não se pode esperar dos trabalhadores judeus uma mudança [de] caráter do Estado sionista, para que este deixe de ser racista e expansionista. Israel não pode ser reformado, só pode ser destruído.”
  
― Sobre o movimento dos “indignados” de Israel, Partido Operário Internacionalista (POI – Rússia), setembro de 2011. Ênfase nossa. Disponível em:
  
Comecemos pela caracterização de Israel como um “enclave militar”. O regime sionista certamente é financiado pesadamente pelo imperialismo, mas a base da sua existência é também a exploração dos trabalhadores israelenses e das massas palestinas, de forma que não se trata de uma mera instalação imperialista no Oriente Médio. E Israel não é o único Estado que recebe insumos financeiros e militares por ser um aliado fiel das potências imperialistas. O mesmo se dá com vários países árabes, como é o caso da Arábia Saudita, que as grandes potências usam como fantoches locais para contrabalancear os governos burgueses “instáveis”, como o Irã.
  
Além disso, conforme afirmamos em nossa já mencionada declaração, “A população israelense não pode ser considerada simplesmente como colonos nesse momento da história. Quer queira quer não, se desenvolveu na região uma nacionalidade de fala hebraica.” (Defender os palestinos! Nenhuma confiança no Hamas e no Fatah!de agosto de 2014). Ao apagar a existência dessa nação (e sua divisão em classes fundamentalmente antagônicas) a LIT reduz a contradição fundamental da sociedade israelense, não à luta entre burgueses e proletários, mas a uma luta de ambos os burgueses e proletários israelenses contra o povo palestino (também aqui tomado em bloco, como se não houvesse contradições de classe).
  
Os marxistas não se opõem ao direito dos judeus de habitar na Palestina, nem aos direitos daqueles que para lá emigraram. A oposição dos marxistas é ao projeto sionista, que defende um Estado exclusivamente israelense, com um regime teocrático e que oprima as massas palestinas, segregando-as sistematicamente através de métodos jurídicos e militares. Corretamente, a Quarta Internacional foi contra a fundação do Estado de Israel em 1948, ao mesmo tempo em que buscava ganhar os trabalhadores israelenses contra o sionismo [3]. É de um simplismo absurdo tentar reduzir toda a sociedade israelense de hoje em dia a um “enclave militar”. Isso secundariza a divisão dessa sociedade em classes fundamentalmente antagônicas, colocando em um mesmo patamar os exploradores e os explorados.
  
Em segundo lugar, embora tenha melhores condições de vida do que a maior parte dos seus irmãos nos países vizinhos do Oriente Médio, o proletariado israelense não é mais privilegiado do que aquele dos países imperialistas (na verdade, possui condições de vida bastante inferiores). Tanto sua vida não é perfeita e harmônica, que nos últimos anos temos visto massivos protestos em defesa de mais recursos públicos para serviços e políticas sociais como saúde e educação – algo muito mais próximo de uma consciência reformista do que de uma consciência “intrinsecamente reacionária” [4]. A LIT se opõe a esses protestos e, ao menos nisso, tem a mesma atitude dos dos burocratas sionistas que desejam ver tais lutas minguarem e fracassarem.
  
O fato de que a classe trabalhadora em alguns países é privilegiada em comparação com a de outros não muda o fato de que é da classe proletária que depende uma revolução vitoriosa (e especialmente a classe trabalhadora dos países imperialistas, sem os quais o socialismo não pode triunfar a nível mundial). Essa desigualdade é um elemento estrutural no qual os capitalistas se fiam para dividir a classe trabalhadora em linhas nacionais, mas o trabalhador israelense tem muito mais vantagens em romper com a “sua” burguesia e buscar um poder em conjunto com as massas palestinas do que manter sua atual condição de classe dominada, explorada e oprimida.
  
Ao contrário dos sionistas, os marxistas argumentam que o sionismo NÃO serve aos interesses objetivos da classe trabalhadora israelita. O Estado de Israel, como Trotsky havia previsto, pode acabar sendo uma “armadilha fatal” para os judeus que emigraram para lá. Os trabalhadores judeus não se beneficiam de viver sob o capitalismo sionista, e o seu atual apoio à “sua” classe dominante, assim como o apoio que a classe trabalhadora de muitos países presta aos “seus” governos, é uma falsa consciência que os revolucionários devem buscar desmascarar.
  
Ao fim e ao cabo, é de uma total falta de coerência que supostos marxistas acreditem seriamente que trabalhadores tem a perder (“piorar seu nível de vida” ou “perder seus privilégios”) ao derrotar seus patrões e assumir o controle da riqueza por eles produzida. Certamente, do que os trabalhadores israelenses jamais poderão ser convencidos é apoiar partidos nacionalistas islâmicos como o Hamas (e que o PSTU considerou em 2007 que deveria estar à frente dos palestinos) que são contra seu direito a existir enquanto povo. Mas eles têm todas as razões objetivas para lutar lado a lado das massas palestinas pela destruição do regime sionista e por uma Palestina socialista dos trabalhadores de todas as religiões e etnias (que é uma tarefa que o PSTU relega a um futuro incerto). O que impede os trabalhadores israelenses de lutar por esse objetivo é sua cegueira diante da ideologia sionista e a ausência de um partido revolucionário que defenda a união internacionalista dos trabalhadores dos dois povos contra seus verdadeiros inimigos.
  
Essa escandalosa caracterização realizada pela LIT, faz com que ela subestime completamente o proletariado israelense como um poderoso aliado em potencial das massas palestinas na luta por sua libertação. Tal postura de considerar que a classe trabalhadora de Israel é “intrinsecamente reacionária” também significa o abandono de qualquer perspectiva realista de revolução socialista na região, uma vez que os trabalhadores israelenses constituem atualmente o maior componente da classe trabalhadora.
  
Esse abstencionismo diante do proletariado israelense é o lado reverso da sua capitulação aos partidos nacionalistas árabes. E tal capitulação é tão profunda que chega ao extremo de defender e legitimar ataques reacionários indiscriminados contra a população israelense,
  
“As organizações da esquerda mundial devem responder claramente às seguintes perguntas: estamos a favor de que a atual guerra se desenvolva até derrotar completamente o exército sionista e o Estado de Israel? Estamos a favor de que as ações contra a população do enclave colonial israelense – por parte do Hizbollah, do Hamas e do Jihad Islâmica – aumentem e sejam cada vez mais efetivas? (…) Aqueles que responderem negativamente a estas questões deixaram de ser revolucionários para, nas palavras de Lênin, transformarem-se em ‘meros pacifistas pequeno-burgueses’. De nossa parte, reiteramos a resposta afirmativa a cada uma destas questões.
  
― Pela destruição do “Estado policial” de Israel, de agosto de 2006. Ênfase nossa.
  
Duas coisas estão amalgamadas nesse parágrafo. Primeiro, o PSTU parece se referir à defesa da Palestina e de outras nações oprimidas por Israel (como era o caso do Líbano, que estava sendo atacado em 2006), que é uma tarefa de todos os comunistas consequentes. É evidente que, por desejarem a derrota do Estado sionista por uma revolução, os trabalhadores se beneficiam do enfraquecimento de Israel sob os golpes de uma nação por ele subjugada, ainda que não devam dar nenhum milímetro de apoio político aos nacionalistas burgueses. Mas a seguir, o PSTU reivindica o apoio a atos de agressão contra a população de Israel (o que incluiria certamente a sua classe trabalhadora). Não há nada de “leninista” em apoiar atos sanguinários de ódio étnico. O PSTU menciona Lenin (sem citar nenhum texto seu) afirmando que quem não apoia tais atos é um “pacifista pequeno-burguês”. Ainda que não concordem com métodos “terroristas”, os comunistas não condenam atos de violência que tenham como alvo membros da burguesia, seu exército e sua estrutura de repressão (como aqueles que realizavam os Narodiniki russos). Mas nada há de vantajoso para os trabalhadores em reivindicar ataques, digamos, a residências, escolas ou estações de trem em Israel por grupos islâmicos. Tais ataques são reacionários e só reforçam o clima de ódio comunal da região, atingindo principalmente trabalhadores.
  
O fato de os dirigentes da LIT preferirem ignorar os interesses comuns entre os explorados árabes e os explorados israelenses demonstra uma total falta de fibra revolucionária para defender o programa da classe proletária e uma vontade de “escolher a linha de menor resistência”. A consciência de classe atrasada dos trabalhadores israelenses, grande parte dos quais (contra os seus interesses objetivos) defende formas de ideologia burguesa como o sionismo, faz tais revisionistas acharem um “refúgio” numa popular ideologia nacionalista árabe, também burguesa, porém mais receptiva. Contra essa capitulação, os marxistas reiteram que a sua guerra contra o regime sionista é uma guerra de classe, a ser protagonizada pelos trabalhadores palestinos e israelenses (junto às outras classes oprimidas e com apoio dos proletários do restante do Oriente Médio). A posição dos revolucionários de defesa tático-militar dos palestinos contra Israel, incluindo alianças tático-militares com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses palestinos que resistem aos ataques sionistas, deve sempre vir acompanhada de uma denúncia implacável da falsa política do nacionalismo burguês.
  
Nahuel Moreno e seu fatalismo antimarxista
  
A capitulação da LIT ao programa do nacionalismo árabe (já abandonado por seus próprios representantes) e aos limites capitalistas desse programa possui em sua raiz as posições programáticas desenvolvidas por Nahuel Moreno, o falecido dirigente argentino fundador dessa organização. Em 1982, numa polêmica publicada em Correio Internacional número 8 (setembro de 1982), Nahuel Moreno discutiu com um companheiro da seção chilena da LIT, que levantou críticas bastante pertinentes (ainda que limitadas) à sua política oportunista. O primeiro questionamento levantado pelo “companheiro chileno” (cujo nome não é revelado) foi o seguinte:
  
 “1. Por que levantamos como consigna central a de ‘Palestina laica, democrática e não racista’ burguesa? Por que estamos pela construção de um Estado burguês na Palestina? Fica entendido que, se surgir um Estado com essas características na luta contra o sionismo e o imperialismo, o apoiamos, mas não está claro porque hoje a reivindicamos como nossa consigna”.
  
“2. Não fazemos com isso uma concessão à ideologia reacionária da ‘revolução por etapas’, tão cara ao estalinismo e à pequena-burguesia? Se não nos equivocamos, essa foi a consigna central do estalinismo e da burguesia e pequena-burguesia palestina até agora pouco (como assinala Correio Internacional 7). Não dizemos o mesmo que o estalinismo quando afirmamos que esse Estado burguês palestino servirá ‘como um passo na luta pelo socialismo’ (declaração da LIT)?”.
  
— “Carta de um camarada chileno” (espanhol). Disponível em:
  
De fato, Moreno realizou uma profunda revisão do arcabouço programático do marxismo na questão da estratégia revolucionária. Diferente do esforço feito pela Internacional Comunista e pela Quarta Internacional para buscar uma estratégia para a revolução proletária mundial mesmo nos países atrasados do capitalismo, onde era fundamental ganhar o apoio do campesinato (que era maioria da população), Moreno se adaptou à ideia de que era necessário se limitar a um programa democrático-burguês numa “primeira fase” da revolução em todos os países do mundo. Ele colocou abertamente que era necessária uma “etapa”, que chamou de “revolução democrática”, na luta pela revolução socialista. Isso não é uma leitura parcial, mas algo que Moreno afirmou abertamente:
  
“Aqui há um problema político grave, tremendo, que toco de passagem – se tivermos tempo, faremos um grande livro. Parece que o fato da contrarrevolução capitalista recolocou a necessidade de que haja uma revolução democrática. E ignorar que o que está acontecendo nos países adiantados, onde há regimes contrarrevolucionários, também é uma revolução democrática, é maximalismo, é tão grave quanto ignorar a revolução democrático-burguesa nos países atrasados. Isto é muito importante. Não sei se é correto ou não. Se é correto, é preciso mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente.”
  
— Escola de Quadros, “Teoria da Revolução” (espanhol), 1984.
  
Tal postura altera a forma como se lida com os partidos burgueses e pequeno-burgueses. De inimigos da revolução proletária aos quais não se pode dar nenhum apoio político e dos quais se deve expor a capitulação e as vacilações para ganhar de suas bases os trabalhadores conscientes, eles passam a “líderes” de uma “revolução democrática”, aos quais os morenistas dão seu apoio. Prossegue Moreno:
  
“Se é correto, muda toda nossa estratégia com respeito aos partidos oportunistas e, em boa medida, com respeito aos partidos burgueses que se opõem ao regime contrarrevolucionário. Como um passo até a revolução socialista, nós estamos a favor que venha um regime burguês totalmente distinto.”
  
— Idem.
  
Este “etapismo” descarado, a disposição em orientar a luta do proletariado em torno de tal “revolução democrática”, a qual jamais existiu fora da imaginação fértil de Moreno e dos seus seguidores [5], “mudam a estratégia com relação aos partidos burgueses”. Na sua carta, o “companheiro chileno” astutamente pergunta: “O nosso método é seguir pela ‘esquerda’ a pequena-burguesia e ir retomando os restos das consignas que ela abandona no caminho de sua capitulação diante do imperialismo?”.
  
Efetivamente, Moreno e a LIT renegaram a posição trotskista de que a luta pela revolução proletária deve estar em primeiro plano político inclusive na defesa de uma nação oprimida. Moreno e Cia. renegam também que o sujeito político dessa revolução deve ser o partido de vanguarda do proletariado, armado com o programa bolchevique. Contrariando os ensinamentos fundamentais da Teoria da Revolução Permanente, preferem depositar suas esperanças na falsa noção de uma “revolução democrática” como a antessala daquela, sendo esta supostamente liderada por partidos oportunistas e mesmo burgueses.
  
O método de Moreno portanto não é o do marxismo, que é encontrar as formas de ganhar o proletariado para o programa da revolução socialista, fazendo-o romper com a ideologia burguesa e com os partidos burgueses, mas sim um método objetivista, para o qual não importa a atual liderança das massas ou seu caráter de classe, deve-se tentar “empurrá-la” para o caminho da “revolução democrática” (mesmo quando esses partidos burgueses rejeitam as demandas democráticas mais básicas, como é o caso do Hamas). Esse é também o motivo do seu abandono da luta para ganhar o proletariado israelense para o programa do marxismo, já que este é muito mais politicamente atrasado. Na sua resposta ao “companheiro chileno”, Moreno dá uma verdadeira “aula” do seu método objetivista:
  
“Se o propósito decisivo e fundamental é a destruição do Estado sionista, se trata de estabelecer quais são as forças objetivas que neste momento estão embarcadas nessa tarefa progressiva, histórica, e quais são as melhores consignas para apoiá-las e conseguir com que cumpram seu compromisso com o maior entusiasmo e força.”
  
“Acaso estão fazendo isso os explorados e discriminados sabras e sefarditas de Israel? Ou são os trabalhadores asquenazes? Nesse momento essas forças são o baluarte do Estado sionista e não a vanguarda da sua destruição. A aristocracia operária asquenaze, através do Partido Trabalhista, está em tudo com o sionismo. Os sabras e sefarditas deram a base eleitoral a Begin e apoiaram com entusiasmo seu plano de colonização das terras árabes.”
  
“Isso deixa atualmente como único setor social em luta permanente contra Israel o movimento árabe e maometano, em cuja vanguarda indiscutível estão os palestinos, expulsos de sua pátria pelos sionistas. Há 34 anos, quando se construiu o Estado racista, a forma de lutar pela sua destruição é apoiar a justa guerra dos palestinos e muçulmanos. Não vemos outra, porque não há outra força na realidade objetiva que se enfrente, de armas na mão, contra o sionismo.” (ênfase nossa).
  
— Polêmica sobre o Oriente Médio (espanhol). Disponível em:
  
O marxismo considera que a única classe consistentemente revolucionária da sociedade moderna é o proletariado. Os revolucionários não se desesperam diante da atual consciência atrasada dos trabalhadores. No Programa de Transição, Trotsky falou sobre a distância entre as tarefas históricas colocadas para o proletariado e o seu nível atrasado de consciência para cumpri-las. É preciso pacientemente construir aos poucos uma consciência revolucionária no seio das lutas do proletariado. Mas o que Moreno fez foi aceitar como “fato consumado” o atraso dos trabalhadores israelenses e que a liderança da luta contra o regime sionista seria a burguesia árabe, na figura da OLP, ignorando completamente as traições realizadas por essa direção, prometendo “apoiá-la”, adaptando para isso as suas consignas e o seu programa. Esse método é mantido até hoje pelos seus seguidores. Apoiar qualquer força “objetiva” (ou seja, com influência de massas) em luta contra governos inimigos do proletariado, independente do programa, liderança e classe social que esta força represente. É evidente que a OLP jamais cumpriu a esperança dos morenistas. Ao contrário, seguiu a sua trajetória esperada e cada vez se adaptou mais aos interesses sionistas e imperialistas.
  
Outro questionamento do “companheiro chileno” foi: “Por que sequer caracterizamos a OLP no Boletim Interno? Acaso não é uma organização frentista controlada pela burguesia e pequena-burguesia, com Arafat como expressão disso? Não é uma organização que já deu várias amostras de sua capitulação – em aberta contradição com o incrível heroísmo demonstrado pelo povo palestino?”. Em seu entusiasmo por embelezar a OLP como liderança de sua “revolução democrática”, Moreno rasgou completamente o marxismo:
  
“Vocês caracterizam a OLP como se fosse um partido político a mais. Para nós, representa a nacionalidade palestina como organização estatal sui generis laica, democrática e não racista, em guerra. É quase um Estado: é uma frente única que abarca todo o movimento palestino em luta para reconquistar sua pátria e voltar a ser um Estado. De fato, é um governo, exigimos o seu reconhecimento do mesmo modo como fazíamos pela FSLN na Nicarágua. É uma nacionalidade organizada à qual suprimiram a terra: quando a recuperar, voltará a ser nação. É uma nação sui generis.”
  
“Quando vocês não reconhecem essa função da OLP, considerando-a uma simples fração política dos palestinos, dão um fundamento ‘de esquerda’ à caracterização do imperialismo. Ele também não a reconhece como organização nacional palestina, definindo-a como uma corrente terrorista.”
  
— Idem.
  
Influenciado pela popularidade que então tinha a reivindicação da OLP de ser algo como um “governo no exílio” e legítimo representante das massas palestinas, Moreno introduziu uma categoria alheia ao marxismo, de que um partido político pode representar “uma nação” como um todo, cada uma de suas classes, do proletário e do camponês ao grande capitalista. Rejeitamos o amálgama morenista de que aqueles que expuseram o caráter burguês da liderança da OLP estavam “fundamentando a caracterização do imperialismo”. Trotsky combateu precisamente esse tipo de revisionismo básico contra Stalin e sua caracterização de que o partido nacionalista Kuomintang era um “partido de quatro classes” ou de que os governos burgueses de Frente Popular eram “governos democráticos antifascistas”. Em todas essas ocasiões, eram os estalinistas que defendiam a colaboração com a burguesia disfarçando-a de “representante de todas as classes democráticas”. Os marxistas não precisam inventar esse tipo de artimanha porque seu compromisso é com a revolução do proletariado. Ainda que taticamente possam defender alianças militares com os partidos burgueses de uma nação oprimida, como é o caso dos palestinos, reconhecem nestes o seu caráter de classe. A caracterização de Moreno servia apenas para tentar blindar a OLP de criticas, e assim pavimentar o caminho de sua traição das massas palestinas.
  
Temos aqui duas estratégias distintas: a do morenismo e a do marxismo revolucionário. O primeiro consiste em adaptar as palavras de ordem e as consignas ao objetivo de tentar “empurrar” os partidos nacionalistas burgueses para cumprir uma “revolução democrática” cujas demandas estes próprios rejeitam, e que teria como resultado esperado um Estado burguês. Também considera o proletariado israelense da região parte do mesmo bloco que seus opressores e se posiciona contra as lutas deste. Esse esquema se mostra completamente falso cada vez que um dos “líderes” da suposta “revolução democrática” trai as massas palestinas. Já o método do marxismo prevê corretamente que essas organizações burguesas vão inevitavelmente trair as massas palestinas, e deseja reunir estas sob a liderança do proletariado, ao mesmo tempo em que quer dividir o “monólito” sionista em linhas de classe. Busca assim unificar a luta dos trabalhadores israelenses e árabes em torno dos seus interesses comuns de classe e dos direitos democráticos dos palestinos na luta pela revolução socialista, que construa um governo proletário que possa acender a faísca da revolução internacional. Nesse momento, essa é a única via realmente realista para os que querem lutar pelo socialismo na Palestina.
  
Por uma aliança internacionalista entre trabalhadores árabes e israelenses!
  
O problema fundamental do proletariado na Palestina é a ausência de um instrumento com influência de massas que combata o Estado de Israel com os métodos e a bandeira internacionalista da classe trabalhadora, o partido revolucionário conjunto dos trabalhadores israelenses e palestinos que lute para pôr um fim definitivo ao terror sionista. Este objetivo só pode ser obtido através da mobilização dos trabalhadores das duas nações em prol da defesa dos palestinos e por demandas democráticas e transitórias que desmascarem o monstro sionista, assim como os débeis governantes da “Autoridade Palestina”.
  
Diante da inexistência de tal partido, os revolucionários não devem se adaptar à consciência atual dos trabalhadores, nem às variantes mais “radicais” dos interesses burgueses, como o Hamas. O seu papel é lutar contra as tendências nacionalistas, socialdemocratas ou stalinistas presentes no seio da classe trabalhadora, reunir e treinar uma coluna de quadros para construírem, quando a oportunidade surgir, o seu partido revolucionário.
  
Tal partido deve defender os direitos nacionais dos palestinos, incluindo o direito de retorno daqueles palestinos que emigraram à força, bem como a expropriação e socialização de toda a riqueza produzida pelos trabalhadores palestinos e israelenses e a utilização democrática, racional e planejada desses recursos para melhorar radicalmente as condições de existência desses dois povos, a viverem de forma fraterna em uma terra compartilhada por irmãos de classe, sem ódio religioso ou étnico. Apenas um partido assim será reconhecido pelos trabalhadores das duas nações como verdadeiramente seu – e carregará a bandeira da sua próxima vitória.
  
  
NOTAS
  
[1] Leia nossa declaração aqui.
[2] Veja, por exemplo, todas as declarações recentes publicadas pelo PSTU sobre a questão palestina. Nenhuma toca (sequer menciona) na questão das tarefas de uma revolução socialista, se limitando sempre ao programa da “Palestina laica, democrática e não racista”:
Gaza: uma vitória palestina: http://www.pstu.org.br/node/20963
Os sinais da Terceira Intifadahttp://www.pstu.org.br/node/20864
Juventude Palestina, exemplo de força e resistênciahttp://www.pstu.org.br/node/20864
Repudiamos a nova agressão de Israel aos Palestinos: http://www.pstu.org.br/node/20864
[3] A posição trotskista na Palestina: Contra a Corrente (1948):
[4] Tendo em vista o reacionário antissemitismo tão disseminado entre os russos por gerações de brutais opressores (dos Czares a Stalin), é preocupantemente suspeito que o artigo afirmando que os trabalhadores israelenses não podem ser “sequer reformistas” tenha sido escrito justamente pela seção russa da LIT, o POI. Cabe ressaltar que, apesar de essa posição ter sua origem em formulações do próprio Moreno, como demonstraremos na seção seguinte, ela não tem aparecido de forma explícita em artigos e declarações próprias do PSTU ou da direção da LIT. Cabe ressaltar ainda que esse tipo de afirmação justifica diretamente a defesa que a LIT faz de agressões contra a população israelense, como criticamos adiante.
[5] Somente nos últimos anos, tivemos dentre as “revoluções democráticas vitoriosas” propagandeadas pelos morenistas a intervenção imperialista sobre a Líbia que colocou os “rebeldes” no poder e o golpe militar contra o governo da Irmandade Muçulmana no Egito. Confira nossas polêmicas:
De que lado da trincheira?
O golpe militar no Egito e a posição escandalosa do PSTU/LIT:

Portugal, a crise e a esquerda

Relato de um visitante 
Portugal, a crise e a esquerda

Um de nossos militantes visitou Portugal em setembro e produziu um relato político acerca da crise pela qual o país tem passado e a atual situação na esquerda. Compartilhamos a seguir uma versão de tal relato adaptada para o público. Marcio Torres, setembro de 2014. 

Portugal foi um dos países europeus mais afetados durante os primeiros anos da atual crise do sistema capitalista. No primeiro momento da crise, o governo colocou praticamente todos os seus recursos a serviço de salvar os grandes bancos privados, o que fez com que o Estado adquirisse uma enorme dívida pública, transferindo para os banqueiros dinheiro extraído (principalmente) da classe trabalhadora, através dos impostos. Agora, enquanto a burguesia está indo muito bem, os trabalhadores enfrentam uma série de ataques ao seu padrão de vida, conforme o governo tenta quitar sua dívida cortando o orçamento de serviços públicos como educação e saúde, demitindo funcionários, alterando as políticas previdenciárias (redução do valor das pensões e aumento do tempo até a aposentadoria) etc. Em síntese, as massas portuguesas passam atualmente pelo segundo ciclo da socialização do prejuízo da burguesia, ao passo que alguns grandes capitalistas foram salvos pelo Estado que eles comandam e utilizaram seu dinheiro para comprar os ativos daqueles que faliram (aumentado assim ainda mais a concentração e centralização de capitais que originalmente levou à crise). Tudo isso é o bem conhecido “pacote de austeridade” imposto pela chamada “Troika” (o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o FMI).
 

Um dos principais reflexos da crise sobre a vida dos trabalhadores é a atual insuficiência de seus salários. Com um salário-mínimo de 485 Euros (do qual dependem 15,2% da população, de acordo com um documento recente do Ministério da Economia), os portugueses enfrentam uma alta de preços dos bens manufaturados (muitos dos quais importados dos grandes centros imperialistas) e até mesmo da comida. Em Lisboa, por exemplo, é difícil encontrar uma boa refeição por menos do que 5 Euros, o que torna comer na rua algo verdadeiramente proibitivo para o cidadão comum, já que ao longo de um mês consumiria mais da metade de um salário-mínimo (ou 280 Euros). Isso obviamente se reverte em uma intensificação da escravidão doméstica à qual muitas mulheres estão frequentemente submetidas.

Outros reflexos da crise podem ser facilmente vistos ao se ler qualquer jornal. Com o recente início do ano letivo, o tópico principal de todos os jornais nas últimas semanas foi a crise do sistema educacional. A edição de 9 de setembro do Metro anunciou uma enorme migração em massa de estudantes das escolas privadas para as públicas, devido à incapacidade dos pais de bancarem as mensalidades. E, apesar da média de 10 alunos por professor alegada pelos órgãos oficiais, a Federação Nacional de Educadores (FNE) afirma que esse dado é falso e que os professores no sistema público de ensino tem se deparado com uma sobrecarga de trabalho (comparada com os padrões anteriores), agravada ainda pelo fato dos professores terem que lidar com uma série de tarefas burocráticas que consomem uma parte razoável do seu tempo e que não possuem relação direta com seu trabalho dentro das salas de aula.

Obviamente, a deterioração das condições de trabalho não é um fenômeno que afeta apenas professores e educadores. Para citar mais um exemplo, muitas empresas privadas tem posto estagiários para cumprirem funções de funcionários plenos – o que é muito lucrativo para os patrões, uma vez que as bolsas desses estagiários são pagas pelo governo e eles não tem os mais básicos dos direitos trabalhistas. Caso questionem a situação, obviamente perderão seu emprego, o que é uma perspectiva tenebrosa para uma geração que tem se definido enquanto “precariada” a partir de diferentes movimentos de desempregados.

Outro tópico quente durante a semana em que estive no país foi a situação do “Novo Banco”. Ele foi criado como uma empresa estatal, após um dos maiores grupos financeiros portugueses, o Grupo Espírito Santo e seu banco, terem quebrado e o Estado ter comprado seus ativos. Após ter usado o dinheiro dos impostos extraídos da classe trabalhadora para salvar os proprietários do Grupo Espírito Santo, o governo agora discute a privatização do Novo Banco. Isso significa que, depois do governo ter limpado a bagunça dos executivos sedentos por lucros e de ter aumentado sua dívida pública ao fazê-lo, banco agora seria novamente posto sob controle desses mesmos parasitas – e muito provavelmente através de um preço baixo.

Todos esses problemas atrelados à crise vem se prolongando desde cerca 2009. Os recentes levantes políticos que tomaram o país nos últimos anos, respondendo a essa situação com massivos protestos de rua e várias greves, ainda ecoam nas ruas de Lisboa. Pode-se facilmente encontrar stencils com palavras de ordem radicais pelos muros da cidade, bem como placas de diferentes grupos políticos, que são bastante presentes na paisagem urbana.

O PC Português (PCP), outrora stalinista e agora abertamente reformista, recentemente pichou stencils nas entradas das principais estações de metrô, exigindo “Fim ao massacre na Palestina!”. Muitas de suas placas podem ser vistas em diferentes bairros, anunciando uma grande festa, realizada no início do mês pelo seu braço editorial, o Avante, que reuniu vários artistas progressistas. O Bloco de Esquerda – bem menor, fundado em 2009 como um partido multi-tendências ao estilo do NPA francês, através da dissolução da seção portuguesa do Secretariado Unificado (cuja seção brasileira é a Insurgência/PSOL) – periodicamente realiza distribuições massivas de seus boletins em alguns pontos de ônibus e estações de metrô mais centrais. Os números recentes desses boletins são principalmente dedicados a debater os efeitos em curso das políticas de austeridade que foram impostas pela União Europeia, e que foram alegremente aceitas pelos políticos portugueses mais conservadores. Também é fácil ver placas do pequeno MAS (Movimento Alternativa Socialista) – a seção portuguesa da LIT-CI (organização internacional do PSTU brasileiro), que recentemente rompeu com o Bloco de Esquerda – muitos dos quais dedicados à campanha do candidato que o grupo lançou nas recentes Eleições Europeias, sob o slogan “Abaixo o Euro”. Outro grupo bastante presente nas ruas de Lisboa, através de uma variedade de placas contra o Euro e também anunciando um “comício operário” que ocorreu em meados de setembro, é o maoísta PCTP (Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses), que tem murais elaborados pintados pelos muros da cidade.

Apesar da variedade de grupos de esquerda, o Partido Socialista foi o que mais cresceu devido à insatisfação popular com as políticas de austeridade. É fácil ver parlamentares do PS nos jornais televisivos e participando de programas de debates, confrontando com certa retórica radical os ministros de governo do CDS-PP e do PSD. Seu tom “radical”, entretanto, é de fato apenas retórica. O PS é um partido com certa influência de massas, mas cujo programa é burguês, e que opera dentro dos limites podres do capitalismo, não estando interessado em apresentar uma alternativa proletária aos pacotes de austeridade impostos pela UE.

Por outro lado, nenhum dos outros grupos mencionados apresenta uma verdadeira solução para os problemas do proletariado. O PCP, apesar de muito grande, é historicamente um grupo de colaboração de classe, que carrega várias traições em suas costas e que presidiu os vários governos provisórios que se seguiram à queda da ditadura nos anos 1970, governando juntamente com a burguesia. Seus enormes outdoors, distribuídos por Lisboa, o apresentam orgulhosamente como um partido “patriótico” (ver foto abaixo), tentando capitalizar a insatisfação com a UE da maneira mais fácil possível.

Os maoístas (cujo líder histórico e fundador deixou o grupo na década de 80, alegando que não havia mais sentido partidos e sindicatos e que a esquerda era “merda pura”, e ainda assim é convidado para reuniões do partido e atividades públicas), apesar da sua suposta ortodoxia revolucionária, defendem a herança podre do stalinismo, que nunca deve ser perdoado por trair vários processos revolucionários com as suas Frentes Populares traiçoeiras. Seguindo o manual de colaboração de classes maoísta, exigem como solução para a crise um “governo democrático e patriótico”, centrado no slogan pelo “retorno do Escudo” (moeda de Portugal antes do Euro).

Entre os (poucos) grupos que reivindicam a independência de classe, o Bloco de Esquerda é o único com mais visibilidade no momento. Mas suas políticas são bastante recuadas, ainda mais agora que as tendências mais radicais o deixaram (a morenista “Ruptura/FER” – agora denominada MAS – e o pequeno “Socialismo Revolucionário”, associado ao CWI de Peter Taaffe), deixando a maioria ligada ao Secretariado Unificado sem oposição. É importante notar que esta maioria, originada no mandelista PSR, não é mais organizada como uma tendência – agora aqueles que querem se manter associados ao SU tem que se filiar individualmente.

Embora tenha uma presença no movimento sindical e em outros setores mais amplos do movimento social, o BE é muito focado na política parlamentar. Em um boletim de junho, uma “Carta para a esquerda”, assinado pelos dois coordenadores nacionais, expressa uma grande decepção com os resultados obtidos pelos grupos de esquerda nas últimas Eleições Europeias, dando-lhe um peso completamente desproporcional em comparação com a importância que as massas em geral deram a ele (expresso em uma abstenção de cerca de 60%). Seu cretinismo parlamentar é tão profundo que ele nem sequer levantar mais algumas das demandas históricas mais elementares da esquerda radical. Em seu boletim mais recente (setembro/outubro), em vez de defender o não pagamento da dívida internacional portuguesa (um instrumento de dependência imposta por capitais imperialistas), o BE exige apenas uma “reestruturação imediata da dívida” (ou seja, que se certifique que Portugal pague a credores internacionais apenas uma taxa “justa”). Além disso, frente ao baixo salário mínimo, em um recente artigo em seu site eles propõem um mero aumento de 60 euros, em vez de apresentar uma luta por um salário mínimo vital, cujo aumento deva ser automaticamente atrelado ao aumento dos preços. Além disso, em alguns de seus cartazes espalhados por Lisboa o BE exige “Fora com o governo – respeitar a Constituição”. Pode-se perguntar se aqueles que desrespeitam as leis antioperárias e antiprotesto também devem ser chamados a “respeitar” a institucionalidade burguesa representada pela Constituição.

Outdoors de grupos de esquerda em Lisboa. Da esquerda para a direita: PCTP, PCP e Bloco de Esquerda. Clique para ampliar.

Afirmando representar “uma nova esquerda” contra a insuficiência da política desses grupos, o morenista MAS rompeu em 2012 com o BE. Mas de fato não tem nada de “novo”, uma vez que antes de entrar para o BE como a tendência “Ruptura/FER”, ele já existia havia um bom tempo. Na década de 1970, enquanto PRT, participou em protestos convocados pelo PS (com suprote da CIA), que se opunham pela direita aos governos provisórios do PCP/MFA – posição que rapidamente trocaram por uma caracterização do oficialista MFA (Movimento das Forças Armadas) como uma formação protossoviética e do governo como “Kerenskista” (de acordo com a terminologia revisionista de Moreno e sua “revolução democrática”) (ver La careta de izquierda de Moreno, em La Verdad Sobre Moreno, da então revolucionária Liga Espartaquista). Eles também já haviam antes composto um partido unitário com os mandelistas, dissolvendo-se em meados dos anos 70 para formar o PSR. Sua ruptura com o BE foi pela direita. Confirmando que eles realmente não representam nada de novo, ao invés dessa ruptura ter sido um afastamento à esquerda em relação ao cretinismo parlamentar sustentado pela maioria do Secretariado Unificado dentro do BE, o motivo da separação de 2012 foi que essa maioria se recusou a defender um governo conjunto com o reformista e orgulhosamente “patriótico” PCP! (veja a declaração do Comitê Executivo do MAS). O que podemos dizer destes “trotskistas”, para quem uma aliança eleitoral com reformistas ex-stalinistas é algo tão central e que, inclusive, propõem um governo conjunto com eles!? Além disso, de acordo com o pequeno grupo do CWI em Portugal, a recente campanha do MAS durante as Eleições Europeias foi totalmente centrada no lema “O Euro afunda o país” (mais “prisão para quem roubou e individou o país”, “fim dos privilégios dos políticos” e “salário mínimo de 600 Euros já”), sem fazer menção a capitalismo / socialismo – o que de fato se reflete nos cartazes de rua do grupo (veja a polêmica do CWI).

Algo digno de nota é a ausência considerável de fortes movimentos de jovens entre a esquerda portuguesa – com a importante exceção da cidade de Coimbra, em que a vida em geral está extremamente ligada à Universidade de Coimbra e, portanto, tem uma militância juvenil um tanto forte, relacionada com as causas dos estudantes. Essa ausência é compreensível, considerando-se que em 2013 o órgão governamental “Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida” afirmou que Portugal é sexto país com a população mais velha do mundo, sendo 42 a idade média de seus cidadãos. Além disso, desde o começo da atual crise muitos jovens deixaram o país em busca de melhores oportunidades de trabalho. A combatividade na esquerda é geralmente associada a uma presença forte de jovens entre suas fileiras – tanto que Lenin uma vez disse em tom jocoso que “todo revolucionário deveria ser fuzilado depois de passar dos 35 anos”. Portanto, este é certamente um fator (dentre outros) por trás da falta de combatividade na esquerda portuguesa que nos referimos acima.

Apesar da profunda crise pela qual o país está atravessando, a situação política não é o que deveria ser em termos de combatividade e lutas, já que os protestos em massa e as ondas de greves parecem ter refluído consideravelmente – e a esquerda local certamente tem sua parcela de responsabilidade nisso, por não estar à altura das tarefas políticas impostas pela crise. Isso claramente reforça a falta de confiança que classe trabalhadora tem em grupos e partidos que se reivindicam socialistas. Para encerrar este breve relato com uma anedota, na manhã no dia 11 de setembro os metroviários realizaram uma paralisação. Enquanto cerca de 4 mil trabalhadores (de acordo com o Diário Nacional) marcharam para a Assembleia da República (o Congresso português) exigindo um aumento salarial de 3%, muitos simplesmente se reuniram em frente das estações fechadas, à espera das 11h, quando os funcionários do metrô prometeram reabrir, permitindo que a rotina normal seguisse. Na noite do mesmo dia, no entanto, uma enorme multidão se reuniu no centro histórico de Lisboa para a 5ª edição da Vogue Fashion Night Out, um evento dedicado a estimular o consumo em lojas de rua, que é um “luxo” ao qual cada vez menos trabalhadores portugueses podem se dar. Esta cena absurdamente contraditória só reforça a necessidade urgente de lutar pela construção de um partido revolucionário, capaz de apresentar uma solução real para a crise do capitalismo e contra a “solução” de austeridade da Troika.

Arquivo Histórico: Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

Em homenagem a todas as trabalhadoras, publicamos neste Dia Internacional da Mulher Trabalhadora dois artigos de interesse histórico para os defensores dos direitos da mulheres que se reivindicam ou se interessam pela tradição trotskista.

O primeiro é um artigo escrito em 1954 por Evelyn Reed, importante revolucionária norte-americana, ativista em prol dos direitos das mulheres e dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP/EUA). O outro foi escrito pela então revolucionária Liga Espartaquista dos EUA em 1975, em seu periódico Women and Revolution (“A mulher e a Revolução”), e traduzido para o português pelo Reagrupamento Revolucionário. Boa leitura!

Dia Internacional da Mulher Um Feriado Proletário (W&R, 1975)

Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana

Comunicamos aos nossos leitores a publicação de três importantes documentos históricos, escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP (Socialist Workers Party) norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a posição oportunista do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a revolução deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional, já então sob direção pablista.

Tais documentos são de grande importância histórica na luta contra o revisionismo que dominou o movimento trotskista, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987). Acesse:

      Debate com a FT (LER-QI) sobre a Líbia/Síria

      Os rebeldes na Líbia e na Síria e a posição revolucionária 

      Rodolfo Kaleb, janeiro de 2014

      Em um artigo de 2013 lidando com os desenvolvimentos da guerra civil que se desenrola há quase três anos na Síria, no qual critica diferentes posições políticas na esquerda, a Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (seção brasileira da Fração Trotskista) destacou, com uma nota de rodapé, o seguinte aspecto referente à guerra imperialista lançada contra a Líbia no ano de 2011:

      “Algumas correntes de origem espartaquista criticam a possibilidade de alianças tático-militares com os setores rebeldes na Líbia, não por embelezar Kadafi como uma direção ‘anti-imperialista’, mas por considerar que a intervenção militar imperialista configurava uma guerra de opressão nacional, motivo pelo qual os revolucionários supostamente deveriam se localizar no campo militar oposto a essa intervenção com um programa político independente. Essa lógica erra porque não considera que, mesmo tendo sido o levante das massas contra Kadafi desviado e controlado pelas direções burguesas aliadas ao imperialismo, seguia sendo sob essa base – por ter sido a protagonista de ações espontâneas de massa – que seria mais fecunda a luta política para colocar de pé um setor de vanguarda da classe trabalhadora com uma política independente das distintas frações burguesas.”

      A crise Síria e a necessidade de uma política revolucionária, 25 de setembro de 2013.
      http://www.ler-qi.org/A-crise-Siria-e-a-necessidade-de-uma-politica-revolucionaria

      É um pouco óbvio para os que acompanham nossas publicações que essa crítica, apesar de não sermos nominalmente citados, é dirigida a nós, assim como possivelmente a outros grupos de “origem espartaquista”. No nosso caso, isso deve dizer respeito ao fato de que reivindicamos que nas décadas de 1960 e 1970, a Liga Espartaquista dos Estados Unidos foi o grupo que melhor representou a continuidade da estratégia e do programa do trotskismo após a destruição da Quarta Internacional pelo revisionismo pablista. Posteriormente, a Liga Espartaquista (e sua corrente internacional) evoluiu cada vez mais para se tornar o que é hoje: uma seita burocratizada, realizando capitulações recorrentes tanto ao stalinismo quanto ao imperialismo [1].

      Nós polemizamos diretamente com a LER-QI (FT) em nosso texto sobre a Líbia em 2011 e discutimos ativamente sobre o assunto com sua militância no Rio de Janeiro. Não temos conhecimento de outras críticas (ao menos não da mesma profundidade) escritas sobre a LER-QI por qualquer outra corrente de “origem espartaquista”. Mas, deixando de lado o fato de que tal crítica poderia ter sido feita de forma mais direta e clara a nós e outros grupos, o parágrafo faz inicialmente uma descrição justa da posição que adotamos na guerra imperialista contra a Líbia em 2011, ocasião em que criticamos a posição adotada pela FT [2]. Aproveitamos então para dar continuidade a tal polêmica, esclarecendo melhor alguns pontos. 

      O caráter da guerra na Líbia

      A LER-QI questiona o fato de que consideramos que “a intervenção militar imperialista configurava uma guerra de opressão nacional”. Afirmamos que na Líbia se deu, cerca de um mês após o início da guerra civil interna, no qual se confrontavam os rebeldes de um lado e o exército de Kadafi de outro, uma investida imperialista em larga escala, liderada por França, Inglaterra e Estados Unidos, no qual os imperialistas adotaram o lado dos rebeldes e se coordenaram com eles para impor sobre a população da Líbia os seus interesses. Não conseguimos entender o que a LER-QI quer dizer com tal questionamento. Ela não faz nenhuma tentativa séria de demonstrar porque a guerra não seria (a partir de 20 de março de 2011, com o início dos bombardeios de auxílio aos rebeldes) uma guerra de caráter imperialista.

      A LER-QI não nega que a intervenção aconteceu, pelo contrário: diz se posicionar contra ela. Concorda que eram potências imperialistas atacando (em colaboração com os rebeldes) buscando derrubar a ditadura de Kadafi para impor seus próprios interesses. Como se deve chamar uma intervenção na qual as potências capitalistas atacam o governo de uma nação oprimida (por mais tirano que seja tal governo) para derrubá-lo? Para nós, isso se chama uma guerra imperialista contra uma semicolônia moderna. Todas as formulações anteriores da FT parecem apontar para isso:

      “Os imperialismos, legitimados como ‘apoiadores’ dos rebeldes pela política da CNT, esperaram longos meses até que esta direção tivesse legitimidade suficiente, para então armar as milícias controladas pela direção burguesa. O resultado não tardou. David Cameron e Nicolas Sarkozy marcharam triunfantes por Benghazi ao lado da CNT tendo sido ‘como heróis’…”.

      “A dialética existente na Líbia é que apesar de haver caído uma ditadura sangrenta, isso não se transformou em uma vitória para as massas, posto que está sendo capitalizado pelos imperialismos e pelo CNT. Esta conclusão é a derivação do fato de que não se pode separar a queda da ditadura da maneira como ela se deu. E não aconteceu a partir da ação independente das massas, mas sob o apoio da OTAN. A derrubada de uma ditadura não pode ser considerada em si um ‘tremendo triunfo para as massas’, se quem se beneficia são os imperialismos.” 

      Até quando a LIT-PSTU seguirão insistindo em seus erros?1º de outubro de 2011. Ênfase nossa.
      www.ler-qi.org/spip.php?article3146

      Nesse caso, os imperialistas contaram com o apoio de uma força militar nativa, forjada sob a liderança do reacionário Conselho Nacional de Transição líbio, que foi o exército rebelde. Isso não apaga o fato de que os bombardeios aéreos imperialistas, os veículos aéreos não-tripulados, o apoio técnico e treinamento militar oferecido aos rebeldes – tudo isso foi central para que triunfasse a aliança entre rebeldes e imperialistas. Em dado momento, a LER-QI chegou a elaborar uma descrição dos rebeldes que achamos excelente para explicar o papel por eles cumprido: “tropas terrestres” do imperialismo.

      “A preponderância da ação imperialista não foi um ‘detalhe’, como quer fazer parecer a LIT: ela negou a possibilidade de uma atuação independente das massas, fazendo com que os ‘rebeldes’ atuassem enquanto ‘tropa terrestre’ da intervenção aérea das potências, seguindo seus planos…”.

      “Não basta, agora e tardiamente, alertar sobre o CNT. É preciso entender a mudança da situação, que ora favorece grandemente a burguesia imperialista. Subestimar com o papel da OTAN como ator fundamental da queda de Kadafi ajuda a alimentar ilusões de que os inimigos dos povos oprimidos podem atuar em favor de seus interesses.” 

      A LIT acha progressista a “unidade de ação entre as massas e o imperialismo” na Líbia? 1º de setembro de 2011.
      http://www.ler-qi.org/A-LIT-acha-progressista-a-a-unidade-de-acao-entre-as-massas-e-o-imperialismo-na-Libia

      De fato, a intervenção imperialista não foi um “detalhe”. A OTAN foi o “ator fundamental” na queda do governo ditatorial de uma nação oprimida. Como é possível então questionar que ocorreu uma guerra de opressão imperialista contra a Líbia? Para nós, essa situação “parece-se muito” com uma guerra desse tipo. Em outros casos de guerra dos imperialismos contra uma semicolônia, nas quais estes tinham o mesmo objetivo de derrubar um governo ditatorial, mas para seus próprios interesses, a LER-QI tomou corretamente o lado do governo da nação oprimida, como foi o caso da guerra contra o Iraque em 2003. Nessa ocasião, a LER-QI compreendeu que “o ponto de partida do programa revolucionário é definir que a guerra do Iraque é uma clara guerra de agressão imperialista contra uma nação oprimida”. E definiu sua linha da seguinte forma:

      “Neste tipo de guerras, os revolucionários nos localizamos no campo militar dos países semicoloniais, independentemente do caráter do regime que os governe porque o triunfo do país imperialista significará duplas correntes para o povo da nação semicolonial, e padecimentos piores ainda do que com sua ditadura doméstica. No caso do Iraque nos localizávamos pela derrota militar do imperialismo norte-americano e de sua coalizão, apesar do caráter reacionário e ditatorial de Saddam Hussein.” 

      O movimento anti-guerra e a guerra/ocupação do Iraque, junho de 2005. Ênfase nossa.
      http://www.ler-qi.org/spip.php?article551

      Os imperialistas sempre contam (em maior ou menor escala) com o apoio de setores da burguesia nativa, que é uma classe essencialmente reacionária. No Iraque, por exemplo, o imperialismo norte-americano contou com o apoio de grande parte da burguesia curda (os esquadrões “Peshmerga”), e estas forças acabaram tendo popularidade devido ao histórico de opressão de Saddam Hussein contra o povo curdo e tentaram se apresentar como “libertadores”. Isso não deve mudar o fato de que os revolucionários se localizaram no campo militar oposto ao imperialismo (e àqueles que o apoiaram), ao mesmo tempo em que denunciariam a opressão e os crimes de Saddam Hussein contra a classe trabalhadora e o povo curdo, e suas décadas de colaboração com o imperialismo.

      Quando se trata da Líbia, entretanto, a LER-QI utiliza o fato do que antes chamou de “tropas terrestres do imperialismo” terem certo apoio popular (e também na esquerda oportunista) para se esquivar de tratar a situação como um caso de guerra imperialista. Como já argumentamos em nossa polêmica anterior, o fato de não haver unanimidade na esquerda (como houve no caso do Iraque) e de partidos dos quais a FT busca constantemente se aproximar (como o PO argentino) terem apoiado a “revolução” dos rebeldes líbios aumentou a pressão para que a ela tomasse uma posição dúbia e vacilante, evitando a caracterização óbvia de que se tratou de uma guerra de opressão imperialista. Caracterização essa que, conforme a LER-QI deixou claro em 2005, em relação ao Iraque, não deixa dúvidas para qual deve ser a tarefa dos revolucionários, “independentemente do caráter do regime” da nação sob ataque imperialista.

