Venezuela em chamas

A crise do chavismo, a oposição direitista-imperialista e a necessidade de uma saída socialista revolucionária

Foto: El País

Por Marcio Torres, julho-agosto de 2017.

Durante a última década, a Venezuela atraiu a atenção – e a admiração – de parte significativa da esquerda, que se empolgou com a retórica socialista de Hugo Chávez e com seu projeto “bolivariano” de transformação do país, que despertou a fúria de setores da burguesia nativa e do imperialismo estadunidense. Desde a morte de Chávez, em março de 2013, e a eleição de seu então vice para o cargo de presidente, em abril seguinte, o país tem passado por uma deterioração econômica e uma crescente crise política, que no presente ano assumiu ares explosivos. O que foi o chavismo e o que realmente almejava o projeto bolivariano? A Venezuela está em transição para um “socialismo do século XXI”? O que se passa nesse momento e como tem reagido a esquerda socialista? Essas são algumas das questões que pretendemos abordar a seguir.

Do caracazo ao chavismo

A história do chavismo começa com o colapso do regime conhecido como democracia puntofijista, através da ação insurrecional das massas populares e de intensa agitação proletária, ao final dos anos 1980 e começo dos 1990. Como descreve o historiador Manuel Caballero (La crisis de la Venezuela contemporânea, Caracas, Monte Ávila, 1999), a chamada democracia puntofijista, ou IV República, foi um regime instaurado em 1958, após anos de governos encabeçados por militares nacionalistas – os quais, à altura das eleições de 1958, já se encontravam completamente no bolso das petrolíferas imperialistas. Ela foi fruto de um acordo firmado entre a União Republicana Democrática, o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei) e a Ação Democrática (AD), para composição de um governo unitário independentemente de qual vencesse as eleições daquele ano – o “Pacto de Punto Fijo”. Ao longo das décadas seguintes, o regime nascido desse pacto assumiu a forma de alternância de poder entre a AD e a Copei, o que ficou conhecido como “sistema dos dois partidos”, ou two parties system. Além da alternância AD-Copei, esse regime se sustentava no controle pela AD da Confederação dos Trabalhadores da Venezuela, na existência de cargos vitalícios no parlamento e no voto censitário, além do apoio das forças armadas (“união cívico-militar”).

Mas o fator mais importante que manteve esse regime de pé foi a adoção de uma política de redistribuição de renda por parte do Estado, utilizando a renda petroleira, arrecada através de uma política conhecida como “regime público proprietário”, no qual o subsolo do país e suas riquezas naturais se tornaram de propriedade pública e sua exploração gerava suntuosa arrecadação na forma de impostos e tributos das empresas petrolíferas imperialistas (principalmente dos EUA) atuando no país.

Com o boom do petróleo em meados dos anos 1970, o governo, encabeçado por Carlos Andrés Pérez (AD) chegou a criar uma empresa estatal para participar diretamente da exploração do solo, a PDVSA. Todavia, na década seguinte, com a queda dos preços do petróleo e o giro neoliberal internacional, o Estado venezuelano viu sua arrecadação cair consideravelmente, e o sucessor de Pérez deu início a uma política batizada de “abertura petroleira”, que significava dar autonomia à PDVSA para que ela funcionasse cada vez mais como uma empresa privada. Tendo assumido em 1989 para um segundo mandato, Pérez aprofundou essa política, através do que chamou de “internacionalização petroleira”, que basicamente significava privatizar a PDVSA, entregando-a a petrolíferas imperialistas. Ao mesmo tempo, apesar de ter sido eleito prometendo suspender as políticas de austeridade de seu antecessor, Pérez assinou novos acordos com o FMI e o Banco Mundial, para empréstimos que teriam como contraparte arrochos sobre os trabalhadores e os programas redistributivos.