      Dessa forma, a nossa crítica a LER-QI sempre se baseou no fato de que, apesar de reconhecer o papel decisivo do imperialismo na dinâmica dos acontecimentos na Líbia (ao contrário do que fizeram o PSTU e outras correntes, que simplesmente taparam os olhos para isso e adotaram uma caracterização oportunista de “revolução” liderada pelo CNT em colaboração com a OTAN), a LER-QI não tomou as posições políticas compatíveis com a situação que por vezes ela própria descreveu. Agora ela está tentando fazer malabarismos teóricos ao dizer que não teria se tratado de uma guerra de opressão imperialista, para justificar o fato inexplicável de que não tomou a posição de defesa militar (mantendo o combate político contra) do governo da nação oprimida, que se confrontava, apesar de seus interesses originais, com o imperialismo e sua “tropa terrestre”. [3]

      (Para mais detalhes no que diz respeito a quais táticas e palavras de ordem os revolucionários poderiam usar para, ao mesmo tempo em que combatiam os imperialistas e rebeldes, lutar contra a ditadura de Kadafi, recomendamos a leitura de nossa polêmica anterior e também dos demais materiais reunidos no livreto “Líbia e a Esquerda”, que contém também declarações e polêmicas com outros grupos). 

      Os vaivéns na caracterização do movimento rebelde na Síria e Líbia

      Quando tomamos o lado contrário à intervenção imperialista e seus lacaios rebeldes na Líbia, não estávamos indo contra nenhum “levante das massas contra Kadafi”. É certo que os rebeldes tinham certo apoio popular, mas esse exército nada tem a ver com essa imagem que os morenistas (PSTU e cia.) e outros revisionistas tentaram criar. Ademais, Kadafi também tinha grande apoio popular, como demonstrou em atos massivos na capital e isso em nada afeta nossa linha de oposição estratégica contra ele. A LER-QI está inadvertidamente aceitando a caracterização dos oportunistas social-imperialistas quando nos critica dizendo que, por defendermos um combate aberto contra os rebeldes em face à sua ação coordenada com o imperialismo, estaríamos nos enfrentando com “a base”, dentre a qual seria supostamente “mais fecunda” a luta para a construção de uma vanguarda revolucionária.

      A LER-QI acredita, tal qual os oportunistas que ela criticou (principalmente o PSTU), que a base de apoio do Conselho Nacional de Transição líbio era de alguma forma progressista. Como apontamos em nossos artigos anteriores sobre o assunto, é fundamental diferenciar possíveis ilusões que tenham surgido na população a respeito das promessas de democracia dos elementos e ações concretos realizados pelos que compunham o exército dos rebeldes: os atos brutais de racismo perpetrados, a coordenação com a intervenção da OTAN, a confiança nas potências imperialistas, e a tomada do poder por setores da burguesia escudados em um fundamentalismo religioso grotesco.

      É importante lembrar que nossa defesa militar do regime da nação oprimida no caso líbio diz respeito ao seu confronto com os veículos aéreos não-tripulados e os aviões de bombardeio das potências imperialistas, as tropas do aparato rebelde (armados pela OTAN) e os especialistas militares imperialistas. Frente, por exemplo, às perseguições que o regime de Kadafi realizou contra populações civis desarmadas e movimentos de trabalhadores independentes, nos posicionamos ao lado destes últimos, assim como mantemos nossa oposição política intransigente a tudo que tal ditador representava politicamente: acreditamos que este devia ser derrubado pelo proletariado, e não pelas potências imperialistas e seus lacaios locais.

      Mas os rebeldes líbios não eram parte de um “levante de massas” (como a LER-QI considera que ocorria, mesmo reconhecendo que foi “desviado” pelos interesses imperialistas). A mesma indecisão da LER-QI pode ser visto no caso da Síria (onde a intervenção imperialista ainda não aconteceu):

      “Contra aqueles que veem o regime de Assad como progressista e anti-imperialista e afirmam que não está reprimindo uma luta popular, mas defendendo-se da tentativa dos EUA e Israel de derrotá-lo, sustentamos que na Síria há em curso uma luta legítima contra um regime ditatorial que estourou em março de 2011 como parte do processo mais geral da ‘primavera árabe’.”

      “Este levantamento popular tem profundas motivações democráticas e sociais. Ante a repressão brutal de Assad, o levantamento popular se militarizou, e ainda que persistam elementos da rebelião que sacudiu o regime, sobretudo os conselhos locais que organizam a vida cotidiana em cidades sob controle da oposição ou a Coordenação de Comitês Locais surgida no início dos levantamentos, os que estão ocupando o centro da cena no plano militar são organizações como o Exército Sírio Livre, que atua patrocinado pela Turquia, e em última instância conta com o apoio do imperialismo norte-americano.” (Ênfase nossa) 

      — Abaixo a ditadura de Assad, fora Israel e o imperialismo da Síria, 30 de maio de 2013.
      http://www.ler-qi.org/Abaixo-a-ditadura-de-Assad-Fora-Israel-e-o-imperialismo-da-Siria

      Duas coisas se misturam aqui. Em primeiro lugar, está a crítica correta às correntes stalinistas e nacionalistas terceiro-mundistas que apoiam Assad e consideram seu regime “anti-imperialista” e “progressivo”. Porém, não é verdade que a guerra civil na Síria consiste apenas em uma luta entre Assad e um “levante popular” que “se militarizou”. Não se deve confundir os protestos por democracia que aconteceram na Tunísia, no Egito e mesmo (em um primeiro momento) na Síria, sob o contexto da “Primavera Árabe”, ou o ódio justo do povo contra Assad, com a formação de um exército sob a liderança de setores burgueses e a guerra que há anos se desenrola no país.

      Uma vez estabelecido enquanto força beligerante dirigida pelo CNS, o Exército Livre Sírio é um conjunto de milícias que, apesar de heterogêneo, é um aparato armado controlado pela burguesia. A luta dos rebeldes associados ao ELS não pode ser confundida ou considerada parte de uma “luta legítima contra um regime ditatorial”, mas um desvio de qualquer anseio realmente progressivo contra Assad. Mesmo os Comitês Locais de Coordenação, que a LER-QI afirma representarem atualmente a persistência dos “elementos da rebelião que sacudiu o regime” inicialmente, integram há tempos o CNS, estando submetidos à sua direção burguesa e pró-imperialista. O mesmo vaivém pode ser visto no parágrafo que destacamos no começo deste artigo. Apesar de ter sido “desviado e controlado pelas direções burguesas aliadas ao imperialismo”, seguia havendo um suposto “levante das massas” contra Kadafi.

      A LER-QI também concede que os trabalhadores se localizem no campo militar dos rebeldes:

      “Apoiar consequentemente a luta de todos que querem derrubar Assad passa por colocar abertamente que não, os trabalhadores e o povo não podem ter nenhuma confiança nestes setores [o CNS e a direção do Exército Livre Sírio], ainda que se localizem em seu campo militar, pois caso a ditadura síria caia rapidamente trairão aqueles que lutaram em nome de melhores condições de vida e libertação do jugo da burguesia local e imperialista.” (ênfase nossa).

      Abaixo a intervenção imperialista na Síria! 3 de setembro de 2013.
      http://ler-qi.org/Abaixo-a-intervencao-imperialista-na-Siria

      Os revolucionários chamam os trabalhadores a defender um lado militar numa guerra sempre que isso implica defender seus interesses. Defendemos direitos democráticos sob ataque no caso de um golpe reacionário contra a democracia burguesa; defendemos os Estados operários deformados contra tentativas contrarrevolucionárias de restauração capitalista; defendemos as nações oprimidas contra o imperialismo e seus lacaios, como foi o caso da Líbia em 2011 (defesa da qual a LER-QI vergonhosamente se absteve ao não tomar o lado do regime da nação subjugada).

      Tomamos essas posições não como fins em si mesmos, mas como forma de avançar a luta pela revolução socialista. Porém, é do interesse dos trabalhadores (seria uma vitória parcial) ver derrotados os imperialismos numa guerra contra uma nação oprimida ou contra um Estado operário deformado, mesmo que isso não signifique de imediato um triunfo revolucionário. Mas qual é o interesse dos trabalhadores em ver um triunfo militar dos rebeldes na Síria? Se a LER-QI rejeita a falácia morenista da “revolução democrática” [4], por que concorda em estar do lado militar de uma investida contra Assad que visa, na “melhor” das hipóteses, apenas reconstruir a ditadura da burguesia?

      Essas são perguntas que LER-QI não tem como responder sem cair em contradição. De fato, se sabe que os rebeldes, caso vençam a guerra civil, “rapidamente trairão aqueles que lutaram em nome de melhores condições de vida e libertação do jugo da burguesia local e imperialista”, então porque considera que os trabalhadores podem se localizar no seu campo militar? Isso muito se parece com a receita morenista, que sabe que as investidas de movimentos burgueses resultarão na manutenção da ordem capitalista e em traições, mas mesmo assim os apoia. Em 2011 na Líbia, os trabalhadores tinham algo a ganhar ao lutar contra o bloco OTAN/rebeldes: iriam impedir uma opressão e exploração ainda maior do seu país (e poderiam aproveitar isso para preparar a luta decisiva pela revolução proletária contra Kadafi). O que os trabalhadores sírios tem a ganhar tomando o lado militar do exército rebelde? Substituir um regime ditatorial por outro igualmente repressor para os trabalhadores? (ou existe alguma confiança nas supostas credenciais democráticas da corja burguesa do CNS?).

      Na Síria, os revolucionários tem o dever de defender os trabalhadores e populações civis atingidas tanto por Assad e quanto pelos rebeldes, e de preparar um movimento proletário contra ambos essas forças burguesas. Não aconteceu ainda na Síria um ataque imperialista que levasse os revolucionários a tomar o lado militar daqueles que se opuserem a tal intervenção. Porém, é inegável que as tropas do ELS são aspirantes diretas a “tropas terrestres” das potências imperialistas [5]. Os revolucionários não podem estar “no campo militar” dos rebeldes, e tampouco estar em “alianças tático-militares” com eles (como a LER-QI hoje defende que era possível na Líbia). A séria ameaça de intervenção imperialista na Síria no fim de 2013 deveria ter deixado isso ainda mais claro!

      Ao contrário, para lutar por uma saída revolucionária na Síria, é preciso chamar os trabalhadores que apoiem os rebeldes a romperem imediatamente com tal movimento e não lhe prestar nenhum auxílio em seus intuitos reacionários. Na guerra civil que se desenrola, a luta dos rebeldes é para derrubar Assad para manter a Síria submetida ao imperialismo: não é um movimento amplo com intenções progressivas (e onde seja possível o debate) no qual os revolucionários influiriam para oferecer um rumo anticapitalista, mas sim um exército controlado por cúpulas burguesas.

      A raiz dessa posição vacilante da LER-QI é a sua caracterização flutuante dos movimentos rebeldes que surgiram Líbia e na Síria. Vimos acima que os rebeldes na Líbia teriam, na opinião anterior da LER-QI, cumprido o papel de “tropas terrestres” das potências imperialistas. Mas, em sua nota de crítica dirigida a nós, a LER-QI defende a “possibilidade de alianças tático-militares” com esses mesmos rebeldes em meio a uma intervenção imperialista. Imaginamos que nenhum militante da LER-QI defenderia “alianças tático-militares” com “tropas terrestres” do imperialismo, e nem achamos que essa foi a intenção de tal declaração. Tal absurdo flui do fato de que ora os rebeldes são caracterizados como um aparato militar burguês (que pode colaborar com o imperialismo), e ora como algum tipo de força popular lutando contra a ditadura, ainda que sua liderança seja burguesa. 

      A LER-QI e a construção do partido revolucionário na Líbia e na Síria

      Enquanto o PSTU tem toda uma teoria revisionista para basear sua posição de apoiar qualquer força que tenha popularidade contra um regime burguês (por mais reacionária que seja tal força), a LER-QI fica perdida em cima do muro, balançando entre a dúvida acerca do caráter imperialista que o conflito líbio assumiu e um impulso oportunista de conceder estar “no campo militar” de um movimento tão embelezado entre setores da esquerda. Nós defendemos também a formação de um movimento proletário “independente das distintas frações burguesas”. Mas diante de uma intervenção imperialista (que também segue um risco no caso da Síria), uma tarefa central de um movimento como esse seria esmagar o imperialismo e suas “tropas terrestres”, ainda que para isso fosse necessário lutar ao lado das tropas leais ao regime em determinado momento.

      A Fração Trotskista parece acreditar que defender possíveis “alianças tático-militares” com os rebeldes na Líbia e conceder que os trabalhadores podem “se localizar no campo militar” deles na Síria contribui para a construção do partido revolucionário. De fato, ela diz que as correntes que, como nós do Reagrupamento Revolucionário, tomaram o lado militar do regime líbio contra o bloco da OTAN/rebeldes, erraram porque foram contra a base em meio a qual “seria mais fecunda a luta política para colocar de pé um setor de vanguarda da classe trabalhadora com uma política independente das distintas frações burguesas”.

      Essa posição da LER-QI parte de um objetivismo desastroso no que diz respeito à construção da vanguarda revolucionária. De que forma a política trotskista de defesa da nação oprimida atrapalha a construção do partido revolucionário e por que essa intenção “seguia sendo”, apesar de tudo que se desenvolveu no país, supostamente “mais fecunda” entre a base de apoiadores dos rebeldes? Concretamente, discordamos que a base social dos rebeldes, politicamente pró-imperialista e sem qualquer delimitação de classe, pudesse ser considerada o sujeito social de uma revolução socialista, ou fértil para a construção do partido revolucionário.

      Em linhas gerais, as posições trotskistas podem ter certa impopularidade temporária. Muitos poderiam achar que defender militarmente Kadafi ou Assad (no caso de intervenção na Síria) contra o imperialismo seria capitular ao tirano. Muitos não compreendem que não queremos que esses ditadores sejam derrubados pelos rebeldes, justamente porque defendemos que eles devem ser derrubados por uma revolução proletária autêntica. O PSTU, com o método que lhe é característico, não poupa acusações de “capitulação ao ditador” a todos aqueles que não seguem a sua cartilha objetivista da “revolução síria”, supostamente uma “revolução socialista inconsciente”.

      Enquanto nós não sabemos as condições específicas nas quais o partido revolucionário será construído na Líbia ou na Síria, o que sabemos com toda certeza é que esse partido não será forjado por aqueles que temem a impopularidade temporária ou capitulam às ilusões de setores da população aceitando que estes tomem o lado dos rebeldes. Nem esse partido será construído se abstendo da tarefa leninista de tomar o lado da nação oprimida contra uma intervenção do imperialismo (ao mesmo tempo em que se mantém as denúncias e o combate político contra seu regime).

      Além do mais, não se deve subestimar as possibilidades da política marxista. Na Líbia atual, onde os imperialistas e seus aliados nativos obtiveram sucesso em derrubar o regime (sob o aplauso de muitos revisionistas), a situação não poderia ser mais desesperadora para a classe trabalhadora [6]. O fator objetivo da derrota é terrível para os trabalhadores líbios, mas muitos poderiam se lembrar de uma organização de vanguarda que alertasse de antemão para o fato de que a vitória militar dos rebeldes não levaria a nenhuma conquista democrática ou social, muito pelo contrário.

      Quando esse prognóstico se demonstrasse acertado, isso iria aumentar significativamente a autoridade dos revolucionários. Apesar dos seus graves erros em não tomar o lado militar do regime líbio na guerra contra a OTAN e em confundir os rebeldes como parte de um “levante de massas” legítimo, a LER-QI estava correta na época ao expor aqueles oportunistas que consideraram a vitória imperialista uma “tremenda vitória revolucionária”. Os trabalhadores líbios iriam querer entender porque agora ela está reivindicando a “possibilidade de alianças tático-militares” com os rebeldes que os tem massacrado desde que chegaram ao poder. 

      NOTAS

      [1] Para nossas diferenças com a SL e sua recente capitulação ao imperialismo norte-americano, conferir A Liga Espartaquista Apoia as Tropas Americanas no Haiti, de 15 de fevereiro de 2010.

      [2]Conferir PSTU, Fração Trotskista e a defesa da Líbia contra o Imperialismo, de novembro de 2011.

      [3] Cabe ressaltar que, em dois artigos mais recentes, escritos após termos preparado a versão inicial desta polêmica, a LER-QI buscou se esquivar dessa posição reafirmando abstratamente a necessidade de defender as nações oprimidas no caso de ataques imperialistas. Está claro que sua falta de firmeza na caracterização do conflito líbio e sua posição dúbia – de não ter tomado o lado militar de uma nação que foi brutalmente atacada por várias forças imperialistas e que teve reforçada as “duplas correntes” que oprimem seu povo – tem gerado algum mal estar interno.

      Nesses artigos mais recentes, a LER-QI tenta recuperar certo ar ortodoxo e fala ostensivamente em defender as nações oprimidas e também em combater os imperialistas e seus aliados “rebeldes” na Líbia, mas mantém toda a nebulosidade ao falar da estratégia de derrotar Kadafi sem deixar claro que, frente à investida da OTAN, havia se tornado uma tarefa revolucionária defender a vitória militar de suas tropas, que apresentaram resistência ao ataque imperialista.

      Conferir Os marxistas frente à guerra civil e o caso sírio e As guerras de nossa época e a política dos revolucionários, ambos de dezembro de 2013. Disponíveis em:

      http://www.ler-qi.org/Os-marxistas-frente-a-guerra-civil-e-o-caso-sirio

      http://www.ler-qi.org/As-guerras-de-nossa-epoca-e-a-politica-dos-revolucionarios 

      [4] Para o leitor não familiarizado com a tradição morenista, recomendamos a leitura de nossa polêmica com a CST (PSOL) sobre a Síria, Movimento dirigido pela oposição burguesa ou “revolução democrática”?

      Também nossa polêmica com a FT, Fração Trotskista (LER-QI) e sua ruptura incompleta com o morenismo.

      [5] Para mais sobre as posições do Reagrupamento Revolucionário sobre a guerra civil que se desenrola na Síria e a ameaça imperialista, conferir O Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários e Acerca dos recentes eventos na Síria,

      [6] Na ocasião, nós do Reagrupamento Revolucionário publicamos a nota “Derrota para os Trabalhadores na Líbia. Combater o Governo do Conselho Nacional e o Imperialismo!

      Arquivo Histórico: Portugal 1975-76

      Convidamos nossos leitores a conferirem a nova publicação do nosso Arquivo Histórico. Em sequência aos artigos postados anteriormente sobre a luta de classes em Portugal em 1974, acrescentamos este boletim, também publicado em português pela então revolucionária Liga Espartaquista, de dezembro de 1976. Os artigos que compõem o boletim apareceram em Workers Vanguard entre 1975 e 1976 e dão continuidade às posições programáticas e debates sobre a revolução portuguesa.


      Eleições fingidas em Portugal (16 de abril de 1975) / Extrema direita portuguesa sonda o ambiente nas eleições (27 de abril de 1976) / Não há escolha nas presidenciais Candidato das forças armadas ameaça os trabalahdores portugueses (30 de maio de 1976) / Confrontado pela Spartacist League Diretor do República defende o fura-greves Carvalho (11 de junho de 1976) / Eleito presidente o general “da lei e da ordem” O PC em apuros nas eleições portuguesas (25 de junho de 1976).

      Arquivo Histórico: Terceira Conferência do Comitê Internacional

      Terceira Conferência do Comitê Internacional:
      Derrota para o Trotskismo Mundial
      Originalmente publicado em Spartacist No. 6, junho-julho de 1966. Traduzido para o português em setembro de 2012 pelo Reagrupamento Revolucionário.
       
      É uma amarga ironia que o Newsletter(órgão da Socialist Labour League [Liga Trabalhista Socialista] britânica) tenha tido como manchete do seu artigo sobe a conferência de abril do Comitê Internacional “Reconstruindo a Quarta Internacional”. O resultado aparente da conferência: Voix Ouvrière (um grupo trotskista francês antes sem relações com ambos o CI ou o Secretariado Unificado) foi posto para fora e o grupo Espartaquista expulso. Assim foi “reconstruída” a Quarta Internacional.
       

      O rompimento com o grupo Espartaquista foi conseguido através de um pretexto organizativo bastante transparente. O editor de Spartacist, James Robertson, um delegado na conferência, se absteve de participar de uma das sessões durante a tarde e depois se recusou a “confessar” que essa ausência era uma violação de princípio ou uma expressão de “chauvinismo pequeno-burguês norte-americano”. A sua recusa em se “desculpar apropriadamente” foi considerada um desvio do centralismo democrático. Foi grotesco que um rompimento internacional tenha sido precipitado por uma regra não declarada sobre presença que só foi aplicada à delegação Espartaquista; tão grotesco que, de fato, nenhuma seção do CI encontrou ainda a coragem para tornar este fato público.
       
      Pelo contrário, o American Committee for the Fourth International [Comitê Norte-americano pela Quarta Internacional], que antes havia se proclamado como um defensor ardente da unidade, de repente “descobriu” que as posições do grupo Espartaquista são incompatíveis com a participação no CI, criando uma cortina de fumaça de acusações políticas no jornal Bulletin do ACFI de maio de 1966 para explicar o rompimento inesperado.
       
      Um balanço crítico
       
      Já que todos que apoiam uma unificação principista entre os trotskistas revolucionários devem estar surpresos e confusos com essa reviravolta, é necessário rever criticamente as contribuições políticas e os eventos da Conferência de Londres, para poder determinar o que causou o racha.
       
      A maior apresentação da conferência foi feita por Cliff Slaughter, secretário do CI, sobre “Reconstruir a Quarta Internacional”, a resolução internacional publicada antes da conferência. Foi incorporado ao resumo por Slaughter um veemente ataque contra a atividade política e caráter do grupo Espartaquista e um ataque especial contra Robertson, como notado acima. Enquanto nossa delegação votou em apoio à resolução, ela forçosamente se absteve de votar sobre o relatório de Slaughter.
       
      A nossa posição
       
      O grupo Espartaquista foi à conferência por estar em acordo político básico com as principais posições publicadas pelo Comitê Internacional. Nós permanecemos em acordo político básico com a resolução do CI, apesar de algumas exceções particulares.
       
      O camarada Slaughter caracterizou o contexto objetivo atual como um de “crescente crise do imperialismo”, especialmente desde 1956. Ele viu a classe trabalhadora como cada vez mais agitada pelo mundo e rapidamente avançando para expor e rejeitar as tradicionais burocracias operárias. Ele descreveu a ascensão do revisionismo pablista como o reflexo do esforço consciente da burguesia de desorientar e controlar a vanguarda da classe trabalhadora. No entanto, declarou ele, o pablismo agora foi derrotado decisivamente, e a luta pela liderança da classe trabalhadora é uma tarefa imediata. A superioridade do CI, afirmou ele, está em sua compreensão dos “métodos leninistas de construção de partido e na teoria marxista”.
       
      O grupo V.O. declarou como contraposição que o pablismo tem sido o reflexo da composição pequeno-burguesa da Quarta Internacional desde a Segunda Guerra.
       
      Na terceira manhã da conferência, chegou a vez do camarada Robertson na lista das intervenções. Ele expressou o acordo fundamental do grupo Espartaquista com a linha da Resolução Internacional e do relatório, mas tomou a oportunidade para tornar claras certas diferenças (confira suas observações nesta edição). O camarada Robertson então perdeu a sessão que se seguiu às suas observações. Embora três membros da delegação Espartaquista estivessem presentes à sessão, completamente em condição de tomar parte na discussão, essa ausência do camarada Robertson se transformou em uma desculpa para um violento ataque contra nossa organização.
       
      Grupo Espartaquista expulso
       
      Durante a sessão perdida por Robertson, Michael Banda da SLL usou seu comentário sobre o relatório de Slaughter para fazer um grave ataque político contra as posições espartaquistas. Na sessão da noite que se seguiu, questões de “indisciplina” foram levantadas.
       
      Ataques contra o grupo Espartaquista continuaram por um período de vinte e quatro horas durante as quais o grupo de Healy tentou criar algum pretexto político para a expulsão. Não encontrando nenhum, eles tiveram que ficar com o fraco pretexto organizativo original.
       
      Deve-se notar que Robertson havia informado ao camarada Healy (secretário nacional da SLL) de sua intenção de se ausentar, e que depois de retornar à conferência ele tinha explicado aos delegados reunidos que ele não sabia de nenhuma regra exigindo sua presença, de que ele não tinha nenhuma intenção de não seguir o protocolo e de que iria certamente aderir a tais regras no futuro.
       
      O débil esforço do ACFI
       
      Qual foi a razão para esse ataque veemente? O Bulletin faz um esforço débil para prover alguma motivação. Assim: “Robertson declarou que ele estava em acordo geral com o relatório (de Cliff Slaughter), mas mostrou que ele não tinha compreensão e, na realidade, nenhum acordo com o seu método e linha fundamentais”.
       
      Como evidência dessa interpretação fantástica, o Bulletinaponta para a avaliação espartaquista da rápida estabilização do capitalismo no mundo colonial depois das recentes derrotas sofridas pela classe trabalhadora nas nações atrasadas. Porque Robertson apontou este recuo temporário das forças da classe trabalhadora, ele é cego para a “unidade da crise”. Se por unidade da crise deve-se entender que apesar de avanços pontuais a classe capitalista não pode resolver ou suprimir as contradições na sociedade, então o grupo Espartaquista concorda vigorosamente. Mas se o Bulletin e o CI, cuja linha ele representa, deseja apresentar cada derrota como se fosse vitória, e tratar o revés esmagador, digamos, na Indonésia, como um novo e mais alto estágio da luta de classes na luta pelo socialismo, então isso é outra coisa: também a Comintern de 1933 viu a subida de Hitler ao poder como o prelúdio da revolução proletária. A convicção revolucionária do grupo Espartaquista se baseia não eu um otimismo eufórico, mas na confiança de que a classe trabalhadora, com a liderança do seu partido revolucionário de vanguarda, se torne consciente da sua missão de libertar a sociedade das amarras do capital.
       
      A questão negra
       
      Em um estilo similar, o artigo do Bulletin sugere que a análise especial do grupo Espartaquista para a questão negra despreza a classe trabalhadora branca. Isso é especialmente desonesto por parte dos camaradas do ACFI, já que foram eles que acompanharam a abdicação do SWP rumo ao nacionalismo negro em 1963. Os camaradas espartaquistas, então conhecidos dentro do SWP como a Tendência Revolucionária, votaram por uma contraproposta integracionista revolucionária e mantiveram uma posição consistente desde então sobre a necessidade de uma análise de classe e não de nação sobre a questão do negro.
       
      Para ser justo, desde então o ACFI modificou sua linha sobre essa questão, publicando em seu Bulletin uma posição revisada que caracteriza a população negra como um povo-classe, em analogia à caracterização de A. Leon sobre o povo judeu como um povo-classe. Estranhamente, a delegação do ACFI em Londres permaneceu em silêncio enquanto o grupo Espartaquista era denunciado pelos delegados franceses e gregos por ter uma linha sobre a questão negra do tipo classe-povo, como é a do ACFI.
       
      Porque essa repentina mudança de linha do ACFI, essa insensibilidade para com a condição especial dos negros nos EUA? Porque o ACFI, como uma marionete num cabo, agora tem que ver as questões norte-americanas em termos britânicos.
       
      Propaganda OU agitação?
       
      Com “lógica inexorável”, o artigo do Bulletin chega à inevitável conclusão: o grupo Espartaquista é apenas um grupo de propaganda, incapaz de fundir a teoria com a ação. Entretanto, Tim Wohlforth, o intranquilo líder do ACFI, não prestou atenção e apresentou um documento revelador à conferência de Londres, “Alguns Comentários sobre as Perspectivas para a Fusão do Movimento”, que concluía: “Os camaradas espartaquistas, enquanto insistindo em um curso propagandístico, fizeram mais para romper com uma existência propagandística do que nós fizemos.”Enquanto camaradas espartaquistas foram presos cerca de vinte vezes nos últimos três anos por nossa participação ativa no movimento pelos direitos civis, nós ainda não ouvimos a respeito de um único membro do ACFI enfrentando uma perseguição semelhante! Essa diferença impactante revela a verdade.
       
      O argumento final, tendo todos os outros falhado, é de que Robertson “não concordou que o CI, e só o CI, representa a continuidade do movimento”. Se os camaradas espartaquistas não acreditassem que o CI fosse o herdeiro político do trotskismo, por que eles buscaram unidade dentro de uma Internacional disciplinada? O Bulletin deseja algo a mais: uma subordinação servil é exigida.
       
      Sem disciplina bolchevique!
       
      O mais irônico: o CI não é uma Internacional ― ele não tem disciplina, ao menos não para as privilegiadas seções francesa e britânica. Ao invés disso, o CI aceitou a posição de que “O único método de chegar a decisões que permanece possível no presente é o princípio da unanimidade”. Entretanto, ele exige completa e inquestionável “disciplina” dos seus simpatizantes, mesmo ao nível de trivialidades organizativas. Nossos amigos no ACFI recentemente se recusaram a debater conosco sem antes “esclarecer isso” [com os britânicos]. 
       
      Se Robertson tivesse “pedido desculpas” em Londres, isso teria significado que o grupo Espartaquista teria aceitado o papel de marionete do ACFI no movimento internacional. Esse tipo de subordinação é suicídio político.
       
      Falta ainda responder por que o grupo de Healy no CI escolheu arruinar as perspectivas imediatas para reconstruir a Quarta Internacional ao repelir o grupo V.O. e expulsar a Liga Espartaquista. À luz disso, como devemos avaliar o potencial revolucionário da Socialist Labour League apesar de suas evidentes realizações?
       
      Por trás do racha
       
      Em certo sentido, as observações do camarada Robertson levaram realmente ao racha. Claramente, o CI se sentiu incapaz de tolerar uma tendência disciplinada, mas vigorosa e independente em suas fileiras. Essa é a realidade organizativa por trás da expulsão, por trás das mentiras e distorções no Bulletin. Mas qual, por sua vez, é a explicação política para o burocratismo monolítico do CI e especialmente de sua seção chefe, a SLL da Grã-Bretanha?
       
      Uma burocracia rígida em um movimento proletário sempre revela uma fundamental falta de confiança nos membros do partido e em última instância da capacidade revolucionária da classe trabalhadora. O grupo de Healy demonstrou sua incapacidade fundamental de construir um movimento revolucionário mundial. Cabe ao grupo Espartaquista, junto com outras seções do Comitê Internacional construir uma liderança para esse objetivo.

      Arquivo Histórico: Posadas, Cannon e Mandel

      Queremos chamar a atenção de nossos leitores para três artigos postados na seção de Documentos Históricos em espanhol de nosso site. Os seguintes artigos foram escritos pela então revolucionária Liga Espartaquista dos Estados Unidos, nos anos 60 e 70. Eles fazem uma análise política crítica de três dirigentes históricos do trotskismo: J. Posadas, James P. Cannon e Ernest Mandel.
      Leia também os artigos criticando o legado político de Nahuel Moreno.

      A Tendência Bolchevique Internacional “Explica” sua Falência

      Raciocínio de Avestruz e Tentativa de Intimidação
      A Tendência Bolchevique Internacional “Explica” sua Falência
      Originalmente publicado em inglês em março de 2012


      Três décadas desde a sua primeira declaração pública (From New York To Sri Lanka: It Is Desperately Necessary To Fight!, de outubro de 1982) o grupo que hoje é a Tendência Bolchevique Internacional está visivelmente menor do que nunca, mais isolado do que nunca, e mais envelhecido do que nunca. Também ela, assim como outros grupos que no passado lutaram para reconstruir o movimento revolucionário sob difíceis condições de muitas décadas sem sucesso, perdeu o seu propósito revolucionário e se degenerou. Mais especificamente, ela se transformou em uma organização qualitativamente similar ao grupo com o qual rompeu há todas essas décadas atrás, a atualmente corrupta e burocratizada organização conhecida como Liga Espartaquista (SL).

      Aqueles que lutaram sem sucesso contra a degeneração do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) nos anos 1960 analisaram circunstâncias similares que hoje também afetam a TBI:
       
      “O SWP se tornou uma organização muito envelhecida em sua liderança. De 1928 até o presente – 34 anos – ele tem sido liderado pelo mesmo grupo de pessoas contínuo e com poucas mudanças. Assim, ele é a organização mais velha que se reivindica revolucionária na história. O seu atual Comitê Nacional deve possuir uma das mais altas médias de idade na história do movimento comunista em todos os tempos.”
       
      “Enquanto a liderança é velha, muitos dos quadros de liderança do partido no nível dos núcleos locais são de meia idade e são trabalhadores qualificados confortavelmente posicionados com muitos anos de estabilidade e casa própria.”
       
      The Centrism of the SWP and the Tasks of the Minority
      J. Robertson & L. Ireland, 6/9/1962.
       
      “Contra este histórico de derrotas e de isolamento da luta de classes direta, a decadência política de uma liderança partidária que envelhecia, à qual faltava toda uma nova geração, era inevitável.”
       
      “Não tendo experimentado, durante um período razoável, nem mesmo pequenas vitórias, vendo a classe rejeitá-los e girar rumo a uma relativa passividade ou mesmo reação, a velha liderança do Partido, apoiada por elementos mais jovens treinados em um ambiente político pequeno-burguês, perdeu a confiança na classe e na sua própria habilidade de atingir a vitória.”
       
      The Tendency and the Party
      Geoffrey White, 10/10/1962
       
      A degeneração da TBI não é simplesmente devido a condições objetivas. As muitas políticas erradas da liderança também inevitavelmente tiveram um efeito negativo. Em particular muitas práticas organizativas que ela herdou da SL, mas falhou em superar, inevitavelmente criaram vida própria dentro da organização conforme a existência do grupo se separou cada vez mais do seu propósito revolucionário inicial, até ele se transformar em um fim em si mesmo. As pressões para burocratização sob tais circunstâncias são obviamente bastante fortes conforme a base e os quadros ficam cada vez mais passivos e despolitizados, enquanto o poder desmedido da liderança e seu controle sobre o grupo crescem aos saltos. Leon Trotsky se referiu a esse processo como uma “reação termidoriana”. James P. Cannon resumiu o fenômeno em todas as suas várias manifestações históricas desta forma:
       
      “Não há nada revolucionário a respeito dos burocratas. Eles temem as massas e desconfiam delas e são sempre arrastados e postos de lado durante períodos de levante. Apenas quando as massas se aquietam é que os burocratas têm a sua vez — os homens cinzentos de uma maré-baixa. Você vê isso manifestar-se em todas as organizações dos trabalhadores, em todas as mutações da luta de classes, de greves a revoluções, e de sindicatos a órgãos do poder de Estado.”
       
      The Road to Peace
      James P. Cannon (1951)
       
      Logo após uma série de dissidências e rompimentos públicos (e muitos não-públicos) e os resultantes rompimentos de relações com vários grupos e simpatizantes – para não mencionar a perda do seu núcleo de Ruhr, na Alemanha, a TBI, após um longo período de silêncio tumular sobre o assunto, decidiu usar o recém-publicado balanço da sua Conferência Internacional como uma oportunidade de reconhecer parcialmente e racionalizar a sua profunda crise para um público de esquerda agora já bastante ciente (junto a uma tentativa explícita de intimidar nossa organização ao silêncio). São poucos aqueles iludidos o suficiente na periferia do grupo que poderiam esperar qualquer tentativa honesta de analisar seriamente os problemas e as condições por trás deles (nós estimamos que desde nossa saída a TBI possua cerca de 20 pessoas, depois de perder cerca de um terço de seus membros). Ao invés disso, o “líder” absoluto da TBI (Tom Riley) e os capatazes sem caráter que protegem cada movimento que ele realiza, resolveram declarar o seguinte:
       
      “Ao avaliar o nosso trabalho desde a nossa conferência de 2008, observamos que, apesar de alguns sucessos limitados (por exemplo, ganhamos adeptos na França e na Polônia), ainda temos de fazer grandes avanços a nível internacional e, de fato, sofremos alguns reveses. Em 2010, um companheiro recém-recrutado deixou a TBI para se tornar um anarquista em sequência aos protestos explosivos contra o G-20 em Toronto. Mais significativamente, não conseguimos ganhar os membros do Coletivo Lenin (CL), no Rio de Janeiro, alguns dos quais eventualmente se alinharam com Sam T., um talentoso, porém problemático, antigo membro da TBI, que partiu em setembro de 2008, após decidir que ele não estava mais preparado para seguir as diretrizes da organização. A nossa incapacidade para ganhar os camaradas brasileiros veio como o culminar decepcionante de vários anos de esforço e representou a perda do que parecia ser uma oportunidade promissora para começar trabalhos em uma parte extremamente importante do mundo.”
       
      1917 nº34, 2012
       
      E isto é tudo, já que a maior parte do resto do balanço da TBI consistia de alguns elogios muito pouco merecidos a ela própria.
       
      Nós podemos comentar mais amplamente este “balanço” da conferência da TBI em um artigo futuro, mas por enquanto vamos nos limitar a discutir as explicações de avestruz (como quem se esconde enfiando a cabeça na areia) que ela ofereceu nesse trecho, ao tentar livrar a própria cara.
       
      “Difamando Quem Faz as Críticas”
       
      Em 25 de setembro de 2008, Samuel Trachtenberg rompeu com a Tendência Bolchevique Internacional com a sua carta de ruptura (A Estrada para Fora de Rileyville) que descreve alguns dos pontos chave na história da degeneração burocrática da TBI e anuncia a sua intenção de continuar lutando para reconstruir um grupo revolucionário que possa desempenhar um papel em ajudar na reconstrução da Quarta Internacional. Assim como admite o balanço da TBI, desmentindo as expectativas de tal grupo por um fracasso rápido, essa intenção de Samuel eventualmente conseguiu algum sucesso limitado, porém real, à custa da TBI. Essa expectativa inicial é a razão de a TBI ter decidido não informar a seus leitores sobre o rompimento público no balanço da sua Quinta Conferência Internacional, escrito pouco depois do racha.
       
      Ao invés de reiterar cada argumento já exposto, nós convidamos o leitor a verificar por si próprio esta carta de ruptura e confirmar que não houve a menor tentativa por parte da TBI de lidar com as questões levantadas na descrição que ela fez dos eventos. A razão para isso é bastante simples. Uma tentativa de negar qualquer argumento levantado na carta de rompimento (ou em polêmicas subsequentes) nos forçaria a tomar o devido tempo para dar ainda mais provas e fortalecer nossas afirmações, indo cada vez mais fundo nos escandalosos e vergonhosos detalhes dos anos de abuso burocrático e manipulações desonestas com outras organizações de esquerda realizadas pelo “líder” absoluto da TBI, Tom Riley. Como Riley gosta de dizer, o silêncio às vezes é a melhor resposta.
       
      Ao invés de tentar qualquer resposta, o balanço tenta continuar publicamente uma campanha interna de rotular as descrições feitas por Trachtenberg de corrupção burocrática na TBI como um mero produto de uma suposta condição “problemática”. A carta de rompimento de Trachtenberg apontou:
       
      “No entanto, quando eu levantei essa questão (junto com várias outras similares), os camaradas deram a mesma resposta que Seymour, combinada com uma grosseira campanha para me convencer de que minhas críticas provinham de ‘problemas mentais’. Apesar de possuir um histórico de depressão, não sou insano e sou perfeitamente capaz de reconhecer a realidade e as tentativas da liderança de usar os mesmos mecanismos comigo que foram usados com outros críticos.”
       
      “O termo para esse tipo de prática é ‘gaslighting’ (manipulação mental) e eu pediria aos camaradas que fizessem uma busca no Google sobre isso. O fato de que Bill Logan, um ‘profissional’ de saúde mental, usou suas credenciais para tais propósitos nojentos só aumenta a corrupção envolvida.”
       
      A carta de rompimento também aponta que o uso de tais técnicas contra críticos internos também é feito por outras seitas burocráticas dominadas por líderes absolutos, tais quais a Revolutionary Workers League dos Estados Unidos (RWL). Jason Wright, o membro da TBI atualmente sendo cotado como eventual sucessor da coroa de lama de Riley, ele próprio um ex-membro da RWL, descreveu ter sofrido um tratamento semelhante como resposta às suas críticas políticas (veja Letter (circa 1998) by the IBT’s Jason Wright documenting his leaving the Revolutionary Workers League). Na época, Wright apontou que “esse tipo de coisa não corresponde ao funcionamento saudável de uma organização revolucionária e, por si só (sem nem mesmo entrar no leque de desvios programáticos da RWL) é suficiente para mostrar que ela não tem direito de reivindicar o legado do trotskismo”. Com isso, ao menos, nós estamos de pleno acordo.
       
      É claro que a liderança da TBI, contra a sua vontade, já está queimada aos olhos do público em razão da forma como eles procuram lidar com aqueles que lhes fazem críticas: veja Abuso Burocrático na Tendência Bolchevique Internacional – que nós fortemente recomendamos aos leitores. Este documento, entre outras coisas, relata a tentativa de provocar, em um crítico interno da seção neozelandesa da TBI (o PRG), “a reação de violência física de um rato encurralado, que teria sido útil ao PRG para causar descrédito a Peter em sua provável futura carreira de ‘especialista’ anti-PRG”. Bill Logan (o segundo no comando da TBI) respondeu a alguns camaradas que não gostaram de suas tentativas de difamar e conspirar contra um membro crítico de seus métodos burocráticos dizendo que “Minha sensação pessoal é que os camaradas estão sendo um pouco críticos demais de mim, um pouco escrupulosos demais sobre a maneira apropriada com a qual a luta política deve ser conduzida”. Qualquer que seja a acusação que alguém possa fazer contra a TBI, certamente, ter escrúpulos demais não é uma delas.
       
      Nenhuma destas práticas é nova. Em anos melhores, a TBI descreveu métodos similares utilizados pela Liga Espartaquista para não responder às suas críticas.
       
      “Nós prevemos que vocês não irão publicar esta carta na sua totalidade. Fazer isto significaria confirmar ou negar por escrito as acusações acima; fazer qualquer uma das duas coisas iria ser igualmente desastroso para a reputação da liderança da SL. Negá-las iria contradizer a experiência de cada membro da SL ou simpatizante que viu a foto de Jaruzelski [chefe da burocracia stalinista na Polônia] (em exposição por meses no departamento de manutenção da sua sede nova-iorquina), que contribuíram para comprar a casa de Robertson, que perderam muitas horas construindo a sua sala de recreação ou instalando a sua banheira. Uma negação direta iria expor a sua liderança como mentirosos cínicos e sem escrúpulos diante de todos os membros e simpatizantes.”
       
      “Se, por outro lado, vocês confirmarem essas alegações, e disserem que, como cabeça de uma suposta organização marxista, Robertson tem todo o direito de desfrutar de um estilo de vida com privilégios materiais à custa dos seus membros, e que Jaruzelski merece um lugar de honra nas suas paredes, vocês deixariam para sempre de poder ser levados a sério em sua reivindicação de ser uma organização trotskista, e revelariam a si próprios ao mundo como a seita personalista degenerada que se tornaram. Seria então bastante improvável que qualquer ser humano racional algum dia fosse querer apoiar a Liga Espartaquista.”
       
      “Vocês, portanto, vão se esconder atrás da única brecha possível nesse momento: desviar a atenção das acusações criando confusão e difamando quem faz as críticas. Um gangster qualquer pode tentar impugnar a reputação de uma testemunha contrária a ele dizendo que é um estuprador ou viciado em drogas; vocês respondem ao testemunho da Tendência Bolchevique com uma bateria de epítetos especificamente elaborados para nos descreditar aos olhos de militantes da esquerda e dos trotskistas: renegados antissoviéticos, burocratas sindicais, racistas, agentes provocadores, etc. E somente para o caso de estes termos específicos não terem o efeito desejado, mais algumas acusações – por exemplo, ‘pequenos bandidos’ – a são lançadas para este propósito. Estas táticas – todas na pior tradição de Gerry Healy e David North – deveriam lavar os leitores mais atentos de Workers Vanguard [jornal da SL] a se perguntarem: ‘Por que alguém deveria acreditar em James Robertson?’”.
       
      1917 nº8, 1990
       
      Um documento ainda mais antigo descrevia uma tentativa da SL de conspirar contra um membro fundador da TBI para desacreditá-lo:
       
      “O longo histórico de [Bob] Mandel como um proeminente militante de esquerda na Área da Baía de São Francisco foi um grande trunfo para a regional da SL por todos os anos em que ele foi apoiador do grupo. Hoje, entretanto, ele é uma ameaça para Robertson e companhia, e, portanto, se tornou um alvo de alguns ataques particularmente desagradáveis por parte da liderança da SL.”
       
      “Na época, Mandel estava em meio a uma crise pessoal/financeira decorrente de seus longos anos na lista negra do ILWU [sindicato de trabalhadores do porto]. Ele também estava perturbado e bastante abalado pela perspectiva de sair da tendência política à qual havia devotado sua vida. Mandel fez tudo o que pôde para provar sua lealdade à organização. Foi-lhe apresentada uma declaração, escrita por Al Nelson. A declaração parecia com uma confissão estilo FBI. Ela começava dizendo ‘Eu, de livre e espontânea vontade, admito as seguintes declarações como sendo verdades e compreendo que elas serão arquivadas como declarações confidenciais pelo Comitê Central da Liga Espartaquista… ’. Essa ‘confissão’ ridícula era composta de algumas alegações bastante bizarras, assim como várias outras declarações, algumas das quais eram verdade, e foi feita com a intenção de ser usada para descreditar Mandel publicamente no futuro. Ao assiná-la, ele encontrou-se numa situação sem saída que desde então a liderança da SL tem buscado explorar. Mandel certamente cometeu um grande erro ao assinar cegamente tal ‘confissão’, mas o incidente como um todo lança uma luz desagradável sobre as práticas rotineiras da liderança da SL.”
       
      Bulletin of the External Tendency of the iSt nº3, 3/5/1984
       
      Sam quem?
       
      De forma interessante, o balanço também prefere não mencionar nem o “Reagrupamento Revolucionário” e nem “Samuel Trachtenberg” pelos seus nomes, termos que iriam facilmente levar a respostas em sites de busca. Ao invés disso, o balanço só se refere a “Sam T.”.
       
      Pelas circunstâncias, a TBI é forçada a reconhecer a nossa existência para aqueles que já nos conhecem, enquanto ao mesmo tempo tenta fazê-lo de uma maneira que obscurece a identidade de nosso grupo para os leitores, para o caso de estes serem curiosos o suficiente para desejar ler o que nós dizemos a respeito disso tudo. Essa é a compreensão que Tom Riley tem de “esperteza tática”. Um antigo associado da TBI notou que sem dúvida o gatuno multimilionário Bernie Maddoff caracterizou o que fez usando termos similares. Tais jogadas óbvias, combinadas com uma personalidade cínica exageradamente transparente, são indicações do porquê de o líder absoluto da TBI ter sido chamado, entre aqueles que o conheceram, de “vendedor de carros usados do trotskismo”.
       
      Intimidação
       
      O outro propósito da acusação de ser “problemático” é uma tentativa de fazer uma intimidação implícita para forçar o Reagrupamento Revolucionário ao silêncio a respeito da corrupção antisocialista da liderança da TBI, sob a pena de forçar a discussão de áreas sensíveis da vida pessoal de Trachtenberg. Isso foi previamente tentado em uma carta escrita em 9 de fevereiro de 2011 enviada ao Coletivo Lenin e a Trachtenberg logo após o CL romper relações com a Tendência Bolchevique Internacional e estabelecer relações com o Reagrupamento Revolucionário (veja a declaração de dezembro de 2010).
       
      “Nós não havíamos informado anteriormente a vocês sobre a saída de Sam da TBI, ou da sua tentativa de projetar a si próprio como uma ‘organização adversária’ (através do seu website), porque nós consideramos isso praticamente um evento sem importância e buscamos evitar discussões públicas dos severos problemas pessoais que nós acreditamos que acompanham a trajetória política dele.”
       
      “Nós não fazemos a menor ideia do que poderia levar vocês a imaginar que Sam foi ‘escorraçado’, ou que a sua condição de membro foi ‘transformada em uma ficção’. Nunca houve tentativas de explorar os problemas pessoais/psicológicos que tornam impossível para ele ter um emprego, sair de casa ou fazer várias outras coisas que são normais para pessoas com trinta e poucos anos. Nós tentamos ajuda-lo até onde pudemos, mas não há dúvida de que problemas de saúde/mentais impactavam o seu funcionamento no grupo, como ele próprio admitiu em várias ocasiões.”
       
      “Sam nos apresentou o difícil problema de tentar lidar com um quadro talentoso que desenvolveu diferenças políticas/organizativas que são, ao menos em parte, um resultado de sua própria frágil condição mental/emocional.”
       
      Nós acreditamos que isto deixa bem claro que tais tentativas de explorar esta questão realmente ocorreram, durante e depois. Isto seria especialmente escandaloso para a TBI, tendo em vista o bem conhecido histórico de Bill Logan como um ex-dirigente espartaquista que está repleto do uso exploratório de tais detalhes das vidas pessoais de camaradas – que incluíram levar um membro de base dos espartaquistas à tentativa de suicídio. Como demonstra um documento previamente citado (Abuso Burocrático na Tendência Bolchevique Internacional), nada disso mudou qualitativamente apesar das afirmações de Logan de ser uma pessoa diferente depois de entrar na TBI. Logan e seu ventríloquo Riley obviamente compartilham esse e muitos outros traços com burocratas corruptos de períodos passados.
       
      Nós vamos esclarecer estas questões.
       
      Como previamente notado, Sam Trachtenberg sofre de depressão há muitos anos. Isto não faz dele insano, “problemático”, nem incapaz de reconhecer a realidade e fazer julgamentos políticos racionais. A TBI não teria considerado ele um membro de alto nível, que também escreveu muitos dos seus documentos por vários anos, se isso fosse verdade. A liderança da TBI também não teria permitido que muitos membros da TBI, que também tem um histórico de depressão (e que já sabem o que esperar se algum dia no futuro levantarem divergências), permanecessem dentro da organização se ela realmente acreditasse nisso. A realidade é que eles não acreditam nessas acusações, mas estão simplesmente usando-as como uma ferramenta de intimidação e de guerra psicológica.
       