Em 27 de fevereiro, a raiva popular contra essas medidas assumiu forma insurrecional, após um aumento no preço dos transportes públicos, decorrente de um reajuste do preço da gasolina. Caracas rapidamente virou um campo de batalha, com massas populares tomando as ruas para queimar ônibus, realizar saques de alimentos e montar barricadas por todos os lados. A revolta popular, que ficou conhecida como caracazo, se espalhou para outras cidades e durou até 8 de março, transformando-se em uma insurreição de âmbito nacional. Acuado, Pérez reagiu decretando estado de sítio e pondo o exército nas ruas com ordem de suprimir violentamente o levante. Até hoje se debate o número de mortes causado pela ação exército, mas estima-se que tenha sido em torno de monstruosos 5 mil. Ainda assim, apesar da brutal repressão, foram muitos os casos de fissuras na oficialidade e de confraternização entre soldados e a população insurreta.

Nesse contexto ocorreram duas tentativas de golpe contra Pérez, em 1992. A primeira foi realizada por parte de um setor das forças armadas, o Movimento Revolucionário Bolivariano 200 (MRB-200), liderado pelo então tenente-coronel Hugo Chávez, e composto por oficiais nacionalistas, descontentes com as políticas de violação da soberania nacional que vinham sendo adotadas sob as gestões neoliberais e, principalmente, com o uso do exército contra os civis insurretos durante o caracazo. Apesar do golpe ter fracassado, em grande parte por não ter tido ligação com quaisquer setores civis (os partidos burgueses cerraram fileira em defesa de Pérez), Chávez realizou um pronunciamento na televisão antes de se render, que o projetou como a principal figura de oposição às impopulares políticas neoliberais. Outro golpe foi tentado em novembro, dessa vez por oficiais da aeronáutica que mantiveram contato com Chávez, mas também fracassou, ainda que tenha mobilizado mais militares e demandado mais vigor do governo e seus aliados para ser debelado.

Por mais que tenha permanecido no governo após o caracazo e os golpes de 1992, Pérez teve que lidar com uma onda grevista até então jamais vista no país, de forma que ficou insustentável para a burguesia mantê-lo no poder e ele acabou removido da presidência em março de 1993 pela Corte Suprema, sob alegações de corrupção (que geraram uma forte onda de protestos). Como aponta Caballero, porém, a situação política era tão instável que, se o governo interino de Ramón Velásquez, que se seguiu à remoção de Pérez, não foi derrubado, foi porque não havia unidade entre os vários conspiradores potenciais, o que levou à convocação de novas eleições ainda naquele ano.

As eleições de 1993 foram o começo do fim da democracia puntofijista, pois, apesar do vitorioso Rafael Caldera ser um dos quadros fundadores da Copei, ele se elegera através da recém-fundada dissidência dela, Convergência, rompendo com a lógica do “sistema dos dois partidos”. Ademais, aquelas eleições tiveram uma porcentagem até então inédita de abstenção, mostrando a desconfiança da população votante ante o regime carcomido. A gestão de Caldeira, mesmo se apresentando como algo “novo”, não foi capaz de trazer estabilidade ao país, pois ele deu prosseguimento e até mesmo aprofundou as políticas neoliberais de austeridade das gestões anteriores, como quando conferiu suntuoso aporte governamental ao sistema bancário, sob o pretexto de impedir sua falência. Uma nova grande onda de insatisfação popular emergiu em todo o país, expressando-se em massivos protestos de rua (uma média de mais de 2 por dia até 2005) e numerosas greves.

Como ressalta o historiador Danilo Caruso (Decifrando a Revolução Bolivariana. Estado e luta de classes na Venezuela contemporânea, Tese de Doutorado em História, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2017), o fim da democracia puntofijista está diretamente ligado a uma verdadeira crise de hegemonia burguesa, aberta com o caracazo, e que impediu a burguesia nativa e imperialista de estabelecer um governo estável e encaminhar seus projetos de austeridade e privatização da PDVSA ao longo dos anos seguintes. Além da insurreição de 1989 e das referidas onda de greves e protestos que tiveram lugar ao longo dos anos 1989-2002, também nesse período espalharam-se pela Venezuela diversos organismos populares de gestão, especialmente nos bairros mais pobres e favelas das grandes cidades, os quais cuidavam de questões que o Estado burguês nunca resolveu nessas regiões, como distribuição de água, saneamento básico etc. Efetivamente, o poder escorregava por entre os dedos da burguesia e abria-se uma crise revolucionária, na qual havia uma possibilidade palpável da classe trabalhadora emergir como uma alternativa de poder.