      Há vários anos, Sam Trachtenberg também foi forçado a deixar seu trabalho e a abandonar a faculdade depois de ficar doente, ao adquirir uma condição médica rara e possivelmente fatal se não tratada e que não foi diagnosticada por muitos anos. Nós não acreditamos que uma condição de invalidez e de desemprego faça com que alguém não seja capaz de ser um revolucionário ou que não seja capaz de fazer escolhas políticas racionais e inteligentes. Nós acreditamos que o restante da esquerda também compartilhe de nossa opinião.
       
      Sam Trachtenberg, como alguns que o conhecem na esquerda já sabem, também tem um progenitor que é severamente doente desde que ele era jovem.
       
      Enquanto discutir forçosamente detalhes sensíveis da vida pessoal de alguém diante do público é desconfortável, nenhuma dessas coisas é, sob qualquer aspecto, escandalosa ou antiética, ao contrário de muitos aspectos da vida pessoal (para não mencionar política/organizativa) dos dirigentes da TBI.
       
      Já que nós estamos no assunto, nós gostaríamos de perguntar qual tipo de emprego a liderança da TBI acha que Trachtenberg deveria ter ou ter tido (e antes de se tornar doente ele teve vários). Seria como o emprego que Jason Wright (nome de partido) teve por alguns anos trabalhando numa posição administrativa para o Departamento de Segurança Nacional no estado de Nova York? Aquele que ele foi encorajado por Riley a aceitar e que a liderança da TBI via como uma posição temporária útil para subir na escala do serviço público e que também deveria ser mantida em segredo do público de esquerda? Não, nem Sam Trachtenberg nem nenhum outro membro presente ou futuro do Reagrupamento Revolucionário nunca teve ou vai ter um emprego como esse.
       
      As tentativas da TBI de nos silenciar não vão dar certo!
       
      Crise em Toronto
       
      O balanço da TBI faz menção a um proeminente camarada de Toronto que deixou o grupo para se tornar um ativista anarquista em um grupo plataformista local. Ele, entretanto, não faz nenhuma menção às razões por trás da sua decisão de deixar o grupo (veja “Brandon Gray’s Resignation Letter” 17/7/2010). Enquanto os pontos em cima do quais ele imediatamente rompeu eram relacionadas a questões táticas envolvendo os protestos contra o G-20 em 2010 (questões essas sobre as quais nós não estamos em posição de tomar partido devido à nossa distância) fica claro, através da sua carta de ruptura, que essas questões foram apenas o estopim relacionado a uma crítica mais ampla que se desenvolvia a respeito da degeneração da TBI. Isto inclui uma atitude aristocrática e esnobe de desprezo com relação a jovens militantes por parte da liderança da TBI, e que busca na Academia elementos mais respeitáveis (e também mais organizativamente passivos diante de intimidação burocrática). (Um bom exemplo disso é a Platypus Affiliated Society, pela qual a TBI recentemente cruzou os Estados Unidos para poder palestrar em seus painéis). Como muitos que testemunharam a corrupção burocrática em seitas pseudo-leninistas, Brandon Gray acabou concluindo incorretamente que as raízes da burocratização da TBI estão em sua reivindicação do bolchevismo.
       
      Também está claro que a sua decisão de deixar a TBI foi provocada por testemunhar o tipo de corrupção que é descrita na carta de rompimento de Sam Trachtenberg. Aqui citaremos longamente trechos que descrevem a situação interna:
       
      “Eu entrei formalmente na TBI na primavera de 2009, depois de ter sido um simpatizante e trabalhado com o grupo por dois anos em Toronto. O alto nível de formação programática ganhou minha confiança e respeito apesar do pequeno tamanho do grupo em comparação com outros. Entretanto, quando a carta de rompimento de Sam Trachtenberg em Nova Iorque chegou até mim, eu tomei algum tempo para investigar esse caso e atrasei minha decisão de me tornar um membro pleno. As críticas políticas levantadas por Sam nunca me foram explicadas. Ao invés disso, ataques pessoais foram feitos contra a credibilidade dele. A sua saúde pessoal foi brutalmente explorada e distorcida para poder descreditá-lo e para evitar responder qualquer uma de suas críticas. Incapaz de reconhecer estes ataques como o que eram na época, eu resolvi pedir para tornar-me membro e, depois de ser aceito, eu informei o fato de que tinha dado uma boa olhada no caso de Sam antes de tomar minha decisão de entrar. Disseram-me que ele era paranoico e delirante, e que tinha sido uma boa ideia ele ter saído, já que a liderança teria tido um trabalho muito maior tendo que pô-lo para fora. Eu lamento não ter decidido entrar em contato com Sam na época para ouvir o seu lado da história sobre o rompimento, mas, em minha defesa, meus laços pessoais com os camaradas mais jovens do TBT [núcleo de Toronto da TBI] me influenciaram a deixar esta questão para trás, apesar de eu manter minhas suspeitas no fundo da mente para um dia em que mais informações viessem a tona.”
       
      “Em uma reunião do núcleo em 15 de abril de 2010, foi sugerido que um camarada mais ou menos com o meu perfil em termos de pouco relacionamento com Sam se tornasse ‘amigo’ dele em uma rede de relacionamento na internet, com o objetivo de monitorá-lo e repassar informação para a liderança. Eu fui a única pessoa a comentar sobre esse ponto, declarando que eu, de fato, fosse talvez o mais indicado para esse trabalho, mas que não me sentia confortável para tal; que isso soava como desonesto e errado. Riley meramente deu de ombros e descartou minhas objeções dizendo que não era algo tão ruim e que eu não deveria ter problemas com isso. Este foi outro lado estranho da organização ao qual eu respondi com receio. Poderia Samuel Trachtenberg estar descrevendo precisamente o funcionamento interno do meu grupo? O fundamento deste caso havia crescido com o tempo e agora um exemplo concreto de práticas de liderança pouco saudáveis me havia sido demonstrado. Eu devo hoje concluir que uma campanha nojenta de mentiras e calúnias foi usada contra Sam com o objetivo de jogá-lo para fora do grupo depois de ele ter feito várias críticas corretas à liderança. Eu hoje concordo com as críticas de Sam e estimulo aos camaradas para que olhem para estas críticas de olhos abertos.”
       
      “Como todos na TBI sabem, a quantidade de membros tem caído continuamente desde que Sam, de Nova York, deixou o grupo. A saída de vários apoiadores de longa data, como L. em Nova York, e a rejeição da tentativa de W. de se transferir para o nosso núcleo, foram simplesmente ignoradas porque eles eram ‘velhos’ e ‘inúteis’. Uma explicação política apropriada não foi dada. Nosso núcleo de Londres é constantemente atacado por razões que não me parecem justas. Mais recentemente, foi-nos anunciado que nós deveríamos esperar a ‘provável’ perda de A. na Irlanda, que é uma camarada experiente do grupo e provavelmente um dos mais ativos em termos de se adaptar a realidades táticas e de funcionar de forma proativa. Eu reconheci na época que não era acidente que outro dos nossos camaradas mais ativos, engajados e menos abstencionistas, que estava operando longe da supervisão direta de Riley ou de Logan, havia se tornado um alvo para ser posto para fora. O único valor de deste camarada, de acordo com o nosso líder local e internacional, era que ele era um dos poucos camaradas que podiam manter o site, e portanto, ele seria mantido enquanto fosse conveniente. Também não é coincidência que ele foi o único que apoiou-me quando levantei minhas críticas.”
       
      “Depois de recrutar um par de membros nos anos recentes, em grande parte devido a intervenções dos seus camaradas mais jovens, o núcleo de Toronto está agora regredindo em tamanho e em toda a parte nosso número de membros continua a diminuir sob o fardo de uma liderança burocrática. Inúmeras discussões com contatos cessaram depois de terem inicialmente se mostrado promissoras e parece haver pouca expectativa de ganhar militantes de esquerda em Toronto para o grupo num futuro previsível. Nossa performance durante os protestos do G-20 só tornaram nossas perspectivas ainda piores.”
       
      “Algum tempo depois, quando foi indicado que discussões de fusão com um grupo de contatos na América Latina [o Coletivo Lenin] provavelmente não iriam dar certo porque os contatos haviam exigido que fizéssemos o que nossa liderança descreveu como ‘entrismo em organizações como a OCAP’ [organização assistencialista que atua em Toronto], eu tive minhas dúvidas se isso era inevitável. Como um membro de base da TBI, eu nunca tive acesso a discussões com estes camaradas, e novidades sobre o nosso progresso com eles só vinham através dos nossos membros mais velhos, que constantemente os descreviam menos como revolucionários dedicados e mais como crianças ingênuas com ideias bobas em suas cabeças, apesar do fato de que eles operavam sob condições muito mais difíceis que as nossas. Isso é uma repetição ainda mais burocrática da forma com a qual a nossa liderança estragou oportunidades de fusão como essa no passado.”
       
      “É incrível o quanto da carta de rompimento com a Liga Espartaquista, de Howard K., um de nossos camaradas mais antigos, se aplica bem a essa situação:”
       
      “‘Por quase um ano eu tenho me aproximado da conclusão de que distorções na liderança das seções, núcleos e colaterais se desenvolveram e amadureceram – ao menos em parte devido a uma vida interna caracterizada por um regime defensivo e hierárquico, combinado com um método personalista jesuítico, de discussão e debate interno. Esse processo foi elevado na SL/SYL [juventude da Liga Espartaquista] ao ponto em que os seus membros são ‘verdadeiros crentes’ ou cínicos. Eu suspeito que os incidentes de incompetência política e tática na SL estão conectados com essa deterioração da vida interna. Eu acredito que a liderança central conscientemente e cinicamente concluiu que os membros da SL são politicamente e pessoalmente fracos demais para permitir mesmo a menor discordância com a liderança. Há uma equação aritmética implícita: desacordo com a liderança é igual a hostilidade à liderança, que é igual a deslealdade, que é igual a traição. Se levada adiante, essas tendências farão a SL vir a se parecer menos com uma organização proletária principista e combativa, e mais uma seita política hierárquica e teocrática.’

      ‘Quando críticos internos, lutando para criticar construtivamente e para melhorar a organização, são marcados como traidores, e calúnias apolíticas são usadas para desacreditá-los, revolucionários honestos não podem permanecer em silêncio.’”
      (…)
       
      “Se a história se repete, na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa, então o que podemos dizer da terceira ou quarta vez? No mínimo há um padrão nocivo ocorrendo que e se estende da TBI à SL. Líderes vitalícios e permanentes se elevam para dominar as organizações que eles criaram e às quais eles querem carregam com eles para o túmulo. Este é um problema que não pode ser simplesmente remediado criando uma nova cópia do velho grupo.”
       
      “Tristemente, nosso desenvolvimento como uma organização saída da escola partidária de Robertson seguiu o mesmo trajeto conforme cada desafio potencial à liderança de Riley e Logan caiu nas últimas décadas. Enquanto Robertson tinha seu estilo, seus rebentos carregam a tradição de manipulação e manobras desleais com o seu próprio estilo pessoal de ‘sanções informais’ e armações por trás dos panos contra seus oponentes para manter o controle sobre o grupo. Enquanto o grupo de Robertson tentou parcialmente romper sua marginalização no início dos anos 1970, o nosso grupo em si não o fez e, depois de quase 3 décadas, as nossas publicações estão amaldiçoadas com o mesmo intervalo e atraso que eram comuns nos primeiros anos da Liga Espartaquista, conforme o controle e monopólio pela liderança até mesmo dos menores detalhes da vida organizativa sufocou e asfixiou a habilidade de novos camaradas de aprender e se desenvolver.”
       
      “Já passou muito o tempo de cada camarada honesto levantar a voz contra essa degeneração organizativa dentro da Tendência Bolchevique Internacional. Eu espero que eu não seja o último a fazê-lo.”
       
      Brincando de Espião
       
      Um elemento da degeneração da TBI que é levado em consideração na carta de Brandon está enraizado na compreensão distorcida da Liga Espartaquista sobre reagrupamento revolucionário e a luta contra o revisionismo, baseada parcialmente em um entendimento distorcido e exagerado da experiência do “giro francês” (ou entrismo). Essa orientação se resume em uma política de guerra/espionagem com relação a todos os outros grupos na esquerda:
       
      “Em uma reunião do núcleo em 15 de abril de 2010, foi sugerido que um camarada mais ou menos com o meu perfil em termos de pouco relacionamento com Sam se tornasse ‘amigo’ dele em uma rede de relacionamento na internet, com o objetivo de monitorá-lo e repassar informação para a liderança…”.
       
      Nossa compreensão de reagrupamento revolucionário é que, junto com fusões, muitos elementos dele também irão incluir rachas baseados em lutas por clareza programática. No que diz respeito à SL e a TBI, entretanto, suas práticas foram descritas por outros, como o grupo Workers Power:
       
      “Há duas distorções do conceito de grupo de propaganda combativo aqui. Primeiro, o grupo de propaganda é descrito como um estágio durante o qual a principal tarefa é ‘destruir’ outros grupos. Perceba a escolha de palavras. Os espartaquistas não buscam ganhar centristas girando à esquerda para o comunismo, mas destruí-los. Essa perspectiva leva caracteristicamente a manobras politicamente desleais e a provocações.”
       
       
      As provocações desleais envolvem, dentre outras coisas, mandar agentes se infiltrarem em outras organizações (diferente de abertamente entrar em grupos que permitam várias tendências, como em um entrismo) e usar uma variedade de fraudes para arrancar informação ou confundir para rachar seus oponentes. Uma vez que, em períodos de isolamento, como descrito por Marx e Engels [1], infelizmente tais práticas tendem a florescer na esquerda, a TBI e a SL não são os únicos grupos a fazer esse tipo de coisas. Isso nos leva a desenvolver algumas demarcações em cima de linhas organizativas ao invés de programáticas, já que pessoas na esquerda se sentem incapazes de confiar umas nas outras e isso impede que discussões e debates aconteçam. Isso destrói, ao invés de ajudar a criar possibilidades de reagrupamento em torno de importantes questões programáticas. Isso faz com que surjam relações espetaculares entre grupos na esquerda, que se relacionam como na tirinha cômica “Espião contra espião” (“Spy vs. Spy”) da Mad Magazine. Isso também tende a se generalizar quando as lideranças desses grupos inevitavelmente usam os mesmos métodos internamente para manter o controle. Isso também aconteceu amplamente dentro da SL e da TBI.
       
      Brandon teve princípios para rejeitar tal tipo de serviço sujo. Outros na TBI não tiveram. Um exemplo um pouco mais público disso na história da TBI se relaciona com o recrutamento do Grupo de Educação Marxista (MEG) de Albany, Estados Unidos, em 1998, e que foi descrito com grande alarde. O balanço da sua Segunda Conferência Internacional da TBI (em uma seção intitulada “Dois, Três, Muitos MEGs!”) descreveu o processo da seguinte forma:
       
      “No começo de 1998 o MEG contatou ambos a TBI e o Grupo Internacionalista (liderado pelo antigo líder e editor da SL, Jan Norden). Isso levou a uma série de discussões com ambos os grupos de forma verbal e escrita, com foco na questão russa, a questão da greve geral, e a história da degeneração política da SL. No fim, os camaradas concluíram que a TBI era a mais consistente representante da herança programática revolucionária da TR e da antiga SL.”
       
      1917 n°21, 1999
       
      Também em um boletim especial dedicado ao Grupo Internacionalista [2]:
       
      “Inicialmente os camaradas do MEG pensavam que a TBI e o IG discordavam meramente sobre a cronologia precisa da degeneração da SL, mas eles gradualmente passaram a ver que questões mais substanciais estavam envolvidas.”
       
      Set. 1999
       
      O problema com essa descrição aparentemente inocente é que ela é mentirosa. O que realmente aconteceu foi que o MEG foi primeiramente recrutado para a TBI e depois se aproximou do IG fingindo ser um grupo “independente” querendo investigar as diferenças entre a TBI e o IG. Durante todo o tempo, Riley estava vangloriando-se com bastante brilho sobre “enganar Norden como um patinho”. É duvidoso que o IG tenha sido ingênuo o bastante para não saber o que a TBI estava fazendo. Também está claro que quaisquer que fossem as possibilidades de fusão que existissem, foram destruídas por tais “táticas espertas”.
       
      No fim, isso deu à TBI alguma publicidade fracional por ter um grupo de independentes escolhendo-a depois de investigar seriamente ela e o IG. Isso foi parcialmente verdade, exceto pelo fato de que o grupo fez essa investigação e escolheu a TBI antes de contatar o IG como agentes da TBI fingindo ser “independentes”.
       
      Tais práticas foram anteriormente descritas pela SL enquanto discutia o grupo britânico de Gerry Healy, como uma forma de:
       
      “usar a lealdade dos membros aos ideais professados de socialismo para torna-los cúmplices em crimes contra seus próprios camaradas e os camaradas de outros grupos.”
       
       
      Aqueles que aceitam serem cúmplices se prendem muito mais firmemente àquele por quem se está cometendo o crime, na prática se queimando com os outros grupos na esquerda ao usar tais métodos. Não é acidental que o trotskismo jamais teve nada além de desprezo pelos infiltrados da GPU que os stalinistas usavam contra eles.
       
      O Sr. “Esperteza Tática” ataca novamente
       
      O balanço da TBI não dá a menor explicação sobre o porquê de ela ter perdido talvez a sua melhor oportunidade de reagrupamento em anos em um país importante como o Brasil, exceto por algum tipo de conexão com o fato de Samuel Trachtenberg ser “problemático”. Nós sugerimos aos leitores a declaração do Coletivo Leninà época para uma explicação profunda sobre como, depois de três anos de manobras e manipulações, o CL finalmente enxergou através da “esperteza tática” da TBI.
       
      Tragicamente, após três anos tentando uma fusão com um grupo que eles tinham considerado ser sinceramente revolucionário, mas descobriram ser o contrário, alguns membros do CL deixaram o grupo enquanto outros que permaneceram se desmoralizaram e se deixaram levar com a conclusão de um membro antigo de que o burocratismo e desonestidade da TBI estavam enraizados na sua reivindicação de trotskismo. Um documento da fração majoritária que surgiu depois do racha com a TBI declarou:
       
      “Nos próximos capítulos, mostraremos que é impossível formular uma estratégia certa para a revolução mundial sem uma análise correta da decadência do capitalismo, e que essa estratégia é bem diferente da concepção leninista-trotskista de pequeno grupo que se torna, combatendo o reformismo das direções traidoras, um partido de quadros que mobiliza as massas através de reivindicações transitórias rumo ao poder. Ao mesmo tempo, veremos como a Quarta Internacional foi destruída, não pelo revisionismo pablista, mas sim pela sua incapacidade de superar a herança da estratégia leninista e sua visão sobre a revolução mundial iminente.”
       
       
      Mais uma vez a TBI conseguiu ajudar a desacreditar o trotskismo com as suas práticas.
       
      Aqueles membros do CL que foram primariamente responsáveis pela declaração estabelecendo relações fraternais com o Reagrupamento Revolucionário lutaram contra esta degeneração e são hoje o grupo do Reagrupamento Revolucionário no Brasil.
       
      O que a não-explicação do balanço trás à mente é a última vez em que a TBI destruiu as suas oportunidades de reagrupamento na América Latina, mais uma vez devido à incontrolável inclinação do líder absoluto da TBI, Tom Riley, de exercitar a sua “esperteza tática”. Uma não-explicação de avestruz semelhante foi dada quando o balanço da Quarta Conferência Internacional da TBI relatou o fracasso em recrutar um grupo de promissores camaradas argentinos:
       
      “Um recuo menos público, porém mais significativo, foi nossa falha em conseguir fundir com um grupo de camaradas argentinos que aparentaram estar programaticamente muito próximos de nós. Isso se deveu parcialmente a dificuldades linguísticas, mas um fator mais importante era a distância em termos de cultura política expressa por eles acerca das tarefas e prioridades de um microgrupo de propaganda. Em retrospectiva, nós concluímos: ‘Dadas as nossas capacidades e recursos muito limitados não há, obviamente, muito mais que nós pudéssemos ter feito para avançar com essa colaboração, mas ela representa uma oportunidade perdida’.”
       
      1917 nº28, 2006
       
      Na realidade, não houve diferenças “acerca das tarefas e prioridades de um microgrupo de propaganda”. Já que o grupo argentino por essa época já havia deixado de existir, a TBI se sentiu segura na sua mentira descarada, esperando que ninguém fosse contradizê-la. As verdadeiras questões envolvidas eram menos “políticas”.
       
      Os camaradas argentinos que estabeleceram relações com a TBI (e traduziram a maior parte dos documentos da TBI disponíveis em espanhol) foram formalmente convidados a participar da vida interna da TBI através da participação na sua lista de discussão interna. Isso foi concebido como uma forma de acelerar o processo de fusão. O que os gênios táticos da TBI decidiram nunca informar aos argentinos foi que todos os membros da TBI foram postos sob disciplina para não responderem a nada que eles escrevessem, e que, ao invés disso, a liderança iria responder depois de se reunirem coletivamente. Supostamente estes camaradas seriam estúpidos o bastante e não perceberiam que, enquanto as postagens de membros da TBI rapidamente recebiam comentários de resposta, ninguém respondia aos posts deles a não ser Bill Logan muitos dias depois, depois de consultar o restante da liderança e dando o que parecia muito mais uma declaração formal do que uma resposta informal como todos os outros na lista recebiam. Aqueles, como Sam Trachtenberg, que perceberam a crescente insatisfação dos argentinos, foram repreendidos por responder aos seus postse a liderança insistiu que eles não tinham a menor ideia do que estava acontecendo, apesar das suas exigências de que ou recebessem acesso pleno à sua vida interna, como prometido, ou ao menos lhes dissessem a verdade sobre a situação. Como previsto, os camaradas decidiram anunciar abruptamente a sua decisão de romper todas as relações com a TBI sem apresentar nenhuma razão. O que eles poderiam dizer afinal? Se eles apresentassem suas razões, as respostas não iriam dizer nada sobre o que acontecia de fato e sim que eles estavam sendo paranoicos. Isso teria simplesmente tornado o racha mais feio e raivoso depois de os argentinos terem tido as suas inteligências insultadas. Eles preferiram deixar a situação com alguma dignidade.
       

      Nós queremos indicar aos poucos elementos subjetivamente revolucionários na TBI que este recente histórico aponta que, ao invés de serem gênios de “esperteza tática”, os líderes da TBI são na verdade imbecis táticos. Que os seus métodos burocráticos de brincar de espião efetivamente transformaram o que foi certa vez um grupo promissor, em uma seita burocratizada, organizada desta vez em torno de Tom Riley ao invés de Jim Robertson, Gerry Healy, Jack Barnes ou Bob Avakian, etc. Uma liderança com tal criminosa ficha organizativa merece ser expulsa e repudiada ao invés de ser ostentada acriticamente (ou sequer tolerada de má vontade, por sinal). Se na realidade não existe nenhum mecanismo (quaisquer que sejam as formalidades) entre o que hoje são os quadros mais velhos, passivos e despolitizados para expulsar essa liderança, então chegou a hora de reconstruir. O Reagrupamento Revolucionário está determinado a fazer precisamente isso.

      Apêndice: James Cannon sobre Jay Lovestone


      [Nota do RR — Jay Lovestone foi um dirigente do Partido Comunista dos Estados Unidos. Alinhado com a oposição de direita de Bukharin (então associada a Stalin) na Internacional Comunista, Lovestone esteve à frente das expulsões dos trotskistas nos anos 1920, inclusive de James Cannon. Posteriormente, com a virada do “Terceiro Período” stalinista e a perseguição à oposição de direita, os apoiadores de Lovestone também sofreram as perseguições burocráticas que haviam inaugurado no PC/EUA. A tradução foi realizada a partir da versão disponível em inglês em http://www.marxists.org]


      Era opinião de todos que Lovestone era inescrupuloso em suas maquinações e intrigas sem fim; e em minha opinião todos estavam certos nesse ponto, embora a palavra “inescrupuloso” pareça de alguma forma um pouco branda para descrever as operações dele. Lovestone era completamente desonesto – como Foster, mas de um jeito diferente. Foster era parte do movimento dos trabalhadores e tinha uma noção de responsabilidade para com ele; e ele podia ser moderadamente honesto quando não havia necessidade de enganar ou mentir. A desonestidade de Foster era propositiva e utilitária, da qual uma pitada era acionada sem preocupação para atingir um objetivo. Lovestone, o sinistro estranho em nosso meio, parecia praticar maliciosamente fraudes para o seu próprio prazer.


      Foi uma estranha virada do destino que trouxe esse personagem perverso para o nosso movimento dedicado ao serviço do nobre ideal das relações humanas. Nunca houve um homem mais destrutivamente estranho à nossa causa, na qual ele buscava uma carreira; ele era como uma célula anárquica de câncer penetrando no organismo do partido. O partido tem significado e justificação somente como a expressão consciente do austero processo da história, na qual a classe trabalhadora luta por sua emancipação, com todas as severas obrigações morais que tal missão impõe a seus membros. Mas Lovestone parecia ver o partido como um objeto de manipulação em um jogo pessoal que ele estava jogando, com um instinto não-natural para estragar as coisas.


      Nesse jogo, que ele jogava com um frenesi quase patológico, ele não era impedido por nenhuma norma reconhecida de conduta das relações humanas, para não mencionar os efeitos que os seus métodos poderiam ter na moral e na solidariedade do movimento dos trabalhadores. Para ele a luta de classes dos trabalhadores, com seu incrível significado para o futuro da espécie humana, era na melhor das hipóteses um conceito intelectual; a luta fracional pelo “controle” do partido era a verdadeira questão, as verdadeiras razões da vida. O seu inimigo principal era sempre seu oponente fracional no partido ao invés de a classe capitalista e o sistema de exploração que ela representava.


      O método fracional e a prática de Lovestone eram a sistemática deseducação do partido; cochichos de fofoca para colocar camaradas uns contra os outros; falsa interpretação e distorção das posições dos oponentes; demagogia desenfreada e incitação dos apoiadores fracionais até estes não saberem se estavam indo ou vindo. Ele tinha outros truques, mas eles eram todos da mesma ordem.


      As opiniões dos líderes do partido uns sobre os outros naqueles dias variavam amplamente e nem sempre eram complementares, mas no fundo, apesar da dureza dos conflitos, eu acho que eles respeitavam uns aos outros como camaradas em uma causa comum, apesar de tudo. Lovestone, entretanto, não era confiável para ninguém e sua devoção à causa era amplamente posta em dúvida. Em círculos mais fechados, Foster apontou mais de uma vez que se Lovestone não fosse judeu, ele era o candidato mais provável para liderança de um movimento fascista. Essa era uma opinião bastante comum.

       
      NOTAS
       
      [1] “Peço-lhe ainda para ter algum cuidado com todas as pessoas que estão em ligação com Bakunin. É uma propriedade de todas as seitas manterem-se firmemente unidas e intrigarem: pode estar certo de que tudo o que v. lhes comunicar segue imediatamente para Bakunin. Um dos seus princípios fundamentais é que cumprir promessas e outras coisas do gênero são preconceitos puramente burgueses que o verdadeiro revolucionário tem de tratar sempre com desprezo no interesse da causa. Na Rússia, ele diz isto abertamente, na Europa ocidental é uma doutrina secreta.” (Carta de Engels a Theodor Cuno, 24 de Janeiro de 1872).
       
      [2] O IG de Jan Norden dirige a organização internacional da qual faz parte a Liga Quarta-Internacionalista do Brasil (LQB).

      Sobre os Recentes Eventos do Paraguai

      Sobre os Recentes Eventos  do Paraguai

      Julho de 2012 

      ERRATA (04/03/2017): Apesar do posicionamento fundamentalmente correto de se opor ao impeachment de Fernando Lugo (por ter sido um movimento reacionário da burguesia paraguaia) sem dar nenhum apoio político ao governo do então presidente, nem ao movimento por seu retorno ao poder, esse nosso texto é um pouco vago ao caracterizar o processo. Assim como fizemos inicialmente no impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, em 2016, nós não caracterizamos a medida como um golpe de Estado, pois considerávamos equivocadamente que isso envolvia necessariamente um movimento das forças armadas (conforme expresso no texto).

      Recentemente corrigimos essa posição (ver Declaração de relações fraternas entre o Reagrupamento Revolucionário e O Que Fazer?, setembro de 2016), encarando que golpes de Estado podem ser realizados por outras instituições do Estado burguês além das forças armadas, e não necessariamente envolvem uma mudança qualitativa do regime. Portanto, afirmamos que, apesar da previsão constitucional para um impeachment, as razões apresentadas pelo Congresso paraguaio em 2012 foram apenas uma fachada para a sua empreitada reacionária contra os trabalhadores e camponeses, passando por cima do presidente eleito e da Constituição, configurando, portanto, um golpe de Estado. Apesar da ausência dessa caracterização no presente artigo, encaramos que ele ainda responde corretamente a muitas questões colocadas pela luta de classes.

      No último dia 22 de junho, o então Presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi destituído de seu cargo através de um processo “relâmpago” de impeachment votado pelo Congresso por maioria absoluta. A acusação: “mal desempenho de suas funções”. Apesar de o processo ter ocorrido sem desrespeitar formalmente a Constituição do país, as suas características mostram a forma com a qual a burguesia paraguaia conduz seu Estado. Os eventos se desenrolaram em cerca de 30 horas, enquanto um impeachment costuma levar no mínimo algumas semanas para que haja tempo para que a defesa se prepare e também para que sejam apresentadas provas contra o acusado. Diversos movimentos sociais e mesmo governos de países vizinhos se opuseram ao processo por considerarem sua condução sumária.

      Lugo foi eleito Presidente em 2008 através da coalizão Aliança Patriótica para a Mudança (APC em espanhol). A APC foi uma frente de oposição com o objetivo de derrotar o Partido Colorado, que dirigiu uma sangrenta ditadura militar por mais de três décadas (1954-89) e ainda hoje é a maior legenda do país, tendo ficado por mais de 60 anos no poder. O principal partido da APC, e que indicou o vice de Lugo, foi o PLRA(Partido Liberal Radical Autêntico), segunda maior legenda do Paraguai e também representante da burguesia. Também integravam a coalizão, com menor poder de decisão e de forma politicamente subordinada, alguns movimentos e partidos camponeses e proletários – praticantes da colaboração de classes.
       
      Durante sua campanha eleitoral Lugo prometeu realizar uma ampla reforma agrária. A distribuição da terra é uma tarefa urgente tendo em vista que apenas 2% da população paraguaia é proprietária de 85% de todas as terras do país [1]. Devido à alta concentração fundiária, essa foi uma promessa recebida com grande entusiasmo pelos “carperos” (como se chamam os sem-terra paraguaios), que travam uma luta encarniçada com os latifundiários através da ocupação de terras e criação de assentamentos.
       
      Mas durante seus aproximados três anos e meio de duração, o governo burguês de Lugo não realizou avanços significativos de reforma agrária, abandonando suas promessas logo nas primeiras semanas de governo. Nenhum resultado diferente poderia ser esperado se levarmos em conta que Lugo, apesar de eleito pelo voto dos carperos e trabalhadores urbanos, foi financiado e coligou-se com seus inimigos ― os partidos dos latifundiários e empresários ― e dependeu deles todo o tempo.
       
      Assim, o governo de Lugo foi marcado por um recorrente discurso que visava obter a simpatia da classe trabalhadora e dos camponeses pobres, ao mesmo tempo em que na realidade governava para satisfazer os interesses da burguesia nacional e imperialista. E além de tal discurso demagógico e populesco de Lugo, também cumpriu um papel central na manutenção da ordem burguesa a sua proximidade com setores dos movimentos sociais, cooptando as lideranças traidoras como forma de convencer as massas de carperos, trabalhadores e a camponeses para não irem contra seu governo e conterem suas lutas. Esta dinâmica serviu bem à burguesia paraguaia durante certo tempo.
       
      Com a radicalização das lutas pela terra este ano (e o consequente aumento da influência de grupos guerrilheiros como o Exército do Povo Paraguaio) essa política mostrou seus limites e os principais setores da burguesia viram necessidade de uma postura mais enérgica. Em 15 de junho deste ano, uma fazenda adquirida ilegalmente por um ex-senador colorado e ocupada por cerca de 150 carperos foi palco de um massacre que terminou na morte de 11 trabalhadores sem-terra, assassinados pelas forças policiais enviadas ao local. Tal desenlace foi resultado de um confronto armado, que demonstra o crescimento da radicalização e da preparação militar dos carperos. 6 policiais caíram mortos de um total de 300 homens enviados para reprimir a ocupação [2].
       
      Carperos armados de facões e porretes em 
      Ñacunday, onde enfrentam sojeiros brasiguaios 
      e seus jagunços (Michel Filho / Agêncio O Globo)

      O massacre de Curuguaty, como ficou conhecido, foi um caso extremo, mas não isolado. Outros conflitos já vinham ocorrendo em diversas regiões do país entre proprietários (armados com seus jagunços) e carperos em luta, também resultando em mortes. Um dos que mais atingiu notoriedade e que continua a ocorrer é o de Ñacunday, onde mais de cinco mil famílias ocuparam terras pertencentes a “brasiguaios” ― proprietários brasileiros que migraram para o país vizinho nos anos 60 e tomaram ilegalmente terras então desocupadas.

       
      Com a intensificação dos conflitos por terras, a coalizão de Lugo entrou em crise e a oposição de direita a seu governo se fortaleceu. O primeiro resultado dessa querela entre setores da burguesia paraguaia foi a queda do Ministro de Interior de Lugo, alvo de críticas pela oposição de direita, e que foi substituído por um membro do Partido Colorado, Rubén Candia, figura mais propensa a empregar com ainda mais vigor os métodos repressivos. Posteriormente, sob a forte pressão da luta de classes no interior do país, o PLRA abandonou a coalizão de Lugo e somou forças no Congresso ao Partido Colorado.
       
      A oposição burguesa do Partido Colorado em aliança com o PLRA decidiu ir além e fazer do próprio Lugo seu alvo. Como juntos os dois partidos passaram a controlar a maioria absoluta no Congresso, não foi tarefa difícil remover da presidência o extremamente isolado Lugo e abrir caminho para o controle do Executivo através do vice do PLRA, Frederico Franco. Um processo de impeachment foi aprovando na Câmara dos Deputados no dia 21 de junho e a destituição de Lugo deu-se através de uma votação no Senado no dia seguinte, por uma vantagem de 39 votos contra 4.
       
      Um documento da Embaixada dos Estados Unidos no Paraguai, datado de 2009 e vazado pelo WikiLeaks, deixa claro que esse plano já vinha há muito sendo considerado, e esperava-se o momento propício para remover Lugo do poder, abrindo assim caminho para que o PLRA assumisse a presidência e os colorados indicassem o novo vice a partir da sua supremacia no Congresso [3].
       
      Tendo em vista o programa político e a história dos partidos envolvidos nessa sórdida jogada, não é surpreendente que o “impeachment” tenha sido realizado às pressas. Uma vez aprovada a acusação na Câmara, o “tribunal” composto por senadores foi estabelecido e o processo julgado em menos de dois dias. A pressa se explica principalmente pelo temor dos congressistas em dar tempo para que os apoiadores de Lugo nos movimentos sociais tomassem as ruas em protestos, e principalmente que caravanas de carperos fossem até a capital defendê-lo.
       
      A caracterização do processo e a posição revolucionária 

      A queda de Lugo e a ascensão de Franco à presidência foi diferente dos golpes de Estado que aconteceram no Haiti em 2004 ou em Honduras em 2009. Claro que coberturas “legais” são sempre utilizadas por agentes da burguesia para disfarçar suas medidas ilegais ou antidemocráticas. Mas o centro do que comumente se considera um golpe de Estado, ou seja, um atentado armado contra a democracia burguesa a partir da mobilização dos aparatos repressivos (e que por vezes coloca estes no centro do poder), esteve em grande parte ausente nessa situação.
       
      Alguns grupos na esquerda tem caracterizado o processo como um “golpe de Estado” puro e simples. Outros estão sendo mais cuidadosos e utilizando termos como “golpe branco” ou “golpe institucional”. Nomenclaturas à parte é importante atentarmos para os limites da própria democracia burguesa do Paraguai, que deu respaldo para que Franco e o PLRA subissem ao poder embasados na própria Constituição do país [4].
       
      Mas, diferente dos comentaristas liberais, não pautamos nossas posições pelo “respeito à lei”. Como marxistas, enxergamos a lei como produto da luta de classes, criada para ordenar a dominação da burguesia sobre o proletariado e também estabelecer algumas regras entre as próprias disputas internas da burguesia. Temos clareza de que a própria Constituição paraguaia permitiu a destituição sumária de Lugo porque a intensidade dos conflitos políticos historicamente existentes nesse país exigiu da burguesia se armar com esse tipo de instrumento legal.
       
      Atirador de elite protege sede do Congresso
      durante a votação do impeachment 
      (Cesar Olmedo/AP)

      E apesar de reconhecermos que não houve uma ruptura institucional da democracia burguesa (característica principal em um golpe de Estado), encaramos que a jogada realizada pelo PLRA, pelo Partido Colorado e por outros setores da oposição burguesa à Lugo possuiu um caráter intrinsicamente reacionário eantidemocrático. E tal caráter não deriva meramente da “ruptura do processo democrático”, como diplomatas de países vizinhos têm afirmado, mas sim do fato de ser um movimento contra a classe trabalhadora e os camponeses – os verdadeiros alvos, ainda que indiretos – buscando estabelecer bases mais favoráveis à repressão de suas lutas e à proteção dos interesses da burguesia.

       
      Assim como esses setores exigiram a nomeação de um reacionário do Partido Colorado para o cargo de Ministro do Interior com o objetivo de reprimir com maior firmeza as ocupações de terra, os mesmos também resolveram cortar os laços entre governo e lideranças pelegas dos movimentos sociais, com a clara intenção de deixar de lado a cooptação política e priorizar o método dos cassetetes e fuzis. Basta reparamos na justificativa para a destituição de Lugo: este não estava “cumprindo seu dever” na contenção dos sem-terra. Certamente esses senhores do PLRA e do Partido Colorado encaram que o erro de Lugo e de seu ex-ministro do Interior em Curuguaty não foi o de ter reprimido e assassinado os carperos em luta, mas sim de ter demorado em fazer isso e ter dado tempo para que estes se fortalecessem e criassem condições para resistir aos policiais, chegando a heroicamente derrubar alguns deles.
       
      Portanto, nos opomos firmemente à manobra desses senhores do PLRA, do Partido Colorado e companhia e à subida de Franco à Presidência. Isso não significa, entretanto, que apoiamos politicamente Lugo e seus aliados. Pelo contrário, foi o próprio governo Lugo que, pelo seu projeto de conciliação de classes e seus ataques à classe trabalhadora e aos camponeses pobres, permitiu o fortalecimento daqueles que o tiraram do poder e garantiu as condições do seu triunfo. Lembramos que o próprio Lugo aceitou a entrada do Partido Colorado em seu gabinete na importante posição de Ministro do Interior. Também não vamos nos esquecer de que o massacre de Curuguaty ocorreu não sob o governo de Franco, mas sim sob o governo do próprio Lugo.
       
      Nesse sentido, a melhor maneira prática de impedir a jogada suja do PLRA e de seus aliados sem comprometer a independência de classe do proletariado, era atacando a propriedade privada, através da intensificação das invasões de terra no campo e da construção de greves políticas nas cidades. Essa medida não só enfraqueceria a oposição burguesa à Lugo e poderia fazê-la recuar em sua investida como também enfraqueceria o próprio Lugo e seu projeto de manutenção do capitalismo, cimentando o caminho para uma verdadeira situação revolucionária que desembocasse em um governo direto do proletariado em aliança com seus irmãos camponeses.
       
      Lugo governou parae com a burguesia e tem sangue nas suas mãos assim como todos os outros defensores dos latifundiários, independente das suas diferenças em termos de que métodos utilizar para preservar o capitalismo e enfraquecer a luta pela terra. Para nós, Lugo deveria ter sido tirado do poder, mas não pelos latifundiários reacionários que ele buscou proteger, e sim pelos carperos e proletários que ele trabalhou para oprimir e explorar. Frente a exigências ou ilusões de que Lugo deveria retornar ao poder, devemos dizer abertamente que ele não merece a mínima confiança ou apoio da classe trabalhadora e dos camponeses pobres!
       
      Diante da destituição de Fernando Lugo, a tarefa de construir um enfrentamento feroz com a burguesia reacionária está em dia. Protestos contra o “golpe palaciano” do PLRA têm ocorrido em diversas regiões do país. E mesmo que em grande parte os manifestantes não estejam simplesmente se opondo à manobra palaciana, mas também apoiando Lugo politicamente e exigindo seu retorno à presidência, cabe aos revolucionários intervirem neles com seu programa próprio. É fundamental disputar a consciência dos companheiros em luta para romperem politicamente com Lugo e adotarem um programa classista e revolucionário.
      Um dos vários protestos que têm ocorrido 
      contra a posse de Franco e a destituição
      de Lugo (Jorge Adorno/Reuters)


      Com o crescimento desses protestos, pode ser que os representantes do Partido Colorado e seus novos velhos amigos do PLRA apelem para a violência brutal que foi desnecessária em um primeiro momento, devido à falta de resistência por parte de Lugo e seus apoiadores. É fundamental, portanto, educar os trabalhadores no caminho da autodefesa e utilizar o calor das mobilizações para construir milícias populares e impedir novos Curuguaty perpetrados pela burguesia reacionária.
       
      O eixo central da luta contra a manobra da direita paraguaia deve ser a independência de classe dos trabalhadores e a ação direta, em aliança com os camponeses pobres. As tarefas do proletariado paraguaio frente à atual situação são ocupar terras no campo, realizar greves políticas nas cidades contra o novo governo e construir autodefesas contra possíveis ataques da burguesia, rejeitando toda e qualquer confiança ou apoio a Lugo, assim como a mediação de organismos burgueses internacionais, como a UNASUL.
       
      Cabe aos trabalhadores nos outros países adotar uma atitude internacionalista com relação aos seus irmãos de classe. Devemos tomar as ruas e realizar greves de apoio aos proletários e carperos paraguaios em sua luta contra o governo de Franco ou de qualquer outro peão da burguesia. Desde o Brasil, devemos rechaçar firmemente o posicionamento dos proprietários “brasiguaios” (de apoio a Franco) e auxiliar nossos irmãos de classe no Paraguai a responderem esses senhores com a expropriação imediata de suas terras.
       
      Ao realizar tais ações de solidariedade ao mesmo tempo em que também se colocam contra as próprias burguesias e seus governos, as greves, protestos e outras ações proletárias mostrarão o verdadeiro caminho internacionalista dos trabalhadores contra as classes dominantes que os exploram e oprimem.

       

      NOTAS

       

      [1] Números fornecidos no artigo Os mortos de Curuguaty e o julgamento político de Lugo:

      http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510780-os-mortos-de-curuguaty-e-o-julgamento-politico-de-lugo

       

      [2] Números fornecidos em matéria da Carta Maior:

      http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20446

       

      [3] O documento pode ser acessado através do seguinte link, contendo tradução em português:

      http://www.contrafcut.org.br/noticias.asp?CodNoticia=31070

       

      [4] A Constituição paraguaia prevê a possibilidade de um impeachment, porém não estabelece um regimento para como ele deve ser realizado. Dessa forma, após o Congresso aprovar o início do julgamento, coube a ele próprio decidir as regras com as quais proceder.

      Polêmicas com a Tendência Bolchevique Internacional

      Gostaríamos de chamar a atenção de nossos leitores para polêmicas travadas recentemente na seção em inglês de nosso site contra a Tendência Bolchevique Internacional (TBI).
       
      A primeira polêmica foi escrita em resposta à publicação do “balanço” que a TBI faz a cada 3 anos do seu trabalho. O balanço da TBI (em inglês) abordava de forma passageira a sua relação com o Coletivo Lenin, grupo que, após romper com esta, se aliou temporariamente ao Reagrupamento Revolucionário do camarada Sam Trachtenberg. O documento da TBI diz que:

      “Ao avaliar o nosso trabalho desde a nossa conferência de 2008 observamos que, apesar de alguns sucessos limitados (por exemplo, ganhamos adeptos na França e Polônia), ainda temos de fazer grandes avanços a nível internacional e, de fato sofremos alguns reveses. Em 2010, um companheiro recém-recrutado deixou a IBT para se tornar um anarquista em sequência aos protestos explosivos contra o G-20 em Toronto. Mais significativamente, não conseguimos ganhar os membros do Coletivo Lenin (CL) do Rio de Janeiro, alguns dos quais eventualmente se alinharam com Sam T., um ex-membro talentoso mas problemático da IBT, que partiu em setembro de 2008, após decidir que ele não estava mais preparado para seguir as diretrizes da organização. A nossa incapacidade para ganhar os camaradas brasileiros veio como o culminar decepcionante de vários anos de esforço e representou a perda do que parecia ser uma oportunidade promissora para realizar trabalhos em uma parte extremamente importante do mundo.

      Curiosamente, o balanço não faz nenhum cometário sobre o motivo do Coletivo Lenin para rejeitar a TBI e aliar-se com Sam Trachtenberg. Para conhecer melhor este desenvolvimento, recomendamos a declaração de ruptura das relações fraternais do CL com a TBI e o estabelecimento de relações fraternais com o RR.
       
      Posteriormente, o CL se dividiria entre uma maioria que aceitou acriticamente um programa abertamente revisionista e uma minoria que defendeu o programa revolucionário do trotskismo e se uniu definitivamente ao Reagrupamento Revolucionário, como relatamos em nossa carta de ruptura com o Coletivo Lenin.
      Embora tais polêmicas ainda não estejam disponíveis em português, queremos convidar os leitores interessados a realizar, por hora, uma leitura em inglês, que pode ser facilitada com a ferramenta de tradução do Google. Basta colar o link da página em inglês e clicar em “Traduzir” para receber a tradução automática em português.
      As  polêmicas produzidas até o momento estão disponíveis através dos seguintes links: 

      Abuso Burocrático na Tendência Bolchevique Internacional

      O Caso de Peter de Waal 

      Abuso Burocrático na Tendência Bolchevique Internacional 
      Aqui estão reproduzidos dois documentos que dizem respeito a casos de abuso burocrático cometidos em 1993 por Bill Logan e Adaire Hannah, líderes do Grupo Revolução Permanente da Nova Zelândia (PRG), seção da Tendência Bolchevique Internacional (IBT). O primeiro é uma postagem feita em um grupo de discussão na internet (alt.politics.socialism.trotsky) em dezembro de 1998. Ele relata, com citações, a forma como os membros e líderes da IBT lidaram com o ocorrido na época. O segundo é um trecho de uma polêmica entre a IBT e a Liga Comunista Internacional (organização internacional da Liga Espartaquista) na qual a IBT reconhece esse tipo de acontecimento sob uma interpretação “inofensiva” que está em clara contradição com as citações do primeiro documento. A tradução de ambos é uma realização do Reagrupamento Revolucionário.

      Enquanto nós consideramos que a Tendência Bolchevique Internacional contribuiu para o avanço do programa trotskista em determinado período, nós não pretendemos repetir os erros e abusos burocráticos realizados ao longo da sua história e que no fim determinaram a sua transformação em uma organização burocrática engessada, com uma liderança permanente que coloca o controle sobre os próprios membros acima de quaisquer princípios organizativos ou políticos. É com esse propósito que traduzimos e republicamos estes documentos. A sua publicação não indica nenhuma responsabilidade pelos comentários feitos pelo autor da postagem, Philip Ferguson, nem pelos comentários secundários de Peter de Waal, assim como não indica qualquer confiança na crítica da Liga Espartaquista (ela própria envolvida em uma série de abusos burocráticos semelhantes).

      A perseguição a Peter de Waal por parte de Logan e Hannah (também antigos líderes na Liga Espartaquista e que nunca romperam completamente com suas técnicas inescrupulosas) marcou o início da transformação do PRG, de um grupo de algumas dezenas de membros (então o maior grupo neozelandês reivindicando o trotskismo), nos quatro idosos semiativos que ele é hoje. O regime destrutivo mantido no PRG foi o principal responsável pela incapacidade do grupo de se desenvolver e poder contribuir para o renascimento da Quarta Internacional. Na tradução para o português foram realizadas apenas pequenas modificações na organização espacial do primeiro documento, com o objetivo de facilitar a sua leitura. 

      ***

      Documento 1 – Postagem em alt.politics.socialism.trotsky 

      De: Philip Ferguson
      Data: 17 de dezembro de 1998
      Assunto: Peter West, Re: publique e seja condenado

      Para Peter West,Peter: aqui estão algumas coisas que foram postadas em apst [alt.politics.socialism.trotsky] há algum tempo atrás por um antigo membro do PRG, lidando sobre como opera o regime de Logan. O ex-membro é um homem chamado Peter de Waal, que foi um de vários membros que Logan decidiu que constituíam um “núcleo menchevique” na organização. Na verdade, os movimentos contra esse “núcleo” eram parte da conduta de Logan para disciplinar a organização de uma forma que os membros entendessem que apenas aqueles que verdadeiramente o amassem e o vissem como o líder perdido do proletariado achariam espaço para permanecer no PRG.

      Aqueles que recusassem tal obediência tinham que ser destruídos, tanto para se livrar deles como descrentes quanto para enviar uma mensagem clara para o restante dos membros. Essa é a metodologia na qual Alan Gibson e Barbara Duke foram treinados.

      Eu retirei as referências aos nomes de uma série de outros membros do PRG que apoiaram o expurgo mas que desde então deixaram a cena. No final eu adicionei alguns comentários meus. Onde eventos ou pessoas precisaram de explicação, eu adicionei informação entre colchetes junto com as minhas iniciais [PF]. Outras coisas entre colchetes estavam no texto original. Onde os membros do PRG usam seus sobrenomes no texto, eu modifiquei por seus nomes de partido. 

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      De: Peter de Waal

      Citações do PRG – Aquilo que eles esperavam que nunca fosse aparecer” 

      Aqui estão alguns exemplos do tipo de coisa que circulava no boletim internacional da IBT depois que eu deixei o PRG. Nas minhas postagens anteriores eu apenas aludi a esse tipo de coisa, aqui está a evidência! É bastante óbvio ao ler isso que essas pessoas são stalinistas não assumidos, sendo as palavras de Bill Logan e Harlan particularmente interessantes. Tudo isso me lembra de uma piada que ouvi certa vez – “nós vamos torturar você tão lentamente que você vai pensar que é uma profissão”. 

      Como quebrar um camarada

      Logan BL30526 26/5/93 – Desenvolvimentos no PRG

      Página 3

      “Nós não estamos acostumados a esse tipo de discussão política no PRG, embora é claro, não seja historicamente incomum para um camarada desmoralizado deixar uma organização revolucionária em uma discussão conturbada que envolve uma combinação de problema disciplinar e acusações de burocratismo. Em geral o importante a fazer é ter inúmeras e longas sessões com a intenção de expor ao camarada que está se retirando (e aos outros membros) as motivações subjetivas envolvidas e a profunda inadequação geral de quem se retira. Nestes casos, é claro, onde você está lidando fundamentalmente com desmoralização pessoal, questões de personalidade e programa estão fundidas. Tais camaradas extraem o programa a partir das suas necessidades pessoais.”

      “Nós preferiríamos que tais pessoas tivessem tão pouco a ver com política quanto possível por um tempo, e uma martelada pode às vezes aprofundar a desmoralização, o que é para o bem.”

      “Porque não houve qualquer tipo de preparação, e porque nós nunca havíamos tido tal situação antes, o processo nessa instância foi inusitadamente gentil dentro da minha experiência, embora possa haver camaradas que apesar disso acharam que o processo não foi suficientemente gentil com Peter.”

      “E também pode haver camaradas que esperavam que um toque mais leve com ele fosse mais provável de nos permitir usá-lo em exercícios de controle de danos em Auckland e na Ilha Sul. Minha visão pessoal é de que qualquer perspectiva de usá-lo em tais exercícios – e isso parece improvável – só poderia acontecer após um confronto agudo no qual ele ganhasse uma surra política completa.”

      “No meio da segunda sessão da discussão, Peter disse que ele era incapaz de continuar a discussão – e ela estava bastante amena. Eu ainda esperava que nós fôssemos capazes de extrair mais informação de Peter e acreditava que ele deveria de qualquer maneira encarar a discussão, então eu promovi uma moção deixando claro que ele estava sob disciplina para permanecer na reunião. Essa moção foi aprovada com apenas Peter contra.” 

      Ainda Logan:

      Página 4

      “Minha sensação pessoal é que os camaradas estão sendo um pouco críticos demais de mim, um pouco escrupulosos demais sobre a maneira apropriada com a qual a luta política é conduzida. Há uma visão de que isto é um ataque pessoal ao invés de político. Eu não tenho muito a dizer quanto a arrependimentos aqui.”

      “Além do mais, o meu julgamento sobre ele é que deixando claro para ele que ele tem pouco a oferecer à política pode bem ajudá-lo a seguir a direção da aposentadoria.” 

      Rory RT30527 27/5/93 [PF – Rory era parte do “núcleo menchevique”]

      Página 1

      “Minha experiência nessa organização é de que ela não é um lugar para clarificar diferenças, mas sim um lugar para desmantelar a oposição.”

      De um recado para Sari: “A psicopatologia de Bill havia ficado impressa na organização”. Aparentemente Rory estava se referindo a uma conversa que ele teve com Bill, quando Bill candidamente perguntou como um terapeuta treinado a Rory da sua opinião sobre o PRG. 

      Harlan (Líder da IBT na Alemanha) 

      Documento datado em 16/6/93, cópias para todas as localidades exceto Londres – Jill e Garry em Londres eram apenas apoiadores na época e Bill não queria assustá-los.

      Página 1

      “Apesar de tudo, eu estou levemente alarmado que um número de camaradas internacionalmente parecem não ter entendido que o tom e jeito empregados por Bill e Adaire na reunião de 25 de maio foram apropriados para lidar com um membro de uma organização revolucionária que encobriu o roubo de materiais internos do PRG, caracterizou o líder da seção como não-bolchevique, e se recusou a travar uma luta política.”

      “Isso não foi uma luta política ‘normal’; nem mesmo uma que pudesse levar a um racha sobre diferenças políticas reais. Peter colaborou com um inimigo da organização ao qual ele havia dado sua fidelidade, uma organização que encarna as necessidades históricas da classe trabalhadora internacional.” [PF – Eu acho que isso se refere a alguém dos Socialistas Internacionais que estava hospedado na casa de Logan e surrupiou um documento do PRG, sendo que Peter de Waal sabia disso e não disse nada, mas eu não tenho certeza]. 

      Harlan continua: 

      “Ele inicialmente mentiu sobre essa colaboração. Eu acho que seria útil dizer como o PRG teria lidado com o traidor Peter no contexto de uma insurreição proletária ou uma guerra civil entre forças proletárias revolucionárias e forças capitalistas. Uma organização revolucionária liderando uma luta desesperada como essa teria imediatamente se desfeito fisicamente do traidor depois de extrair informação dele por quaisquer meios que fossem necessários.”

      “Na presente situação as tarefas do PRG eram se livrar de Peter de uma maneira que alcançasse dois propósitos:
       Um: torna-lo ideologicamente e emocionalmente incapaz de causar dano ao PRG;
       Dois: deixar claro para os membros do PRG o escopo completo da traição de Peter e a sua inutilidade para o marxismo revolucionário.”

      “A conduta de Bill e Adaire esteve dentro dos parâmetros EXIGIDOS. Confusão entre as normas desejadas de diferenças, de luta intra-partidária e a democracia operária de um lado e meios extraordinários apropriados para lidar com um traidor moralmente fraco de outro causa preocupação sobre a presente habilidade de alguns camaradas da IBT de distinguir entre as normas bolcheviques de vida interna das medidas brutais às vezes necessárias que uma organização deve usar ao lidar com os Peters deste mundo que acidentalmente adentram em uma organização de combate revolucionária.”

      “A postura (político-pessoalmente) agressiva e abusiva de Bill em relação a Peter durante a ruptura foi um dispositivo apropriado para tentar obter fosse 
       (a) uma maior elucidação política da percepção dele sobre o PRG enquanto um grupo distorcido por práticas organizativas típicas de um Healy;
       (b) um colapso emotivo em autodesprezo (bastante apropriado) que poderia ajudar no controle de dano;
       (c) a reação de um rato encurralado de violência física que teria sido útil ao PRG para causar descrédito a Peter em sua provável carreira futura de ‘especialista’ anti-PRG;
       (d) conseguir mais informação.”

      Página 2

      “A questão preocupante é que alguns membros do PRG ainda pensam que a liderança tática de Bill e Adaire foi ‘deficiente, uma vez que houve um padrão de conduta da parte desses dois camaradas envolvendo comportamento no tom e estilo que foi excessivamente inflamatório e foi, portanto, inapropriado para essa situação particular (!)’ [citado de Marcus Hayes do PRG, com ênfase de Harlan] e que a intervenção de Adaire na sessão foi ‘extremamente desprezível’.”

      [PF – Isto acima se refere ao fato de que nesta bizarra reunião, Peter de Waal foi sujeito a tiradas mordazes de Logan e da maluca Hannah, e que no rompimento, Logan tentou incitar Peter de Waal a atacá-lo. Isso teria sido usado para destruir Peter de Waal politicamente aos olhos de membros do PRG e sujar o seu nome na esquerda. Alguns membros do PRG, incluindo um dos seus líderes – Marcus Hayes – acharam que esse procedimento estava um pouco fora de ordem, e Marcus, para seu crédito, subsequentemente disse ou escreveu que se Peter de Waal tivesse atingido Logan, então Logan teria que carregar um pouco da responsabilidade moral. Isso levou Harlan, o maníaco encarregado da operação alemã da IBT a ir até o fundo do poço com Marcus, como evidenciado no que você vai ler agora].

      Harlan continua: 

      “Desprezo extremo era o único ‘tom’ apropriado com o qual caracterizar Peter e sua conduta como um membro prestes a ser expulso de uma organização revolucionária. Peter havia feito um compromisso com o marxismo proletário revolucionário. Se ele pessoalmente tinha maturidade emocional o suficiente e capacidade de uma avaliação objetiva das exigências desse compromisso, já não vem ao caso. Fazer de Peter um exemplo apropriado e empurrá-lo para o suicídio político era o resultado desejável da reunião de 25 de maio.”

      “Eu não acho que a caracterização de Peter feita por Bill como um ‘pedaço patético de material humano’ foi inapropriada ou desnecessariamente abusiva, eu apenas acho que ela foi pouco científica e insuficientemente insultante.”

      Página 3

      “Nós queremos que os traidores como Peter saiam em um estado desmoralizado tanto quanto nós possamos ajudar a chegar. Nós não temos interesse nem perspectiva de manter contato com Peter, ou de resolver nossas diferenças com ele uma vez que ele esteja fora da organização. Nem nós estamos interessados e recrutá-lo novamente em uma outra possível conjuntura” 

      Peter de Waal escreveu sobre isso: 

      “Bastante simples de fato – (1) destruir Peter, (2) deixar uma marca no restante dos camaradas. Notável é a crença de Harlan de que a IBT encarna as necessidades históricas da classe trabalhadora. Bill costumava delirar sobre a idéia de que, como um ex-membro da Liga Espartaquista, ele estava conectado pelo método organizativo e aprendizado ao SWP/EUA das origens e, portanto, a Trotsky, Lenin, numa linha de sangue ininterrupta de comunistas. Eu costumava me referir a isso como a teoria DST (Doença Sexualmente Transmissível) da consciência marxista – você tem que pegar por contato pessoal e você só consegue uma dose do escolhido, por exemplo, Bill. Com relação à referência de Harlan sobre o que eles teriam feito comigo num quadro de comunismo de guerra, ela revela mais sobre o funcionamento da cabeça de Harlan do que é relevante para a discussão. Eu suponho que os sentimentos de impotência que surgem da experiência de vida dele acham expressão em tais chamados por justiça com sangue.” 

      Intimidação Física – Boyd – BABT 15/6/93 [PF – Esta é uma contribuição para a discussão feita por um membro da IBT na Área da Baía de São Francisco, que também estava enojado pelo método de Logan].

      Página 2

      “Pior do que simplesmente ficar bem próximo de Peter, Logan admite ter conscientemente piorado com ele ao usar um tom alto, irritado e insultante. O comportamento de Logan foi, por todos os relatos, calculado para reduzir a situação a um combate a socos. Logan admite estar ciente de que Peter estava a beira de um colapso e poderia ter lhe atingido. Logan até mesmo escreveu que não teria sido mal se Peter o tivesse atingido. Esse não é o tipo de atmosfera que nós queremos criar internamente.”

      “Nós devemos manter nossos camaradas, em particular nossa liderança mais antiga, como eu recentemente me mantive, num padrão mais alto de comportamento. O Secretariado Internacional [da IBT] deixou o camarada Logan solto e fazendo isso criou um precedente. Em que extensão esse precedente se torna uma prática nós teremos que ver.” 

      Intimidação Indireta – Boyd, 9 de junho de 1993
      Página 5

      “Por último e mais importante, a minha experiência é de que camaradas mais jovens (observadores nas discussões nervosas e ríspidas) podem ficar intimidados. Eu acho que Adaire e Bill, em particular, não veem a questão da intimidação indireta. Tem sido minha observação que os camaradas com menos estômago, camaradas que podem já ser inseguros em seus pensamentos e sentimentos, ao observarem o tratamento com Peter serão ainda menos propensos a se colocarem. Não importa que esse não tenha sido o padrão usual de discussão no PRG. Para alguns camaradas pode bastar um incidente como esses para intimidá-los. Talvez isso seja também uma preocupação não expressa dos camaradas que votaram por criticar Bill e Adaire.”

      “Eu posso dizer que vocês estarão em uma ladeira bastante escorregadia se vocês decidirem que uma confrontação irritada e carregada de emoção é a aproximação geral que vocês querem ter.”

      “Esse estilo passa a ser comunicado aos novos recrutas que ou adotam-no ou silenciosamente aceitam-no. É a estrada rumo ao método de ‘explosões’ da SL [Liga Espartaquista], típico de seitas. Não é a aproximação geral que nós queremos ter. EM GERAL nós queremos encorajar o estilo e método que o PRG tradicionalmente usou. Nesse momento eu realmente não temo a sua degeneração ao estilo Smith/Ryker, mas eu estou um pouco incomodado pelas defesas escritas de Bill e Adaire que pareceriam aconselhar tal coisa.”

      Aqui Boyd corretamente afirma a razão para a maneira com a qual a reunião de 15 de maio de 1993 foi conduzida, para deixar uma marca no restante da organização. A seguir está uma declaração de Nicci, feita para Sari: “Nicci disse que ela queria conversar com Adaire sobre a intervenção dela contra Peter, mas ela não se sentia capaz já que ela se sentia intimidada por Adaire e não achava que Adaire iria escutar de qualquer forma.” [PF – Essas são duas pessoas que saíram como parte do expurgo do “núcleo menchevique”]. 

      Questões de Segurança 
      “Moções na Reunião do PRG – terça-feira, 8 de junho de 1993”

      “A executiva de 7 de junho votou por maioria recomendar o seguinte ao PRG: ‘Que nós notemos que atenção insuficiente foi dada pela executiva para as implicações de segurança de ter Glenn hospedado na casa de Bill enquanto ele estava em Wellington. Em vista da centralidade da casa de Bill para certos aspectos da nossa organização, ela requeria um nível de cuidado que atrapalharia muito, ou a instalação de uma trava na gaveta de estudo de Bill, para tornar o lugar seguro para alguém como Glenn. Adaire objetou a Glenn ser instalado com Bill em uma reunião informal dos membros da executiva, e Bill garantiu aos camaradas que estaria tudo bem, então ele deve assumir responsabilidade principal por isso. As precauções discutidas entre os membros da executiva (tendo a ver com segurança do computador), e outras precauções que foram tomadas, provaram ser inadequadas.’ ” 

      Mais de Bill Logan no seu maldito BL30526 26/5/93 – Desenvolvimentos no PRG
      Página 4

      “Primeiro há o ponto de Adaire, que precede a reunião. Ela tinha avisado que Glenn era um desgraçado hábil e experiente e que não deveria ter permissão de entrar na minha casa. Em retrospectiva, é difícil discutir contra isso.” 

      Documento de Harlan datado de 16/6/93

      “Mas o aspecto mais alarmante desse incidente é a facilidade com a qual uma pessoa hostil teve acesso a materiais internos impressos lidando com questões pessoais. Frouxidão na segurança não se limita ao PRG. Depois que Smith foi posto em suspensão sem acesso à vida política interna da IBT, ele aparentemente teve acesso ao arquivo do computador até a intervenção de Jensen em questões de segurança técnica na Área da Baía. Eu suspeito que alguns dos materiais impressos no ‘documento histórico’ do CWG [1] são de data posterior à suspensão de Smith.” 

      Sari: 

      “Glenn foi convidado por Bill para usar a sua escrivaninha enquanto estava hospedado com ele. Ele viu o documento de 7 de maio sobre a escrivaninha e o leu. Ele disse a Peter naquela noite sobre o conteúdo e que eles tinham a intenção de ‘acabar com Peter’. No dia seguinte Glenn retornou à casa de Bill para recolher suas coisas e pegou uma cópia do documento de 7 de maio e a trouxe de volta para Peter antes de partir para Auckland.” [PF – Glenn é o homem dos Socialistas Internacionais que se hospedou na casa de Logan]. 

      De David Wincop DW30604 “Táticas a Respeito de Peter” 30/06/93
      Página 1

      “Marcus diz que ‘se Peter tivesse atingido Bill, então Bill teria que dividir um tipo de responsabilidade em menor escala pela violência’. Eu tenho a impressão de que essa declaração precisa ser completamente contraposta e que Marcus deveria retirá-la. Se uma mulher vestida sensualmente, que dança de maneira sacana é estuprada em seguida (como representado por Jodie Foster na história baseada em fatos reais “Acusados”), isso significa que ela ‘teria que dividir um tipo de responsabilidade em menor escala pela violência’? É claro que não. Se Peter tivesse atingido Bill então a única pessoa responsável teria sido Peter.”

      Bill como uma mulher sensual e Peter como um estuprador??!! Sexo = violência? Conversa de cachorro doido! David está hoje em exposição na seção de Londres da IBT. 

      A vingança do núcleo menchevique
      Sari: 

      “Quando Peter saiu, permitiram que eu voltasse já que eles queriam refutar a percepção mantida em comum de que eles estavam realizando um ‘expurgo’. Eles foram a extremos para manter Nicci na organização e quando Spike saiu eles não disseram a ninguém por muito tempo que ele tinha saído. Aparentemente Spike tinha concordado em continuar com essa farsa, já que o PRG ainda parece ter algum tipo de influência moral sobre ele e ele ainda é amigo de alguns deles. Eu acho que ele se sente culpado a respeito de trabalhar numa estrutura que é devotada a jogar trabalhadores nas ruas. Infelizmente para eles, Rory saiu três semanas depois de Peter, depois de algumas discussões amargas sobre a estrutura e métodos do PRG e particularmente o seu comportamento com Peter.” 

      ———————————————————————————————– 

      Desde essa época, 1993, o PRG mal recrutou alguém. Eles diminuíram ao invés de crescer em números. Todo esse episódio e o comportamento de Logan e Hannah mostraram conclusivamente que eles não haviam mudado dos dias em que estavam realizando operações da Liga Espartaquista na Austrália e na Grã-Bretanha como um par de sociopatas. Logan foi expulso pelos espartaquistas por ser um sociopata e lhe faltar a mais rudimentar decência humana. A Liga Espartaquista na verdade produziu três volumes lidando com o seu julgamento interno e o seu comportamento sociopata na Austrália e na Grã-Bretanha. Quando ele voltou para a Nova Zelândia, eles doaram cópias para todas as bibliotecas públicas para avisar a todos na esquerda sobre ele.

      O episódio do núcleo menchevique dá um pequeno relance para dentro da natureza de uma organização totalmente doente e deformada, liderada por um par – Logan e Hannah maluca – que nenhuma organização de esquerda saudável deixaria chegarem a um quilômetro de distância.

      A IBT está se desintegrando – a maior parte da IBT na América do Norte se levantou e saiu, uma massa na Alemanha foi embora, a operação britânica tem sido um fracasso sem reservas nos últimos três ou quatro anos desde que os filhotes de Logan estão lá, e na Nova Zelândia a tentativa de se expandir para Auckland viu a maioria das pessoas que se mudaram para lá os deixarem. O PRG não produziu nenhuma edição do seu “jornal” mortalmente maçante “O Bolchevique” nos últimos dois anos. A última edição foram algumas folhas A4 mal fotocopiadas grampeadas em um canto. A IBT não produziu o seu jornal soporífico e antiquado supostamente “trimensal” desde janeiro deste ano.

      Toda pessoa envolvida em política de esquerda nesse país tem suas histórias favoritas sobre a psicopatologia chamada “PRG”, mas uma das minhas favoritas mais recentes é essa. Na última Conferência Estudantil Socialista em Wellington, Adaire Hannah fez o seu típico discurso, delirando a meio metro do chão (ela realmente é, como um ex-membro do PRG a descreveu, “o estereótipo de professora de escola solteirona de meia-idade vinda do inferno”. Outras pessoas simplesmente a chamam de “Hannah maluca” ou “Adaire, a louca”).

      De qualquer forma, depois de certa sessão, os líderes do PRG mandaram seus membros circularem na hora do intervalo para espreitar as conversas das pessoas – esse tipo de ação de louco é o que a escola de Logan-Hannah considera um “procedimento organizativo bolchevique” inteligente. Um dos seus inocentes membros de base estava cumprindo as suas tarefas de espionagem, espreitando e ouvindo uma conversa que incluía uma mulher na qual o PRG estava de olho. Justo quando o coitado estava escutando, essa mulher começou a falar sobre Adaire Hannah ser maluca! O que o PRG acha que é algum tipo de tática inteligente (ficar escutando às escondidas) acabou resultando no típico pesadelo do espião – ouvir algo que ele preferia realmente não ter ouvido.

      Um dos aspectos mais perturbadores do regime de Logan – e que é evidência ainda mais conclusiva do quão pouco ele mudou – é a maneira com a qual ele tenta inculcar lealdade. Isso parece consistir de dois truques:

      Um é que ele é o líder perdido do proletariado que herdou o manto de Lenin (através de Trotsky, Cannon e Robertson). O segundo é se fazendo de vítima. A forma como isso funciona é que ele se apresenta como o pobre e velho Bill, ele é gay, ele foi realmente maltratado pelos espartaquistas, ninguém o entende ou o ama, até mesmo o seu amante cometeu suicídio há um tempo atrás. Assim todo mundo deve supostamente se agrupar em torno do pobre e velho Bill e ajudar a protegê-lo desse mundo cruel. Então as pessoas ficam psicologicamente presas a ele com essa particular porcaria de jogo mental. Conforme o tempo passou, qualquer pessoa saudável saiu do PRG e eles estão começando a decair para o núcleo duro de pessoas que sempre vão continuar com a patologia.

      Por último, ao CPGB, se vocês querem um debate com o MB [Boletim Marxista, publicação britânica da IBT], vocês devem entender que Gibson e Duke não fariam ou escreveriam nada para vocês sem tudo ter sido acertado (quando não escrito) pelo maestro.

      Às vezes, você sabe, grupos na esquerda só tem políticas ruins. Algumas outras vezes eles são casos diretos de psicose. O de Logan é o último.

      Saudações,
      Philip Ferguson 

      ***

      Documento 2 – Polêmica entre a Liga Comunista Internacional (ICL) e a Tendência Bolchevique Internacional (IBT) 

      Trecho extraído de  http://www.bolshevik.org/TB/TB5html.html 

      ICL: 

      Um relato do Grupo Revolução Permanente (publicado como parte da coleção do documento de Riker/Smith reimpresso em Odeie o Trotskismo, Odeie a Liga Espartaquista número 8) dá evidência de que Logan continua usando seus velhos truques. Esse relato positivamente descreve uma sessão de “autocrítica comunista” em que “esperava-se de todos os camaradas comentarem aberta e francamente sobre as características boas e más dos outros camaradas”. No fim deste tormento – que durou três dias – a dirigente organizativa, que tinha um bebê pequeno, se retirou do grupo por não mostrar suficiente “vigor e consistência”. Tais “métodos” foram usados por anos para quebrar críticos e moldar capachos sem cérebro em organizações stalinistas, e eles também foram adotados pelos moralistas da Nova Esquerda. Mas eles são antitéticos ao treinamento de quadros leninistas críticos. E olhe quem está nos chamando de “seita”! (Parágrafo 58) 

      IBT: 

      O exercício de “autocrítica comunista” no começo de 1993 foi perfeitamente inócuo. A organização estava necessitando de ajustes na divisão do trabalho, e um resultado do exercício foi a eleição de um novo encarregado da parte organizativa. Tendo passado alguns anos nessa posição exigente, a organizadora do PRG estava interessada em mudar seu posto na organização. Não houve nenhuma questão de qualquer perda de autoridade política.

      Além de tais ajustes organizativos normais, também foi necessário resolver o fato de que o funcionamento político de alguns camaradas tinha começado a escorregar. Havia vários outros sintomas de desmoralização política e expressões de insatisfação os quais precisavam ser trabalhados. Estes variavam desde críticas à operação do grupo como um todo e o desempenho de vários membros (particularmente os camaradas de liderança) até colocar em questão a base programática fundamental do movimento marxista.

      Inicialmente a executiva do PRG tinha a intenção de expor suas preocupações com o funcionamento de vários camaradas como pontos pessoais na reunião regular da seção de Wellington. Mas foi em seguida proposto que os pontos essenciais poderiam ser feitos igualmente bem se, ao invés de simplesmente focar nas deficiências de alguns, a discussão fosse expandida para incluir o funcionamento e desenvolvimento político do grupo como um todo, desde a liderança até o mais recente membro recrutado.

      O exercício, que foi sempre projetado como um evento de “ocasião única” tomou espaço em três reuniões de seção. Enquanto alguns camaradas (incluindo alguns camaradas de liderança) o acharam um pouco desconfortável em alguns pontos, todos, incluindo os (agora não mais) camaradas que tinham sido a fonte inicial de preocupação, sentiram que ele foi uma experiência positiva e que havia ajudado a limpar a atmosfera.

      Comentando sobre as alegações da SL [Liga Espartaquista] de que essas reuniões foram para “quebrar críticos” e “moldar capachos sem cérebro”, o camarada Marcus Hayes sublinhou:

      “Eu não vejo objeção em princípio, e a única questão para mim é: o evento real foi na prática abusivo e nocivo? É uma questão inteiramente condicional…”

      “Implicações baseadas sobre o que o exercício poderia ter sido em outras circunstâncias, ou no que essas coisas podem às vezes se transformar, etc., etc., de fato presumem circunstâncias diferentes daquelas que nós tínhamos de fato, isto é, algo diferente de um regime saudável.”

      Ao projetar a sua própria vida interna sobre nós, os autores da SL conjuram o cenário de um verdadeiro pesadelo. A convicção deles de que deve necessariamente ter sido uma sessão de tortura psicológica abusiva é presumivelmente baseada na própria experiência deles. Num padrão similar, muitos ex-comunistas concluíram que o centralismo democrático de Lenin levava inexoravelmente ao gulag [campo de concentração] de Stalin.Mas em política a verdade é sempre concreta. 

      Notas da tradução

      [1] O documento aqui mencionado se chama “Bureaucratic Centralism in the International Bolshevik Tendency”. Foi publicado em 1993 pelo Communist Workers Group (CWG) dos EUA e também consiste em uma denúncia dos métodos burocráticos utilizados por dirigentes da IBT contra vozes críticas dentro da organização. Ele está disponível em inglês em: rr4i.org (Apêndice 3 da carta de ruptura de Samuel Trachtenberg com a IBT).

      Polêmica com o PSTU no Combate à Homofobia

      Somente os Trabalhadores Podem Defender Efetivamente os LGBT!

      Por Rodolfo Kaleb, agosto de 2011

      A opressão contra a diversidade de opção [*] ou identidade sexual vem crescendo no Brasil. O Grupo Gay da Bahia publicou recentemente uma pesquisa que mostra que o Brasil é o país recordista mundial em assassinatos de gays, lésbicas e travestis – 260 foram assassinados só no ano passado. Segundo pesquisa do Grupo, esse tipo de crime aumentou 113% nos últimos cinco anos. [1] Os casos de agressão nas grandes e pequenas cidades têm ganhado as páginas dos jornais e manchetes de televisão.

      PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) diz frequentemente que o fim definitivo da opressão contra pessoas com identidades ou opções [*] sexuais diferentes só é possível numa sociedade controlada pelos trabalhadores. Concordamos com tal afirmação. Entretanto, é preciso pontuar que se o fim definitivo da homofobia só é possível no socialismo, então é necessário que aqueles que lutam por ele tenham em mente, nas batalhas diárias por direitos na sociedade capitalista, que só os trabalhadores são capazes de defender os Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexuais. Esperar que os elementos da sociedade burguesa como a polícia, a Justiça ou os governos defendam os LGBT é uma política que pode se esperar de alguém que, conscientemente ou não, tem ilusões na sociedade capitalista ou busca uma versão “menos pior” da mesma.

      Em março deste ano, o companheiro Guilherme Rodrigues do PSTU de São Paulo foi atacado por um grupo de agressores homofóbicos. O PSTU divulgou bastante este ataque, que é mais uma de tantas das agressões crescentes contra os LGBT brasileiros. Mais um, porém um ataque contra um homossexual membro de um partido da esquerda, e que cria uma oportunidade fenomenal para que os revolucionários desmascarem os demagogos e mostrem que são os mais combativos na luta pelos direitos democráticos. Comentando sobre a agressão do seu militante, assim como sobre as ameaças de morte sofridas pelo deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), o PSTU escreveu que:

      É muito importante lembrar que nestes casos a polícia e a justiça não podem punir os agressores exatamente pela inexistência de uma legislação que criminaliza as agressões motivadas pelo preconceito, tal como foi o caso do companheiro Guilherme. (…)”

      Dia 18 de maio: exigir a criminalização da homofobia, Opinião Socialista 423, 11 de maio

      Está claro que o Estado capitalista na maior parte do tempo simplesmente não faz nada e deixa que os LGBT sejam agredidos ou mortos. De nenhuma maneira conseguimos ver como a polícia e a Justiça estão “impedidas” de punir os grupos homofóbicos fascistas simplesmente pela inexistência da lei de criminalização da homofobia. Não nos parece que elas estejam ansiosas por uma legislação como essa para começar a “mostrar serviço”. A falta de ação do Estado burguês tem razões muito mais profundas. Nem a existência da lei resolveria a questão. Ela seria uma vitória, mas uma vitória bastante limitada. Afinal, a sua aplicação seria feita pela mesma instituição que deixa impune os atacantes e restringe os direitos dos LGBT. Acaso a lei criminalizando o racismo resolveu as agressões, o preconceito e a super-exploração sofridos pelos trabalhadores e trabalhadoras negros? Assim como o Estado capitalista é essencialmente racista, ele também é machista e homofóbico.

      Imediatamente após o ataque contra Guilherme, o PSTU publicou no seu site uma declaração reclamando sobre a forma como o seu militante havia sido tratado pela polícia. A declaração mostrou que a policial que estava no local tratou Guilherme em pé de igualdade com seus quatro agressores, tentou encerrar o assunto como se nada tivesse acontecido e que, depois de levados para a delegacia, Guilherme foi liberado junto com os homofóbicos, sem nenhum tipo de proteção, estando à mercê de um novo ataque. O artigo conclui:

      Apesar de tudo, o BO [Boletim de Ocorrência] foi registrado. Foram consumados os crimes de lesão corporal (art. 129), injúria (art. 140) e ameaça (art. 147). No entanto, a formalização da denúncia só se deu pela persistência e coragem de Guilherme e não por que a polícia tenha cumprido sua tarefa.” (ênfase nossa)

      Mais um ataque homofóbico: liderança GLBT sofre agressão em São Paulosite do PSTU, 24 de março

      É esclarecedor que o PSTU reclame da ação policial dizendo que a polícia “não cumpriu sua tarefa”. Existe na concepção do PSTU uma dose considerável de esperança de que a polícia seja usada para ou tenha a tarefa de proteger os setores oprimidos. Na verdade, a polícia como um todo (e não apenas a policial envolvida) tem a tarefa de repressão profissional dos trabalhadores, sobretudo aqueles mais explorados e oprimidos. Qualquer trabalhador negro ou LGBT que já foi parado pela polícia sabe que a “tarefa” da polícia não é cuidar do bem deles.

      O PSTU e a Política Revolucionária

      O PSTU tem concentrado os seus esforços no campo das opressões na luta pela aprovação da PLC 122, o projeto de lei que criminaliza a homofobia. Em nenhum momento os dirigentes do partido explicam que a aprovação da lei, pela qual lutar é uma tarefa de todos os militantes combativos, não vai garantir uma proteção real para os LGBT. Recentemente, o partido publicou um texto defendendo a politização das Paradas Gays pelo Brasil após a sua participação na Parada de São Paulo:

      José Maria de Almeida, o Zé Maria, falou em nome da central [CSP-Conlutas, dirigida pelo PSTU] no carro de abertura, e foi aplaudido pelos milhões de ativistas ao exigir a criminalização da homofobia e a aplicação do kit ‘Escola sem homofobia’ em todas as escolas. Também denunciou a negociata política em Brasília com nossos direitos. (…)”

      Parada do Orgulho LGBT: a necessidade de politização, Opinião Socialista 426, 13 de julho

      Claramente é desejo de todos na esquerda que as Paradas do Orgulho LGBT sejam politizadas. Mas elas devem passar a ter uma política revolucionária. Qual líder demagogo do governo não diz que também acha que a homofobia deve ser crime (o PLC 122 é de autoria da senadora paulista Marta Suplicy, do PT)? O projeto “Escola Sem Homofobia” foi uma proposta do próprio Governo Federal. Obviamente combatemos a sua suspensão, com a qual Dilma fortaleceu os reacionários como Jair Bolsonaro (PP/RJ) e a bancada evangélica, mas não devemos limitar a isso as nossas demandas e as nossas ações. Da mesma forma, o PSTU tem alimentado ilusões no governo Dilma, cobrando que ela “mobilize os parlamentares” para criminalizar a homofobia:

      O movimento LGBT que vai à Brasília neste dia 18 precisa ter alguns objetivos claros. O primeiro é que estamos exigindo a aprovação do PLC-122. Porém, não estamos exigindo isso somente dos parlamentares, mas estamos exigindo da presidente Dilma. O PT possui maioria no Congresso Nacional e um forte poder de centralização de sua base aliada. A maior prova disso foi o rolo compressor do governo para aprovar o vergonhoso reajuste do salário mínimo. Estamos exigindo de Dilma que faça o mesmo movimento para aprovar o PLC-122.”

      Dia 18 de maio: exigir a criminalização da homofobia, Opinião Socialista 423, 11 de maio

      O programa que o PSTU levanta é insuficiente para educar os trabalhadores sobre a importância da sua unidade como classe, independente das diferenças de opção [*] ou identidade sexual. E também é inútil para diminuir concretamente a opressão contra os LGBT. A própria raiz do interesse de inúmeros setores da burguesia em manter os direitos restritos dos LGBT e a opressão contra eles é a mesma necessidade que possuem em dividir os trabalhadores em linhas étnicas, nacionais, sexuais, etc. Há mais de 100 anos, Lenin escreveu que:

      (…) o socialdemocrata [como se chamavam os revolucionários na época] não deve ter por ideal o secretário do sindicato, mas o tribuno do povo, que sabe reagir contra toda manifestação de arbitrariedade e de opressão, onde quer que se produza, qualquer que seja a classe ou camada social atingida, que sabe generalizar todos os fatos para compor um quadro completo da violência policial e da exploração capitalista, que sabe aproveitar a menor ocasião para expor diante de todos as suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico da luta emancipadora do proletariado.”

      O Que Fazer? (1902)

      Os revolucionários têm o dever de unir os trabalhadores contra as formas de opressão. Eles não devem buscar ser um “funcionário de sindicato” acomodado às limitações que a sociedade capitalista impõe. Eles devem tentar fazer com que os trabalhadores sejam ativos na defesa dos seus direitos democráticos à diversidade. Isso não se consegue tentando apenas aprovar uma lei ou um kit escolar. Essa separação entre o ideal futuro professado (um mundo socialista sem opressão) e a ação prática no presente (de cobrar do governo que proteja os LGBT) nada tem a ver com a estratégia revolucionária. 

      O maior objetivo dos revolucionários deve ser organizar a autodefesa dos trabalhadores e oprimidos, que inclua trabalhadores de todas as opções [*] e identidades sexuais para proteger os LGBT contra agressões com todos os meios disponíveis, revidando contra os grupos de homofóbicos fascistas ativos no país. Assim os revolucionários protegem na prática os LGBT ao mesmo tempo em que ensinam aos trabalhadores a não confiar na polícia e na Justiça da burguesia para nada – e fazerem eles próprio a sua proteção.

      Acreditamos que a autodefesa deve ser construída como uma frente única, ou seja, uma unidade de ação baseada no acordo comum entre militantes e ativistas de várias correntes ou independentes sobre a necessidade prática de defender os homossexuais. Com sua influência na juventude e nos sindicatos, o PSTU teria facilmente capacidade de organizar comitês de autodefesa para garantir a segurança dos LGBT. Propomos ao PSTU e demais organizações da esquerda (partidos, sindicatos, grupos de defesa dos direitos dos LGBT), organizar frentes como esta para escoltar e proteger aqueles que precisam.

      Um comitê de autodefesa, por exemplo, pode ser organizado para garantir a segurança dos jovens e trabalhadores que participarão da próxima Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, a ocorrer em outubro. Desde já nos dispomos a integrar uma iniciativa nessa ocasião. Não acreditamos, entretanto, que o PSTU tenha interesse em ajudar a construir esse ato de combatividade classista contra os homofóbicos, uma vez que tem preferido cobrar da polícia que cumpra a sua suposta “tarefa” e se limita a pedir proteção do Estado burguês.

      Uma ação como a organização de comitês de autodefesa de trabalhadores, ainda que pequena no início, pode plantar uma semente que inspire e seja reproduzida pelo Brasil afora, o que trará resultados reais em defesa dos LGBT. Os homofóbicos e fascistas não se assustam com a polícia. O PLC 122 pode inibir, mas não vai impedir que essa corja da reação continue perseguindo os oprimidos. Além disso, os agressores homofóbicos recebem apoio financeiro e ideológico dos partidos e políticos burgueses, como é o caso do DEM, que aprovou na Câmara de Vereadores de São Paulo o infame “Dia do Orgulho Hétero” (a ser “comemorado” no terceiro domingo de dezembro para protestar contra os “excessos e privilégios” dos LGBT). Os homofóbicos só vão parar quando perceberem que não vão conseguir agredir os LGBT e passarem a sentir medo dos trabalhadores, que estarão defendendo aqueles com unhas e dentes. Comentando sobre a agressão que sofreu, o militante do PSTU disse que:

      Hoje não queremos justiça só para este caso. Estamos aqui em nome de todas e todos que foram agredidos e que sabem que seus agressores continuam impunes. Queremos punição aos quatro covardes que me atacaram e que sirva de exemplo para esses bandos homofóbicos neofascistas. (…) Se não fui destroçado pelo bando é porque pude contar com a solidariedade daqueles que impediram o pior de acontecer.”

      Basta de Silêncio”, Opinião Socialista 421, 6 de abril

      Mas a punição definitiva contra o bando covarde de agressores de Guilherme Rodrigues, assim como os de tantos outros, não pode ser dada pelo Estado, como esperam passivamente os dirigentes do PSTU, mas somente pelos trabalhadores. Somente com a “solidariedade” entre trabalhadores e oprimidos, empunhando uma estratégia combativa e revolucionária, é que tamanha opressão pode ter fim.

      É Preciso Romper com o Centrismo!

      Centrismo é o nome aplicado àquela política que é oportunista na essência e que procura aparecer como revolucionaria na forma. Oportunismo consiste na adaptação passiva diante da classe governante e do regime existente, àquilo que já existe, incluindo obviamente os limites do Estado. O centrismo divide completamente esse traço com oportunismo, mas ao adaptar-se aos operários insatisfeitos, o centrismo se cobre de discursos radicais.” [2]

      Esta definição de Leon Trotsky sobre o centrismo se encaixa como uma luva na política do PSTU sobre a homofobia (e não apenas sobre a homofobia). Nos últimos meses o partido tem dado mais ênfase do que nunca à sua “tática” de exigir do governo que tome medidas em favor dos trabalhadores. Somente em agosto, por exemplo, ele exigiu do Ministro da Defesa que retirasse as tropas brasileiras do Haiti e também exigiu de Dilma que rompesse relações diplomáticas e comerciais com a Síria (cujo ditador assassinou milhares de manifestantes que lutam por direitos democráticos). [3] 

      Enquanto nós apoiamos legislação anti-homofobia e outras reformas parciais que podem ser alcançadas no capitalismo, e também apoiamos a prisão de intolerantes violentos que ataquem os LGBT e outros setores oprimidos, fazer exigências para que a classe dominante procure realizar uma política externa positiva (em oposição a demandas negativas contra as incursões predatórias como a do Brasil no Haiti) só pode criar ilusões nos oprimidos.

      Não apenas essa política fracassada alimenta ilusões em Dilma, como também coloca os trabalhadores no papel secundário de exigir que o governo burguês se movimente em sua defesa, fazendo do movimento operário e popular nada mais do que um instrumento de pressão sobre os governos da burguesia. Pior é o fato de que essas “cobranças” acontecem sem que o PSTU faça nada de ativo para tornar os trabalhadores protagonistas do internacionalismo ou da derrota das tropas brasileiras no Haiti. A CSP-Conlutas poderia tentar organizar uma greve política contra o governo Sírio ou contra as tropas brasileiras nas categorias onde tem atuação. Esse seria um ato de solidariedade de classe que sem dúvida se faria ouvir pelos trabalhadores nesses países. Mas a estratégia e o programa centristas do PSTU, adaptados aos limites do Estado capitalista, impedem esse tipo de ação.

      O PSTU, por seu tamanho e pelo seu discurso “radicalizado”, atrai muitos militantes com objetivos revolucionários e que acabam caindo numa teia de políticas que, na sua essência, são incoerentes e oportunistas – o que afasta os trabalhadores de uma verdadeira consciência marxista. Mas essas políticas estão em contradição com o impulso revolucionário, que tem confiança na força de uma classe proletária com consciência de seus interesses – e que não precisa nem “exigir” nem “pedir” nada aos seus carrascos, mas que é capaz de impor suas demandas, sejam elas imediatas ou históricas. Cabe aos militantes combativos do PSTU que possuem esse impulso romper com tais políticas centristas e lutar para construir uma organização revolucionária sem essa tradição recuada.

      Reunir esses militantes de impulso revolucionário, hoje dispersos nas organizações centristas e oportunistas de todo gênero, é o principal objetivo do Reagrupamento Revolucionário. Mas, diferente de outros grupos que clamam possuir a mesma perspectiva, tomamos como base uma política coerente, testada na luta prática e teórica dos que nos precederam. Rumo ao renascimento da Quarta Internacional!

      Notas

      [*] O uso do termo “opção” não quis refletir aqui uma conotação de que a orientação sexual é uma “escolha individual”, independente de elementos sociais e biológicos. A escolha imprópria do termo refletiu o pouco amadurecimento da discussão sobre a temática LGBT na esquerda e pelo autor do artigo à época em que ele foi escrito (2011).

      [1] De acordo com o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010, disponível na página do Grupo Gay da Bahia.

      [2] Citado do artigo “A Independência da Ucrânia e os Sectários Confusos” de 1939.

      [3] As exigências foram feitas respectivamente nos artigos Celso Amorim: retire as tropas do Haiti, de 5 de agosto e PSTU exige que o governo Dilma rompa relações do Brasil com a ditadura da Síria, de 12 de agosto, ambos publicados no site do partido.

       

      Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (1)

      Tendência Vern-Ryan
      Uma Carta sobre a Revolução Boliviana

      [Publicamos a seguir o primeiro de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]


      Sam Ryan, de Los Angeles

      1 de junho de 1952

      Ao Secretariado do SWP


      Prezados camaradas,

      Esta carta é um pedido de esclarecimento sobre o programa e a política do POR da Bolívia. Apresentou-se ao POR a oportunidade de liderar a revolução e, dessa forma, prestar um grande serviço ao nosso movimento internacional. Nosso movimento, e não menos o SWP, tem o dever de dar aos camaradas bolivianos toda a ajuda possível, ambas material e política. É apenas normal que nós nos Estados Unidos devamos estar extremamente ansiosos para que os camaradas bolivianos busquem uma política que lhes trará sucesso.

      A entrevista com o camarada Guillermo Lora, publicada em The Militant [jornal do SWP] em 12 e 19 de maio levanta algumas questões sérias sobre o programa e a política do POR que, eu acredito, deveriam ser resolvidas o quanto antes. As questões levantadas na entrevista, e insatisfatoriamente respondidas pelo camarada Lora, incluem:

      1. O caráter de classe do governo;
      2. O caráter do MNR;
      3. Nossa atitude com relação aos conciliadores;
      4. O programa transitório revolucionário para a Bolívia.

      Deixe-me comentar brevemente sobre a forma com a qual o camarada Lora parece responder a essas questões.

      1. O caráter de classe do governo

      Eu acho que é incontestável que o atual governo boliviano é um governo burguês, cuja tarefa e objetivo são defender por todos os meios disponíveis os interesses da burguesia e do imperialismo. Ele irá, se puder, controlar e desarmar a classe operária, esmagar a sua vanguarda revolucionária e reconstruir a ditadura da burguesia, que foi abalada, mas não destruída, pela primeira fase da revolução. Esse governo é, portanto, o inimigo mortal dos trabalhadores e camponeses, e especialmente do partido marxista.

      O camarada Lora não levanta explicitamente a questão do caráter de classe do governo. O mais perto que ele chega é o seguinte:

      “O governo de Paz Estenssoro, dominado por sua ala reacionária, mostra todas as características marcantes do Bonapartismo, operando entre o proletariado e o imperialismo”.

      Isso implica o caráter burguês do governo? Talvez. Eu espero que sim. Mas essa é uma questão que terá de ser respondida, e não por implicação ou inferência, mas diretamente.

      Uma coisa parece clara: o camarada Lora não considera esse governo como um inimigo da classe trabalhadora e do POR:

      “Não se pode excluir a possibilidade”, ele diz, “de que a ala direita do governo, encontrando-se diante do aguçamento da luta de massas contra si, vá aliar-se com o imperialismo para esmagar o assim chamado ‘perigo’ comunista”.

      Essa formulação é errada, muito errada! Esse é um erro que, se de fato representa a posição do POR, pode ter consequências trágicas para a própria existência física dos quadros do partido trotskista boliviano.

      Este é o aviso que os líderes do POR devem dar à classe trabalhadora e acima de tudo aos seus próprios membros: Nós podemos esperar com absoluta certeza (não meramente “não excluir a possibilidade”) que o governo (e não apenas a sua ala direita) vai se aliar com o imperialismo e tentar esmagar o movimento de massas e, acima de tudo, a sua vanguarda, o POR, que é um verdadeiro (e não o “assim chamado”) perigo comunista.

      “Está fora de dúvida”, conclui Lora, “que o novo governo está agora sujeito a uma enorme pressão da burguesia feudal (esse termo deve ter sido resultado de uma tradução mal feita) e do imperialismo, para fazê-lo capitular ou para destruí-lo. Sob essas condições, o POR defende o governo com toda a sua força, por meio da mobilização das massas… Hoje, longe de sucumbir à histeria de uma luta contra o MNR, que os proimperialistas batizaram de ‘fascista’, nós estamos marchando com as massas para fazer o movimento de 9 de abril o prelúdio para o triunfo de um governo dos operários e camponeses”.

      Três questões separadas parecem se misturar aqui:

      A. A oposição política dos marxistas a um governo burguês. Um governo que, em razão da sua fragilidade, é forçado a manobrar com a classe operária e parece não ter ainda “capitulado” à burguesia. O camarada Lora expressa aparentemente uma posição de imparcialidade.

      B. A oposição  ao governo pelos mais abertamente proimperialistas, classificada como “fascista”. Essa oposição de direita tem o objetivo de fortalecer as bases do governo contra a classe trabalhadora, ou derrubar o governo, ou ambos. Essa oposição não tem nada em comum com a oposição marxista pela esquerda, e o camarada Lora é culpado de um sério erro ao confundir as duas quando ele diz que o POR está “longe de sucumbir à histeria de uma luta contra o MNR”.

      C. A cooperação técnica e material e a ajuda que os marxistas deveriam dar a um governo do MNR contra um golpe do tipo Kornilov ou Franco. Isso deve ser angularmente diferenciado de apoio político, que nós jamais daríamos. Nós continuaríamos a lutar contra o governo – com meios apropriados à situação, naturalmente – mesmo enquanto estivéssemos combatendo juntamente com ele contra um levante militar contrarrevolucionário.

      Essa confusão feita pelo camarada Lora de dois tipos diferentes de “oposição” e dois tipos diferentes de “apoio” parecem ser um paralelo da política potencialmente desastrosa dos Bolcheviques em março-abril de 1917 que, na ausência de Lenin, declararam seu apoio ao Governo Provisório contra a reação ou contrarrevolução. Mas ela não parece nem um pouco com a política de Lenin na luta contra Kornilov, quando ele escreveu:

      “Seria o erro mais profundo imaginar que o proletariado revolucionário é capaz, por assim dizer, ‘para se vingar’ dos Socialistas-Revolucionários e Mencheviques, de se recusar a ‘apoiá-los’ contra a contrarrevolução… Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos, sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.

      2. Qual é o caráter do MNR?

      O camarada Lora responde a essa pergunta da forma como se segue: “O MNR é um partido pequeno-burguês que se baseia nas organizações das massas”. Eu acho que isso está errado, e que é a base para uma atitude conciliatória com relação ao MNR. O MNR é um partido burguês que explora politicamente as massas. A maioria dos seus membros, como em todos os partidos de massas, são sem dúvida trabalhadores e elementos de classe média; mas isso não determina o seu caráter de classe. Ele não é controlado por sua maioria, mas por sua ínfima minoria, e os controladores ausentes: a classe capitalista. De que outra forma seria possível explicar a composição do governo que, como diz o camarada Lora, “é maciçamente composto pelos elementos mais reacionários do MNR e particularmente os maçons… os mais efetivos agentes do imperialismo”?

      É esse o tipo de governo que o POR defendia quando ele levantou o slogan “Que o MNR tome o poder”? A composição do governo está em completa conformidade com o caráter do MNR. Eu acredito que foi errado levantar esse slogan. A não ser que os nossos camaradas desfaçam seu erro reconsiderando a sua caracterização do MNR, eles irão inevitavelmente sofrer juntamente com o MNR quando as massas, por sua própria experiência, começarem a ver o verdadeiro caráter de classe desse partido burguês.

      3. Nossa atitude com relação aos conciliadores

      Com relação aos líderes operários no governo, o camarada Lora toma uma atitude inequívoca: ele os apoia, e não apresenta nenhuma crítica ao seu papel. “Os trabalhadores têxteis”, diz ele, “obrigaram o MNR a aceitar elementos da classe operária no gabinete”. O POR apoiou esta demanda? A suposição é forte de que sim. O camarada Breitman [do SWP] cita o New Leader, que diz que o camarada Lora é o secretário de Lechín, o principal líder sindical no governo do MNR; e Breitman não contradiz esse relato. Se for verdade, isso não posicionaria o POR como um membro subordinado de um governo burguês de coalizão? E mesmo se esse relato não for verdadeiro, a situação não é decisivamente diferente. Suponha que o POR tivesse força o suficiente para garantir a sua entrada no gabinete. E se, como todos esperamos e desejamos, o POR ganhasse mais apoio de massa no futuro, ele entraria então em um governo burguês de coalizão? Essa é a lógica da posição colocada pelo camarada Lora.