É nesse quadro que ocorreu a anistia concedida por Caldera aos membros do MBR-200, em 1994, e também a realização de uma reforma trabalhista por parte de Pérez, na sequência do caracazo, em 1990, que resultou em uma série de conquistas para os trabalhadores, como redução da jornada de trabalho, aumento dos pagamentos por hora extra, adicional noturno e participação nos lucros, ampliação do direito de férias e proibição dos acordos coletivos. Conquistas essas arrancadas à burguesia pelas intensas mobilizações proletárias, ainda que a central patronal, Fedecámaras, tenha atuado no sentido de tornar parte da nova legislação mera formalidade, ao não ser regulamentada para aplicação, e a burocracia dirigente da CTV, ligada à AD, ter mantido uma postura passiva ante essa manobra. E é também nesse quadro que se deve entender o projeto bolivariano, especialmente sua posterior transmutação em “socialismo do século XXI”.

Bolivarianismo e socialismo do século XXI

Anistiado em 1994, Chávez transformou o MBR-200 em partido em 1997, após alguns anos de discussão interna sobre se valia a pena ou não participar no jogo de cartas marcadas da democracia puntofijista. Ele conseguiu se eleger presidente no ano seguinte, pelo recém-fundado Movimento V República (MVR), obtendo 56% dos votos, através da coligação “Polo Patriótico”. Apesar da pouca margem de vantagem, Chávez teve como primeira medida relevante a convocação de uma Assembleia Constituinte, que recebeu apoio de mais de 80% da população no plebiscito que a convocou e na qual o Polo Patriótico conquistou 121 dos 131 assentos. Dessa forma, teve fim a chamada IV República e começou um novo ciclo político na Venezuela.

Segundo Caruso, o MRB-200 se apresentava como herdeiro de uma mescla de referências do passado político venezuelano e latino-americano. Reivindicando as ideias de Simón Bolívar, o grupo almejava uma Venezuela soberana, sem a constante interferência dos interesses das petrolíferas imperialistas na vida política e econômica do país, as quais controlavam o principal recurso natural venezuelano e corrompiam qualquer um que estivesse no poder, como forma de garantir a manutenção do status quo. Em vez da submissão a esses interesses, o MBR-200 defendia um “desenvolvimento endógeno”, que resgatasse o domínio estatal sobre o petróleo e utilizasse os recursos da renda petroleira para diversificar a economia nativa – algo que muitas vezes foi descrito como “nacionalismo petroleiro”. A isso se somava também as ideias de Bolívar sobre democracia participativa (“protagônica”), no sentido de haver canais de participação direta da população na gestão do país e de seus recursos. Essas propostas o MBR-200 apresentava como parte de uma “revolução política”, que fundaria uma nova, V, República – algo bastante apelativo, num país que, apenas em 1958 conheceu uma experiência democrático-burguesa que não fosse diretamente tutelada pelas forças armadas e que, ainda assim, era bastante restrita e altamente blindada às massas populares.

Apesar desse nacionalismo pró-democracia participativa claramente não transcender o terreno do capitalismo e dos interesses burgueses, ao não pautar a questão da propriedade privada dos meios de produção, a situação econômica da Venezuela, altamente centrada na exploração e exportação de petróleo, tornava essas propostas em parte incompatíveis com poderosos setores da burguesia nativa e imperialista. Conforme destaca Gilberto Maringoni (“Venezuela, Turbulência de uma Economia Petroleira”, em Marcela Quinteiros e Luiz Moreira, As Revoluções na América Latina Contemporânea, Maringá, UEM/PGH-História, 2016), a exportação de petróleo é responsável por mais de 90% do PIB venezuelano – porcentagem que aumentou durante a gestão Chávez.