      A atitude marxista sempre tem sido e continuará sendo de hostilidade com relação aos conciliadores; de chamá-los a romper com os políticos burgueses e formar um governo de trabalhadores e camponeses. De acordo com os informes mais recentes, Lechín está capitulando à ala direita do governo na questão da nacionalização das minas. Isso não deveria ser nenhuma surpresa para nós. Isso era inevitável. Quanto o POR não teria ganhado em confiança das massas se ele tivesse previsto essa capitulação? Quanto ele perdeu por seu apoio aos conciliadores?

      É claro que o POR teria tido como consequência a perda da simpatia de Lechín. Mas Lechín é um simpatizante traidor e indigno de confiança. Lechín irá capitular de novo e de novo. Ele irá ajudar a desarmar os trabalhadores. Ele irá ajudar a tentar esmagar o POR, não importa o quanto este o apoie. E a traição de Lechín será facilitada se o POR continuar a apoiá-lo.

      4. O programa de transição revolucionário

      A independência do partido revolucionário é uma lei absoluta numa situação revolucionária. Mas isso não cai do céu. Ela surge a partir da teoria marxista e do programa do partido. As principais palavras de ordem levantadas por nosso partido, de acordo com o camarada Lora foram as seguintes:

      “1. Restauração da constituição do país através da formação de um governo do MNR, que obteve maioria nas eleições de 1951.”
      “2. Lutar pela melhoria de salários e condições de trabalho.”
      “3. Lutar por direitos democráticos.”
      “4. Mobilizar as massas contra o imperialismo, pela nacionalização das minas, e pelo cancelamento do acordo com as Nações Unidas.”

      Os pontos 2 e 3 são claramente insuficientes para diferenciar nosso partido das outras tendências do movimento operário. Elas são genéricas demais. A forma com a qual nós levantamos a luta deve ser elaborada de tal forma que seja parte do programa de transição revolucionário.

      A demanda pela nacionalização das minas é suficiente para diferenciar o programa marxista daquele de todas as outras correntes? Eu acredito que não. Ambas as alas de direita e de esquerda do MNR são a favor da nacionalização. E não existe razão para supor que o MNR não possa ser forçado a cumpri-la a um grau ou outro. Cárdenas, Mossadegh, Perón, todos realizaram nacionalizações sem perderem nem um centímetro do seu caráter burguês.

      A nacionalização não muda o caráter de classe do Estado. A nacionalização em si só tem um caráter de classe de acordo com o governo que a realiza. É claro que nós não nos opomos a tais nacionalizações; nós as defendemos contra o imperialismo. Mas a questão decisiva permanece: qual classe possui o poder político e militar? O poder de Estado está nas mãos da burguesia ou do proletariado? E o poder burguês só pode ser removido pela revolução proletária.

      O camarada Lora aparentemente não distingue essa linha marcante no caráter de classe do Estado. Por sua designação desse governo como “Bonapartista” operando entre o proletariado e o imperialismo, por sua caracterização do MNR como um partido pequeno-burguês, e por sua ênfase na nacionalização, ele parece considerar o presente regime como um regime transitório que não teria caráter de classe fixo.

      “Agora é necessário”, diz o camarada Lora, “lutar pela nacionalização das minas, das indústrias principais, e da terra. Essa luta estará intimamente conectada com o desenvolvimento de um levante de massas, com o envolvimento dos novos setores da classe operária na luta, de tal forma que ela assuma um âmbito nacional, e finalmente a constituição de um governo de operários e camponeses”.

      Uma aplicação dessa intenção obviamente resultaria na elaboração de um programa transitório. Portanto, eu espero que ele seja elaborado.

      Mas como isso se adequa à demanda pela restauração da constituição burguesa? Eu me lembro muito bem o quanto os trotskistas franceses foram criticados (e muito corretamente) por votar a favor de uma constituição burguesa. Eles se defenderam apontando para o fato de que as organizações da classe trabalhadora a apoiavam, enquanto os reacionários eram contra. É essa a justificativa do POR? Isso tornaria a política marxista muito simples: veja o que a extrema direita está fazendo e faça o oposto.

      As massas estavam lutando sob a palavra de ordem de restauração da constituição? Os marxistas podem participar da luta das massas sem levantar as palavras de ordem incorretas delas. É verdade que eles seriam então uma minoria; mas esse é o preço que devemos pagar por apontar as necessidades objetivas que as massas ainda não compreendem completamente. Os marxistas devem explicar pacientemente.

      O camarada Lora menciona a influência que o POR ganhou na ala esquerda do MNR. Uma influência imprestável me parece, se ela foi obtida adotando o programa do MNR. Uma “frente única” com um partido burguês com o objetivo de estabelecer uma constituição burguesa e colocar o partido burguês no poder não é uma frente única, mas uma frente popular.

      A frente única que os marxistas reivindicam tem o objetivo de unir operários e camponeses numa base de acordo mínima, incorporando um estágio do programa de transição revolucionário. Essa frente única, numa situação revolucionária, se transforma em sovietes de trabalhadores e camponeses. E mesmo nos sovietes a luta continua. Longe de aceitar o programa conciliador que possa ser imposto sobre os sovietes, os marxistas reivindicam seu próprio programa, chamando os sovietes a romper com a burguesia, seus partidos e seu governo, e a tomar completamente o poder, estabelecendo um governo operário e camponês.

      Mas o camarada Lora não levanta a questão de romper com o governo burguês. O governo operário e camponês que ele reivindica parece ser uma conclusão última da mudança gradual de cargos no governo burguês, onde os direitistas seriam forçados a sair e o gabinete ganharia um tom cada vez mais para a esquerda.

      Numa situação revolucionária, o slogan de governo operário e camponês não é um objetivo último, mas uma demanda imediata, inseparável de romper e destruir o governo burguês. O governo dos trabalhadores e camponeses pode ser atingido, na verdade, apenas como a ditadura do proletariado.

      Esta carta, camaradas, se baseia em uma única entrevista com um líder do POR. Eu suponho – na verdade, espero ardentemente – que eu não tenha base o suficiente para caracterizar a política do POR. Eu, portanto, contive o tom das minhas críticas ao máximo. Mas há o perigo, ou ao menos a possibilidade de, no meio de uma grande luta, ser carregado pelo fluxo dos acontecimentos. Sem tentar impor aos camaradas bolivianos suas táticas específicas, os líderes do nosso partido devem ajudar o POR a basear suas táticas estritamente no programa marxista revolucionário, a única esperança para a vitória.

      Eu espero que vocês vejam esta carta no espírito no qual ela é escrita: mais um questionamento do que uma crítica.

      Carta de Ruptura com o Coletivo Lenin

      Morre um embrião para a reconstrução da Quarta Internacional
      O Coletivo Lenin é destruído pelo revisionismo!
       
               De todos os lados, estamos cercados de inimigos, e é preciso marchar quase constantemente debaixo de fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente a fim de combater o inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o início nos culpam de termos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da conciliação. Alguns dos nossos gritam: ‘Vamos para o pântano! ’ E quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam: ’Como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor!’ Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos ‘livres’ para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!”
      V. I. Lenin, “O Que Fazer?” (1903)
       
               Nos últimos três meses, o Coletivo Lenin reduziu muito a sua atuação no movimento para se dedicar a polêmicas internas, fato que informamos a nossos simpatizantes e ativistas próximos. Essas polêmicas consistiram na luta entre duas tendências internas. Uma delas era encabeçada por um membro fundador e veterano do grupo, que progressivamente passou a propor uma compreensão revisionista do trotskismo, atacando inúmeros pontos essenciais do programa da organização. Por questões de segurança, iremos nos referir a tal membro, que hoje é o principal líder do CL, através do pseudônimo “Paulo Araújo”. A outra, que após ser cristalizada se denominou Tendência Coletivo Lenin, se dedicou a combater esse revisionismo e defender o programa original do Coletivo. Essas tendências se confrontaram abertamente desde maio.

               Como membros da segunda tendência, nós tínhamos em mente desde o princípio que era impossível uma convivência harmoniosa entre elas, da mesma forma como é impossível a convivência política e organizativa entre os leninistas e os revisionistas. A tendência de Paulo Araújo, depois de tentar por muito tempo a conciliação, se lançou finalmente a uma empreitada para “resolver a questão” e terminar as discussões de uma vez. Para nós, a batalha pelo programa do Coletivo Lenin deveria dar-se em bases de ampla discussão, onde todas as questões em polêmica fossem debatidas intensivamente, até que todos chegassem a uma conclusão e optassem por que lado seguir. Ao mesmo tempo, deveria se manter a total honestidade organizativa, cujo princípio básico, em qualquer organização que se reivindica leninista, é o caráter interno de tais discussões. Como veremos, não apenas os princípios políticos, como também os organizativos foram rasgados pela tendência revisionista que acabou se apoderando do Coletivo Lenin e marcando a sua degeneração.
               
      Nessa tarefa, a tendência revisionista foi em muito ajudada por inúmeros fatores. Os principais foram a experiência negativa da tentativa de fusão com a Tendência Bolchevique Internacional, finalizada em agosto de 2010 (confira a carta de ruptura entre o Coletivo Lenin e a TBI, Coletivo Lenin rompe relações com a Tendência Bolchevique Internacional, de dezembro de 2010) e a despolitização e inexperiência dos militantes mais recentes e aspirantes (que eram cerca de um terço da organização ao longo da luta fracional). A saída de alguns membros veteranos e com autoridade no grupo, por inúmeros motivos não relacionados, pouco antes de se iniciar a disputa, também contribuiu, já que Paulo permaneceu como único membro que havia formado o grupo desde a origem, e assim tinha grande influência para negar o programa que ele próprio havia ajudado a lapidar.
               
      No fim, a aceitação passiva do programa revisionista por parte de alguns; a atitude movimentista de querer retornar ao ritmo normal de atividades o quanto antes e sem discutir a fundo, por parte de outros; e um ódio comum aos “causadores de problemas”, nós, que prezavam pela pureza dos princípios estabelecidos por nossa organização e a necessidade de estudar e discutir a fundo todas as polêmicas antes de tomar uma decisão, além da negação em aceitar conciliar com o revisionismo, fizeram com que se formasse uma maioria heterogênea hostil aos princípios e ao programa pelo qual o Coletivo Lenin havia sido forjado e funcionado pelos seus mais de dois anos de existência. Essa, maioria, liderada por Paulo, apesar de manter o nome, nada mais tem a ver com a tradição do Coletivo Lenin.

      O programa original do Coletivo Lenin

               O Coletivo Lenin foi formado em janeiro de 2009 com base em um programa muito bem definido, que foi principalmente influenciado pela Tendência Bolchevique Internacional, que por sua vez teve sua origem na Liga Espartaquista (SL) dos Estados Unidos. A SL foi formada a partir da Tendência Revolucionária do SWP (Partido dos Trabalhadores Socialistas) norte-americano, que foi desde o início, a principal seção da Quarta Internacional, fundada com a liderança de Leon Trotsky em 1938. Depois da Segunda Guerra, a Internacional se viu extremamente fragilizada, inclusive pela morte de seus principais quadros políticos e organizativos (incluindo o próprio Trotsky).
               
      Com a expansão do stalinismo no Leste Europeu e na China e o grande crescimento da influência stalinista no movimento operário mundial a partir da década de 1950, vários elementos da nova liderança da Quarta formularam uma compreensão oportunista sobre as tarefas da Internacional. Esse novo programa foi formulado por Michel Pablo e logo aceito por outros, como Ernest Mandel, e consistia em compreender a Quarta como uma ferramenta para “empurrar” os stalinistas para liderarem a revolução mundial. Esse revisionismo, que se tornou conhecido como pablismo (em “homenagem” ao seu principal formulador) logo foi estendido a outras correntes do movimento, como a socialdemocracia e mesmo o nacionalismo burguês nos países periféricos.
               
      O pablismo criou as bases para transformar a Quarta Internacional numa organização centrista e sua política foi a fonte para as posições traiçoeiras da organização em eventos fundamentais como a Revolução Boliviana de 1952, a greve geral francesa de 1953 e a revolta operária contra a burocracia stalinista em Berlim Oriental no mesmo ano. Em todos eles, a posição da Quarta foi de não denunciar o papel traidor do stalinismo ou dos nacionalistas, e de fazer “chamados” para que eles cumprissem as tarefas que só uma organização revolucionária poderia cumprir. No caso boliviano, a traição destruiu a possibilidades palpáveis que o partido trotskista boliviano tinha de liderar a classe operária em direção ao poder, e guiou esse partido numa tentativa frustrada de “influenciar” o governo nacionalista para a esquerda. A forma organizativa defendida pelos pablistas tinha sido de fazer um entrismo de tipo especial (“sui generis”) nos partidos oportunistas, possuindo caráter “profundo”, pois previa a duração de gerações e gerações. Mais gritante ainda, tal entrismo pretendia esconder as posições políticas trotskistas e “não denunciar as lideranças” stalinistas, nacionalistas ou socialdemocratas.
               
      O sucesso dos pablistas no III Congresso Mundial só foi contraposto (e de maneira imperfeita), por algumas seções, como a maioria do Partido Comunista Internacionalista francês e o SWP norte-americano. Esses, junto a outras seções menores, romperam com a Quarta em 1953 e organizaram o Comitê Internacional. O Comitê tinha uma compreensão insuficiente dos novos Estados criados pelo stalinismo, mas mantinha a necessidade de combater as suas direções burocráticas. Além disso, defendia corretamente que a Quarta deveria resolver a crise de liderança proletária internacional, e não se adaptar a ela tentando “empurrar” partidos comprovadamente oportunistas para a realização de tarefas revolucionárias. Em razão disso, reivindicamos o combate do Comitê Internacional contra o pablismo.
               
      A posterior capitulação do SWP ao pablismo, sob a pressão da segunda fase da revolução cubana (a partir de 1961), foi, portanto, uma grande derrota para os revolucionários. O SWP passou a cumprir o mesmo papel com relação à liderança castrista que os pablistas tinham com relação a outras correntes do movimento. Não por acaso, isso levou a uma fusão entre o SWP e os pablistas em 1963, para formar o “Secretariado Unificado da Quarta Internacional” (SU). O ato de celebração dessa fusão foi a concepção de que o recém-formado Estado Cubano era um Estado Operário pleno, como a União Soviética nos seus primeiros anos, sob a liderança de Lenin e Trotsky, e que os castristas eram “trotskistas inconscientes”. Na época, a Tendência Revolucionária (RT) foi o único setor do SWP a combater essa capitulação. Também formulou uma análise inovadora da formação social cubana e do processo pelo qual havia sido criada. A análise daRT, posteriormente desenvolvida quando ela se tornou a Liga Espartaquista, reconhecia Cuba como um Estado operário deformado, que necessitava de uma revolução política para estabelecer uma democracia operária. Dessa forma ela não apenas saía em oposição aos entusiastas pablistas de Castro, mas também se diferenciava da liderança do Comitê Internacional, que defendia a necessidade de uma liderança trotskista, apesar de negar a realidade de que o capitalismo havia sido derrubado em Cuba.
               
      Além disso, a RT combatia o pablismo em todas as suas formas, e colocava a necessidade de priorização dos setores mais explorados do proletariado (os negros e as mulheres, principalmente) no movimento e a solução de suas opressões específicas através da revolução socialista. A sua atuação no movimento sindical sempre foi pautada pela defesa de um programa transitório, que defendia as melhorias progressivas da classe trabalhadora, enquanto apontava para reivindicações essenciais que só poderiam se realizar com a tomada do poder pelos proletários. Uma das principais contribuições teóricas da RT para o trotskismo foi a atualização da política trotskista, baseada no binômio defesa da URSS contra possíveis tentativas de contrarrevolução social / revolução política contra a burocracia, a partir da sua extensão aos demais Estados operários deformados surgidos no pós-guerra. Após ser expulsa do SWP, a RT formou a Liga Espartaquista. É essa tradição, e as posições políticas da SL e da TBI (que consideramos ter representado a continuidade do espartaquismo após a degeneração burocrática da SL) que o Coletivo Lenin reivindicou até a vitória da tendência revisionista, que agora nega raivosamente essa mesma tradição. Como foi dito em nossa carta de ruptura com a TBI em agosto de 2010:
       
      “Não abandonamos nosso programa revolucionário! Continuamos a defender o legado político da Liga Espartaquista e da Tendência Bolchevique Internacional até o momento de suas respectivas degenerações burocráticas. Não nos deixaremos desmoralizar por esta experiência! Não desenvolveremos falsas conclusões sobre a suposta impossibilidade de reconstruir uma Quarta Internacional revolucionária e menos ainda alteraremos nossa linha política, como a liderança burocrática da IBT certamente espera como forma de justificar nossa ruptura com tal organização. Apenas concluímos que a IBT já não pode mais contribuir com a reconstrução de um movimento revolucionário.”
       
       
      O programa revisionista de Paulo Araújo

               Não pretendemos aqui responder completamente a todo o revisionismo proposto pelo novo “líder” do Coletivo Lenin degenerado. Em grande parte estivemos fazendo isso em discussões internas e em documentos fracionais (confira Pela continuidade revolucionária, de maio/junho de 2011 – principal documento da nossa tendência) e faremos isso futuramente na medida em que for necessário combater essa degeneração do que antes era uma organização que defendia princípios revolucionários, ainda que tendo muitas limitações práticas. Nosso objetivo aqui é simplesmente expor o conteúdo daquilo que combatemos dentro do Coletivo Lenin e que hoje é a base para as futuras posições do grupo. O nível de desvio dessas posições políticas em relação ao trotskismo, entretanto, é tão grande, que não será difícil para aqueles familiarizados com essa tradição política perceberem a gravidade dessas diferenças.
               
      Podemos, assim, enumerar as características da tendência de Paulo Araújo, que hoje lidera o Coletivo Lenin, e que foram manifestadas antes e ao longo da luta fracional. Antes de termos preparado a versão final do presente documento, fomos acusados pelo Coletivo, numa postagem feita em seu blog (confira Nota sobre o racha no Coletivo Lenin, de 28 de junho), de termos rachado “sem motivo”, a não ser o nosso suposto “sectarismo” e “dogmatismo”, e sem termos nos pautado em posições reais da luta de classes. Os pontos a seguir, assim como a seção seguinte, mostram o que de fato motivou nosso rompimento. Além disso, estamos publicando o documento principal da tendência revisionista (confira A Teoria da Decadência e a Crise da III e da IV Internacionais, de março de 2011), e nos pontos que se seguem acrescentamos citações dos documentos através dos quais cada uma dessas posições foi expressa:
       
      1. Renúncia à tradição do espartaquismo e à importância de sua história política de combate às capitulações dos pablistas. No lugar de tal tradição, Paulo defende a compreensão de que os pablistas representaram a melhor tradição política do trotskismo (e que seriam representantes autênticos do marxismo revolucionário) após o racha da Quarta Internacional:
       
      O SU [Secretariado Unificado da Quarta Internacional pablista], acho que em linhas gerais era revolucionário nas décadas de ‘50 e ‘60. Eles tinham uma análise correta da situação dos países imperialistas, naquela teoria do neocapitalismo, que é uma teoria que até hoje é fundamental (…).
      (Gênese do Centrismo – Documento de Discussão Interna, outubro de 2010)
       
      “Teoria” essa, deve-se acrescentar, extremamente problemática e que o próprio SU veio a abandonar de forma silenciosa na década de 1970.
       
      1. Tendência a substituir a política fundamentada em princípios marxistas por uma política pautada em combinações de ilusões em movimentos burgueses e também na necessidade de se basear nas “possibilidades reais” (imediatas) como forma de responder aos eventos da luta de classes. Em outras palavras, de capitular ao “menos pior” da podridão burguesa quando não está colocada imediatamente a possibilidade de um levante revolucionário da classe operária. Isso fica claro nos exemplos das eleições presidenciais brasileiras e na questão líbia, que nós discutiremos na próxima seção.
       
      1. Desprezo pelas tradições do leninismo em relação à forma de organização. Paulo explicitamente rejeita o centralismo democrático leninista na forma como o Coletivo Lenin o praticou até hoje. Para ele, qualquer discussão que “não envolva riscos [físicos] para a organização” pode ser feita publicamente. É a “liberdade de criticar” típica da socialdemocracia. Além disso, reivindica o entrismo “sui generis” feito pelos pablistas, e não vê problema em uma organização revolucionária permanecer indefinidamente dentro de partidos reformistas:
       
      Já o debate público e o direito às tendências são muito mais controversos. Nós achamos que o critério correto a seguir seria o mesmo do bolchevismo de 1902 e 1921 [contém falsificação factual], ou seja, o debate político entre as tendências e frações pode ser público, a menos que envolva riscos para a segurança física da organização.
       
      Por isso, a política de “entrismo sui generis” dentro de organizações reformistas é perfeitamente válida, desde que o programa revolucionário não seja sacrificado para manter o entrismo. Na verdade, toda a polêmica contra o entrismo sui generis feita pelo Comitê Internacional, além de ser totalmente hipócrita ([…] o entrismo feito pelos pablistas nunca significou liquidar a organização trotskista, e sim colocar uma parte dela dentro dos partidos reformistas), estava baseada na concepção de explosão iminente do reformismo, assim como os pablistas a baseavam na hipótese da Terceira Guerra Mundial.” (ênfase nossa)
      (A Teoria da Decadência e a Crise da Terceira e Quarta Internacionais – Documento de Discussão Interna, 9 de março de 2011)
       
      1. Abandono da teoria trotskista sobre os Estados operários degenerados e deformados, formulada por Trotsky para a URSS. Essa teoria foi posteriormente expandida pela Quarta Internacional para o Leste Europeu e atualizada pela RT para países como Cuba, que quebraram a dominação capitalista, mas cujas revoluções tiveram base camponesa e estabeleceram regimes burocráticos. Paulo formula uma absurda teorização experimental, sem nenhuma base empírica, segundo a qual, tanto a URSS (a partir dos anos 1930) quanto os Estados do Leste Europeu, China, Cuba, Coréia do Norte e Vietnã seriam “Estados burgueses sem burguesia”:
       
      O fato da Polônia [e dos demais Estados operários do Leste Europeu] ser um estado burguês sem burguesia não é algo simplesmente terminológico. Essa caracterização, que eu proponho para substituir a de ‘estados operários deformados’, tem graves consequências políticas (…)” (ênfase nossa)
      (Polônia e Estados operários do Leste Europeu – Documento de Discussão Interna, 09 de dezembro de 2010)
       
      As minhas dúvidas me levaram a reavaliar a restauração na Europa. Pois bem, os companheiros argumentam que aqueles estados eram operários. Aí vai meu argumento principal, e toda essa discussão será sobre esse argumento: o exército da URSS, após derrotar o nazismo, restaurou estados burgueses em todo o Leste Europeu. Esses estados eram tão burgueses que eram governados pela burguesia, em Frentes Populares, e tinham as mesmas instituições burguesas normais (…).” (ênfase nossa)
       
      A solução é clara: em 1938 foi destruído o estado soviético [a URSS] (baseado em sovietes), e restabelecido um estado com todas as características de estado burguês – sendo que, por conquista da revolução, a burguesia tinha sido expropriada. Em 1991, foi somente uma contrarrevolução política, onde a burguesia volta a dominar o seu estado.
      (Polêmica Sobre os Estados – Documento de Discussão Interna, 25 de fevereiro de 2011)
       
      Uma argumentação contra esse tipo de teoria antimarxista pode ser encontrada no artigo As revisões de teoria básica do LRP, de abril de 2009.
       
      1. Abandono das históricas posições práticas da TBI de defesa dos Estados operários degenerados ou deformados. Tais posições consistiram em combater os movimentos contra-revolucionários mesmo que em frente única (unidade de ação) com os setores da burocracia que resistiram à contrarrevolução, da mesma maneira como delineado por Trotsky no Programa de Transição:
       
      Se amanhã a tendência burguesa-fascista, isto é, ‘fração Butenko’, entra em luta pela conquista do poder, a ‘fração Reiss’ [de orientação trotskista] tomará, inevitavelmente, lugar no outro lado da barricada. Encontrando-se momentaneamente como aliada de Stálin, ela defenderá, é claro, não a camarilha bonapartista deste, mas as bases sociais da URSS, isto é, a propriedade arrancada dos capitalistas e estatizada. (…) Qualquer outro comportamento seria uma traição.
       
      Assim, se não é possível negar, antecipadamente, a possibilidade, em casos estritamente determinados, de uma frente única com a parte termidoriana da burocracia contra a ofensiva aberta da contra-revolução capitalista, a principal tarefa política na URSS continua sendo, apesar de tudo, A DERRUBADA DA PRÓPRIA BUROCRACIA TERMIDORIANA. O prolongamento de seu domínio abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista.
      L. Trosky, O Programa de Transição (1938)
       
      Tal abandono se revela na negação, por parte da tendência revisionista, em tomar um lado no confronto entre a ala restauracionista contra-revolucionária de Ieltsin e da ala conservadora do “Bando dos Oito” na destruição da União Soviética, em agosto de 1991. Ela também se revela na exaltação do movimento restauracionista de massas na Polônia, o Solidariedade, defendendo a liderança do movimento contra o golpe da burocracia stalinista em 1981. Essa posição levou Paulo Araújo até a crença extravagante de que, como o Solidariedade tinha uma base de composição operária, ele não poderia ter restaurado o capitalismo na Polônia (como de fato o fez), se pudesse “ter se desenvolvido”. A seguir as conclusões de Paulo:
       
      Golpe de Agosto [de 1991 na União Soviética]: Será que não havia nenhuma corrente em que se pudesse apoiar para criar uma frente única contra Ieltsin? (…) De qualquer forma, entre o duplo derrotismo e o apoio militar ao Bando dos Oito não acho que existe uma traição, mas apenas dois possíveis posicionamentos.”
      (A Fraude do Defensismo da TBI – Documento de Discussão Interna, 06 de outubro de 2010)
       
      (…) Pelo fato do Solidariedade ser a classe operária polonesa organizada (80% dos trabalhadores), é óbvio que a ilusão da base na restauração do capitalismo só podia ser isso mesmo – uma ilusão.
       
      Os trabalhadores, pela sua própria condição de classe, se tivessem chance de se desenvolver politicamente através das lutas de classes, cedo ou tarde criariam uma ala anti-restauracionista (mesmo que minoritária e confusa) no movimento.(ênfase nossa)
      (Polônia e os Estados Operários do Leste Europeu – Documento de Discussão Interna, 09 de dezembro de 2010)
       
      1. Compreensão de que Frentes Populares eleitorais (blocos entre partidos de base operária e setores burgueses, como a candidatura Dilma) podem ser utilizadas para proteger o proletariado contra as alas fascistas ou reacionárias da burguesia:
       
      Sim, em algumas situações votar na frente popular, ao mesmo tempo em que se mantém a ação direta contra a direita, é uma tática pra defender os trabalhadores contra o fascismo (…). Na França, em 36, os trabalhadores elegeram os socialistas contra a direita tradicional como forma de evitar a influência do fascismo europeu crescente no França através da direita eleita (…). Esses são alguns exemplos em que votar em Frente Popular é uma forma de ganhar tempo.” (ênfase nossa)
      (E-mail interno de um membro da tendência de Paulo Araújo, 21 de junho de 2011)
       
      Em uma das reuniões voltadas para a discussão dos temas em revisão por Paulo, um dos membros da tendência revisionista chegou ao ponto de defender que a tarefa dos revolucionários na Alemanha dos anos 1920/30 seria a de criar uma frente popular eleitoral com o objetivo de “atrasar” a chegada do Nazismo ao poder. Essa mesma política, entretanto, era um dos pilares do stalinismo que a Quarta Internacional tanto combateu.
       
      1. Negação de que a razão dos fracassos das revoluções do século XX, assim como da atual situação de recuo da luta de classes, reside, sobretudo, na crise de liderança do proletariado, como delineado por Trotsky no documento de fundação da Quarta Internacional. Para Paulo, a causa do fracasso das revoluções do século XX reside no desenvolvimento natural do capitalismo, que teria tornado os trabalhadores “adaptados ao sistema capitalista”. Além disso, Paulo formula que a classe trabalhadora está “perdendo a sua potencialidade revolucionária” em razão do desenvolvimento “decadente” do capitalismo a partir da década de 1970:
       
      Se a concepção de crise de direção já tinha um problema na época da fundação da Quarta Internacional, porque poderia dar a entender que a ‘traição’ da direção da IC tinha sido abandonar os pressupostos (errados) da sua fundação, ela se tornou depois uma paródia de si mesma.
       
      Por isso, não se trata mais de lutar contra uma direção reformista pela linha revolucionária.
      (A Teoria da Decadência e a Crise da Terceira e Quarta Internacionais – Documento de Discussão Interna, 09 de março de 2011)
       
      (…) eu nego sim que fosse possível revolução socialista depois da estabilização do pós II Guerra, até a década de 1970, nos países centrais [e logo, alcançar o socialismo a nível mundial] (…) por causa da melhora constante do nível de vida dos trabalhadores, que os deixava circunscritos ao reformismo.
      (E-mail interno de Paulo Araújo, 17 de junho de 2011)
       
      O importante a seguir é que a partir de 1975, quando o capitalismo esgota a sua expansão imperialista e começa a depender cada vez mais dos mercados artificiais, da financeirização da economia, e da diminuição cada vez maior da base industrial, isso gera uma crise que se reflete em 1973-75 e isso se reflete também num recuo da luta de classes porque diminui o peso objetivo do proletariado e isso vai levando a uma diminuição da potencialidade revolucionária da classe operária.” (ênfase nossa)
      (Gênese do Centrismo – Documento de Discussão Interna, outubro de 2010)
       
      Estamos vivendo atualmente (desde a década de 1970) no período de crise estrutural do capitalismo. Ou seja, o sistema não tem mais para onde se expandir, e todos os lucros acumulados não podem mais ser aplicados na produção real. Isso leva a uma desindustrialização da economia, que destrói a própria base social principal da revolução, a classe operária. Além disso, toda a economia se baseia em mercados que ‘drenam’ os lucros para fora da produção (mercado financeiro, ‘setor de serviços’ etc).” (ênfase nossa)
      (Socialismo ou cracolândia – 16 de dezembro de 2010)

              Além de negar a possibilidade objetiva da revolução até os anos 1970, Paulo se utiliza ainda de outros artifícios para negar (ou ao menos aproximar do impossível) sua possibilidade após o suposto início da decadência estrutural do capitalismo. A esse artifício, Paulo chama “deslocamento de contradições”: o deslocamento dos lucros para o mercado financeiro, indústria bélica ou setor de serviços estaria destruindo as capacidades organizativas e a tomada de consciência por parte do proletariado.
             
      Ao fator “deslocamento de contradições” ainda se somaria o recuo de consciência gerado pelo fim contrarrevolucionário da URSS no início dos anos 1990 (o que é completamente contraditório com a análise estrutural que Paulo faz dessa sociedade). Tudo isso combinado colocaria o proletariado mundial em um estado de “crise de perspectiva”, no qual este não mais enxergaria como viáveis mudanças sociais obtidas através da luta – e aí Paulo inclui até mesmo mudanças reformistas ou democráticas, negando assim os eventos da luta de classes que vêm ocorrendo desde o início do ano. Apesar de sempre termos reconhecido os efeitos destrutivos causados pelo fim da URSS, nunca delineamos tais conclusões impressionistas de Paulo. Inclusive, em artigo relativamente recente, discutimos a reorganização do proletariado e os indícios de superação do refluxo sofrido pelo movimento operário (confira O novo período que se abre na conjuntura internacional, de janeiro de 2011).

               Essa análise, que varre qualquer possibilidade de revolução mundial, é a base teórica para as posições de Paulo Araújo sobre frentes populares, seu apoio à oposição burguesa na Líbia (que discutiremos a seguir) e o indicativo, expresso em seu documento principal, de que este pretende secundarizar o papel das reivindicações transitórias frente às reivindicações democráticas, como medida necessária para se disputar a consciência dos trabalhadores no período após a destruição da União Soviética. Suas posições chegam (via outros caminhos) a conclusões políticas pessimistas semelhantes às da degenerada Liga Espartaquista (confira A Liga Espartaquista apóia as tropas imperialistas no Haiti!, de 15 de fevereiro de 2010):
       
      “(…) o movimento operário, depois da Segunda Guerra, e muito mais depois da destruição da União Soviética (que […] desacreditou para as massas a própria noção de socialismo, para não dizer a Revolução Russa) não tem mais como objetivo a luta pelo socialismo.
       (A Teoria da Decadência e a Crise da Terceira e Quarta Internacionais – Documento de Discussão Interna, 9 de março de 2011)
       
               Tais posições enumeradas, que com a necessária saída da nossa tendência serão facilmente assimiladas pelo Coletivo Lenin, não apenas modificam inteiramente a natureza programática do grupo. Elas também o colocam à direita de muitas das organizações pseudo-trotskistas adversárias que costumávamos combater no movimento. Nós, que havíamos sido recrutados pelo Coletivo Lenin para fora do PSTU (confira nossa carta de ruptura com tal partido, As ações do PSTU em comparação às tarefas da IV Internacional, de agosto de 2009) conscientes das posições políticas que estávamos adotando, vimos com frustração que, apesar de nossa luta, a organização que ajudamos a construir estava se transformando em algo muito semelhante ao “pântano” de grupos oportunistas na esquerda.
       
      Dois sintomas do revisionismo

               Como já citamos, em sua nota de 28 de junho, o Coletivo Lenin diz que nosso racha foi “sem motivo político com os fatos internacionais e nacionais recentes”. Esta seção pretende mostrar as divergências irreconciliáveis em duas situações (uma nacional e outra internacional) bastante recentes. A primeira pode ser considerada o ponto de partida para a formação da nossa tendência. Ela foi a primeira vez em que o revisionismo de Paulo Araújo se manifestou de maneira clara – a tentativa de fazer com que o Coletivo Lenin chamasse voto em Dilma no segundo turno das eleições brasileiras de 2010. Além disso, já à época, os documentos de Paulo revelavam crença de que a frente popular do PT com a burguesia “mobilizaria” a classe trabalhadora:
       
      Mesmo uma vitória da candidatura Dilma obrigará o PT a mobilizar mais os movimentos sociais ainda que seja para se manter no governo. Seja qual for o resultado, o PSDB sairá fortalecido dessas eleições e, caso seja derrotado, terá fôlego para fazer uma oposição ainda mais raivosa, o que obriga o PT a dialogar mais com os movimentos sociais e o empurra para isso […]” (ênfase nossa)
      (Por uma Tendência Combativa – Documento de Discussão Interna, outubro de 2010)
       
      Não ver que o PT mobilizou sua base (…) é não entender como funciona uma frente popular.”
       
      Se isso é um ‘apoio crítico’, seria motivado porque o bloco burguês da frente popular mantém um mínimo de liberdades democráticas ou autonomia diante da direita. Por isso, a palavra de ordem do PCB ‘Votar contra Serra e preparar a oposição a Lula’ cairia bem para essa função.” (ênfase nossa)
      (Sobre o Voto Crítico nas Frentes Populares – Documento de Discussão Interna, 20 de março de 2011)
       
               Tal posição ainda se “justificava” devido à projeção absurda sobre a “iminência” de um golpe institucional por parte da direita reacionária. Isso é absolutamente oposto ao que o Coletivo Lenin defendia até então. O grupo sempre foi contra qualquer apoio eleitoral a blocos de setores do movimento operário com setores da burguesia. Essa é uma condição básica na luta pela independência de classe trabalhadora, que é central para os revolucionários. No programa político da organização, que nós reivindicamos, e que o próprio Coletivo abandonou na prática, está escrito que:
       
      O frente-populismo (ou seja, um bloco programático, normalmente pelo poder governamental, entre organizações de trabalhadores e representantes da burguesia) é traição de classe. Os revolucionários não podem dar nenhum apoio, nem mesmo ‘crítico’, a participantes de frentes populares, como as formadas pelo PT desde 1989.
       
               Isso deixa clara a gravidade das diferenças internas. Os membros de nossa tendência (que então estava em fase embrionária) dedicaram três documentos internos sobre esse tema. O mesmo nem sequer é mencionado na declaração publicada pelo Coletivo Lenin. Esse posicionamento pelo voto em Dilma chegou a obter maioria dentro da organização em determinado momento. Essa posição traidora, que cruzaria a linha de classe, só não se tornou pública devido à pressão que alguns dos futuros membros de nossa tendência fizeram, para que fosse mantida a linha original pelo voto nulo e que tal posição fosse discutida apenas após as eleições.
             
      Posteriormente, Paulo Araújo declarou que sua posição nas eleições havia sido desnecessária, já que a vitória de Dilma não estaria ameaçada pela direita reacionária. Mas continuou reivindicando a “tática” de votar em frentes populares contra alas reacionárias ou fascistas da burguesia. Como já apontamos, essa “tática”, que passa por cima da independência de classe e coloca os trabalhadores em segundo plano no combate à reação burguesa em favor das alas “progressivas” da burguesia, foi a mesma adotada pelo stalinismo na década de 1930. Hoje, a organização da qual fazíamos parte faria mais sentido se fosse chamada de Coletivo Dimitrov – nome do capanga de Stalin que formulou a política das frentes populares.

      * * *
       
               Outra diferença considerável diz respeito a qual posição tomar na recente guerra civil deflagrada na Líbia, antes da intervenção imperialista. Após esta intervenção, obviamente consideramos que a tarefa imediata seria de criar uma frente única militar com as forças do governo de Kadafi (sem deixar de criticar seu conteúdo burguês), contra o imperialismo. Desde antes da intervenção, porém, acreditamos que os revolucionários não deveriam apoiar a tomada de várias cidades pela oposição burguesa (o Conselho Nacional de Transição). Para nós, esse era um confronto entre alas equivalentes da burguesia nacional líbia, onde o proletariado nada tinha a ganhar.
               
      Apesar das enormes ilusões das massas com a capacidade deste Conselho em lhes dar democracia, o CNT era composto por líderes tribais fundamentalistas, setores a favor da monarquia e membros desertores do alto escalão da ditadura de Kadafi. Sua incapacidade de garantir democracia estava evidente em sua composição, seu programa de conciliação com o imperialismo e sua trajetória de chamados por uma intervenção militar da OTAN. Assim, não apoiamos a tomada de poder de quase metade do país, inclusive a estrategicamente importante cidade de Bengasi, pelo Conselho. Isso não pode ser confundido com a necessidade de intervir em todos os espaços onde fosse possível para quebrar as ilusões das massas com este Conselho, que se aproveitou do ódio nutrido pela ditadura que há 40 anos dominava o país para arrebanhar setores dos trabalhadores para defender um programa igualmente subserviente ao imperialismo.
               
      Para os revolucionários, somente a classe trabalhadora pode ser conseqüente na luta por direitos democráticos. Estes direitos são fundamentais para que o proletariado se organize para lutar por sua emancipação. Mas isso não é o mesmo que apoiar um setor da burguesia que “promete democracia” quando toma o poder. Paulo Araújo demonstrou não apenas disposição a apoiar o Conselho Nacional nessa empreitada, como também revelou suas ilusões de que o CNT de fato levaria democracia às massas líbias. Semanas depois dessas suas declarações, os “justos democratas” do CNT estavam lado a lado com a OTAN, esmagando a população do país. Esses trechos produzidos por Paulo contra um membro de nossa tendência deixam isso claro:
       
      Claro que fazemos frente única com setores burgueses para derrubar um governo! (…) O que os trabalhadores teriam a ganhar com o CNT? Ora, a democracia burguesa! Essa é a verdadeira polêmica. O [nome do companheiro] subestima a reivindicação democrática e as formas democráticas mantidas pelo CNT.
      (E-mail interno de Paulo Araújo, 09 de abril de 2011)
       
               Tais posições deixaram claro para nós que o revisionismo de nosso membro veterano era mais do que uma “análise teórica” e que tinha pretensões extremamente nocivas para a política do Coletivo Lenin. Qualquer afirmação de que nosso racha foi despropositado não passa de retórica dos revisionistas. Temos confiança de que os ativistas próximos e simpatizantes do Coletivo Lenin saberão reconhecer esta degeneração e verão em nossa tendência a continuidade da política revolucionária que tal organização defendia.
               
      Seguindo a própria lógica “anti-sectária” de Paulo Araújo e seus apoiadores, expressa na nota do Coletivo sobre nossa ruptura, segundo a qual tudo o que expomos aqui não é suficiente para separar politica e organizativamente nossas duas tendências, o próprio Coletivo Lenin não deveria existir. Se diferenças programáticas profundas e antagônicas não devem manter tendências separadas, então o Coletivo deveria ter como principal objetivo unificar a maior parte das organizações de esquerda em um só “partidão”, degenerado e incapaz de liderar a classe trabalhadora para uma revolução, diga-se de passagem.
       
      Desonestidade e desinteresse

               Mesmo após estas posições (das quais a última se tornou a linha pública) e a aceitação passiva delas pelos demais militantes do Coletivo Lenin, mantivemos nossa luta interna para convencer os demais camaradas a se oporem ao revisionismo de Paulo. Foram ações de falta de democracia e desonestidade organizativa que fizeram com que desistíssemos de disputar os camaradas do Coletivo por dentro. Uma dessas sérias desonestidades foi a postagem de uma linha inteiramente nova sobre a questão Líbia, realizada por parte de Paulo Araújo sem consultar o grupo, fazendo caracterizações absurdas sobre esse processo político. Dentre outras coisas, a linha nos valeu uma crítica muito merecida na imprensa de esquerda. O próprio Coletivo Lenin comentou sobre isso posteriormente, embora muitos dos seus membros tenham considerado este um erro “ingênuo” de um militante veterano:
       
      Dessa forma temos que fazer autocrítica da posição anterior (…), que foi postada por um militante e continha duas caracterizações não aprovadas pelo Coletivo Lenin: caracterizava o CNT como uma Frente Popular e dizia que havia um processo revolucionário na Líbia.” (ênfase nossa)
       
               Com o acirramento das polêmicas, a desonestidade chegou a graus incríveis. Poucos dias antes da reunião derradeira em que se deu o racha, nossa tendência foi abordada por um conhecido ativista do movimento sem-teto do Rio de Janeiro, adversário político do Coletivo Lenin, que nos falou casualmente sobre o racha, demonstrando estar à par de inúmeras informações que deveriam ser de conhecimento somente interno. Sem dúvida alguma esse ativista, o qual pouco tempo antes o Coletivo Lenin havia combatido por homofobia (confira A luta contra a homofobia dentro e fora da FIST, de 11 de junho de 2011) foi informado da possibilidade do racha por um membro da tendência revisionista que realiza trabalho político no setor. Isso obviamente foi com o objetivo de começar desde aquele momento a desmoralizar os militantes de nossa tendência. Quando confrontados com essa desonestidade imensa, os membros da tendência revisionista tiveram a cara-de-pau de dizer que o referido adversário só sabia disso porque talvez tivesse “ouvido por trás da porta” durante alguma discussão interna realizada na sede da organização sem-teto na qual o mesmo atua.
               
      Outra situação que fez acelerar nosso rompimento envolveu a recente greve e motim dos bombeiros militares no Rio de Janeiro. Um panfleto havia sido preparado para ser distribuído no acampamento-vigília dos bombeiros no Rio de Janeiro, após a prisão de 439 membros dessa corporação. Esse texto não chegou a ser usado nessa ocasião devido à proibição que os líderes do movimento dos bombeiros impuseram a “qualquer material criticando a Polícia Militar”. Diante disso, nossa tendência pediu para que a linha do Coletivo Lenin fosse discutida e revista e que, portanto, o material não fosse publicado no blog do grupo. Esse pedido fazia sentido já que o panfleto não havia sido discutido em nenhum organismo do Coletivo. Entretanto, ignorando o direito de nossa tendência a questionar uma posição, a tendência revisionista, passando por cima da própria Direção Executiva (dentro da qual nossa tendência tinha maioria) postou o panfleto que nem sequer critica a liderança pró-polícia dos bombeiros e diz, contra a realidade, que “os Bombeiros não cumprem nenhum papel repressivo na sociedade, pelo contrário, o papel deles sim é ajudar e socorrer.”
               
      Por fim, somado a tais atos de desonestidade e deslealdade, fomos confrontados ainda com o enorme e crescente desinteresse dos camaradas que estavam fora da tendência revisionista em prosseguir as discussões, tornando insustentável nossa permanência no Coletivo Lenin. Antes que chegássemos sequer a um terço do calendário de discussões que havíamos marcado coletivamente, alguns camaradas começaram a nos considerar um empecilho para que o Coletivo Lenin retornasse ao seu ritmo normal de atividades. Prezando para que houvesse debate e discussão extensa, nós sem dúvida éramos os “causadores de problemas” que impediam alguns militantes, despreocupados com o tipo de programa que defenderiam, a retornar à rotina habitual do movimento. Para nós, reduzir momentaneamente o ritmo das atividades públicas era um preço pequeno a pagar em troca da oportunidade de lutar por clareza programática e combater o revisionismo.
       
      Conclusão

               Nós reivindicamos o legado do Coletivo Lenin até o fim de 2010 como nosso. Ele foi uma tentativa genuína e honesta (ainda que com falhas) de construir um grupo no Brasil que representasse a análise histórica e a tradição da Tendência Revolucionária do SWP e do espartaquismo. Devido à indiferença da TBI quanto à possibilidade de desenvolver este grupo, ele não conseguiu se construir suficientemente e acabou caindo como vítima do revisionismo de um dos seus fundadores, já completamente desmoralizado quanto às possibilidades de construir um partido revolucionário com base nessa tradição, o que o Coletivo Lenin colocava como sua principal tarefa.
               
      Hoje o Coletivo Lenin não é superior a nenhum dos outros grupos centristas do movimento. De fato, ele caminha a passos largos para abandonar qualquer semelhança, mesmo aparente, com uma organização marxista revolucionária e se tornar apenas mais um seguidor reformista dos grandes peixes oportunistas. Seus membros estão unidos não por um programa bem definido, mas pelo pacto de “manter a unidade” (não importa com qual programa) e “negociar” os princípios políticos para aceitar qualquer nova “formulação teórica” que surja na cabeça de seu novo “líder” a qualquer momento. Se mantida e fortalecida, a longo prazo, essa condição degenerada fará do Coletivo Lenin nada menos do que um verdadeiro santuário de adoração às “teorias” de Paulo Araújo.
       
               Sam Trachtenberg, que organiza desde 2008 o projeto de organização Reagrupamento Revolucionário e com quem o Coletivo Lenin tinha reações fraternais, esteve do nosso lado ao longo da luta fracional. Ele rompeu junto com nossa tendência e agora nos dedicaremos a construir o Reagrupamento Revolucionário, cujo objetivo será resgatar e desenvolver o programa original do Coletivo Lenin (que agora o grupo repudia em favor de um oportunismo descarado) – o programa do trotskismo, o marxismo revolucionário da nossa época, desenvolvido pelos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista, pela Oposição de Esquerda e posteriormente pela Quarta Internacional. Expresso ainda nos avanços obtidos por aqueles que resistiram e combateram o revisionismo que, no pós-guerra, veio a destruir o movimento revolucionário fundado por Leon Trotsky. E assim como nossos predecessores programáticos, continuaremos firmes na luta pela reconstrução da Quarta Internacional através do reagrupamento de forças revolucionárias!
       
      Baseados em uma larga experiência histórica, podemos escrever como lei que os quadros revolucionários que se rebelam contra o seu meio social e organizam partidos para fazer a revolução podem, se a revolução demorar demais – se degenerar eles mesmos sob a constante influência e as pressões deste meio (…). Mas a mesma experiência histórica mostra que também há exceções a esta lei. A exceções são os marxistas que continuam a ser marxistas, os revolucionários fiéis à sua bandeira. As idéias básicas do marxismo, a única forma de criar um partido revolucionário, estão em aplicação contínua e têm estado assim há cem anos. As idéias do marxismo, que criam partidos revolucionários, são mais fortes que os partidos que criam, e nunca deixam de sobreviver à sua queda. Nunca deixam de encontrar representantes nas velhas organizações que dirigirão o trabalho da reconstrução.
       
      Estes são os continuadores da tradição, os defensores da doutrina ortodoxa. A tarefa dos revolucionários não corrompidos, obrigados pelas circunstâncias a começar o trabalho de reconstrução das organizações, nunca foi proclamar uma nova revelação – nunca faltaram tais Messias, e todos se perderam na confusão – e sim reinstalar o programa antigo e atualizá-lo.
      James P. Cannon, “Os Primeiros Dez Anos do Comunismo Americano”
       
      Assinam
      Leandro Torres
      Rodolfo Kaleb

      Polêmica com a Liga Espartaquista sobre a Ocupação do Haiti

      Desintegração no “Período Pós-soviético”
      A Liga Espartaquista apoia as tropas americanas no Haiti!
        
      A devastação desencadeada pelo recente terremoto no Haiti atraiu consideravelmente a atenção do mundo, com a situação das massas haitianas ganhando enorme simpatia entre amplos setores da população dos EUA. A urgência imediata da situação e as ilusões de muitos americanos na boa fé de Obama deram ao governo dos EUA uma oportunidade de justificar a sua ocupação militar desse país em nome de supostamente ajudar o seu povo.
      Enquanto no passado situações similares levaram muitos na esquerda a também perderem suas estribeiras e apoiarem intervenções militares imperialistas, do apoio dos seguidores de [Tony] Cliff à presença das tropas britânicas na Irlanda do Norte no fim dos anos 60, à chamada do Partido Socialista dos Trabalhadores [SWP] dos EUA para que fossem mandadas tropas para Boston no meio dos anos 70, ou o generalizado apoio à intervenção imperialista na guerra civil da Bósnia em meados dos anos 90, parece que dessa vez quase todos na extrema esquerda reconheceram o raciocínio imperialista do governo americano para a ocupação do Haiti e saíram em oposição. Quase todos na extrema esquerda, a não ser por uma surpreendente, se não completamente chocante exceção.
        