Essa profunda dependência da economia venezuelana na exportação de commodities, em particular o petróleo, Maringoni, tal qual outros analistas, caracteriza como “doença holandesa”, em comparação com a situação que passou a Holanda na década de 1960, após a descoberta de massivas reservas de gás natural. A “doença holandesa” consiste em, ao mesmo tempo em que os rendimentos internos crescem a ponto de produzir suntuosos superávits e dar margem, assim, a políticas sociais e a ações redistributivos que utilizem o fundo público, a dependência na exportação de um único tipo de produto e seus derivados faz com que haja enorme pressão dos capitais ligados a tais setores para que a moeda nacional se valorize em relação ao dólar, de forma que a exportação de produtos industrializados é prejudicada, bem como a própria indústria local, dada a possibilidade de importar bens de consumo a preços baixos.

Em outras palavras, na Venezuela, o Estado é o intermediário entre o capital estrangeiro petrolífero e as reservas naturais do país, além de intermediário (via as políticas de redistribuição da renda petroleira) da burguesia nativa. Logo, alterar as estruturas decisórias do Estado colocava o MBR-200 / MVR em rota de colisão com esses setores. Pois mexer nos mecanismos de controle da política e almejar alterar a política econômica significava tocar no âmago da reprodução capitalista venezuelana, centrada, da parte da burguesia nativa, nas disputas em torno do uso da renda petroleira captada pelo Estado e, da parte da burguesia imperialista, no acesso às reservas petrolíferas.

Ainda assim, a burguesia não reagiu de imediato quando da promulgação da “Constituição Bolivariana”, com seus vários mecanismos de democracia participativa e retórica soberanista e pró igualdade social. No primeiro momento, repetindo a tática usada na reforma trabalhista, atuou no sentido de garantir que a maioria das novas leis seguisse sem regulamentação e, portanto, não passasse de letra morta. Essa postura mais “passiva” se explica em parte pela continuação da forte mobilização social no país, com setores expressivos do movimento operário demandando a realização de uma “constituinte trabalhista”, para rever a estrutura sindical do país – e ocupando, ao final de 2001 e início de 2002, as sedes da central sindical CTV para impor essa revisão – e setores estudantis ocupando universidades, na mesma época, em defesa da realização de uma “constituinte estudantil”, para rever o sistema de educação. Nisso a burguesia foi ajudada por setores do próprio Polo Patriótico, ligados à administração estatal e temerosos de perderem seu quinhão caso as leis de democracia participativa passassem a valer de verdade.

Mas, da parte de Chávez, também não houve uma postura de enfrentamento com a burguesia. Ao contrário, conforme aponta Caruso, sua resposta a essas mobilizações operárias e estudantis foi de buscar esvaziá-las, e não de atender suas demandas, sinalizando às classes dominantes disposição em reconstruir a ordem burguesa no país. Ademais, nessa época o governo também deu continuidade a uma série de medidas neoliberais, inclusive mantendo tecnocratas das gestões anteriores em postos-chave do governo. Mas isso mudou ao fim de 2001, quando Chávez usou um mecanismo da nova constituição (“leis habiltiantes”) para aprovar uma série de decretos sem o respaldo da maioria do legislativo. Decretos esses – em especial o de terras, de pesca e de hidrocarbonetos – que tocaram em interesses de parte da burguesia ao realizarem concessões ao proletariado e aos camponeses, e que foram o estopim pra uma tentativa de golpe, no início do ano seguinte. Tentativa essa que já vinha sendo gestada por setores burgueses com amplo financiamento dos EUA desde que Chávez assumira, em 1998 e que foi encabeçado pela Fedecámaras, a central patronal venezuelana.

Encarando que o governo Chávez representava algo novo e positivo, as massas saíram às ruas em sua defesa, e a maior parte do aparato militar cerrou fileiras com os que demandavam a restituição do presidente. Quando isso ocorreu, todavia, Chávez chamou os golpistas para “dialogar” e, vendo nisso um sinal de fraqueza, a Fedecámaras lançou um locaute que durou de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003 e levou o país à beira do colapso. A classe trabalhadora reagiu de forma vigorosa, ocupando várias empresas e as colocando de volta em funcionamento, sob gestão operária, demandando de Chávez que as estatizasse. Nesse mesmo período ocorreram ocupações de terras por parte de movimentos agrários, para redistribuição das propriedades. Esses eventos levaram Chávez a uma guinada à esquerda. Até então, seu governo pouco apresentara de novo para além de retórica e de leis que não foram postas em prática, espremido como estava entre a intransigência burguesa e a contínua mobilização proletária, além de tendo que lidar com as várias pressões dos setores fisiológicos do Polo Patriótico, que discordavam da ideia de democracia participativa por ver nela uma ameaça a seu parasitismo no Estado. Com o golpe e o “paro patronal”, todavia, ele passou a apostar suas fichas nas massas populares que saíram em sua defesa.

A partir desse momento, Chávez realizou uma série de concessões às demandas das massas populares e passou a dedicar uma parcela crescente da renda petroleira a programas redistributivos, as chamadas “missões”. Ao mesmo tempo, construiu redes de base para seu MVR (batalhões eleitorais, “círculos bolivarianos” etc.), através das quais passou a tutelar cada vez mais os órgãos de mobilização populares e proletários surgidos a partir de 1989, esvaziando-os preventivamente ou mesmo os reprimindo quando ameaçavam extrapolar o controle estatal exercido por intermédio dessa rede. Dessa forma, diminuiu sua dependência nos setores fisiológicos do Polo Patriótico e construiu novas bases de sustentação para seu governo, ao mesmo tempo em que foi reconstruindo certa estabilidade política no país. Exemplar desse caminho é o fato de que poucas das empresas ocupadas durante o “paro patronal” foram de fato estatizadas, como demandaram os trabalhadores, e foi introduzida nelas a “cogestão”, como forma de permitir aos proprietários retomarem o controle, ao menos parcialmente, através de comitês de gestão de empresa nos quais tinham lugar representantes da burguesia, do Estado e dos trabalhadores.

Ao longo dos anos seguintes, Chávez construiu um regime claramente bonapartista, no qual o executivo tinha um papel enorme na vida política do país e a máquina estatal foi utilizada para reconstruir uma hegemonia burguesa, coordenando desde acima esforços para que frações da burguesia e da classe trabalhadora passassem a integrar um novo consenso, como através da construção, em 2004, de uma nova central sindical, encabeçada pela fração dirigida por Nicolás Maduro, do MVR, no interior da CTV, de forma que rapidamente a antiga entidade e sua burocracia ligada à AD se viu isolada. Ou através da criação de uma nova central patronal pró-governo, que com o tempo conseguiu isolar a Fedecámaras.

Em 2006, ao assumir seu segundo mandato, o projeto de Chávez de construção de uma nova ordem assumiu outros ares, como o anúncio do “socialismo do século XXI” como orientação oficial do governo e a transformação do Polo Patriótico no PSUV (realizada de forma bastante centralizada desde o topo pela direção do MVR, cabe ressaltar). Anunciado em janeiro de 2005, no 5º Fórum Social Mundial, o projeto do “socialismo do século XXI” constituía em uma forte retórica anticapitalista, que apontava esse sistema como insustentável e necessário de ser superado. Tal superação se daria por uma via gradual, através da redução da desigualdade através do uso da renda petroleira para redistribuição de renda e programas sociais, e também da construção de uma “economia social” que, ao longo do tempo, “engolisse” a economia estatal e a privada. Essa “economia social” consistiria basicamente em um estímulo ao cooperativismo, algo que o governo já vinha fazendo desde seus primeiros momentos, como parte de uma política de combate ao desemprego e diversificação da economia nativa (“desenvolvimento endógeno”). Mas, a partir de 2006, passou a integrar esse projeto de suposta superação gradual do capitalismo e a receber muito mais incentivo governamental, na forma de financiamento e cursos de formação, além da questão da autogestão passar a assumir lugar central na retórica, junto a um ideal de “desenvolvimento sustentável”. O plano então passou a ser criar redes de cooperativas que se tornassem autossuficientes e crescessem para além do âmbito local. Todavia, a maior parte das cooperativas criadas a partir de 2006 ou se tornaram empresas privadas, ou não conseguiram superar a dependência das verbas federais.