      Na edição atual do seu jornal, a Liga Espartaquista (SL) dos Estados Unidos declarou:
        
      “O exército dos Estados Unidos é a única força no mundo com a capacidade – caminhões, aviões, navios – de organizar o transporte de qualquer comida, água, apoio médico e outras provisões que estejam chegando à população do Haiti. E ele está fazendo isso na típica maneira porca do imperialismo dos EUA. Nós sempre nos opomos às ocupações dos EUA e da ONU no Haiti e em todo lugar – e pode ser que seja necessário chamar pela retirada deles do Haiti no futuro próximo – mas nós não iremos chamar pelo fim de tal abastecimento enquanto as desesperadas massas haitianas o recebem em mãos.”
      “O Horror do Terremoto no Haiti: Imperialismo, Racismo e Fome”
      Workers Vanguard #951 , 29 de Janeiro de 2009
        
      Ninguém proclamando uma compreensão marxista do imperialismo, ou mesmo somente algum conhecimento de história recente, teria qualquer dúvida sobre as ambições em última instância predatórias por trás de qualquer intervenção imperialista no estrangeiro. A situação no Haiti não oferece nenhuma questão nova que seja diferente de intervenções “humanitárias” anteriores (para as quais a SL no mínimo se opôs à presença das tropas imperialistas, quando não sempre chamando por sua derrota militar) que pudesse possivelmente ser causa justificada de legítima desorientação. O artigo da SL até mesmo reconhece:
        
      “Enquanto ‘socialistas’ reformistas como a Organização Socialista Internacional (ISO) e o Partido Mundial dos Trabalhadores (WWP) pedem para que os Estados Unidos ofereçam ajuda sem exercer o poderio militar americano, nós não temos tais ilusões. De fato, as forças americanas no Haiti fizeram da ‘segurança’ uma prioridade mais alta do que garantir ajuda. Enquanto muitos aviões carregando suprimentos aterrissaram no aeroporto de Porto Príncipe, que está agora controlado pelas forças americanas, outros foram criminosamente desviados já que os EUA deram prioridade de aterrissagem aos seus aviões carregando pessoal militar.”
        
      Tendo sido amplamente percebidas, a obstrução pelas forças armadas americanas dos suprimentos desesperadamente necessários e a sua repressão contra o povo haitiano só deveriam tornar a situação ainda mais óbvia, mesmo para aqueles guiados por uma compreensão empírica puramente imediata.
          
      Programa gera teoria, que gera programa
        
      Ainda assim, o fato de a SL reivindicar o marxismo os forçou a tentar uma explicação teórica racional para o que é, no fundo, um “impulso” oportunista. Argumentar contra este impulso oportunista através de citações de O Estado e a Revolução de Lenin, ou Oportunismo e a Arte do Possível de Rosa Luxemburgo nessas circunstâncias, seria portanto estender a questão além do necessário. No entanto, mesmo em seus próprios termos, os argumentos levantados tem uma lógica política, que vai muito além da situação imediata no Haiti, que deveria estar causando ondas de choque em qualquer um com a mais remota aspiração socialista dentro do desmoralizado grupo da SL.
        
      No curso de denúncias contra o Grupo Internacionalista (IG) de Jan Norden [cuja seção no Brasil é a Liga Quarta Internacionalista do Brasil – LQB], que publicou uma declaração sobre o Haiti antes deles, a SL argumentou:
        
      “A desagradável realidade que o IG nega é que (a) mesmo antes do terremoto, não havia virtualmente nenhuma classe operária no Haiti; (b) logo após o terremoto, não apenas o Estado estava ‘largamente reduzido a escombros’, mas também estava assim a sociedade como um todo, incluindo a população desesperada e sem posses; e (c) há um poder militar no Haiti que está longe de estar ‘reduzido a escombros’, que é o imperialismo dos EUA.”
        
      “O IG exige que “todas as forças dos EUA e da ONU se retirem”,  como se a atual presença militar dos EUA no Haiti tivesse o objetivo de suprimir um levante popular […] O IG está cinicamente brincando com retórica, jovialmente despreocupado com o fato de que, no mundo real, se a política que eles reivindicam fosse implementada, ela resultaria em mortes em massa por inanição.” (ênfase do original)
        
      A afirmação de que, mesmo antes do terremoto, não havia virtualmente nenhuma classe operária no Haiti tem muitos paralelos com o argumento stalinista sobre a China em 1927 onde, proporcionalmente falando, dificilmente a classe trabalhadora era mais desenvolvida do que no Haiti, na Bolívia ou em muitos outros países que a SL está descartando para propósitos revolucionários. Mas, ainda que hipoteticamente verdade, e que as visões de Trotsky sobre a Revolução Permanente precisassem ser reajustadas ou limitadas, como a SL está implicitamente argumentando, Marx (em sua correspondência com os revolucionários russos) e a Terceira Internacional de Lenin no mínimo tentaram mapear uma estratégia revolucionária viável para tais cenários, entendendo que seu destino final residia na vitória das revoluções nos país capitalistas avançados. No entanto, assim como a Segunda Internacional, os “marxistas” na SL argumentam em contrário:
        
      “A amarga verdade é que as desesperadas condições do Haiti hoje não podem ser resolvidas dentro do Haiti. A chave para a libertação do Haiti reside na revolução proletária através do hemisfério, na qual a mobilização do considerável proletariado haitiano refugiado pode prestar um papel central.”
        
      Isso deixa os revolucionários haitianos com poucas opções a não ser esperarem passivamente serem socorridos pelas lutas revolucionárias em outros países ou então emigrarem. Qualquer um dos meios deixaria as massas haitianas como um todo e suas lutas em completo abandono, caso a SL tenha algum interesse na questão. Como os revolucionários deveriam se orientar, por exemplo, com relação às lutas passadas (e futuras) como o “descontentamento de massas que retirou ‘Baby Doc’ Duvalier do poder”? Será que esse evento, de acordo com a SL, teve alguma importância no grande esquema que ela propõe?
        
      Apontar para a verdade no fato de que o destino final do Haiti (por sinal de qualquer país, por mais economicamente desenvolvido que seja) reside, em última instância, na vitória da revolução mundial é usado pela SL como um mecanismo para abandonar a estratégia da Revolução Permanente de Trotsky (ou qualquer outra estratégia revolucionária alternativa) para a maior parte do Terceiro Mundo. É claro, a SL não está fazendo uma reavaliação teórica séria, com todas as consequências políticas consistentemente levadas adiante, mas sim uma racionalização do seu atual clima de desesperança e acomodação.
        
      Se, mais uma vez hipoteticamente falando, não houvesse nenhuma classe operária no Haiti, fosse industrial, rural ou de qualquer outro tipo, então isso significaria que não haveria também classe capitalista suficientemente desenvolvida, fosse nativa ou estrangeira. Isso levanta algumas questões sobre a natureza da economia haitiana. Também, exatamente quais interesses de classe o Estado haitiano estava defendendo? Denunciando outros na esquerda por seguirem Aristide de maneira oportunista, a SL comete um deslize ao citar uma declaração antiga que diz que Aristide iria “desempenhar o papel de instrumento de camuflagem para a burguesia haitiana” (“Haiti: Avalanche Eleitoral de um Pastor Radical”, WV número 517, 4 de janeiro de 1991)
        
      Deixando de lado a questão da estrutura de classes do Haiti, o que a SL, após a sua atual posição, propõe que as massas haitianas defendam, se não figuras burguesas populistas como Aristide? Ela obviamente não está chamando pela formação de um partido trotskista no Haiti, com qualquer estratégia que seja, como uma alternativa. Os stalinistas ofereceriam às massas haitianas a sua estratégia de duas etapas, é claro. Qual seria a resposta da SL?
        
      A SL aponta que em 2004 “Nós mostramos que a ocupação do Haiti pelos EUA também representava um perigo para o Estado operário deformado cubano, assim como para o proletariado militante da República Dominicana, que divide com o Haiti a Ilha de Hispaniola (veja ‘Haiti: Fora Tropas dos EUA e da ONU!’, WV número 821, 5 de março de 2004).” Esses perigos subitamente desapareceram? A defesa da revolução cubana não começa mais em Porto Príncipe (para parafrasear o antigo slogan da SL)?
        
      A SL escreve ainda mais além:
        
      “Para liberais desapontados com a política da administração Obama no Afeganistão e no Iraque, o terremoto no Haiti foi visto como uma oportunidade para os Estados Unidos mostrarem uma face benévola. Isso foi ecoado pelos incentivadores reformistas um tanto desiludidos de Obama, como a ISO e o WWP. A ISO exige que ‘Obama imediatamente interrompa a ocupação militar do Haiti’ enquanto chama os Estados Unidos a ‘encherem o país com médicos, enfermeiros, comida, água e material de construção’ (Socialist Worker online, 19 de janeiro). Da mesma forma, uma declaração de 14 de janeiro no Workers World Website exige ‘a remoção de todas as tropas de combate da ONU’ enquanto defende que ‘todos os bônus de executivos das instituições financeiras que receberam dinheiro do pacote de ajuda econômica sejam doados ao Haiti’.”
        
      “A noção de que o imperialismo americano pode ser pressionado para servir às necessidades dos oprimidos, e não às dos seus próprios interesses de classe, mostra ilusões sem limites nos bons préstimos da voraz classe dominante americana. Reformistas como a ISO e o WWP levantaram chamados em protestos contra a guerra americana no Iraque, exigindo que houvesse uma mudança na prioridade dos gastos do governo americano, passando da guerra para os serviços sociais como educação. Mas a dominação neocolonial e o enriquecimento são inerentes ao imperialismo e nenhuma quantidade de pressão e súplica pode mudar isso.”
        
      Mas se “a noção de que o imperialismo americano pode ser pressionado para servir às necessidades dos oprimidos” mostra “ilusões sem limites”, então por que a SL não está se opondo à ocupação militar dos Estados Unidos no Haiti? Obviamente a SL não acredita que isso seja uma ilusão, já que ela é a favor de que as tropas permaneçam precisamente porque afirma que elas estão servindo às necessidades imediatas dos oprimidos. Em que outras partes do mundo o imperialismo americano pode prestar ajuda? Mais estritamente aquelas que a SL afirma não possuírem uma classe operária nativa mensurável, como o Afeganistão? Ou talvez ainda mais amplamente através da história? O argumento dos seguidores de Cliff sobre a Irlanda do Norte em 1969 parece muito similar ao da SL hoje:
        
      “O fôlego fornecido pela presença das tropas britânicas é curto, mas vital. Aqueles que chamam pela retirada imediatas das tropas antes que os homens atrás das barricadas possam se defender estão chamando por um extermínio que irá atingir primeiro e mais duramente os socialistas.”
        
      Socialist Worker, 11 de setembro de 1969
        
      Finalmente, que atitude iria tomar a SL na circunstância de uma luta dos haitianos para retirar as tropas americanas do seu país? Iria a SL simplesmente se abster de chamar pela derrota do imperialismo dos EUA como eles fizeram no Afeganistão em 2001, chamar para que as vidas dessas tropas fossem salvas como eles fizeram no Líbano em 1983, ou possivelmente ainda pior, especialmente sob a luz desse papel benéfico que a SL afirma que as tropas estão desempenhando nesse momento?
        
      Num informe sobre a sua décima terceira conferência nacional, elaborado para preparar os leitores para uma possível futura expulsão de Rachel Wolkenstein e sua base de apoio no Comitê de Defesa Partidário [que realiza ações em defesa do preso político americano Mumia Abu Jamal], a SL afirma:
        
      “As pressões do período ajudaram a gerar tentativas de achar uma maneira de ‘ficar rico fácil’, ou seja, de liquidar nosso programa revolucionário, proletário e internacionalista para se associar a forças maiores, hostis à classe trabalhadora e ao nosso propósito revolucionário”.
        
      “Dias de Cão do Período Pós-Soviético”
      WV #948, 4 de dezembro de 2009
        
      Parece um pouco perverso denunciar os críticos internos por se “associarem” a “forças maiores, hostis à classe trabalhadora” (o grupo bastante pequeno e sincero, ainda que em muitas ocasiões politicamente errado, de ativistas de Mumia Abu Jamal, muitos dos quais sem dúvida ainda têm uma posição sobre o Haiti melhor que a da SL) quando a “força maior” a qual se está associando é a sua própria burguesia.
        
      Por quê?
        
      Perguntas têm sido levantadas por muitos sobre os possíveis motivos por trás da mais recente posição da SL. Alguns afirmam que é uma tentativa da liderança da SL de encontrar um modo de se diferenciar artificialmente do restante da esquerda. Reclamações da base da SL sobre as dificuldades de se diferenciarem de outros grupos de esquerda desde a queda da URSS tem, de fato, sido frequentes. Outros acreditam que, no contexto de seu recente estremecimento interno, a liderança da SL esteja usando a questão organizativamente, como um teste de lealdade. Aqueles que foram bem sucedidos em passar no teste da SL mostram que a sua verdadeira lealdade ao doentio culto é organizativa, ao invés de expressar qualquer pretensão que a SL tenha sobre revolução socialista. Por último, o IG inferiu que a SL realizou um mergulho diante de uma histeria chauvinista. Enquanto a SL certamente realizou tais mergulhos no passado, como sua assustada reação ao 11 de Setembro e à guerra do Afeganistão em 2001, nenhuma atmosfera similar existe em relação ao Haiti nesse momento.
        
      Como elaborado de maneira mais completa numa polêmica anterior [IG: Programa de Transição de Trotsky ou Bússola Política de Robertson, 6 de maio de 2009, disponível em inglês no site do Reagrupamento Revolucionário], a SL baseou praticamente toda a sua existência durante os anos 1980 na questão da defesa da URSS. No velório da sua queda, eles construíram uma visão de mundo sob a qual, assim como previamente todas as questões eram vistas sob o prisma da defesa da União Soviética, hoje todas as questões são vistas através do estreito prisma da sua morte. Não é mais apenas a crise subjetiva de liderança que atrasa as lutas da classe operária, mas uma nova circunstância objetiva onde a questão de tomar o poder de Estado se coloca fora da agenda histórica por uma razão ou por outra.
        
      Aqueles que desistem da classe operária são forçados a procurar por salvação em outras forças sociais. Durante os anos 1980, numa desorientação simétrica à de hoje, as visões e medos extremamente exagerados da SL sobre os “perigos dos anos Reagan” combinados com o desmantelamento de suas frações sindicais, os levou a enxergar os stalinistas soviéticos e seu exército e poderio econômico como protetores dos ataques do imperialismo. Hoje, a URSS não existe mais e Cuba não pode agir como um substituto suficiente na região. A recente crise no Haiti e a reação da SL são, no fundo, uma expressão do fato de eles terem desistido da classe operária e, por conclusão, de terem desistido de si mesmos.
          
      Wohlforth e Robertson
        
      Ao menos de alguma forma parece que o líder da Liga Espartaquista, Jim Robertson, chegou aos mesmos resultados, embora com velocidade diferente, que seu antigo arqui-inimigo Tim Wohlforth. Além do fato de que ambos começaram como oposicionistas ao giro do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) ao revisionismo pablista no começo dos anos 60, e que ambos tragicamente acabaram liderando cultos burocráticos anti-trotskistas, parece que Jim Robertson está agora finalmente chegando às visões de Wohlforth sobre um imperialismo “humanitário”.
        
      Um artigo de 1995 da SL, intitulado provocativamente (e sem intenção humorística) “Wohlforth: Quem é Esse Cadáver Fedorento?” (Spartacist #52, outono de 1995), declarou que “Jovens navegando pela internet podem estar se perguntando quem é esse maníaco solto no ciberespaço dando vivas de ‘Bom Trabalho!’ às forças da OTAN bombardeando os Sérvios-bósnios…” Wohlforth também estendeu seu apoio para a “humanitária” intervenção imperialista em outros países na época, como a Somália (que pelos atuais critérios da SL também não tinha classe operária e, talvez em retrospectiva, merecesse a benevolência imperialista) e, coincidentemente, o Haiti. Robertson ainda não é tão abertamente grotesco, ele tem seguido os passos de seu arqui-inimigo a um ritmo mais lento. Sendo bastante velho, é provável que ele morra antes que o alcance. Mas talvez as pessoas navegando na internet devam se fazer a pergunta (com a inflexão cômica e o encolher de ombros apropriados) “Jim Robertson: quem é ESSE cadáver fedorento? E POR QUE ele apóia o envio de tropas americanas para ocuparem o Haiti?”
          
      Um navio que afunda
        
      O informe da décima terceira conferência nacional da SL em alguns momentos soa quase como um auto-obituário. Após reconhecer que “Nós talvez não tenhamos uma perspectiva imediata” a SL proclama que sua “tarefa central” é “armar o partido programática e teoricamente, da publicação de Spartacist à manutenção do arquivo do Comitê Central, a Biblioteca de Pesquisa Prometheus, e a realização de todo tipo de formação política ao longo de nosso trabalho”. Em outras palavras, preservar o legado de Jim Robertson para futuros arquivistas.
        
      Esse é o resultado lógico de abandonar, implícita ou explicitamente, a revolução socialista como uma perspectiva realista para nossa época. Então um líder pode estabelecer um horizonte mais baixo a partir do objetivo “realista” de usar a organização para manter e preservar o seu legado pessoal como “nota de rodapé na história”.
        
      Essa evidente desmoralização, um drástico corte no número de membros, o estremecimento com Rachel Wolkenstein e o mais recente mergulho durante uma questão internacional contemporânea e fundamental indicam que a SL é um navio que afunda e há grande percepção interna desse fato, por todas indicações.
        
      Em sua transformação de um grupo de propaganda revolucionário para um culto sectário, a SL não apenas destruiu muitos revolucionários em potencial, mas também conseguiu recrutar pessoas tendo como base seu antigo legado, uma pequena minoria que ainda não abandonou subjetivamente suas aspirações revolucionárias. A liderança do Grupo Internacionalista nunca fez um balanço político honesto da história da SL e do papel que eles desempenharam nela. Também não o fez, de forma semelhante, a liderança da Tendência Bolchevique Internacional (particularmente em relação às questões envolvendo Bill Logan, mas também sem dúvida com relação ao seu atual burocrata chefe, Tom Riley) e, após um promissor início, ela tem seguido com incrível velocidade pela sua própria “Estrada para Rileyville” por mais de uma década agora (veja “A Estrada para Fora de Rileyville”, de Samuel Trachtenberg, 25 de setembro de 2008). Nenhum desses grupos merece qualquer confiança política.
        
      Enquanto a nave-mãe está naufragando, e seus rebentos permanecem estagnados sob suas próprias lideranças geriátricas permanentes, nós apelamos para que discutam conosco todos aqueles genuinamente interessados em avançar (em oposição ao que na realidade é apenas “preservar”) tudo que havia de revolucionário no legado da Liga Espartaquista.
        
        
      15 fevereiro 2010

      Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (3)

      Tendência Vern-Ryan

      A Revolução Boliviana e a Luta contra o revisionismo

      [Publicamos a seguir o terceiro de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]

      Sam Ryan, de Los Angeles.

      Outubro de 1954.

      “Para Pablo, a missão histórica da Quarta Internacional perdeu todo o seu significado. O ‘processo revolucionário objetivo’ sob as rédeas do Kremlin, aliado com as massas, está cumprindo seu papel suficientemente bem. É por isso que ele está inclinado impiedosamente a liquidar as forças trotskistas, sob o pretexto de integrá-las ao ‘movimento de massas como ele existe’.

      “A salvação da Quarta Internacional exige imperativamente a expulsão dessa liderança liquidacionista. Uma discussão democrática deve ser aberta dentro do movimento trotskista mundial sobre todos os problemas que ficaram em aberto, embaçados, ou falsificados pela liderança pablista durante três anos. Dentro dessa perspectiva, será indispensável para a saúde da Internacional que a maior autocrítica possível seja realizada sobre todas as fases e causas do desenvolvimento da gangrena pablista.

      “… estas ideias e esta tática liquidacionista foram depois estendidas aos partidos reformistas e a todas as organizações sob uma liderança pequeno-burguesa (o MNR boliviano, o movimento peronista na Argentina, o movimento liderado por Ibánez no Chile, etc.)”. (Boletim do Comitê Internacional, No. 1)

      Este artigo tem a intenção de ser uma contribuição para a discussão sobre o “desenvolvimento da gangrena pablista”. Ao mesmo tempo, ele também pretende se uma contribuição para a luta contra o pablismo. Em minha opinião, tal discussão, já muito atrasada, é uma parte indispensável da luta e não deve ser mais adiada; isso porque uma das maiores vitórias do pablismo é precisamente o fato de que problemas teóricos e práticos da maior importância “ficaram em aberto, embaçados, ou falsificados”. A “maior autocrítica possível”, que realmente é necessária, irá mostrar que a maior ajuda para que Pablo traísse o marxismo veio do silêncio e da resignação dos “trotskistas ortodoxos”. Um dos crimes do revisionismo durante os últimos dois anos foi a traição da revolução boliviana.

      Que a revolução boliviana de fato foi traída deveria estar claro para todos. Em novembro último, o partido trotskista boliviano, o POR, publicava um jornal semanal, Lucha Obrera. Para um partido operário num país pequeno e atrasado, com uma alta taxa de analfabetismo, isso é uma conquista tremenda, uma indicação de poderoso apoio de massas. Em dezembro, Lucha Obrera foi suspenso pelo governo, quase sem nenhuma resistência. Não houve nenhuma luta desde então que fosse importante o suficiente para ser noticiada nos jornais daqui. Esse fato é, por si só, uma notícia muito significativa.

      Marxismo é uma ciência. Isso significa que suas generalizações não são imperativos divinos, mas a destilação dos eventos passados. E a característica distinta de toda ciência não é simplesmente fornecer generalizações verdadeiras (ou mais corretamente, aproximações da verdade), mas que ela fornece generalizações que podem ser testadas na realidade material. Falhar ao examinar qualquer evento importante em sua relação com a teoria marxista é transformar o marxismo num dogma, em verdades que são dadas de forma definitiva. E uma vez transformado em um dogma, o marxismo se torna inútil e desnecessário para a solução dos problemas práticos.

      Quais eventos, acima de todos, exigem investigação pelos marxistas? Se o marxismo for compreendido não como um exercício contemplativo, mas como um guia para a ação, a resposta vem à mente de maneira imediata. Uma revolução é um teste supremo de teoria. Uma revolução joga fora todas as enganações, expõe de forma clara o caráter de classe de todos os partidos, de todos os programas. Nenhum tipo de revisionismo consegue se passar pelo marxismo no tempo de uma revolução; nenhum marxista pode ignorar uma revolução. É mais do que lógico esperar que uma atenção muito próxima fosse dada à revolução boliviana, por mais de uma razão. Não apenas é um teste de teoria e prática, especialmente em vista do fato de que um partido trotskista está desempenhando um papel importante; ela acontece sob as próprias muralhas do bastião da reação mundial.

      Mas a revolução boliviana já passou há mais de dois anos agora, e não houve discussão sobre esse importante evento. Apenas dois artigos de discussão surgiram, ambos escritos pelo presente autor. E, apesar de os dois artigos serem agudamente críticos, eles não receberam nenhuma resposta. Até mesmo as novidades da Bolívia têm sido muito escassas. Pablo, que reivindica uma Internacional centralizada, nem mesmo conseguiu estabelecer uma comunicação decente por correio!

      Que resposta esmagadora Pablo teria para as acusações de revisionismo? “Podem revisionistas sustentar uma política revolucionária no curso de uma revolução?” Mas Pablo escolheu não responder a isso, e isso é um traço claro do seu revisionismo. Os revisionistas preferem agir e não explicar; quanto mais eles puderem manter o silêncio, mais eles podem enganar os revolucionários. E Pablo foi deixado em paz para realizar o seu trabalho de traição.

      Que o pablismo é a inspiração para a linha do POR é fácil de provar. A caracterização feita pelo POR do MNR e do governo do MNR como “pequeno-burgueses”, seu prognóstico da possibilidade de reformar o governo, sua teimosa recusa em fazer qualquer crítica à linha traidora e contrarrevolucionária dos líderes sindicais, e seu completo silêncio quanto ao stalinismo – essas coisas não vêm do arsenal do marxismo, mas do revisionismo.

      Uma revolução por nomeação

      Em sua décima conferência nacional, ocorrida em junho de 1953, o POR adotou uma resolução política que, apesar de cheia de expressões trotskistas, contém alguns poucos parágrafos que são o suficiente para tornar o documento inteiro um exercício de revisionismo. Essa resolução (Etapa Actual de la Revolución y Tareas del POR) foi impressa na publicação mexicana “Que Hacer?” mas não foi traduzida para o inglês.

      “O governo pequeno-burguês”, diz a resolução (VII, 7), “… adquire um caráter transitório e bonapartista … Submetendo-se à poderosa pressão do proletariado assim como à do imperialismo, ele vacila constantemente entre os dois extremos. Dessa situação fluem as duas possibilidades abertas para o desenvolvimento do presente governo. Se as massas, com um novo impulso, decidem pela derrota política da ala direita pela esquerda, se abre a possibilidade de que o governo se transforme na etapa prévia do governo operário e camponês. Esse processo seria acompanhado por uma série inteira de medidas de caráter revolucionário, assim como a expansão das nacionalizações, a revolução agrária, etc. Se a ala direita, com a ajuda do imperialismo, barrar o espaço governamental dos seus adversários, ela irá consolidar um governo pequeno-burguês a serviço da ‘Rosca’ e do capital financeiro.”

      Dois parágrafos depois, nós lemos:

      “A ala direita está definitivamente comprometida com a reação latifundiária e imperialista e, portanto, nós não podemos simplesmente descartar a possibilidade de um futuro racha com a ala esquerda. Uma predominância completa dessa última iria alterar profundamente o caráter do MNR e lhe permitir mover para mais perto do POR. Apenas sob tais condições nós poderíamos falar de um possível governo de coalizão do POR e do MNR, que seria uma forma de realização da fórmula de ‘governo operário e camponês’, que por sua vez constituiria a etapa de transição em direção à ditadura do proletariado.”

      Um regime bonapartista só pode aparentar estar entre as classes para as pessoas que se esqueceram da natureza de classe do Estado. Todos os governos sempre foram, para os marxistas, os instrumentos das classes dominantes, impossíveis de serem reformados, em sua natureza de classe, por nenhuma quantidade de pressão. Bonapartismo é simplesmente uma forma que um regime burguês ou proletário assume sob determinadas condições. O POR não foi o primeiro a se esquecer de que não pode haver um regime intermediário nem a reforma de um regime. Foi o Terceiro Congresso Mundial, com seu “status intermediário” dos países do Leste Europeu, e o CEI [Comitê Executivo Internacional] com sua caracterização do regime de Mao na China como Estado nem burguês nem operário, mas intermediário, um “governo operário e camponês”.

      Um regime bonapartista é um regime ditatorial, regulado por um árbitro. Os marxistas nunca favoreceram essa forma de governo; eles sempre promovem a intervenção das massas na política. Assim, os bolcheviques exigiram uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal para substituir o domínio bonapartista de Kerensky. A demanda de eleições democráticas é uma das pedras de toque do programa trotskista para a revolução nos países atrasados. Essa palavra de ordem certamente não é “golpista”; ela pode ser levantada – é mais apropriado – por um partido revolucionário que ainda não está em posição de tomar o poder. E levantar essa demanda certamente não é incompatível com defender o governo no caso de investidas contrarrevolucionárias.

      No entanto, em nenhum lugar de toda a resolução do POR é levantada a demanda por eleições! E isso apesar do fato de que o presente governo foi eleito há cinco anos, e que um golpe militar e uma revolução aconteceram desde então. Não é feita menção nem mesmo à existência de uma legislatura eleita ou do desejo de eleger uma. Não é feita menção à questão de eleições populares. O POR está obviamente satisfeito com o atual governo bonapartista, está convencido da sua capacidade de se transformar, passo a passo, em um governo de trabalhadores.

      Diante da recusa do POR em exigir eleições gerais, qual é o significado da palavra de ordem que ele levanta: “Controle completo do Estado pela ala esquerda do MNR”? Como ele espera que isso ocorra? Aparentemente por nomeação do Bonaparte Paz Estenssoro. Isso não é uma mera dedução. Isso é o que o POR realmente propôs. Em agosto de 1953 surgiu um gabinete de crise, uma divisão entre as alas esquerda e direita do governo sobre a questão da divisão das terras. Em uma situação como essa, com o movimento camponês se levantando, é óbvio o que o um partido trotskista deveria propor: destituição do governo, incluindo o presidente; eleições nacionais para presidente e para o congresso; a ala esquerda do MNR deveria lançar candidatos independentes, incluindo um candidato a presidente; o POR poderia dar apoio crítico à campanha da ala esquerda e levantar a palavra de ordem: que a Ala Esquerda tome o poder.

      O POR não exigiu eleições gerais; ele não exigiu que as massas tivessem o direito de se despojar por si próprias do governo. Ele propôs que a ala esquerda “recebesse o poder” por nomeação do presidente Paz Estenssoro.

      No número 43 (23 de agosto de 1953) de Lucha Obrera, nós podemos ler o seguinte apelo tocante direcionado ao Bonaparte do governo bonapartista:

      “Para os revolucionários, a condução do presidente parece ambígua e nós acreditamos que ela indica a intenção de manter algumas posições de direita enfraquecidas pela crescente pressão das massas. É certo que um chefe de Estado tem responsabilidades, mas ele as tem perante o povo. Na realidade, são os trabalhadores que sozinhos tem o direito de julgar os atos do governo, especialmente levando em conta que foi a classe trabalhadora que, com seus sacrifícios, colocou-o no poder. Se essas massas, que são o único apoio do presidente, seguindo seu instinto de classe, desconfiando da ala direita, apelam e exigem que homens saídos de suas fileiras sejam postos no gabinete para substituir elementos ligados à reação, não existe base para negar a elas esse direito. E se Paz Estenssoro respeitar suas responsabilidades perante a história, ele estará motivado primariamente por um desejo de respeitar a vontade do povo e realizar as aspirações dos trabalhadores, organizando um gabinete composto exclusivamente de homens da esquerda do seu partido.”

      Esse gabinete “operário” faria alguma diferença para o caráter do governo? Nem um pouco. Não faria mais diferença do que os gabinetes “operários” do governo legalista espanhol ou que o gabinete “operário” de Kerensky. Significaria tanto quanto um gabinete nomeado por Eisenhower ou Truman composto não por “nove milionários e um encanador”, mas de “dez encanadores”. Um “gabinete operário” nomeado por Paz Estenssoro seria responsável não a um corpo legislativo eleito por sufrágio universal, como na Inglaterra ou na França, mas a um comandante supremo responsável perante ninguém a não ser sua classe. Tal gabinete não seria o resultado de um rompimento dos líderes operários com o governo. Ao contrário, os tornaria os representantes oficiais dessa classe.

      O que é um partido pequeno-burguês?

      Agora é possível ver o que o POR quer dizer quando caracteriza o MNR como um partido “pequeno-burguês” e o governo do MNR como um governo pequeno-burguês. Todas as publicações do POR são muito consistentes nisso; o MNR e o seu governo nunca são chamados de nada além de pequeno-burgueses. Longe de ser meramente uma questão terminológica (um defensor da linha do POR me disse – verbalmente, é claro – que pequeno-burguês queria dizer burguês), essa é uma formulação que leva à rejeição do trotskismo em teoria e à traição da revolução na prática.

      Se a política é a economia concentrada, então os partidos políticos são a expressão de interesses econômicos. Mas o fator dominante na sociedade atual é a luta de classes entre o proletariado e a burguesia. Os partidos políticos, portanto, são, e não podem deixar de ser, expressões de e instrumentos na luta de classes. Eles servem aos interesses ou da burguesia ou do proletariado. É isso que dá a eles seu caráter de classe. Não é a sua composição social, nem a composição da sua liderança, mas a qual das duas classes principais eles servem. Isso é verdade tanto nos países atrasados quanto nos avançados.

      Existem partidos que os marxistas chamam de pequeno-burgueses – os partidos socialdemocratas e trabalhistas. Nós usamos esse termo por convenção, não porque esses partidos sirvam aos interesses da pequeno-burguesia – a pequeno-burguesia não tem interesses de classe independentes – mas porque esses partidos estão, em certo sentido, entre as classes. Eles falam do socialismo e da classe trabalhadora, mas agem pelo capitalismo e pela burguesia. Os partidos pequeno-burgueses são largamente ou predominantemente proletários em composição e burgueses pelo seu caráter político. Para provar isto basta se perguntar se a natureza de classe de algum governo já foi modificada pela ascensão ao gabinete de algum partido pequeno-burguês. A vitória do Partido Trabalhista britânico, por exemplo, não mudou o caráter de classe do governo de burguês para pequeno-burguês.

      O MNR não é um partido pequeno-burguês nesse sentido. Ele não é um partido operário, ele não reivindica representar a classe trabalhadora ou advoga o socialismo. O seu programa é típico de um partido nacionalista burguês em um país atrasado. Ele reivindica falar em nome de todo o povo; ele é pela paz e prosperidade. A concepção do POR é de que como o capital nativo é muito fraco e muito reacionário (aliado com o imperialismo), e porque o MNR diz tentar cumprir a revolução nacional burguesa, mas não é um partido da classe trabalhadora, então ele representa a pequeno-burguesia e é um partido pequeno-burguês.

      Para encontrar um precedente para tal concepção de um partido pequeno-burguês – um partido que representa a pequeno-burguesia e luta contra a burguesia pela revolução burguesa – nós teríamos que retornar aos escritos bolcheviques antes de outubro. Essa é a concepção defendida por Lenin em 1903 como prognóstico para a revolução russa. A ditadura democrática do proletariado e do campesinato seria, de acordo com Lenin, dirigida por um partido camponês e apoiada, talvez na forma de um governo de coalizão, pelo partido proletário.

      Para fazer justiça a Lenin deve-se acrescentar que ele não concebeu tal governo como um governo “pequeno-burguês” intermediário, mas como um que iria permanecer nos limites do capitalismo, removendo os vestígios do feudalismo, cimentar o capitalismo e dessa forma fortalecer a classe burguesa. Isso seria um governo de transição, não de transição para o socialismo, mas de transição do feudalismo para uma república democrático-burguesa. As Teses de Abril de Lenin e depois a revolução de outubro marcam a rejeição definitiva de um partido pequeno-burguês, um partido que não é nem proletário nem burguês. Daí em diante, todos os marxistas aceitaram a teoria da revolução permanente, defendida por Trotsky em 1903. De acordo com essa teoria, o governo que realiza a revolução democrático-burguesa não pode permanecer nos limites do capitalismo; ele deve começar a transformação socialista. Mas esse governo não pode ser um “governo camponês” nem de um partido “pequeno-burguês”; deve ser um governo animado pelo partido do proletariado.

      Stalin traiu a segunda revolução chinesa usando como pretexto para sua política menchevique uma vulgarização da concepção de Lenin de ditadura democrática. Não é à toa que Mike Martell, um líder dos pablistas norte-americanos, defende a linha do POR (verbalmente, é claro) ao dizer que a teoria de Lenin de ditadura democrática não foi completamente refutada. Também não é à toa que Murray Weiss, ao defender a linha pablista sobre um caráter intermediário do governo de Mao (verbalmente, é claro) se apropriou do que ele afirmou que era a crença de Lenin, em 1903, sobre a possibilidade de um governo transitório, pequeno-burguês. O POR, enquanto diz apoiar a teoria da Revolução Permanente, acredita que um partido “pequeno-burguês” pode ser reformado e seu governo se transformar em um governo de trabalhadores e camponeses, uma “etapa de transição em direção à ditadura do proletariado”.

      “A linha em ziguezague entre o imperialismo e proletariado, que caracteriza a condução do governo”, diz o POR em sua resolução, “não permite que ele planeje suas ações e faz com que ele caia em um empirismo disforme, fadado a dar respostas isoladas e improvisadas aos problemas que se apresentam. Assim, o observador percebe que a política do governo é caracterizada por uma falta de consistência e o raciocínio dos líderes por uma total ausência de coerência e doutrina unitária”.

      Isso, é claro, é uma característica de todo pensamento burguês e pequeno-burguês. Seria, portanto, a característica principal das atividades de um “governo pequeno-burguês”? Não. As atividades dos políticos pequeno-burgueses, por mais inconsistentes que pareçam ser para si mesmos e para terceiros, tem uma consistência que os marxistas podem desvendar. Elas são governadas por leis tão completamente quanto são as ações dos corpos físicos ou dos elementos químicos, que não tem pensamentos quaisquer. Os marxistas podem ver a consistência em ações aparentemente inconsistentes dos políticos pequeno-burgueses. Os marxistas podem ver que, não importa como eles se enxerguem, na verdade servem aos interesses da burguesia.

      A verdadeira questão do poder

      A concepção de que o MNR e seu governo são pequeno-burgueses é uma traição à revolução boliviana. Ela implica que o MNR e seu governo não são fundamentalmente inimigos da classe trabalhadora, que eles podem ser reformados. Não alertar a classe trabalhadora de que esse governo vai esmaga-la se ele puder é deixar os trabalhadores politicamente desarmados e indefesos, esperando sentados para quando o inimigo estiver pronto para atacar.

      Como nós podemos saber o caráter do MNR? Antes de tudo, nós podemos estudar o seu passado, especialmente quando ele teve o poder de Estado. O MNR de Paz Estenssoro é o MNR de Villaroel. Estenssoro foi o vice-presidente de Villaroel. Villaroel suprimiu a classe trabalhadora e executou estudantes em protesto. Ele foi enforcado em um poste em um levante parcialmente liderado pelos stalinistas. O MNR estava tão exposto como inimigo da classe trabalhadora que nas eleições de junho de 1949, Lechín, cabeça da Federação dos Mineiros, recusou a indicação para vice-presidente e, ao invés disso, fez um bloco eleitoral com o POR. Essa eleição mostrou que o MNR, apesar de ganhar uma maioria de votos, já estava desacreditado com a vanguarda do proletariado. Os trotskistas e a Federação dos Mineiros elegeram quatro deputados cada um. Então veio uma ditadura militar de três anos, que naturalmente fortaleceu as ilusões democráticas entre as massas.

      Entretanto, durante a revolução de abril de 1952 aconteceu um incidente que indicou que o MNR não tem a confiança da classe trabalhadora. O MNR apelou aos trabalhadores por apoio no levante. Os trabalhadores têxteis exigiram como condição para seu apoio que dois líderes sindicais fossem aceitos no novo governo. A demanda foi aceita e os trabalhadores apoiaram o levante. Guillermo Lora, que deu esses detalhes em uma entrevista que foi impressa no jornal em maio de 1952, não disse se o POR apoiou ou não essa demanda; mas o fato de que o POR nunca criticou a presença de líderes sindicais no gabinete indica que sim.

      No decorrer do levante, o exército e a polícia foram desarmados. Os trabalhadores, liderados por Lechín e pelo POR, possuíam dez mil rifles e metralhadoras, todas as armas do país. O que o governo fez? Ele procedeu para reorganizar o exército e a polícia e para rearmá-los com armas novas e mais modernas. Então ele começou a cuidadosamente tomar medidas para desarmar o proletariado. E isso é a medida do seu caráter burguês.

      O Estado é a força armada a serviço de uma classe dominante. Permitir ao governo reconstruir o corpo especial de homens armados é colocar o destino da revolução nas mãos da burguesia, o seu inimigo mortal. Apenas mantendo seu destino em suas próprias mãos, impedindo a reconstrução do corpo especial de homens armados, mantendo o Estado como o povo em armas, pode a classe trabalhadora proteger a si e à sua revolução. O POR deveria ter alertado que aqueles que reconstruíram a força policial e o exército estão preparando uma guerra civil contra os trabalhadores e camponeses.

      Isso não é o mesmo que propor a derrubada do governo do MNR. Mas é uma exposição do seu caráter burguês: se o MNR fosse realmente aliado dos trabalhadores e camponeses, se ele fosse levar adiante a revolução, ele não teria necessidade de corpos especiais de homens armados, ele poderia se basear no povo em armas. A sua “traição” (não uma traição de verdade, já que ele apenas agiu de acordo com o seu verdadeiro caráter de classe) data do momento em que ele começou a restabelecer o exército e a polícia – ou seja, do momento em que assumiu o poder. A traição de Lechín e dos dirigentes sindicais data da sua falha em se opor à reconstrução do Estado burguês.

      O POR não expôs a natureza burguesa do governo; ele não criticou a traição dos dirigentes sindicais. Ele passou completamente por cima da questão da reconstrução das forças armadas do inimigo de classe. Na resolução política da Décima Conferência Nacional citada acima não há sequer uma palavra sobre essa questão, nenhum alerta contra a reconstrução do exército contrarrevolucionário e da força de polícia; literalmente nem uma palavra sobre a questão militar como uma verdadeira questão de poder. O POR obviamente acredita que questões de poder são decididas não pela força, mas por substituições e manobras nos altos círculos governamentais.

      O programa de transição trotskista foi totalmente ignorado. E esse programa foi elaborado precisamente para uma situação revolucionária como a que existe na Bolívia. Seguindo esse programa, o POR poderia ter exigido que a defesa do país e da ordem interna fosse confiada não a corpos especiais de homens armados, mas às milícias operárias, que elas fossem armadas com as mais modernas armas, incluindo as pesadas, e treinadas sob controle das organizações de trabalhadores e camponeses; e que os oficiais fossem escolhidos pelos trabalhadores e camponeses. Não há nem sombra dessas demandas na resolução política nem em nenhuma das edições de Lucha Obrera em 1953.

      Lucha Obrera não pode, entretanto, ignorar completamente a questão militar; e o que diz é um tremendo suplemento à sua recusa em reconhecer o programa de transição. Por volta de agosto de 1953, o governo foi tão longe a ponto de estabelecer uma academia militar para treinar uma casta de oficiais para seu exército contrarrevolucionário. O número 43 de Lucha Obrera (o mesmo número que tinha o apelo ao presidente) protestou em um artigo intitulado “Academia Militar, Perigo para a Revolução”.

      “A ala direita reacionária”, diz o artigo, “deseja desesperadamente criar uma força armada na qual possa se apoiar contra o avanço dos sindicatos. Essa é a missão que recebeu a academia militar reaberta, que vai ser um bastião da contrarrevolução para os militaristas pequeno-burgueses. A única força que pode destruir a conspiração contrarrevolucionária são as massas armadas.”

      “Sem dúvida”, continua o artigo, “a Revolução vai atingir a construção de um exército regular, mas isso vai ocorrer quando os trabalhadores e camponeses organizarem seu próprio governo, sem qualquer subterfúgio que permita uma infiltração contrarrevolucionária. O sentimento de classe dos trabalhadores não deveria permitir a organização de qualquer força militar enquanto todo poder não estiver em suas mãos. Apenas um Governo de Operários e Camponeses pode organizar uma verdadeira força militar verdadeiramente proletária e revolucionária. No meio tempo, é um dever revolucionário inescapável fortalecer as milícias sindicais em cada fábrica, cada mina, e prepara-las para quaisquer repressões que utilizarem como seu instrumento a academia militar.”

      Aqui está uma renúncia aberta ao programa de transição, da política militar proletária. Essa é uma política completamente irrealista e impraticável, uma política que simplesmente não pode ser realizada pelo partido, e que é incapaz de convencer alguém. Nós não devemos permitir ao governo organizar nenhum exército enquanto o poder não estiver em nossas mãos? Quem e o que, então, vão defender o país no caso de o imperialismo ianque ser bem sucedido em provocar um ataque militar por parte de um dos seus satélites? Um exército de prontidão é absolutamente necessário. As milícias sindicais não são suficientes. Ninguém pode ser convencido, muito menos os militantes revolucionários, de que não pode haver exército “no meio tempo”. É por isso que o governo é capaz de ganhar tão facilmente uma vitória política e construir seu exército (um exército contrarrevolucionário) sem oposição. Porque a alternativa concreta a um exército contrarrevolucionário não pode ser, como reivindica o POR, exército nenhum, mas sim um exército revolucionário.

      E não há razão no mundo pela qual essa alternativa deva esperar até que “todo o poder esteja em nossas mãos”. Se for possível mobilizar pressão de massa suficiente para forçar o governo a construir tal exército revolucionário (ao armar e treinar os trabalhadores sob controle sindical) então o poder estará em nossas mãos. Se, como é infinitamente mais provável, o governo resista a qualquer pressão, o seu caráter contrarrevolucionário estará exposto e toda a necessidade de derrubá-lo se tornará mais clara. É para isso que serve o programa de transição.

      O POR, ao invés de propor a alternativa realista do programa de transição, vai esperar até que “todo o poder esteja em nossas mãos” por nomeação do mesmo presidente responsável pela reconstrução do exército contrarrevolucionário. Essa é a política de observar de forma tranquila enquanto o machado está sendo afiado e então esperar pelo seu golpe.

      Inocentes pegos desprevenidos

      Quem, então, é responsável pela traição da revolução? Quem é responsável pelo fato de que os trabalhadores e camponeses tenham caído na apatia? O MNR simplesmente cumpre a sua tarefa assumida – salvar o capitalismo na Bolívia. Os líderes sindicais colaboraram completamente para salvar o capitalismo. Eles entraram no governo no começo e permaneceram lá desde então. Eles deram um consentimento silencioso para a reconstrução das forças armadas contrarrevolucionárias e para a supressão do POR. Eles permitiram que a milícia operária caísse em decadência, como foi demonstrado pela insurreição fascista de 9 de novembro de 1953. A Falange, um grupo comparativamente menor liderado pelos oficiais do exército de Paz Estenssoro, foi capaz de tomar Cochabamba, a segunda maior cidade da Bolívia e centro do movimento camponês. E mantê-la por seis horas antes que as milícias pudessem mobilizar força suficiente para expulsá-lo. O POR jamais criticou os dirigentes sindicais por entrar o permanecer no gabinete governamental. Ele jamais os criticou por seu silêncio sobre a reconstrução da contrarrevolução. Ele nem mesmo os criticou por seu silêncio diante da supressão do Lucha Obrera.

      Guillermo Lora, escrevendo para a edição de março de “Que Fazer?”, reclama que o MNR está traindo as aspirações das massas. A traição, de acordo com Lora, consiste no fato de que o governo está contendo a revolução agrária, está revertendo as nacionalizações, jogou o fardo da crise econômica nas costas dos trabalhadores e camponeses, burocratizou a COB, a central sindical. É digno de nota que Lora nem mesmo mencione a supressão de Lucha Obrera! Isso, aparentemente, é tão pouco importante para ele quanto a supressão dos trotskistas chineses realizada por Pablo e Germain [Mandel].

      Lora é consistente em acusar o MNR de traição, já que ele esperava mais dele. Mas quem e o que tornou essa traição possível? Sem o apoio dos dirigentes sindicais, Paz Estenssoro não poderia ter sido bem sucedido em seu papel contrarrevolucionário. Lora não faz menção de que os líderes sindicais permanecem até hoje no gabinete.

      Lora, é claro, afirma ser superior em perspicácia do que um trabalhador na média:

      “Para o grosso dos militantes [do MNR]”, escreve ele, “e para muitas outras pessoas, o ano de 1954 vai ser o ano da traição. Nós falamos da traição das aspirações das massas por parte da liderança pequeno-burguesa. Para nós será o ano da verificação de nossas conclusões teóricas sobre a capacidade de um partido pequeno-burguês realizar as tarefas revolucionárias e anti-imperialistas.”

      O prognóstico de que o MNR iria suprimir a classe trabalhadora e o seu partido não foi feita pelo POR, porque o POR nunca considerou o MNR como um inimigo de classe. A “previsão” do POR que, de acordo com Lora, foi verificada, foi completamente inútil em preparar a si mesmo ou aos seus seguidores para uma luta contra o MNR. Tal luta, de fato, foi caracterizada por Lora em sua entrevista como uma “histeria”.

      “Não se pode excluir a possibilidade”, disse Lora em sua entrevista, “de que a ala direita do governo, encontrando-se diante do aguçamento da luta de massas contra si, vá aliar-se com o imperialismo para esmagar o assim chamado ‘perigo’ comunista”.

      Em uma carta comentando a entrevista de Lora (boletim interno [do SWP] de junho de 1952), eu escrevi o seguinte:

      “Uma coisa parece clara: o camarada Lora não considera esse governo como um inimigo da classe trabalhadora e do POR. Essa formulação é errada, muito errada! Esse é um erro que, se de fato representa a posição do POR, pode ter consequências trágicas para a própria existência física dos quadros do partido trotskista boliviano. Este é o aviso que os líderes do POR devem dar à classe trabalhadora e acima de tudo aos seus próprios membros: Nós podemos esperar com absoluta certeza (não meramente ‘não excluir a possibilidade’) que o governo (e não apenas a sua ala direita) vai se aliar com o imperialismo e tentar esmagar o movimento de massas e antes de tudo a sua vanguarda, o POR.”

      Na mesma carta:

      “Eu acho que é incontestável que o atual governo boliviano é um governo burguês (eu nunca imaginei que alguém iria contestar isso!), cuja tarefa e objetivo é defender por todos os meios disponíveis os interesses da burguesia e do imperialismo. Ele irá, se puder, controlar e desarmar a classe operária, esmagar a sua vanguarda revolucionária e reconstruir a ditadura da burguesia, que foi abalada, mas não destruída, pela primeira fase da revolução. Esse governo é, portanto, o inimigo mortal dos trabalhadores e camponeses, e especialmente do partido marxista.”