A esse aspecto econômico do “socialismo do século XXI” se somava um político, de passagem gradual do poder das instâncias representativas para as participativas, o que à altura assumiu a forma dos Conselhos Comunais. Esses órgãos unificaram vários organismos populares preexistentes, atrelando-os ao Estado, através do financiamento do executivo federal para projetos de instalação de escolas, saneamento, postos de saúde etc. Mas os Conselhos acabaram perdendo força após solucionarem as questões mais básicas, de forma que, em 2007, Chávez lançou a proposta de transformá-los em Comunas, que unificariam ainda mais organismos (como os Conselhos Comunais e as redes de cooperativas) e teriam poder de legislar e executar, passando por cima dos legislativos e executivos locais, que deveriam reconhecer seus atos – algo que foi oficializado naquele ano por uma nova constituição. As Comunas foram apresentadas como parte de um projeto ambicioso de criar um Estado Comuna, no qual o povo governaria de forma direta. De fato, como conclui Caruso, através delas houve uma descentralização do poder a nível regional, mas, ressalta tal historiador, sua dependência financeira no executivo federal levou a uma centralização nessa esfera e sua incorporação ao Estado burguês, de forma que não viraram um poder alternativo, como apregoava a retórica bolivariana. Inclusive porque em seu interior rapidamente se desenvolveu uma burocracia conservadora, frequentemente ligada ao PSUV, que era favorecida pelo governo em termos de verbas e apoio, em detrimento daqueles elementos mais contestadores e combativos. Tratou-se, assim, em grande parte de um aprofundamento da “domesticação” dos frutos da revolta proletária dos anos 1980-90.

Mas essas contraditórias políticas “à esquerda” não foram a única face do bolivarianismo a partir de 2006. Nesse mesmo período, o governo deu início à política de “empresas mistas” na área petroleira, o que significava que as petrolíferas estrangeiras não mais atuariam como “prestadoras de serviço” para a PDVSA, mas passariam a ser sócias minoritárias em subsidiárias por ela controladas. De acordo com a análise da cientista social Mariana Lopes (Imperialismo e bloco no poder na Venezuela. Ambiguidades do bolivarianismo de Chávez, em Lutas & Resistências, Londrina, n.2, 1º sem. 2007), isso foi uma forma de dar continuidade às políticas neoliberais para o setor petrolífero, uma vez que o Estado assumia todo o risco das operações das subsidiárias, através da PDVSA, mas as empresas imperialistas participam da divisão dos lucros. Foi isso que realmente ocorreu com as “renacionalizações” realizadas em 2007 na região de Orinoco, onde as petrolíferas imperialistas venderam sua parte ao Estado e passaram a atuar como sócias da PDVSA.

Ademais, conforme a análise de Luis Lander e Margarita Lopez-Maya (Novedades y continuidades de la protesta popular en Venezuela, em Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, Caracas, vol. 12 , n. 1), não houve uma ruptura sob Chávez em relação à política “rentista” anterior, no sentido de utilizá-la para diversificar a economia e encerrar a dependência na renda petroleira, por mais que isso fosse um objetivo constantemente reforçado pelo governo. Manuel Sutherland (El capitalismo rentístico, análisis empírico de la renta petrolera y el “intento” de construcción del socialismo del siglo XXI en medio de la crisis del sistema capitalista, Caracas Alem, 2012) aponta, nesse sentido, como que as importações ultrapassaram em mais do que o dobro as exportações entre 2003-2012, configurando uma “disputa redistributiva” que significou a captura da maior parte da renda petroleira por parte da burguesia nativa, sem incremento na produção.