      E mais uma:

      “Lechín é um simpatizante traidor e indigno de confiança. Lechín irá capitular de novo e de novo. Ele irá ajudar a desarmar os trabalhadores. Ele vai ajudar a tentar esmagar o POR, não importa o quanto este o apoie. E a traição de Lechín será facilitada se o POR continuar a apoiá-lo.”

      Não é preciso ser um gênio, como pode ser visto, para fazer previsões corretas e úteis. Armados com a doutrina marxista e o método marxista, pessoas bastante comuns podem ver a direção dos eventos e se prepararem para eles com uma política revolucionária. Mas sem o método marxista, não há possibilidade nenhuma de prever e realizar uma política bem sucedida. O marxismo não é uma garantia da vitória, mas o revisionismo é uma garantia de derrota.

      O maoísmo ganha um recruta

      Alinhado com a capitulação do POR aos dirigentes sindicais reformistas estava a sua conciliação pró-stalinista. Nisso o POR se sai melhor do que Pablo. Nessa questão eu não posso fazer nada melhor do que reproduzir porções de uma carta que eu escrevi para Murray Weiss em 2 de janeiro de 1954 (nunca respondida, é claro):

      “Eu fiquei feliz em ver você tomar conhecimento do ‘papel contrarrevolucionário dos stalinistas na Bolívia’ no jornal de 21 de dezembro. Entretanto, eu considero a sua breve referência totalmente inadequada, já que ela não é apoiada por quaisquer fatos… Você tem tais evidências, Murray? Eu, da minha parte, estaria muito interessado em vê-las… Eu me pergunto onde você conseguiu suas evidências sobre o papel contrarrevolucionário dos stalinistas bolivianos. Certamente não dos trotskistas bolivianos. Como você sem dúvida sabe, eles nunca criticam os stalinistas bolivianos, não em palavra impressa pelo menos.”

      “Olhe as edições de Lucha Obrera, o jornal do POR. Em todas as edições de 1953, você vai encontrar apenas uma única referência aos stalinistas. É num anúncio de um racha no PIR stalinista e a formação do ‘Partido Comunista dos Trabalhadores e Camponeses’. Fora isso não há nenhuma outra referência aos stalinistas. Esse fato, tão incrível e tão esclarecedor, sem dúvida é do seu conhecimento. Como você explica isso? Alguém pediu ao POR uma explicação?”

      “Mesmo quando Lucha Obrera menciona o assassinato de Trotsky, ele não diz quem foi responsável ou por qual razão (isso no número 43, a mesma edição que eu citei duas vezes). O artigo menciona o assassinato e lida com as contribuições de Trotsky – liderou a revolução russa, construiu o Exército Vermelho, elaborou a teoria da Revolução Permanente, e fundou a Quarta Internacional. Mas ele consegue omitir qualquer menção que seja ao tema dominante nos últimos dezessete anos de sua vida – a luta contra o stalinismo.

      Lucha Obrera publicou dois artigos sobre a queda de Mossadegh – e nem mesmo um sussurro sobre a existência de um partido stalinista no Irã, muito menos de denúncia à sua traição. ‘A queda de Mossadegh’, diz Lucha Obrera, ‘é sem dúvida um triunfo do imperialismo britânico, mas é ao mesmo tempo um produto da sua política vacilante, que tentou limitar a revolução iraniana, virando suas costas para as aspirações das massas’. E Lucha Obrera quer dizer a ‘política vacilante’ não do Partido Tudeh [stalinista], o que já seria ruim o suficiente (ele nem sequer dá pista da existência de tal partido); ele fala da ‘política vacilante’ de Mossadegh.”

      “ ‘A conversa pablista sobre a a ‘inadequação’ da política stalinista em agosto, ou da ‘falha dos stalinistas em projetar uma orientação revolucionária’ é falsa e desorientadora. É uma questão de traição calculada’. Isso é o que vocês dizem no jornal. O erro do POR ao fazer o mesmo que Pablo na forma como critica os stalinistas iranianos e, sobretudo, os bolivianos, também não é ‘falsa e desorientadora’?”

      Por questão de precisão, eu devo fazer as seguintes reservas. Os números 38 e 39 de Lucha Obrera estão ausentes da minha coleção: portanto eu não posso afirmar ter examinado todas as edições de 1953. Também, eu encontrei outra referência aos stalinistas bolivianos – uma resposta às suas calúnias contra o POR no número 35 (março de 1953). Sobre o stalinismo a nível internacional, há um artigo traduzido do nosso jornal sobre o caso contra os médicos judeus no número 34 (fevereiro de 1953) e um pequeno item sobre a greve de Berlim no número 40 (julho) que relatou, de forma bastante estranha, que uma das demandas dos grevistas era a retirada do Exército Vermelho. Essas reservas não mudam a imagem da conciliação com o stalinismo.

      O número 36 (abril de 1953) contém o seguinte elogio a Mao Tse-tung:

      “Em Primeiro de Março o governo central chinês adotou uma lei eleitoral que é amplamente democrática e permite às forças revolucionárias esmagarem a reação. Plena democracia para os explorados e liquidação de todas as garantias dos reacionários, esse é o espírito da lei.”

      “A nova lei estabelece que todos os chineses (homens e mulheres) com mais de 18 anos ‘com exceção dos contrarrevolucionários’ e antigos proprietários de terras que não tenham sido convertidos ao trabalho produtivo tem direito ao voto. Os analfabetos estão incluídos e votarão por sinal, erguendo suas mãos. O Partido Comunista Chinês e todas as outras organizações democráticas podem apresentar suas listas, conjuntas ou separadas. O eleitor vai reter o direito de votar por candidatos que não estejam em nenhuma lista.

      “As eleições serão por representação proporcional. Um delegado para cada 800 mil habitantes de regiões não-proletárias. Os proletários vão eleger um delegado para cada 100 mil. Mao Tse-tung explica que a lei eleitoral reflete o papel dirigente da classe trabalhadora.”

      “Como tem se visto, a lei eleitoral é plenamente democrática para os camponeses e proletários (forças fundamentais da revolução). Ela concretamente estabelece que o direito ao voto não pode ser exercido por contrarrevolucionários e latifundiários que não tenham se convertido à produção. Na China de Mao não há democracia para a reação.”

      Esse item apareceu por volta do mesmo período em que o nosso jornal aqui imprimiu o apelo do Comitê Executivo Internacional contra as perseguições sofridas pelos trotskistas chineses. Durante o resto do ano, até ser suprimido, Lucha Obrera não teve uma palavra a dizer sobre esse assunto. Ele nem mesmo relatou as notícias aos seus leitores. E, de fato, por que deveria se importar? Se a revolução está tão bem liderada por Mao Tse-tung, então os trotskistas não são realmente “fugitivos de uma revolução” (como afirmava Pablo)? Como resultado dos eventos revolucionários do pós-guerra, o maoísmo encontrou representantes dentro da Quarta Internacional.

      Isso não é uma questão acadêmica para o POR, já que envolve toda a questão da revolução colonial. Maoísmo é colaboração de classes, a ideia da possibilidade de uma “democracia popular” que não é um Estado nem burguês nem proletário, mas um governo de transição. O POR acredita na mesma possibilidade; ele acredita que o governo de Mao seja um governo intermediário. O POR tem muitas coisas bonitas a dizer sobre a Revolução Permanente. A sua verdadeira teoria, entretanto, é uma caricatura do trotskismo. A teoria da Revolução Permanente sustenta que as tarefas democrático-burguesas da revolução colonial só podem ser realizadas por um Estado operário; o POR sustenta que as tarefas socialistas só podem ser realizadas por um governo não-proletário.

      O POR não está sozinho nisso, é claro. Ele encontra sua inspiração e apoio no pablismo, que é um dos nomes do maoísmo.

      Poderia o maoísmo liderar uma revolução na Bolívia como ele fez na China? Enquanto isso não está absolutamente excluído, é extremamente improvável, muito mais do que era na China. “A revolução avança sob o chicote da contrarrevolução”, disse Marx sobre a revolução francesa de 1848; e essa observação empírica se transformou em uma lei geral. Diante de um poderoso inimigo de classe, a revolução só pode ser bem sucedida se liderada por uma liderança resoluta, completamente consciente, ou seja, o partido marxista; sob os golpes temperantes da contrarrevolução, a liderança vai se desenvolver, se tornar forte teórico e politicamente, e ganhar a confiança da classe trabalhadora.

      Na China a classe dominante nativa era muito fraca e muito corrupta, privada do apoio efetivo do imperialismo, ela pôde ser derrubada por uma revolução fraca, contida e sabotada por uma liderança burocrática e colaboracionista de classe. Wall Street não vai permitir uma vitória tão fácil em nenhuma parte do seu império na América Latina, e ele vai ter muito mais poder, tanto político como econômico, para impedir isso do que ele teve na China.

      Uma condição adicional foi necessária para o sucesso do maoísmo; a ausência de um partido marxista revolucionário de massas. Já que o maoísmo não é completamente revolucionário, enquanto liderava a revolução para a qual foi forçado pela fraqueza do seu inimigo de classe, ele deforma a revolução, ele expropria politicamente a classe operária.

      A vitória do maoísmo resulta em um Estado operário deformado. A expropriação política da classe trabalhadora não pode acontecer de nenhuma outra forma a não ser esmagando a sua vanguarda com consciência de classe e o seu partido marxista. Mao deixou o grosso dessa tarefa para Chiang Kai-shek; esse é o significado do que o CEI chama delicadamente de “falta de coordenação” entre os levantes de trabalhadores em 1945-47 e o movimento camponês, que o Partido Comunista conteve; esse é o significado da perseguição dos trotskistas chineses que não são, como os pablistas vergonhosamente e maliciosamente os chamam, “fugitivos da revolução”, mas na verdade refugiados (se tiverem sorte) da contrarrevolução – a contrarrevolução stalinista que Mao também representa. Entre o maoísmo e o partido marxista não pode haver coexistência pacífica.

      Maoísmo é incompatível com o marxismo. É por isso que o pablismo na Bolívia e em toda parte é uma traição ao marxismo e uma liquidação do partido.

      Maoísmo dentro da Internacional

      Foi objetado (verbalmente, é claro) que eu não critiquei Pablo, mas sim Lora e o POR, e que Lora está agora “do nosso lado”. Se Lora de fato está do lado do marxismo, isso não invalida a conclusão de que ele e o POR foram o instrumento através do qual Pablo traiu a revolução boliviana. Lora pode, é claro, repudiar a linha reformista que ele tem seguido. Isso seria de grande ajuda para rearmar a revolução boliviana, e só poderia ser bem-vindo. Mas se Lora for aceito como um trotskista ortodoxo com base em defender uma revolução na URSS enquanto é pelo reformismo na Bolívia, então a ortodoxia dos “trotskistas ortodoxos” é questionável, e eles dividiriam com Pablo o ônus da traição boliviana.

      A luta contra o revisionismo pablista não pode ser confinada a palavras de ordem de “Nenhuma capitulação ao Stalinismo” e “Pelo direito do Partido de existir”. Pelos últimos dois anos o POR foi organizativamente independente enquanto capitulava politicamente ao governo burguês. Por quê? Porque o revisionismo do POR é em uma questão mais fundamental: a natureza de classe do Estado. E o revisionismo pablista como um todo também se baseia fundamentalmente na rejeição da posição marxista sobre a natureza de classe do Estado.

      Antes do Terceiro Congresso Mundial, o camarada Cannon reconheceu o perigo. Em 1949, junto com a maioria do Comitê Nacional, ele rejeitou a posição defendida por Cochran e Hansen de que os antigos Estados burgueses da Europa Oriental haviam se transformado em Estados operários sem uma revolução prévia.

      “Se você começa a brincar com a ideia de que a natureza de classe do Estado pode ser modificada por manipulações nos altos círculos”, disse o camarada Cannon, “você abre a porta para todos os tipos de revisão de teoria básica […] Isso só pode ser feito por uma revolução que é seguida por uma mudança fundamental nas relações de propriedade.”

      Essa profecia foi completamente concretizada; entretanto o profeta prefere permanecer sem honra por sua profecia. Ele prefere combater algumas das manifestações do revisionismo que ele previu e ignorar a base sob a qual este se fundamenta.

      Quando o Terceiro Congresso Mundial adotou a mesma posição que o camarada Cannon atacou tão fortemente, ele e todos os seus apoiadores se uniram para endossa-la de forma unânime. Eles aceitaram que os países do Leste Europeu teriam tido um “status intermediário” de 1945 a 1948; eles aceitaram o critério economicista de Pablo e Cochran sobre a natureza de classe do Estado; eles aceitaram a ideia de uma transformação social fundamental e de uma mudança na natureza de classe do Estado sem revolução. Eles não estavam felizes com essa posição; nenhum artigo sequer apareceu defendendo isso ou explicando isso.

      Posteriormente eles também aceitaram a posição de Pablo de que a China não era um Estado operário nem burguês, mas um “governo operário e camponês” intermediário. Eles nunca defenderam essa posição tampouco – por escrito – e defenderam-na oralmente apenas quando eles precisaram: quando ficaram diante do ataque da tendência de Vern em Los Angeles. Murray Weiss e Myra Tanner mostraram então que essa posição só poderia ser defendida com o mais aberto e evidente revisionismo – tamanho revisionismo que eles não ousariam colocar por escrito. Eles também aceitaram a traição de Pablo na revolução boliviana, recusando-se também a defender isso por escrito e consentindo a um debate verbal – em Los Angeles – somente depois de muita hesitação e muitas mudanças de opinião.

      Nos últimos quatro anos a linha política do movimento internacional esteve nas mãos de Pablo, com os “trotskistas ortodoxos” seguindo-o docilmente. Eles estavam, como disse Murray Weiss, “nas mãos de Pablo”. “Pelo direito do Partido de existir” e “Nenhuma capitulação ao Stalinismo” não podiam ser encontrados em lugar nenhum quando Pablo e Germain apresentaram sua posição maoísta sobre a China. Eles votaram por uma resolução que declarava:

      “Ao colocar-se em matéria de doutrina no nível do marxismo-leninismo, ao afirmar que seu objetivo histórico é a criação de uma sociedade comunista sem classes, ao educar os seus quadros nesse espírito, assim como no espírito de devoção à URSS, o PC chinês apresenta de maneira geral as mesmas características que outros partidos stalinistas de massa dos países coloniais e semicoloniais.” (É por isso que o POR se recusa a criticar os stalinistas?).

      Eles aceitaram a linha de “apoio crítico” ao governo de Mao, mesmo quando Germain mostrou que isso realmente significava solidariedade com o governo de Mao contra os trotskistas. Com uma brutalidade digna de um Stalin, mas sem precedentes no movimento trotskista, Germain declarou que a recusa em apoiar Mao, como apresentada no CEI pelo camarada Jacques era “contrarrevolucionária”. Nenhum membro da internacional ou de nenhum partido do movimento levantou a voz contra esse ato de brutalidade stalinista. Chamar a posição de Jacques de contrarrevolucionária significava que a diferença sobre dar ou não apoio crítico a Mao não era uma disputa terminológica; significava solidariedade com a polícia secreta contra todo pensamento independente, contra os trotskistas. Os camaradas que emitiram suspiros de choque por uma deserção muito mais insignificante, a de Grace Carlson, reagiram a isso com tranquilidade. Não apenas não houve protesto, mas também essa posição stalinista foi na verdade defendida por Max Geldman, um membro de liderança da maioria, em um debate. “Vocês não tem confiança”, disse Geldman, “vocês desconfiam do CEI”. Isso foi em abril de 1953.

      Sim, Vern e Ryan, e os companheiros que apoiam sua posição, não confiavam no CEI dirigido por Pablo e Germain; eles estavam mais do que desconfiados da sua linha revisionista. E eles tinham muito menos conhecimento concreto do que Geldman e o resto do Comitê Nacional deveriam ter. Nós não sabíamos o que Peng [o líder da seção chinesa emigrada] sabia. Mas o marxismo é um guia melhor para pessoas e eventos do que o empirismo ou a fé. Murray Weiss tinha fé em Pablo. “Como vocês sabem”, perguntou ele em um debate com Denis Vern em maio de 1953, “que o Partido Comunista Chinês não pode se tornar um partido marxista?”.

      “Eu estou disposto”, respondeu o companheiro Vern, “a afirmar a total validade da minha posição sobre isso: quando a pressão da guerra da Coréia crescer, o governo vai, ao invés de liberar o poder proletário como dizem você e Germain, se tornar ainda mais burocratizado; vai intensificar sua repressão contra os trotskistas.”

      Por que eles ficam em silêncio?

      Agora os camaradas estão indignados pela zombaria pablista de que os trotskistas chineses são “fugitivos de uma revolução”. Mas indignação não é uma resposta para uma posição política. Os pablistas estão confiantes; eles acreditam que o maoísmo é ou pode vir a ser completamente revolucionário. O que dizem os seus oponentes? Nada. Eles ainda retêm formalmente a posição pablista. Todas as tentativas de levantar a questão encontram um silêncio retumbante. O camarada Stein fez a tentativa de abordar a questão em um documento interno do Núcleo da Maioria, mas ele foi rejeitado e desde então manteve o silêncio. A resolução do Comitê Nacional criticando a linha de Pablo sobre o stalinismo (“Contra o Revisionismo Pablista”, Fourth International, setembro-outubro de 1953) retém a posição de Pablo sobre a China.

      Por que eles permaneceram em silêncio? Por que eles permanecem em silêncio, como diz o Comitê Internacional, sobre problemas deixados em aberto, embaçados ou falsificados pela liderança pablista durante “três anos”? Será porque, como nos disseram insipidamente, eles não queriam “dignificar” a tendência Vern respondendo às suas críticas? Mas as questões sobre as quais eles mantêm tal silêncio teimoso envolvem a vida e a morte do movimento! Será o pequeno grupo Vern tão poderoso que ele pode travar as mentes e as máquinas de escrever da liderança do partido em tais questões vitais?

      Não. Os “trotskistas ortodoxos” tem uma razão muito mais importante para terem se omitido diante de Pablo. Enquanto Pablo analisou e respondeu a importantes problemas conforme eles surgiam – de uma forma empírica e revisionista – os seus oponentes foram incapazes de dar qualquer resposta a qualquer desses problemas. Tanto Pablo como seus oponentes descobriram que não podem fazer a realidade se adequar à sua doutrina; no aforismo usado por ambos Harry Frankel e Max Geldman, “a teoria é cinza e a vida é verde”. Pablo vira suas costas para a doutrina e concentra seus olhos de uma forma empírica e impressionista na “nova realidade mundial”. Os seus oponentes viram suas costas para os eventos e mentem sua doutrina como um dogma revelado.

      O stalinismo não pode ser reformado – diz o camarada Cannon em declarações públicas. Então o PC chinês, que certamente era stalinista, foi ou não reformado? Nenhuma resposta.

      A burocracia soviética deve ser derrubada por uma revolução. E quanto à burocracia chinesa? Recusar a dar apoio político a ela ainda é contrarrevolucionário? Nenhuma resposta.

      A natureza de classe do Estado, diz o camarada Cannon, não pode ser transformada sem uma revolução. E as mudanças que aconteceram na Europa Oriental? Quando e como esses Estados foram transformados de burgueses a proletários? Sobre essa questão, depois de votar pela posição de Pablo, eles nem a defenderam (quer dizer, por escrito) e nem a combateram.

      E eles não responderam a nenhuma pergunta sobre a revolução boliviana.

      Será que não é possível encarar a realidade do pós-guerra e ao mesmo tempo manter e defender a doutrina marxista? Claro que sim. Ambos o empirismo de Pablo e o abstencionismo de Cannon tem sua base comum na rejeição do marxismo sobre a natureza do Estado; e isso tem sua origem na questão russa. A crença de que a burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo, que é a origem dos erros de ambos os lados, significa a rejeição do trotskismo sobre a natureza do Estado soviético.

      Quando uma organização da classe trabalhadora, não importa quão burocratizada, leva adiante a luta contra a classe capitalista, não importa quão inadequadamente, isso é uma luta de classe. Se o Estado soviético é um Estado operário, então a luta contra a Alemanha Nazista foi uma luta de classe. Uma guerra de classe é uma luta de classe no nível do poder de Estado – ou seja, guerra-revolução ou guerra-contrarrevolução. Esse pensamento, que foi hesitantemente e equivocadamente aceito com relação a uma possível Terceira Guerra Mundial, foi rejeitado quando diz respeito à Segunda. No entanto, essa é a única posição que pode trazer todos os eventos do pós-guerra, toda a “nova realidade”, em conformidade com a teoria marxista. Com a vitória sobre os alemães, o Exército Vermelho foi deixado como o único verdadeiro poder – o único poder de Estado – na Europa Oriental. Essa foi a revolução, a transferência de poder de uma classe para outra. Sem essa transferência de poder, as subsequentes transformações econômicas e sociais teriam sido impossíveis.

      A revolução é ignorada pela Internacional. A burocracia stalinista teria sido contrarrevolucionária de cabo a rabo e, portanto, não poderia realizar a revolução. Os Estados da Europa Oriental não poderiam ser Estados operários, concluiu a Internacional; eles ainda devem ser Estados burgueses – Estados burgueses degenerados, no caminho da assimilação estrutural pela União Soviética. Mas o Terceiro Congresso Mundial não podia ignorar as transformações econômicas e sociais fundamentais que haviam ocorrido; eles devem ser Estados operários. Como eles surgiram? Estados burgueses no caminho da assimilação estrutural acabaram virando Estados com um “status intermediário”, Estados de transição, a traição do marxismo sobre a questão do Estado. Os “trotskistas ortodoxos” assentiram à traição teórica porque eles não tinham saída. E eles ainda mantem o seu erro original, a causa da sua rendição a Pablo.

      A burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo e até a medula? Os “velhos trotskistas” não conseguem nenhum apoio de Trotsky nesse ponto. Eles só podem encontrar uma citação que pode de alguma forma parecer apoiar os seus pontos de vista. E essa frase é parte de uma passagem em que Trotsky explica a Shachtman que o Estado soviético é contrarrevolucionário, mas ainda assim um Estado operário. Os camaradas têm suas próprias boas razões para chamar a tendência Vern de “talmúdica” ou “escolástica”. Admitindo que a burocracia cumpre algum papel progressivo, o camarada Weiss aponta que às vezes políticos burgueses também fazem algumas coisas progressivas sem mudar seu caráter completamente reacionário.

      Isso mostra a completa falta de preocupação com relação a distinções de classe. Construir estradas, financiar pesquisa científica, etc. pode ser progressivo no sentido geral da luta pelo controle da natureza; mas para os marxistas, os termos progressivo e reacionário tem um significado político apenas em relação à luta de classes. Um capitalista que faz uma concessão em resposta a uma luta não é mais progressista do que aquele que resiste; o efeito da resistência do capitalista pode ser até mais progressivo no caso de isso forçar os trabalhadores a se organizarem e a lutarem de forma mais combativa. Enquanto um capitalista que faz as concessões mais liberais não está fazendo nada de progressivo, um líder sindical que organize um piquete está. E a atividade da burocracia soviética em organizar a luta contra a contrarrevolução de Hitler foi profundamente progressiva. Se a burocracia tivesse desertado (e muitos burocratas o fizeram) a União Soviética teria sido conquistada. Pode-se objetar que a ausência de uma alternativa, uma liderança marxista, foi totalmente devido à supressão feroz da burocracia – e isso é a pura verdade. Mas isso meramente serve para mostrar o papel dual da burocracia, ao mesmo tempo progressiva e reacionária.

      Se o Estado soviético é de fato um Estado operário, então como pode o administrador do Estado, confrontado não apenas com uma classe trabalhadora rebelde, mas também com uma feroz burguesia contrarrevolucionária, ser de cabo a rabo, e até a medula, contrarrevolucionário? Essa posição não pode ser sustentada de forma consistente; os apoiadores do Comitê Internacional ainda não podem negar as mudanças fundamentais na Europa Oriental. Eles insistem que as mudanças foram realizadas por “ação militar-burocrática” e que os stalinistas chineses não são mais stalinistas. Como isso prova a natureza supostamente completamente contrarrevolucionária da burocracia soviética, isso ninguém até agora o demonstrou.

      A escolha não pode ser ignorada: ou abandonem a teoria de que a burocracia soviética é contrarrevolucionária de cabo a rabo ou então abandonem de forma completa e aberta o marxismo sobre a questão do Estado. A escolha terá de ser feita. O silêncio terá de ser quebrado. Até que esse momento chegue, a luta contra o pablismo não pode ser levada até o fim.

      Acima de tudo, e mais importante que tudo, o silencio a respeito da revolução boliviana deve ser quebrado. A traição de Pablo deve ser exposta e combatida. Se o silêncio de Pablo sobre a Bolívia é um sinal de seu abandono do marxismo enquanto ciência, o que devemos dizer do silêncio de seus oponentes? Permanecer em silêncio é proteger os traidores e compartilhar da sua traição.

      Nós precisamos de solidariedade internacional

      Não apenas não houve discussão sobre a revolução boliviana, como se nós não tivéssemos nada a aprender com ela e nenhuma ajuda política a oferecer; a revolução boliviana esteve quase completamente ausente da atividade de propaganda do partido.

      Quando a revolução começou, dois anos atrás, o jornal respondeu rapidamente e publicou uma boa quantidade de material nas primeiras semanas. George Breitman escreveu muitos bons artigos que mostram que ele sabe qual deveria ter sido uma política revolucionária. Ele até mesmo chamou o governo do MNR de um governo burguês, e escreveu que “seria melhor se presença de Lechín no gabinete fosse curta”.

      Mas depois das primeiras semanas, o jornal só publicou algumas referências ocasionais à revolução boliviana. Breitman aparentemente perdeu o interesse até que, cutucado pela supressão de Lucha Obrera, ele escreveu um pequeno artigo no qual ele novamente chamou o governo do MNR de “um governo capitalista”. Mesmo quando Labor Action[o jornal de Shachtman] acusou os líderes do POR de terem aceitado postos nas comissões governamentais, nenhuma resposta foi antecipada. Mesmo uma carta escrita pelo Secretário do POR negando as acusações foi rejeitada para publicação. (Nesse ponto, eu admito uma circunstância atenuante: a negação do POR pareceu ser meramente diplomática. O secretário do POR negou estar no governo, mas não disse nada sobre participar das comissões. Uma carta aberta para o Labor Action, prometida pelo secretário do POR, jamais apareceu.)

      Desde as primeiras semanas, o jornal imitou a linha do POR, chamando o governo do MNR de pequeno-burguês, apontando para a presença de dirigentes sindicais no gabinete como prova do seu caráter progressivo, e depois acusando o MNR de trair a revolução. A última vez, até o fechamento dessa carta, que foi feita menção da revolução boliviana foi em 28 de dezembro [de 1953]. Foi um editorial lidando com a supressão de Lucha Obrera. O editorial denunciou os covardes dirigentes sindicais pelo seu silêncio sobre a Bolívia! Mas o jornal conseguiu uma vitória. Depois de dois editoriais chamando pelo reconhecimento do governo do MNR, sem quaisquer protestos de massa, sem reuniões públicas ou petições, o Departamento de Estado foi convencido. Os dois editoriais posteriores protestando contra a supressão de Lucha Obrera não tiveram o mesmo efeito.

      O partido não fez nada para popularizar, defender ou explicar a revolução boliviana para o público. Em dois anos só houve uma reunião pública sobre a Bolívia; não uma reunião por filial, mas uma reunião para todo o partido! Ela aconteceu em Nova Iorque, e Bert Cochran foi o palestrante. A revolução boliviana é algumas vezes mencionada em orações de fim de semana, a maior parte das vezes nem isso. Só houve uma discussão de filial sobre a revolução boliviana em todo o partido, um debate em Los Angeles; e ele aconteceu seis meses depois de ter sido requisitado. “Vocês tem uma fixação na Bolívia”, me disseram, “nós estamos ocupados com a revolução americana”. Isso partiu do organizador da filial de Los Angeles, com a sua enorme população latina!

      Essa negligência vergonhosa do dever elementar de solidariedade internacional está em contradição flagrante com as diretivas dadas pelo Congresso de Fundação da Quarta Internacional:

      “Da mesma forma que as seções latino-americanas da Quarta Internacional devem popularizar em sua imprensa e agitação as lutas dos movimentos revolucionários e operários americanos contra o inimigo comum, sua seção nos EUA deve devotar mais tempo e energia em seu trabalho de agitação e propaganda para explicar ao proletariado norte-americano as posições e lutas dos países latino-americanos e de seus movimentos operários. Toda ação do imperialismo americano deve ser exposta na imprensa e em manifestações e, em determinadas situações, a seção dos EUA deve tentar organizar movimentos de massas para protestar contra atividades específicas do imperialismo norte-americano.”

      “Além disso, a seção norte-americana, pela utilização da literatura em língua espanhola da Quarta Internacional, deve buscar organizar, mesmo que numa escala modesta de início, as forças militantes revolucionárias entre os milhões de trabalhadores filipinos, mexicanos, caribenhos e das Américas Central e do Sul residentes nos Estados Unidos, duplamente explorados, não apenas com o objetivo de uni-los ao movimento operário nos EUA, mas também com o objetivo de aproximar-se dos movimentos revolucionários e operários em seus países de origem. Esta tarefa será desenvolvida sob a direção do Secretariado Americano da Quarta Internacional, que publicará a literatura necessária e organizará o trabalho para este objetivo.”

      Devido a uma legislação reacionária, a filiação internacional está impedida. Mas nenhuma lei capitalista pode impedir trotskistas ortodoxos genuínos de agir como internacionalistas. A revolução boliviana deveria ter para nós ao menos a mesma importância que uma greve em Minneapolis ou Detroit.

      Arquivo Histórico: Vern-Ryan e a Revolução Boliviana (2)

      Tendência Vern-Ryan

      A Colaboração de Classes Ganha um Recruta

      [Publicamos a seguir o segundo de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]


      Sam Ryan, de Los Angeles
      4 de Agosto de 1953

      “Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário.”
      ― Lenin

      1. O QUE NÓS SABEMOS SOBRE A BOLÍVIA

      Faz agora dezesseis meses desde que a revolução boliviana começou. Faz dezesseis meses que essa pequena nação, de três e meio milhões de pessoas, apresentou para a Quarta Internacional a oportunidade de provar que o marxismo – trotskismo – pode conquistar as massas e dessa forma leva-las à vitória.

      Considerando o fato de que um partido trotskista de massas, o POR, está envolvido em uma situação revolucionária, nós deveríamos esperar ter nesse período uma leva de informações da Bolívia, tanta informação que iria enriquecer imensuravelmente, aprofundar e concretizar a nossa teoria marxista.

      Como tem ido o POR na tarefa de ganhar dos traidores do movimento operário, do naipe de Lechín, as massas que seguem o MNR?

      Como o POR lidou com as várias questões concretas que surgem com os vários estágios da luta?

      Quem controla a COB? Qual é a força de Lechín? E a do POR? E a dos stalinistas? Como as suas forças variaram no curso dos últimos dezesseis meses?

      E quanto aos altos e baixos nas lutas grevistas? Como variou com isso a força do POR? Greves políticas têm aumentado em intensidade? Se não, por quê? Qual tem sido o papel do POR? E o de Lechín?

      Surgiu alguma disputa dentro do POR? Ou o POR permaneceu, numa situação revolucionária, completamente monolítico?

      Essas são apenas algumas da muitas perguntas para as quais nós já deveríamos agora ter um rico tesouro de informações.

      Na verdade, nós não recebemos quase nenhuma informação prática sobre a situação na Bolívia – a única revolução em que os trotskistas estão desempenhando um papel importante.

      Não é verdade, entretanto, que nós não saibamos nada sobre o que está acontecendo na Bolívia. Isso porque no mês passado relatos detalhados têm circulado sobre as atividades do POR. De acordo com esses relatos, recebidos de fontes não-trotskistas, o POR está aceitando posições no aparelho governamental; Guillermo Lora, ex-secretário do partido, foi indicado para o Ministério da Estabilização; o camarada Moller, atual secretário do POR, é diretor do Banco de Reserva dos Trabalhadores, que é controlado por Juan Lechín, um membro do gabinete; Alayo Mercado, outro líder do POR, é membro da comissão agrária. Diante desses relatos, o silêncio do Comitê Político do SWP e do Secretariado Internacional deveria causar grande preocupação aos camaradas.

      Quem cala consente. E aqueles que permanecem em silêncio diante de uma política que desarma politicamente os trabalhadores e camponeses diante dos seus inimigos de classe compartilham da responsabilidade pelos resultados inevitáveis.

      Os relatos de coalicionismo e colaboração de classes por parte do POR não caem como um raio de um céu azul. É essa a direção da política adotada pelo POR, com o encorajamento dos camaradas de liderança da Internacional, desde a revolução de 9 abril de 1952.

      Em maio de 1952 o jornal publicou uma entrevista do camarada Lora. Eu escrevi uma carta para o Comitê Político, que foi impressa no Boletim Interno de junho de 1952, expressando um agudo desacordo com a linha política de Lora. Eu afirmei então que eu achava que era uma linha conciliacionista e de colaboração de classes, ao invés da linha do marxismo revolucionário; e eu perguntei se essa era mesmo a linha do POR. O Comitê Político respondeu que isso era “obviamente uma diferença de opinião entre você e o camarada Lora” e ele, o Comitê Político, não estava em posição de participar da discussão.

      Agora nós temos a posição oficial do POR, na forma de um artigo não-assinado da nossa revista (“Um Ano da Revolução Boliviana” [Fourth International, janeiro-fevereiro de 1953]). Esse artigo, que segue a linha de Lora, estabelece inequivocamente a base não para liderar a revolução proletária, mas para fortalecer o Estado burguês. Imediatamente depois de ler o artigo, eu preparei uma crítica, com o objetivo de leva-la ao Boletim Interno. Mas ao ouvir sobre os verdadeiros passos que o POR tem tomado em direção a entrar no governo, eu decidi me conter de enviar meu artigo, esperando que fossem desmentidos, ou por uma explicação, ou por uma crítica, fosse pelo Comitê Político ou pelo Secretariado Internacional. Entretanto, nenhum comentário foi anunciado até o momento; e isso é por si só um grave indício não apenas da política do POR, mas também da linha do Comitê Político e do Secretariado Internacional.

      2. UMA REVOLUÇÃO “CLÁSSICA” – UMA POLÍTICA NADA CLÁSSICA

      Desde a Segunda Guerra Mundial, a Internacional tem tido o hábito de encontrar situações “excepcionais” nas quais, “excepcionalmente”, as leis “clássicas” e tradições do leninismo não se aplicariam. Na Europa Oriental, a negação do caráter de guerra-revolução na guerra entre União Soviética e Alemanha levou a Internacional a ver o estabelecimento de Estados operários sem revolução proletária. Na China, a Internacional vê um Estado transitório, nem burguês nem proletário, batizado de poder dual e de “governo operário e camponês”. Além disso, a Internacional vê o partido stalinista chinês sendo reformado em um partido que ela espera que vai liderar a “demonstração do poder proletário”; o papel do trotskismo é reduzido desde a luta pelo poder para um de “empurrar” o PC e as massas. Para essas situações “excepcionais”, a Internacional tem adotado os conceitos e métodos do reformismo. Mas uma vez embarcada em um curso reformista, ela não pode voltar atrás; não é nem um pouco difícil passar a enxergar todas as situações como “excepcionais”.

      Mas o artigo (“Um Ano da Revolução Boliviana”) aponta que aqui nós não temos nenhuma situação excepcional. Ele vê a semelhança próxima do curso da revolução boliviana com o da revolução russa. Alguém poderia pensar que muito poderia ser aprendido estudando a estratégia e as táticas – acima de tudo as concepções – dos bolcheviques no período de fevereiro a outubro.

      A linha política do POR, entretanto, não é a de Lenin, mas sim a dos seus oponentes colaboracionistas de classes, Kamenev e Zinoviev. Os últimos, de fato, não foram tão longe quanto o POR: eles não aceitaram postos no governo burguês.

      “Se essa política (de Kamenev e Zinoviev) tivesse prevalecido”, diz Trotsky, “o desenvolvimento da revolução teria passado por cima da cabeça do nosso partido e, no fim, a insurreição das massas operárias e camponesas teria acontecido sem a liderança do partido; em outras palavras, nós teríamos tido a repetição dos dias de julho em uma escala colossal, ou seja, dessa vez não como um episódio, mas como uma catástrofe. É perfeitamente óbvio que a consequência imediata de tal catástrofe teria sido a destruição física do nosso partido. Isso nos oferece uma medida de quão profundas eram nossas diferenças de opinião”.

      A mesma medida deveria nos indicar a penalidade extremamente séria na qual nosso movimento vai incorrer como resultado de uma política errada. Deixe-me citar os três parágrafos centrais do artigo na revista:

      “O POR começou concedendo justificadamente um apoio crítico ao governo do MNR. Isto é, ele deixou de lado a agitação da palavra de ordem de ‘abaixo o governo’; ele deu ao governo apoio crítico contra os ataques do imperialismo e da reação, e ele apoiou todas as medidas progressivas. Mas ao mesmo tempo ele evitou qualquer tipo de expressão de confiança no governo. Pelo contrário, ele propagou a atividade revolucionária e a organização independente das massas tanto quanto pôde.”

      “O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”

      “O POR têm aplicado essa atitude flexível que exige uma ênfase cuidadosamente considerada a cada momento, uma que não seja nem confusa e nem sectária, e ao aplicar essa atitude, o POR está demonstrando uma formidável maturidade política. O POR adotou uma atitude de crítica construtiva em relação à base proletária e popular do MNR com o objetivo de facilitar uma progressiva diferenciação dentro dela.”

      Cada frase nesses três parágrafos contém pelo menos um ataque contra a teoria e a prática do marxismo revolucionário; a política que é delineada é o oposto direto daquela que foi conduzida por Lenin. Tornou-se moda aqui em Los Angeles falar que Lenin está morto; mas nós podemos facilmente julgar que tipo de caracterizações enérgicas ele faria de qualquer um que chamasse qualquer tipo de apoio a um governo burguês como algo “justificável”.
        
      “‘Por que vocês não puseram Rodzianko e companhia (o Governo Provisório) na cadeia?’ ele perguntou amargamente aos líderes bolcheviques no dia da sua chegada em Petrogrado. No dia seguinte ele escreveu: ‘Nenhum tipo de apoio ao governo provisório ’. Nos protestos de massas por volta do fim de abril, os bolcheviques levantaram a palavra de ordem: ‘Abaixo o governo provisório’.”

      Lenin retirou a palavra de ordem “Abaixo o Governo Provisório”. Mas isso não tinha nada em comum, como aponta Trotsky em “Lições de Outubro”, com a posição de Kamenev de que a palavra de ordem era, em si, um erro aventureiro.

      “Uma vez efetuado o reconhecimento”, diz Trotsky, “Lenin retirou a palavra de ordem de derrube imediato do Governo Provisório; retirou-a, contudo, temporariamente, por algumas semanas ou meses, de acordo com a maior ou menor rapidez com que crescesse a indignação das massas com os conciliadores. A oposição (que defendia apoio crítico ao Governo Provisório – S. Ryan), pelo contrário, considerava esta palavra de ordem como um erro. O recuo provisório de Lenin não comportava a menor modificação na sua linha. Lenin não se baseava no fato de ainda não ter terminado a revolução democrática, mas tão somente em que a massa ainda não era capaz de derrubar o governo provisório, para o que devia prepará-la o mais depressa possível”.

      A “flexibilidade” de Lenin nas táticas não tem nada em comum com a “atitude flexível” do POR em relação ao governo do MNR. Lenin não era nem um pouco flexível, mas muito rígido em sua atitude com relação ao Governo Provisório. Todas as táticas flexíveis de Lenin eram parte de uma linha inalterável: derrubada do Governo Provisório.

      Lenin não depositou nenhuma confiança no Governo Provisório, nem nos partidos que o compunham; sua confiança estava inteiramente reservada ao partido Bolchevique. Declarar isso é um pleonasmo, quase uma tautologia. O artigo da revista, entretanto, se sente obrigado a protestar dizendo que o POR “evitou (!) qualquer tipo de expressão de confiança no governo”. O que seria isso além da linguagem diplomática puramente formal? E como toda linguagem diplomática, essa passagem é mais útil em esconder do que em esclarecer o que está por trás dela.

      O que significa essa frase? Que o POR jamais afirmou: “Nós confiamos no governo”? Mas existem muitas formas de expressar a essência da confiança, acima de tudo nas ações, enquanto se “evita” formalmente. Antes de tudo, na revolução de 9 abril de 1952, o POR, ao invés de lutar pelo poder por si próprio, pela classe trabalhadora, propôs que o MNR tomasse o poder; isto é, o POR propôs manter a burguesia no poder.

      Se não se confia na classe trabalhadora e em seu partido, que eles podem tomar e exercer o poder, tal confiança passa a ser dada, queira-se ou não, para o governo burguês. Lenin entendia isso. Quando, em resposta à sua demanda de que o governo burguês fosse derrubado, os mencheviques perguntaram o que, para eles, era uma pergunta retórica – “Quem dentre nós vai formar um governo e comandar a nação?” – Lenin respondeu imediatamente – “Nós iremos!”. E ele recebeu em resposta risadas zombeteiras, já que os Bolcheviques não passavam de uma pequena minoria no soviete e no país.

      O próprio artigo da revista  expõe o claro contraste entre a atitude do POR e a de Lenin.

      “A direção da revolução boliviana até agora confirma passo a passo a linha geral desse tipo de desenvolvimento clássico da revolução proletária em nossa época. Ela tem mais semelhança com o curso da revolução russa, embora em miniatura, do que com a revolução chinesa, por exemplo. Ela começou levando o partido radical da pequeno-burguesia ao poder (como foi o caso com a revolução russa em um momento particular antes de outubro) com o apoio das massas revolucionárias… e ainda do partido revolucionário do proletariado, o POR.”

      Isso não é “evitar qualquer tipo de expressão de confiança no governo” do MNR! Além do mais, é completamente falso implicar que os Bolcheviques deram algum apoio a qualquer “partido radical da pequeno-burguesia” que governou a Rússia em algum “momento particular antes de outubro”.

      3. DANDO COBERTURA AOS CONCILIADORES DO MOVIMENTO OPERÁRIO

      A classe trabalhadora podia ter tomado o poder em abril de 1952? O paragrafo citado acima implica que uma revolução proletária não era possível. Mas isso é ver a questão de forma desesperançosamente formalista. A classe trabalhadora estava armada e havia derrotado o exército e a polícia. Nada a impedia de tomar o poder a não ser suas próprias ilusões e a sua liderança capitulacionista. Exatamente como na Rússia! O poder da classe trabalhadora é demonstrado pelo fato de que ela foi capaz de forçar o MNR a aceitar dois de seus líderes no governo.

      Nada sobre isso é dito no artigo da revista. O autor fala de uma futura diferenciação com o MNR, de uma futura ala revolucionária emergindo de dentro do MNR, mas não diz nada sobre o fato de que essa diferenciação já está um ano atrasada; que o que as massas apoiaram em abril de 1952 não foi o MNR, mas a sua ala esquerda (colaboracionista de classe). Quais eram e quais são as relações entre o POR e essa ala esquerda já existente? Essa questão nem sequer é discutida. O artigo “evita” mencionar a “expressão de confiança” que o POR estendeu aos líderes operários conciliadores (e ao governo) quando ele apoiou a entrada deles no governo. E até hoje o POR não levantou a demanda de que os líderes operários rompam com o governo burguês e tomem o poder.

      A questão decisiva da revolução nem mesmo é mencionada! A luta do POR pelo poder transforma-se concretamente na luta contra a ala esquerda do MNR pela liderança dos trabalhadores e camponeses. Antes que os marxistas possam tomar o poder eles devem derrotar os conciliadores ideológica e politicamente. Essa é uma parte integral e inevitável da luta de classes; os conciliadores representam a influência do inimigo de classe dentro da classe trabalhadora.

      Como os Bolcheviques derrotaram os conciliadores russos? Os Mencheviques e Socialistas-Revolucionários também tinham o apoio da maioria dos trabalhadores e camponeses. Eles também entraram no governo burguês. Os Bolcheviques atacaram impiedosamente os conciliadores por sua traição de classe. Eles intransigentemente se opuseram à colaboração dos Mencheviques e dos SR no governo burguês. Quando os bolcheviques estavam em pequena minoria, eles insistentemente demandaram que os mencheviques e SR rompessem com os políticos burgueses e tomassem o poder, não em algum momento no futuro, mas na hora, imediatamente. Mesmo se os Mencheviques e SR tivessem tomado o poder na primavera de 1917, isso não teria lhes proporcionado a confiança dos Bolcheviques, nem uma coalizão governamental com eles; os Bolcheviques prometeram apenas tirá-los do poder pacificamente, contanto que isso fosse possível.

      Como o POR vai expor e derrotar os conciliadores bolivianos? Longe de atacar a sua traição de classe, o POR exigiu a sua inclusão no governo do MNR. Longe de chama-los a romper com o MNR e a tomar o poder (estabelecer um “governo operário e camponês”), o POR relega o governo operário e camponês ao “objetivo final da luta”. O POR fala da “colaboração com uma ala revolucionária emergindo de dentro do MNR” em um futuro governo operário e camponês. Então ele resolveu o problema – verbalmente. Se a futura ala esquerda é revolucionária, tudo que temos que fazer é fundir com ela e formar um partido revolucionário maior. Mas lutar contra a atual ala esquerda reformista? Isso o POR falha em fazer.

      A premissa de que um governo do POR era inevitável é uma tentativa de acobertar os falsos e traiçoeiros líderes da classe trabalhadora ao colocar a culpa da sua traição no “atraso” das massas.

      4. APOIO CRÍTICO E COLABORAÇÃO DE CLASSES
        
      A questão do apoio crítico tem se tornado uma coisa difícil de discutir no nosso partido; seu sentido se tornou obscuro desde que a Internacional resolveu dar apoio crítico ao governo de Mao na China e ao governo do MNR na Bolívia. Apoio crítico é apoio político? Apoio crítico é defesa material contra uma contrarrevolução armada? Apoio crítico a um governo é meramente apoiar as suas medidas progressivas? Todas essas definições estão incluídas em uma passagem muito curta e muito confusa do artigo da revista.

      Na Guerra Civil espanhola, os trotskistas foram bem claros sobre a distinção entre ajuda material e apoio crítico. Nós demos ajuda material ao governo Legalista burguês; mas nós não lhe demos nem um centímetro de apoio crítico. Shachtman foi duramente repreendido por Trotsky por propor isso. Nossa atitude em relação aos partidos da classe trabalhadora, incluindo o POUM, o mais à esquerda dentre todos, era a mesma: nós nos recusamos a lhes dar apoio crítico.

      Lenin, da mesma forma, delimitou uma linha bastante clara entre defesa e apoio. Na época da tentativa de Kornilov para derrubar Kerensky, ele escreveu:
        
      “Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos, sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.

      A defesa de Kerensky por Lenin foi uma parte integral da sua luta para derrubar Kerensky.

      Na concepção do POR, como exemplificado pelo artigo da revista em discussão, a palavra “defesa” enquanto aplicada ao governo burguês, não aparece em lugar nenhum. A palavra “apoio” é usada indiscriminadamente para significar ambos apoio político e defesa material. Além de ser um empobrecimento da nossa herança teórica, essa confusão dá respaldo e conforto a todos os conciliadores.

      “O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”

      O que é isso senão apoio político – ou seja, apoio à política do governo do MNR, enquanto ele levar adiante o programa nacional-democrático da revolução? Quantas lembranças do “enquanto” de Stalin e Kamenev que, antes da chegada de Lenin em Petrogrado, proclamaram sua disposição em apoiar o Governo Provisório “enquanto ele fortaleça as conquistas da revolução”.

      O que há de errado com ambos os exemplos de “enquanto”? Apenas isso – correlacionar “apoio” e “críticas” significa que o apoio é político; como é possível misturar defesa física com críticas políticas?

      Se, entretanto, o POR quer dizer que nós temos que “limitar” nossa defesa material dos aliados traiçoeiros dependendo da sua política ou da sua atitude conosco, então isso só poderia resultar em um isolamento sectário e passividade no exato momento em que a defesa material é necessária. Essa é outra instância do bem conhecido fato de que oportunismo e sectarismo compartilham a mesma carcaça teórica. Deixe-nos lembrar que a investida de Kornilov contra Kerensky veio em agosto, precisamente durante a repressão de Kerensky contra os Bolcheviques; Trotsky estava na prisão, Lenin estava escondido. Kerensky certamente tinha “se mostrado incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução”; ele certamente estava “perseguindo e ridicularizando os revolucionários”. Além disso, Kerensky estava de fato mancomunando com Kornilov para destruir os sovietes. Não seria esse o momento ideal para Lenin “limitar seu apoio”? Entretanto, se ele tivesse “se vingado” dessa forma de Kerensky, a revolução teria sofrido uma derrota esmagadora.

      Antes do recente plenário do nosso Comitê Nacional, o núcleo de Los Angeles realizou uma discussão na qual a questão do apoio crítico ao governo de Mao Tse-tung se destacou. “Apoio crítico”, disse Myra Tanner, “não é apoio político”. “Apoio crítico”, disse Murray Weiss, também um apoiador da posição do Comitê Executivo Internacional, “é apoio político”. E ele castigou a tendência Vern como sectários sem solução por se oporem a dar apoio crítico a um partido da classe trabalhadora que liderou a revolução. Junto com o camarada Vern, eu escrevi uma resposta a essa posição que foi enviada, mas ainda não publicada no Boletim Interno (“Carta Aberta ao Comitê Nacional”).

      Mas o argumento de Murray Weiss não se aplica à Bolívia; e isso foi apontado diversas vezes no curso da discussão. Quando nós perguntamos “E quanto à Bolívia?”, nossa única resposta foi um embaraçoso silêncio. E esse silêncio foi mantido por Murray Weiss e por todos os camaradas que apoiam a posição do CEI durante toda a discussão e até o dia de hoje!

      A pergunta sobre se o apoio crítico é apoio político só pôde surgir porque a posição trotskista tradicional sobre o apoio crítico foi derrubada. A questão não podia surgir no passado porque os trotskistas nunca antes deram apoio crítico a um partido ou a um governo. Nós nunca hesitamos, entretanto, em dar apoio crítico a todas as medidas progressivas de qualquer partido, qualquer governo. Dar apoio crítico à sugestão do presidente Truman por um aumento do salário mínimo, por exemplo, não implica nenhum apoio crítico para o Partido Democrata e não fez levantar a questão de se nós estamos dando apoio político ao governo.

      5. O TERCEIRO CAMPO GOVERNA A BOLÍVIA?

      O governo boliviano é um governo burguês? Ele serve a uma das duas classes sociais rivais da sociedade moderna? Sobre essa questão, o POR abandonou a posição tradicional e principista do marxismo. E ao fazer essa “exceção”, ele encontra apoio em outras “exceções” que foram encontradas pela Internacional no “status intermediário” da Europa Oriental entre 1945-48 e no “governo operário e camponês” que o CEI enxerga na China.

      “O MNR”, diz o POR, “é um partido de massas, sendo a maioria da sua liderança pequeno-burguesa, mas tendo à sua margem alguns representantes conscientes da nascente burguesia industrial, um dos quais, por exemplo, é o próprio Paz Estenssoro!”. E o governo é, naturalmente, caracterizado como um governo “pequeno-burguês”, “tendo à sua margem agentes conscientes dos capitalistas-feudais nativos e do imperialismo”. Os agentes do imperialismo e da classe capitalista estão à margem do partido e o governo. Tal afirmação ridícula é possível apenas em uma atmosfera de neo-reformismo envenenado. Os políticos burgueses estão à margemdo MNR exatamente da mesma forma com a qual Henry Ford está à margemda companhia Ford Motor.

      Como os líderes do POR explicam o fato de que esses agentes da burguesia e do imperialismo controlam o governo, incluindo em suas fileiras um proeminente habitante da “margem”, o presidente da Bolívia? Toda revolução vitoriosa e fracassada desde 1917 nos ensina que a pequeno-burguesia (e isso se aplica duplamente para a pequeno-burguesia urbana) não pode ter um partido próprio; não pode estabelecer o seu próprio governo. Essa é a pedra de toque da Revolução Permanente.

      Compare-se a explicação superficial do POR com a de Trotsky:

      “A revolução”, ele diz em Lições de Outubro, “provocou deslocamentos políticos nos dois sentidos; os reacionários tornaram-se cadetes e os cadetes, republicanos (deslocamento para a esquerda); os Socialistas-Revolucionários e os Mencheviques tornaram-se o partido burguês dirigente (deslocamento para a direita). É através de processos deste gênero que a sociedade burguesa tenta criar uma nova ossatura para o seu poder, estabilidade e ordem”.

      Nós não deveríamos esquecer que o equivalente dos Mencheviques e dos SR não é o MNR, mas as sua ala esquerda. Trotsky não falha em caracterizar aqueles Bolcheviques que defendiam o apoio crítico ao governo:

      “Mas enquanto os mencheviques abandonam o seu socialismo formal pela democracia vulgar, a direita dos bolcheviques passa ao socialismo formal, quer dizer, à posição ocupada ainda na véspera pelos mencheviques.”

      6. O MNR É NOSSO INIMIGO MORTAL

      Por que é tão importante entender que o governo do MNR é burguês (e não pequeno-burguês)? Porque os trotskistas devem ser absolutamente claros em que o governo é o seu inimigo mortal. E os trotskistas devem ser os inimigos mortais do MNR e de seu governo. Essa não é a concepção do POR.

      “Em um estágio mais avançado da revolução”, diz o artigo da revista, “ele (o governo de Paz Estenssoro) vai cair sob condução da direita que quer impor uma ditadura militar, ou então da esquerda para o estabelecimento de um genuíno governo operário e camponês, a ditadura do proletariado aliado ao campesinato pobre e à pequeno-burguesia urbana.”

      O que o MNR vai fazer? Esperar ser derrubado?

      Não. O MNR vai atar as mãos da classe trabalhadora, enchê-la de legalismo burguês e burocracia, usando seus ajudantes do movimento operário para isso. Ele vai perseguir os militantes revolucionários, desarmar os trabalhadores politicamente (novamente, usando seus ajudantes) e depois fisicamente.

      E as forças da “direita que quer impor uma ditadura militar”, quem são elas? Com que vão impor uma ditadura militar? Não são eles os oficiais, o aparato geral precisamente desse governo “pequeno-burguês”? Não é o caso que os democratas pequeno-burgueses como Kerensky, como Azaña, como Paz Estenssoro, sempre colaboram e conspiram com seus próprios generais? Kornilov era o comandante-em-chefe de Kerensky. Franco era o dirigente militar de Azaña no Norte da África. E não vamos esquecer aquele democrata mais à esquerda, o queridinho da Internacional Comunista estalinizada, Chiang Kai-shek, que foi seu próprio Kornilov. Que o futuro aspirante a ditador militar da Bolívia está no presente momento preparando as suas forças sob a proteção de Paz Estenssoro é indicado pela recente tentativa de golpe de Estado por oficiais do exército e da polícia.

      O governo do MNR é o inimigo mortal da classe trabalhadora. A sua derrubada é uma necessidade urgente.

      7. PLANEJAMENTO CONSCIENTE OU OTIMISMO FATALISTA?

      Uma das características mais chocantes da linha do POR é o seu otimismo fatalista. Um exemplo:

      “A pequeno-burguesia urbana”, diz o artigo da revista, “está dividida entre uma maioria muito pobre, altamente radicalizada em razão de suas condições instáveis e sempre disposta (minha ênfase – S. Ryan) aliada do proletariado revolucionário…”.

      Mas a pequeno-burguesia empobrecida não está sempre disposta como aliada do proletariado revolucionário. Uma das maiores lições do outubro russo, e da revolução alemã abortada de 1923, e da ascensão de Hitler, é exatamente essa: a pequeno-burguesia radicalizada, e também a classe trabalhadora por sinal, não pode ser considerada como uma mina de ouro, sempre disponível ao Partido uma vez que tenham sido convencidas da necessidade de uma mudança revolucionária. Elas se viram primeiro para os social-reformistas. Desapontadas, vão aos marxistas criticamente, cheias de suspeitas. Se os marxistas se provam receosos, hesitam em realizar sua tarefa proclamada de derrubar o governo burguês, o apoio das massas rapidamente se esvai. A pequeno-burguesia radicalizada torna-se então uma presa fácil para um demagogo fascista; a pequeno-burguesia fica então “disposta” não para a revolução, mas para a contrarrevolução.

      É por isso que a insurreição é tão necessária como parte da revolução. É por isso que o momento da insurreição é o momento decisivo na vida do partido revolucionário. É por isso que Lenin foi tão insistente para que o Comitê Central Bolchevique tratasse a insurreição como uma arte.

      “A pressão instante, contínua, incansável, exercida por Lenin no Comitê Central durante os meses de setembro e outubro justificava-se pelo receio de que deixássemos escapar o momento”. Este é Trotsky em Lições de Outubro. “O que significava deixar escapar o momento?… A correlação das forças varia em função do estado de espírito das massas proletárias, do naufrágio das suas ilusões, da acumulação da sua experiência política, do abalo de confiança no poder estatal das classes e grupos intermediários e, finalmente, do enfraquecimento da confiança deste em si próprio. Em épocas revolucionárias estes processos decorrem rapidamente. Toda a arte tática consiste em saber aproveitar o momento em que combinação das condições é mais favorável para nós… Nem a desagregação do poder estatal, nem tampouco o afluxo espontâneo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques, podiam ser de longa duração; de uma maneira ou de outra, a crise tinha que desembocar numa solução. Agora ou nunca! repetia Lenin.”

      Não existe nada desse sentido de urgência na linha do POR, como expresso no artigo da revista. “O objetivo final da luta” é expresso como:

      “a formação de um genuíno governo operário e camponês. Esse governo vai surgir não mecanicamente, mas dialeticamente, baseando-se nos organismos de duplo poder criados pelo próprio movimento de massas… O governo operário e camponês vai aparecer amanhã como a emanação natural de todos esses organismos no qual ele vai se basear.”

      Todas as expressões usadas – “formação”, “surgir dialeticamente”, “aparecer” – podem descrever um processo evolutivo. A questão decisiva, entretanto, não é como o Estado operário irá aparecer, surgir, ou ser formado, mas como ele vai tomar o poder, tornar-se a força dominante do país. O que está faltando é a consumação da revolução, a insurreição conscientemente organizada.

      Uma possível resposta à minha crítica (se alguém for respondê-la) pode ser a de que eu sou crítico demais com relação ao POR; que os líderes do POR sabem o que deve ser feito em uma revolução; que eles simplesmente não querem contar todos os seus planos.

      Infelizmente, tal argumento, sedutor como parece ser, exige um exercício de fé que rivaliza com aquele de quem acredita na Imaculada Conceição. Isso porque não são as intenções subjetivas dos líderes do POR que estão em questão (eu posso admitir que elas sejam as melhores), mas sim os resultados objetivos das suas concepções neo-reformistas.

      É algo muito difícil mudar a linha do partido de paz para guerra, de apoio crítico para derrubada revolucionária. Mesmo se o POR tivesse a linha de oposição irreconciliável ao governo desde o começo, a mudança desde a preparação para a verdadeira derrubada traria consigo uma crise de liderança, tal qual a que afetou os Bolcheviques em outubro, quando uma seção do Comitê Central, liderada por Kamenev e Zinoviev, saiu a público em oposição à insurreição.

      “Qualquer partido”, diz Trotsky, “mesmo o mais revolucionário, elabora inevitavelmente o seu conservadorismo de organização; caso contrário, não alcançaria a estabilidade necessária… Lenin – como vimos – dizia que quando sobrevinha uma mudança brusca na situação e, portanto nas tarefas, os partidos, mesmo os mais revolucionários, continuavam na maior parte dos casos a seguir a sua linha anterior, tornando-se ou ameaçando tornar-se, por isso mesmo, uma trava para o desenvolvimento revolucionário. O conservadorismo do Partido, tal como a sua iniciativa revolucionária, encontram nos órgãos da direção a sua expressão mais concentrada”.

      Para vencer a oposição de Zinoviev e Kamenev, Lenin teve essa vantagem: a linha pública oficial do partido estava do seu lado. Seis meses antes, em abril, Lenin havia rearmado o partido; ele havia derrotado decisivamente aqueles que queriam dar apoio crítico para o Governo Provisório. Desde então o partido havia agitado abertamente pela preparação da derrubada de tal governo.

      8. A SEMENTE E O FRUTO

      Quem vai ter a vantagem no POR – os partidários do conservadorismo, ou os partidários da iniciativa revolucionária? A questão já está respondida. O POR está à direita da ala direita daqueles Bolcheviques que, como diz Trotsky, adotaram uma posição socialista formal.

      O POR ocupa, em todas as questões principais, as posições ocupadas pelo menchevismo na revolução russa, e pelo stalinismo na segunda revolução chinesa de 1925-27.

      O POR, em suas concepções reformistas, na sua atitude conciliacionista, e com seus métodos de colaboração de classes, se baseia e se apoia na posição neo-reformista adotada pela Internacional desde a Segunda Guerra Mundial. Tal é a teoria adotada pela Internacional para explicar as transformações na Europa Oriental. Essa teoria, que desde a sua adoção não recebeu defesa nas nossas publicações, sejam públicas ou internas, sustenta de fato que o reformismo funcionou na Europa Oriental; que o caráter de classe do Estado foi modificado sem revolução proletária, por manipulações nos círculos de poder; que por três anos o Estado estava em um status intermediário. Essa revisão do marxismo tinha suas raízes, como todo o revisionismo desde 1917, na questão russa; e a incapacidade ou falta de vontade de ver a guerra entre a Alemanha e a União Soviética como uma guerra de classe – ou seja, como revolução ou contrarrevolução.

      A linha política da Internacional na China trouxe esse neo-reformismo do reino da teoria (ou terminologia) para o da atividade política. A ideia de um Estado transitório, um Estado que não é nem burguês e nem operário, se torna mais explícita; através do “apoio crítico” ao governo de Mao, afirma-se o papel de liderança do stalinismo, enquanto a necessidade crucial da consciência marxista incorporada no partido trotskista é jogada no lixo. A consciência revolucionária deve ser substituída pela “pressão das massas”.

      O POR não introduziu nada de novo. Ele está aplicando na Bolívia a linha revisionista da Internacional – ainda mais, com o apoio e o encorajamento da Internacional.

      Eu não tenho dúvidas de que a maioria dos camaradas esteja desconfortável com o curso que está sendo seguido na Bolívia; que eles não concordam com a linha do POR. Mas um silêncio embaraçoso não é o suficiente. Aqueles que permanecem em silêncio pelo bem de uma falsa harmonia não podem escapar da responsabilidade pelas consequências de uma linha política errada.

      “Bússola Política” de James Robertson

      Grupo Internacionalista / Liga Quarta Internacionalista do Brasil (LQB)

      Programa de Transição de Trotsky ou “Bússola Política” de James Robertson?

      Samuel Trachtenberg, 06 de maio de 2009

      O artigo a seguir consiste em uma intervenção (reconstruída a partir de notas) feita por Samuel Trachtenberg, quando ainda era membro da então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional (IBT), durante uma palestra promovida pelo Grupo Internacionalista (IG) acerca do “Programa de Transição”, no Hunter College (Nova York) em 28 de junho de 2006.

      O IG é a principal seção da Liga Pela Quarta Internacional, da qual faz parte a Liga Quarta Internacionalista do Brasil (LQB). Jan Norden, líder do IG que apresentou a palestra, dedicou um tempo significativo discutindo a Liga Espartaquista (SL – da qual o IG foi expulso) e sua explícita renúncia, em sua interpretação do “Mundo Pós-Soviético”, da afirmação do Programa de Transição segundo a qual “a crise da humanidade se reduz a crise da liderança revolucionária” [1]. S.T. direcionou sua intervenção a essa crítica. Também incluímos um adendo e extensas notas de rodapé para fins de futuras formulações e de citações históricas dos pontos levantados.

      ***

      Eu concordo com boa parte das atuais críticas do IG ao claro abandono do Programa de Transição por parte da SL. Também concordo que isso está relacionado com a extrema desmoralização da SL após o colapso da URSS. Isso foi expresso na recente posição deles acerca da luta estudantil contra a “Conferência dos Presidentes Universitários” na França [2], em relação a qual eles proclamaram que, no “Mundo Pós-Soviético”, é improvável que ocorra uma greve geral bem-sucedida. Alguns anos atrás, quando o Afeganistão foi atacado, a SL argumentou, de forma semelhante, que vitórias militares por parte de neocolônias contra os imperialistas não estava em pauta no mundo pós-soviético.

      Apesar do colapso da URSS ter sido uma enorme derrota, por si só tal fato não é uma explicação adequada [para essa desmoralização]. Também é necessário olhar para a própria história da SL antes do colapso e para seus diversos zigue-zagues acerca da Questão Russa – posições por cuja elaboração a liderança do IG compartilha responsabilidade e as quais ele mantém ainda hoje, e acerca das quais vou tocar em apenas um aspecto.

      Ao longo dos anos 1980, a SL desenvolveu uma forte tendência a reduzir o trotskismo à questão do Defensismo Soviético. Essa derrapada foi parcialmente reconhecida na época em que eu era um membro do Clube de Juventude Spartacus (SYC – a colateral de juventude da SL), na qual os membros eram criticados por, de alguma forma, abandonarem a visão de que eles eram o partido da revolução mundial [3]. A partir da postura de enxergar a defesa da URSS como a questão central em todos os momentos e lugares – da Nicarágua a Alice Springs, na Austrália [4] – desenvolveu-se uma tendência a enxergar o mundo através do limitado prisma de, para parafrasear uma velha piada judia, “Isso é bom para a Rússia?”.

      Era frequentemente escrito e reconhecido internamente que a defesa da URSS era a “bússola política” da SL [5], que iria prevenir sua degeneração – um tipo de talismã para espantar espíritos antitrotskistas, caso queiram. Em contraste, o Programa de Transição declara que a Quarta Internacional deve “basear seu programa na lógica da luta de classes” – o que é muito diferente de usar a defesa da URSS como uma bússola política. Mas o que acontece quando você continua usando uma bússola dessas depois de ela deixar de existir? (Há dois anos, nós descobrimos que a troca de acusações internas sobre querer abandonar a defesa da URSS ainda é a norma para eles [6]). A posterior transformação em um passivo grupo propagandista ou em um grupo De Leonista que o IG descreveu, e a recente posição da SL em relação aos protestos na França novamente confirmam aonde isso leva. Mas a liderança do IG é incapaz de fazer uma análise dessas. Eles estão determinados a defender tais posições, já que eles próprios tem total responsabilidade por ajudar a desenvolvê-las, quando eram líderes da SL.

      ***

      Militantes do IG presentes no debate responderam a essa crítica com acusações de “Terceiro Campismo” e de antissovietismo. Na verdade, uma visão revisionista semelhante a que descrevemos, foi desenvolvida por Michel Pablo nos anos 1950.

      Ao desenvolver suas políticas revisionistas como reação ao auge da Guerra Fria, Pablo também reduziu as críticas que recebeu a capitulações “Terceiro Campistas” ao anticomunismo. O dissidente trotskista norte-americano Sam Marcy também desenvolveu uma posição semelhante em sua teoria da “Luta de Classes Global”.

      Conforme os trotskistas franceses responderam Pablo à época,

      “ ‘A história de todas sociedades até hoje é a história da luta de classes’, lê-se naquela lixeira conhecida como Manifesto Comunista. 

      Mas é necessário acompanhar o tempo e admitir junto a Pablo, sem hesitação, que ‘Para nosso movimento, a realidade social objetiva consiste essencialmente no regime capitalista e no Mundo Stalinista.’ [Boletim de Informação Internacional, março de 1951, “Para Onde Vamos”, p. 2]

      Enxugue as lágrimas e escute: a própria essência da realidade social é composta do regime capitalista (!) e do Mundo (?) Stalinista (!).

      Nós achávamos que a realidade social consistia na contradição entre as classes fundamentais: o proletariado e a burguesia. Claramente um erro, uma vez que agora o regime capitalista, que engloba precisamente essas duas classes, se tornou uma totalidade contraposta… ao Mundo Stalinista…

      Para onde Vai Pablo?, por Bleibtreu-Favre, junho de 1951. Disponível, em inglês, em: http://www.marxists.org/history/etol/document/fi/1950-1953/ic-issplit/04.htm

      Demonstrando que ele compreende abstratamente as questões envoltas em uma visão desse tipo (ao menos quando isso não atrapalha sua própria atividade política), Jan Norden citou aprovadoramente essa passagem em “Yugoslavia, East Europe and  The Fourth International: The Evolution of Pabloist Liquidationism”, publicado pela SL em 1993, adicionando que:

      O Pablismo também incorpora temas levantados pela linha de Zhadanov (…) A luta entre ‘campos’, ao invés de classes, a correlação internacional de forças desfavorável ao capitalismo: essas premissas foram compartilhadas por Pablo e Zhdanov.”

      Apontei essa questão em um documento de 9 de dezembro de 1994, dois anos antes de Norden ter sido expulso da SL:

      No livreto citado acima sobre a Iugoslávia e a Quarta Internacional, Jan Norden argumenta corretamente que, enquanto era uma tarefa estratégica importante para o movimento trotskista defender a União Soviética, sua linha estratégica era revolução socialista mundial. A ideia de que a linha estratégica do movimento operário deveria ser a defesa da URSS é uma concepção pablista ou stalinista. No entanto, essa concepção implícita da divisão do mundo entre dois blocos tendeu a colorir a visão da SL durante a maior parte dos anos 1980. A partir disso, eles tiraram a conclusão, como foi colocado numa edição recente de Spartacist Canada (número 100) que o que existia era um ‘mundo bipolar – polarizado entre o mundo imperialista e o bloco soviético’. Essa polarização, entretanto, era apenas um reflexo da luta de classes global entre trabalhadores e capitalistas, e não a substituía. A SL, no entanto, começou a ver virtudes revolucionárias na burocracia stalinista. Isso se mostrou quando, por exemplo, eles se autoproclamaram a ‘Brigada Yuri Andropov’ e depois escreveram um poema para Yuri Andropov [chefe do Partido Comunista da União Soviética entre 1982-84], carrasco da revolução húngara de 1956, dizendo, entre outras coisas, que ele ‘não cometeu nenhuma traição aberta em nome do imperialismo’ (WV número 348, fevereiro de 1984).” 

      Entendendo a Rússia Direito, dezembro de 1994. Disponível em: http://reagrupamento-rr.blogspot.com.br/2011/07/carta-de-rompimento-de-sam-trachtenberg.html

      Em 2008, revisitei essa questão em um debate público:

      Eu acho que a perspectiva política defendida hoje pelos camaradas da Liga Trotskista [organização irmã da SL no Canadá] é a mesma que eles tem defendido em seus jornais por muitos anos. E eu quero argumentar que ela é uma perspectiva extremamente desmoralizante e pessimista. Ela acaba caindo na argumentação de que, com o colapso da União Soviética, a assim chamada Era Pós-soviética da qual eles falam tanto, o que nós vimos não foi apenas uma enorme derrota para a classe trabalhadora, o que certamente foi, mas uma derrota tão monumental da classe trabalhadora que nenhum progresso real de qualquer tipo – seja o chamado por uma greve geral na França no ano passado, seja os levantes de trabalhadores que nós vimos na Bolívia ou no México, ou a luta pela construção de um partido revolucionário através do reagrupamento revolucionário – seria possível. Nada é possível na tal Era Pós-soviética, de acordo com eles, a não ser manterem a tradição trotskista escondidos no seu próprio bunker. Como eles falam, eles próprios desenvolveram uma ‘mentalidade de bunker’ em relação à assim chamada Era Pós-soviética.

      Então o que você faz? Bom, parece que o argumento que está sendo defendido aqui hoje é que o reagrupamento revolucionário era possível em razão da vitória da Revolução Russa. Bom, nós não temos a Revolução Russa conosco nesse momento, então o que você faz? Você espera que outra Revolução Russa ocorra. Mas adivinhem? Nós não podemos ter outra revolução nos Estados Unidos, Canadá ou em nenhum outro lugar sem um partido revolucionário. E não se pode construir um partido revolucionário escondido num bunker sustentando abstratamente a tradição em isolamento da luta de classes e do restante da esquerda.”

      Sobre Reagrupamento Revolucionário, abril de 2008. Disponível em: https://rr4i.milharal.org/2001/01/02/polemica-sobre-reagrupamento-revolucionario/

      Queira o IG reconhecer isso ou não, ao igualar de forma crua a luta de classes com o Defensismo Soviético, e com a URSS não existindo mais, segue-se logicamente que a luta de classe terminou – o que soa tão sombrio à SL quanto aos Partidos Comunistas pró-Moscou.

      No Programa de Transição, Trotsky defendeu que “Quando um programa ou organização se esvai, a geração que o carregou nos ombros se esvai junto. O movimento é revitalizado pelos jovens que se encontram livres de responsabilidades pelo passado”. Lenin era conhecido por brincar ao dizer que todos os revolucionários acima dos 50 deveriam ser fuzilados. Grupos como o IG, a SL e a TBI, que são dominados (quando não inteiramente compostos) por burocratas desgastados ou geriátricos já em seus 60 e poucos anos (às vezes seguidos por um pequeno grupo de obedientes assistentes escolhidos a dedo), são praticamente não-revolucionários por definição. Sua incapacidade de encarar sua “responsabilidade pelo passado” significa que eles não merecem nenhuma confiança em não repetir seus erros.

      A Liga Espartaquista em seus tempos revolucionários era capaz de produzir materiais críticos acerca da história da Quarta Internacional e seus erros, como “A Gênese do Pablismo” (https://rr4i.milharal.org/2011/09/29/a-genese-do-pablismo/) porque, naquele tempo, sua liderança era majoritariamente composta de jovens camaradas que se encontravam “livres de responsabilidades pelo passado”.

      Isso é algo que os militantes de base do IG deveriam levar em conta quando tentam entender porque, da Questão Russa à linha social-patriótica no Líbano e à liquidação das colaterais sindicais, a liderança do IG (e outras lideranças similares) são organicamente incapazes de reconhecer seus erros ao confrontar o passado da SL.  

      NOTAS

      [1] “A afirmação de Trotsky no Programa de Transição, de 1938, que ‘a situação política mundial como um todo é caracterizada principalmente por uma crise histórica da direção do proletariado’ é anterior à presente profunda regressão [“pós-soviética”] da consciência proletária”.Declaração de Princípios da ICL e alguns elementos do Programa, de fevereiro de 1998. Spartacist n. 54, primavera de 1998.

      [2] “Em maio de 68, as ações dos estudantes provocaram uma greve geral dos trabalhadores de três semanas, mobilizando milhões de trabalhadores nas ruas, mas também importante no começo, em ocupações de fábricas. Foram essas greves e ocupações de fábricas que agitaram a classe dominante não só aqui na França, mas em todo o mundo. Mas, na ausência de um partido revolucionário, as greves foram desmobilizadas e traídas, principalmente pelo Partido Comunista stalinista que, graças a sua influência dentro da classe trabalhadora, em última análise, foi capaz de salvar a pele da burguesia francesa.”Workers Vanguard, 31 de marco de 2006.

      [3] “O documento para a 12ª Conferência da Ligue Trotskyste da França detectou um ‘desvio rasteiro’, onde se dizia que ‘nós somos o partido da família de defensores da União Soviética’, em vez de ‘nós somos o partido da Revolução Russa’. Essa visão – nos considerando a ala consistente da ‘família de defensores da União Soviética’ e os stalinistas como a ala inconsistente – implicitamente vira a natureza contraditória do stalinismo na outra direção …” […] “No curso dessas lutas nós afirmamos repetidamente que este levaria e de fato levou ao derrotismo sobre a classe trabalhadora em casa…”. – Documento da Segunda Conferência Internacional da Liga Comunista Internacional”. Spartacist n. 47-48, inverno de 1992-1993.

      Isso refletia um desejo por parte da liderança da SL de se afastar de sua orientação stalinofílica na sequência do colapso do stalinismo. Na sequência houve uma tentativa de usar Norden como bode expiatório para essa orientação, enquanto se limpava da história as dimensões totais, posteriormente seguida por uma guinada em uma direção stalinofóbica.

      [4] As seguintes citações são de um mero exame superficial de uma seleção de literatura política da SL da década de 1980, expressando como quase todas as questões mundo afora foram reduzidas à questão da defesa da URSS:

      Durante a eleição de 1985 para prefeito de Nova York, a candidata da SL e atual líder IG Marjorie Stamberg colocou a questão desta forma num comício eleitoral: “Temos dito que a escalada bélica antissoviética está no centro de tudo. Que a guerra de Reagan sobre o que ele chama de ‘império do mal’ estava por trás de sua guerra contra o operariado, por trás de seu esmagamento do PATCO [aeroviários], por trás de sua guerra contra os negros em casa, por trás do ataque incendiário à sede da MOVE [grupo radical pelos direitos dos negros].” – Comício eleitorial de Sparacist: Nós somos o Partido da Revolução Russa. Workers Vanguard Nº 391, de Novembro de 1985, e reeditado em “Massacre da MOVE em Philly”, Black History n. 3, fevereiro 1986.

      No mesmo comício, Ed Kartsen, concorrendo à presidência de bairro para Manhattan, explicou que “a principal ameaça à dominação capitalista da Terra continua a ser a União Soviética”, em vez de o proletariado internacional. Assim como os sindicatos, a URSS só poderia ser uma ameaça para a dominação capitalista da Terra sob a liderança revolucionária. A história do stalinismo foi uma de traição ativa da luta de classes em todo o mundo em nome de coexistência pacífica e “socialismo em um só país”. No campo internacional, países neocoloniais atacados foram igualmente vistos como “proxies” soviéticos e “substitutos”. Isso levou a IBT a afirmar em 1992, acerca do fracasso do SL para defender a URSS durante sues últimos dias em agosto de 1991, que “Ao longo dos anos, a Liga Espartaquista desenvolveu um conceito único de ‘defender’ a URSS. Eles o têm repetidamente invocado em situações em que a defesa da URSS não era o problema central. Lembram-se do slogan ‘defesa da União Soviética começa em El Salvador’?” – A defesa da URSS não começa em Warren Street, 31 de janeiro de 1992.

      Quatro anos antes, uma troca entre os dois grupos ocorreu quando a IBT foi denunciada por não ver que a questão-chave na oposição aos contras imperialistas na Nicarágua seria realmente a defesa da URSS:

      A confusão da TL sobre Gorbachev é paralela com algumas noções peculiares sobre defensismo soviético. Isto é evidente no que diz respeito à Nicarágua. Enquanto grande parte do meio reformista de solidariedade nega estupidamente qualquer conexão entre os eventos que ocorrem na América Central e a revolução social que teve lugar na Rússia em 1917, a TL estridentemente insiste que a questão principal colocada na Nicarágua hoje é a defesa da União Soviética! A expressão mais cruel dessa posição singularmente idiota pode ser encontrada na edição de verão de 1988 de Spartacist Canada, editado pela mesma camarada Mestres.

      Para ‘expor’ a Tendência Bolchevique (BT), a TL cita a nossa intervenção no fórum de abril passado sobre a Nicarágua como dizendo ‘a questão-chave na Nicarágua hoje, em nosso ponto de vista não é a defesa da União Soviética, essa não é a questão central que está colocada lá hoje, mas sim defesa da Revolução Nicaraguense’. É difícil entender como qualquer trotskista poderia discordar desta afirmação duas semanas após a assinatura dos acordos de Sapoa, onde os sandinistas prometeram ‘democratizar’, de acordo com os ditames dos senhores neocoloniais da América Central e os contras mercenários de Washington. Mas para a TL esta observação simples é evidência de… shachtmanismo! Recordando como Max Shachtman recusou-se a defender a União Soviética em sua guerra com a Finlândia, em 1939, a TL conclui: ‘Para ele, em seguida, como para a BT agora, a defesa da URSS nunca foi ‘a questão central’ e, portanto, nunca será levantada onde ela conta.

      Para expiar os pecados do fundador / líder James Robertson, que trocou os stalinistas pelos shachtmanistas, assim como a Guerra Fria foi ganhando força no final de 1940, os espartaquistas decidiram que defensismo soviético é a ‘questão central’ em todos os momentos e em todos os pontos. Aqueles que não concordam são automaticamente denunciado como socialistas do Departamento de Estado. Esta caricatura da posição trotskista de defesa da União Soviética tem uma vantagem. É fácil de ensinar aos novos recrutas. Mas se a política revolucionária fosse tão simples um papagaio moderadamente inteligente poderia aprender a fórmula em questão de semanas.”

      – TL sobre a questão russa: desorientada e confusa, 17 de setembro de 1988.

      Na França, o grupo Lutte Ouvriere foi denunciado pelos slogans que levantou sobre o ataque dos EUA contra a Líbia nos seguintes termos: “Pela primeira vez na memória, LO marchou à frente de uma demonstração com uma bandeira que diz ‘O terrorismo das grandes potências não é menos criminoso só porque ele é feito em grande escala’ e outra que dizia ‘Contra o terrorismo de onde quer que ele venha, contrapor a unidade de todos os oprimidos do mundo’. Ao fazer isso, LO aceitou e fez a sua própria propaganda imperialista projetada para chicotear junto com a histeria belicista contra a URSS através de um de seus clientes militares, a Líbia. Outra bandeira explicou que LO se opõe à incursão assassina de Reagan em Tripoli e Benghazi porque ‘Reagan não está tentando derrubar ditadores, ele quer aterrorizar as pessoas’. Para a Casa Branca, ‘ditadores’ são todos aqueles que são amigáveis com a URSS …”. – LO e Líbia: o fedor do medo, reimpresso em Lutte Ouvriere e Spark: obrerismo e estreiteza ncional.

      Em outra parte do Oriente Médio, a SL tentou cobrir seu abandono do apoio militar para aqueles que lutam contra os fuzileiros navais norte-americanos ocupando seu país perguntando cinicamente “Onde está o lado justo e anti-imperialista no Líbano hoje?” E, em seguida, explicando a condições onde eles tomariam um lado: “Se os EUA fossem à guerra contra a Síria, uma reavaliação completa seria indicada, até porque tal guerra poderia se tornar um episódio do conflito EUA x URSS, em que os marxistas defenderiam o lado soviético.” – O marxismo e sede de sangue, Workers Vanguard nº 345, 06 de janeiro de 1984.

      Na Austrália, uma crise ocorreu sobre a confusão e falta de entusiasmo no grupo sobre o slogan “A defesa da URSS começa em Alice Springs”, que terminou com seis em cada sete membros australianos do Comitê Central sendo expulsos do grupo pela iniciativa zinovievista do centro de Nova York. Isso foi sobre levantar este como o slogan central em um protesto contra o Apartheid sulafricano.

      Talvez o mais ridículo tenha sido a campanha da filial britânica de Jim Robertson, na Escócia, em torno de slogans “sugestivos”, tais como “Por uma república operária escocesa como parte da URSS!” e “Transformar [o lago] Holly Loch em uma marina para os U-boat soviéticos!” (Workers Hammer n. 196, primavera de 2006). Isso expressa o caráter centrado na Rússia da stalinofilia, já que slogans semelhantes não foram levantadas chamando para a incorporação da Escócia à República Popular da China, à Alemanha Oriental etc.”

      [5] Uma edição especial de Spartacist dedicada a analisar a implosão da organização de Gerry Healy atribuiu retroativamente como causa da degeneração desse grupo a sua “falha” em colocar defesa da URSS no centro de cada questão (da Revolução Cultural chinesa, à Revolução Iraniana de 1979, à Guerra Irã-Iraque). Em uma entrevista com Jim Robertson acerca da ruptura da Liga Espartaquista com o Comitê Internacional, ele explica o seguinte:

      Acontece que nós temos uma profunda diferença com o WRP sobre a política. Sua defesa nominal da União Soviética é a um nível tal de abstração que, em qualquer questão concreta, eles por várias décadas tem sido contra a União Soviética, em qualquer coisa que você possa nomear. Incluindo, curiosamente, até o apoio à Revolução Cultural, que foi virulentamente antissoviética. E eles aplaudiram a execução dos comunistas no Iraque. Aí eles tiveram que se livrar da sua ligação com o Ba’ath no Iraque, a fim de apoiar o aiatolá, porque o Irã e o Iraque estavam em guerra. E posso salientar que apoiar o aiatolá também é ser antirrusso. E eles apoiam o Solidariedade, que quer uma contrarrevolução sangrenta para fazer a Polônia segura para a OTAN. Irã, Polônia, China, Afeganistão – apoiam todos os inimigos da União Soviética no perímetro da União Soviética. E isso é chamado de ‘defesa da União Soviética’!

      Então nós temos algumas coisas a dizer agora, porque nós fomos durante todo o tempo as pessoas de princípios. E gostaria de sugerir que a principal razão não é alguma moralidade do tipo americanos versus ingleses, mas que durante um longo período de tempo, por meio de muitas lutas, por meio de uma tendência após a outra, permanecemos concretamente pela defesa da União Soviética, contra o imperialismo e contra a maldita burocracia russa. Isso tem sido de fato a nossa bússola política, e também gera uma certa superestrutura cultural e uma certa moralidade.”

      – Sobre a ruptura de 1966. Spartacist n. 36-37, versão de 1985-1986.

      Isso foi reiterado no parágrafo final do artigo principal: “A moral para os marxistas está inseparavelmente ligada ao programa. A adesão inabalável dos espartaquistas ao trotskismo revolucionário – nossa defesa genuína, concreta da União Soviética contra o imperialismo e contra a burocracia stalinista traiçoeira, o nosso compromisso para a construção de um partido internacional da revolução proletária – esta tem sido a nossa bússola política. Disso também vem uma certa superestrutura, uma certa moralidade”. – Healyismo implode.

      [6] “No entanto, ficou claro que as frustrações e antagonismos que haviam desenvolvido para com os responsáveis por tais violações organizativas e pelo giro político mais amplo que levou ao racha do PS tinham sido desviados em uma falsa luta: uma tentativa de encontrar um desvio fundamental no partido sobre a natureza do stalinismo. Foi necessário um esforço considerável para demonstrar que não houve diferenças programáticas fundamentais sobre esta questão e colocar a conferência de volta no caminho certo para lidar com os problemas reais que a ICL enfrenta. – Quarta Conferência Internacional de ICL, primavera de 2003: A luta pela continuidade revolucionária no mundo pós-soviético. Spartacist n. 58, primavera de 2004.

      [7] “Lendo os relatos de tirar o fôlego do IG sobre os eventos bolivianos (reunidos em seu site sob o título grandiloquente de “Bolívia: batalhas de classe nos Andes”), seria impossível saber que nada havia mudado no mundo ao longo dos últimos 20 anos, seja na Bolívia ou em outro lugar. O IG nega a magnitude da destruição contrarrevolucionária da União Soviética e do retrocesso da consciência proletária mundial que acompanhou esta derrota.” – Bolívia: trotskismo vs. Nacionalismo burguês. Workers Vanguard n. 14, abril de 2006.

      [8] “Falando de uma série de tais casos de retirada sectária nos anos seguintes a destruição da União Soviética, um camarada observou há algum tempo que o partido vinha ‘se retirando de um novo mundo alienígena, se protegendo em nosso castelo, levantando a nossa ponte levadiça e se escondendo’.” – Quinta Conferência Internacional da ICL. Mantendo um programa revolucionário no período pós-soviético. Spartacist n. 60, outono de 2007.

      O Planeta sem Visto

      O Planeta Sem Visto

      Por Leon Trotsky. Trecho do Capítulo 45 de sua autobiografia, Minha Vida (1930). Traduzido do espanhol pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2016, a partir da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/mylife/ch45.htm.

      Confesso que meu apelo às democracias europeias, nessa busca pelo direito de asilo, me valeu de passagem muitos momentos de graça. Às vezes, me parecia que estava assistindo à encenação de uma espécie de comédia “pan-europeia” em um ato, intitulada “Os princípios da democracia”. Uma comédia que podia ter sido escrita por Bernard Shaw [dramaturgo satírico], caso se adicionasse a esse líquido “fabiano” que corre em suas veias uma boa dose do sangue de Jonathan Swift [romancista satírico, autor de As Viagens de Guilliver]. Mas, qualquer que fosse seu autor, não se pode negar que a comédia, cujo subtítulo poderia ser “Europa sem visto”, tinha muito de instrutiva. E não falemos dos Estados Unidos! Os Estados Unidos não só tem o privilégio de ser o país mais forte do mundo, mas também o mais temeroso. Não faz muito tempo que [o presidente dos EUA Herbert] Hoover explicou a sua paixão pela pesca, ressaltando o caráter democrático desse esporte. Se é assim – e eu duvido que o seja – a pesca é uma das poucas relíquias da democracia que ainda restam nos Estados Unidos. O direito de asilo já faz tempo que os ianques tem removido de seus códigos legais. De modo que o subtítulo pode ser ampliado: “Europa e América sem visto”. E como estes dois continentes regem o resto do mundo, a conclusão é indiscutível: “O planeta sem visto”.

      Por vários lados me explicaram que minha descrença na democracia é meu maior pecado. Quantos artigos e até mesmo livros foram escritos sobre isso! Mas quando eu peço para receber uma breve aula prática de democracia, não há voluntários. Não há um único país em todo o planeta que se disponha a estampar um visto em meu passaporte. E querem me convencer que esse outro pleito, imensamente mais importante, que é o pleito entre os proprietários e os que não tem posses, será decidido com a observância estrita das formas e rituais da democracia?

      Mas, vamos aos fatos: a ditadura revolucionária deu os frutos que dela se esperavam? A essa pergunta, que se ouve constantemente, não pode ser respondida a não ser através da análise dos resultados da revolução de outubro, enfocando-se as perspectivas que se abrem ante ela. Uma autobiografia não é, como compreenderão, o lugar mais adequado para levar a cabo esse exame. Procurarei realiza-lo em um livro consagrado especialmente ao problema [A Revolução Traída, 1936], no qual já toquei em meu exílio na Ásia central. Compreendo, não obstante, que não posso finalizar o relato de minha vida sem falar, ainda que em algumas poucas linhas, porque sigo incondicionalmente no caminho em que sempre estive.

      O panorama que se desenvolveu ante os olhos da minha geração – a que agora está entrando nos anos maduros ou declinando rumo à velhice – pode ser descrito esquematicamente como segue: no decorrer de umas décadas – de fins do século XIX ao começo do XX – a população europeia foi submetida à disciplina inexorável da indústria. Todos os aspectos da educação social tiveram que se render ao princípio da produtividade do trabalho. Isso trouxe consigo enormes consequências e parecia abrir uma série de novas possibilidades para o Homem. Na realidade, o que fez foi desencadear uma guerra. É claro que a guerra teve que convencer a humanidade de que ela não estava degenerada, como tanto clamara lamentavelmente a anêmica filosofia, mas, ao contrário, que estava cheia de vida, de forças, de ânimos e de espírito empreendedor. E a guerra serviu também para evidenciar para a humanidade, com uma potência jamais conhecida, o seu enorme poder técnico. Foi como se o Homem, posto diante de um espelho, ensaiasse fazer um corte no pescoço com a navalha de barbear, como forma de se assegurar de que sua garganta estava sã e forte.

      Ao término da guerra de 1914-18, se proclamou que, a partir daquele momento, era dever um dever moral sagrado direcionar todas as energias a estancar aquelas mesmas feridas que, pelo espaço de quatro anos, se defendeu que era um dever moral produzir. O trabalho e a poupança não apenas se veem restaurados em seus antigos direitos, como apoiados pela mão de ferro da racionalização. As assim chamadas “reparações” são levadas à cabo pelas mesmas classes, pelos mesmos partidos e até pelas mesmas pessoas que foram responsáveis pela devastação. E onde se implantou uma mudança de regime político, como na Alemanha, quem conduz o movimento de construção são personagens que na campanha de destruição figuravam em segundo ou terceiro escalão. A isso se reduz toda a mudança, em pureza. Poder-se-ia dizer que a guerra ceifou toda uma geração apenas para que se produzisse um lapso na memória dos povos e para que a nova geração não compreenda de forma muita clara que o que o se está fazendo é, na verdade, ainda que se trate de uma fase historicamente superior e com consequências que serão, portanto, muito mais dolorosas, voltar aos velhos hábitos.

      Na Rússia, a classe trabalhadora, guiada pelos bolcheviques, tentou transformar a vida para ver se era possível evitar que se repetissem periodicamente esses acessos de loucura da humanidade e, ao mesmo tempo, para construir as bases de uma cultura superior. Foi esse o sentido da revolução de outubro. É indubitável que a missão a que se propôs ainda não está cumprida, pois se trata de um problema que, por razão natural, só se pode ver resolvido ao longo de muitos anos. E digo mais: digo que é necessário considerar a revolução russa como o ponto de partida de uma nova história da humanidade em sua totalidade. Ao término da Guerra dos Trinta Anos, foi possível que o movimento alemão em prol da Reforma tivesse todo o aspecto de um tumulto desencadeado por homens fugidos de um manicômio. E de certa forma assim o era, pois a Europa acabara de sair de dos claustros da Idade Média. E, não obstante, como conceber a existência dessa Alemanha moderna, da Inglaterra, dos Estados Unidos e de toda a atual humanidade, sem levar em conta aquele movimento da Reforma, com as inúmeras vítimas que devorou? Se está justificado que haja vítimas – e não sabemos de quem teria que se obter, de fato,  a permissão – nunca está tão justificado como quando as vítimas servem para levar a humanidade a um avanço. E cabe dizer o mesmo da Revolução francesa. O reacionário e pedante Taine imaginava ter descoberto uma grande coisa quando dizia que, alguns anos depois de se ter decapitado Luís XVI, o povo francês vivia mais pobre e menos feliz que sob o Antigo Regime. Feitos como os da grande Revolução francesa não se podem medir pela régua de “alguns anos”.  Sem a Grande Revolução, a França de hoje seria inconcebível e o próprio Taine teria terminado seus dias como o escriba de algum grande senhor do velho regime, ao invés de se dedicar a insultar a revolução à qual deve sua carreira.

      Pois bem: a revolução de outubro deve ser julgada com uma distância histórica maior. Apenas tolos ou pessoas de má fé podem acusa-la de, em doze anos, não ter trazido paz e bem estar para todos. Vista sob o mesmo critério da Reforma ou da Revolução francesa, que representam, em um distância de uns três séculos, duas etapas do caminho da sociedade burguesa, não se pode senão se admirar que um povoado tão atrasado e solitário como a Rússia se tenha conseguido assegurar à massa do povo, doze anos após a sacudida, uma média de vida que, ao menos, não é inferior ao que existia às vésperas da guerra. Apenas isso, por si só, é um milagre. Mas, claro está que não é aí que se deve buscar o sentido e a razão de ser da revolução russa. Estamos diante de uma tentativa de mudança da ordem social. É possível que essa tentativa se modifique e transforme, talvez fundamentalmente. É seguro que deve adotar um caráter totalmente distinto sobre a base da nova técnica. Porém, passarão algumas dezenas de anos, passarão alguns séculos, e a ordem social que rege olhará para a revolução de outubro tal qual hoje o regime burguês faz com a Revolução francesa e a Reforma. E isso é tão claro, tão evidente, tão indiscutível, que até os professores de História o compreenderão; ainda que apenas depois de uns tantos anos.

      “Bem, e sobre tudo ocorreu à sua pessoa nesse processo, o que me dizes?” Já quase consigo ouvir essa pergunta, na qual a ironia se mescla com a curiosidade. Não há muito mais o que dizer sobre ela do que aquilo que eu já disse ao longo desse livro. Não entendo essa lógica de medir um processo histórico com a régua das vicissitudes individuais de uma pessoa. Meu sistema é o inverso: não só penso objetivamente o destino pessoal que me coube, como também, ainda que subjetivamente, não sou capaz de vive-lo se não for de forma indissociável dos caminhos da evolução social.

      Quantas vezes, desde a minha expulsão [da URSS], tive que ouvir os jornais falarem e discorrerem sobre minha “tragédia”! Não reconheço nenhuma tragédia pessoal. O que há, simplesmente, é uma mudança de capítulo na revolução. Um jornal norte-americano publicou um artigo meu, acompanhando-o da engenhosa observação de que o autor, apesar de todos os reveses sofridos, não havia perdido – como o artigo demonstrava – o equilíbrio da razão. Não posso senão me assombrar com essa tentativa filisteia de estabelecer uma relação entre a clareza de juízo e ter um cargo no governo, entre o equilíbrio moral e as circunstancias da atualidade. Jamais conheci semelhante relação de causalidade. No cárcere, com um livro à minha frente ou uma pena na mão, vivi momentos de prazer tão radiantes como os que pude desfrutar naquelas reuniões das massas durante a revolução. E quanto à mecânica do poder, me pareceu sempre mais como um encargo inevitável do que uma satisfação espiritual. Mas sobre isso talvez seja melhor ouvirmos algumas palavras já ditas por outros. No dia 26 de janeiro de 1917, Rosa Luxemburgo escreveu na prisão a uma amiga, dizendo:

      “Isso de se entregar por completo às misérias de cada dia que passa é para mim algo inconcebível e intolerável. Veja, por exemplo, a fria serenidade com a qual se elevava Goethe por sobre as coisas. E, não obstante, não acreditava que não havia de passar por amargas experiências. Pense naquilo que ele viveu: a grande Revolução francesa, que, vista de perto, certamente tinha o aspecto de uma força sangrenta e sem nenhum objetivo e, logo após, uma sucessão de guerras que vão de 1793 a 1815… Não te peço que escreva poesias como Goethe, mas sua forma de abraçar a vida – aquele universalismo de interesses, aquela harmonia interior – está ao alcance de qualquer um, ainda que seja apenas como aspiração. E se me disser, por acaso, que Goethe podia ser assim porque não era um lutador politico, te responderei que precisamente um lutador é quem mais tem que se esforçar em ver as coisas desde acima, caso não queira cair de bruços a cada passo contra todas as pequenices e misérias… sempre e quando, naturalmente, que se trate de um lutador de verdade…”

      Que palavras magníficas! As li pela primeira vez não fazem muitos dias e elas me fizeram ter ainda mais afeto e carinho pela figura de Rosa Luxemburgo do que antes.

      No que diz respeito a doutrinas, caráter ou ideologia, não há em Proudhon – essa espécie de Robinson Crusoé do socialismo – nada com o que eu simpatize. Mas Proudhon era, por natureza, um lutador; era, intelectualmente, generoso; sentia um grande desdém pela opinião pública oficial e nele ardia uma chama inextinguível do desejo agudo e universal pelo saber. Isso o permitia estar por cima dos vaivéns da vida pessoal e por cima da realidade que o cercava. No dia 26 de abril de 1852, Proudhon escreveu na prisão a um amigo:

      “O movimento, sem dúvidas, não é normal e nem sege uma linha reta; mas a tendência se mantém constante. Tudo o que é feito pela revolução é algo que não pode mais ser desenraizado; o que se tenta contra ela passa direto como uma nuvem. Eu gosto de ver esse espetáculo, do qual entendo cada figura; assisto a essa evolução da vida no universo como se desde o alto descendesse sobre mim sua explicação; o que a outros destrói, a mim eleva mais e mais, me inspira e me fortalece. Como, então, você quer que eu acuse o destino, que eu reclame das pessoas e as acuse? Eu rio do destino. E quanto aos homens, são por demais ignorantes, por demais escravizados, para que eu me irrite com eles.”

      Ainda que essas palavras certamente tenham uma eloquência eclesiástica, são belas palavras. Eu assino embaixo delas.

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