Daí é possível compreender a lua de mel que Chávez conseguiu estabelecer com os capitalistas nativos e imperialistas entre 2006 e 2012, apesar de toda a retórica “socialista” e de uma série de concessões bastante palpáveis à classe trabalhadora, especialmente na forma de políticas de redistribuição de renda, que tiraram uma gigantesca massa da miséria. Apoiando-se num aparato executivo superpoderoso e em um partido hipercentralizado, ele foi capaz de controlar a fúria popular e integrá-la à institucionalidade burguesa mediante promessas de uma transição gradual ao socialismo, reconstruindo uma hegemonia burguesa num país que passou quase uma década em convulsão (não raro recorrendo à repressão policial de seus opositores no movimento operário), ao mesmo tempo em que elevou o lucro de setores capitalistas e criou novas redes patronais como forma a garantir sua fidelidade. Não à toa, após o fracasso do golpe de 2002, as subsequentes ofensivas da oposição burguesa se mostraram bastante isoladas, tanto no âmbito parlamentar, quanto nas ruas.

Ao longo de seu governo, foram muitas as organizações que se reivindicam socialistas revolucionárias que se entusiasmaram com o bolivarianismo e o “socialismo do século XXI”, aceitando a “via chavista” para o socialismo como válida, ou vendo no chavismo algum tipo de ponto de apoio para uma revolução futura. Isso se expressou inclusive entre muitas organizações trotskistas. Talvez o caso mais notório seja o da Tendência Marxista Internacional (IMT, no Brasil a Esquerda Marxista), cujo líder, Alan Woods, atuou como “conselheiro político” de Chávez por muitos anos, apostando que ele seria capaz de transformar a Venezuela em um Estado operário através do controle do executivo e do legislativo e de um chamado à mobilização das massas (ver The challenges facing the Venezuelan Revolution, de setembro de 2007: https://www.marxist.com/challenges-facing-venezuelan-revolution050907.htm). Outro grupo da tradição trotskista que se empolgou enormemente com Chávez, saudando suas medidas e lhe conferindo apoio, foi o Secretariado Unificado, que desde os anos 1980 adotou uma estratégia de socialismo através de reformas graduais, e encarava haver um processo de transformação socialista em curso na Venezuela (ver The Challenge of Socialism in the 21st Century, de maio de 2007: http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article1269). Até mesmo alguns grupos de aparência mais ortodoxa foram a reboque do chavismo em algum momento, como a Liga Bolchevique Internacionalista do Brasil (https://rr4i.milharal.org/2013/04/08/a-lbi-capitula-ao-chavismo-nas-eleicoes-venezuelanas/), por seu apoio à eleição de Nicolás Maduro em 2013.

Entre as poucas organizações que nadaram contra a maré de capitulação ao bolivarianismo e seu projeto de conciliação de classes e contenção da revolta proletária, consta a hoje burocraticamente degenerada Tendência Bolchevique Internacional, cujo legado programático nós do Reagrupamento Revolucionário reivindicamos criticamente e que, já em 2005, foi capaz de apresentar com precisão as limitações do projeto de suposta transição gradual ao socialismo reivindicado por Chávez:

“Há uma contradição fundamental entre os interesses de quem possui e controla as alavancas econômicas essenciais – a burguesia venezuelana e seus patronos imperialistas – e a massa da população. Em algumas circunstâncias, os capitalistas podem ser obrigados a fazer concessões, mas, enquanto o Estado burguês permanecer intacto, os ganhos para os trabalhadores podem ser facilmente revertidos quando a relação de forças mudar.

[…] Com suas promessas irrealizáveis de promover simultaneamente os interesses dos pobres e dos tubarões financeiros imperialistas através de uma forma mais inclusiva e socialmente responsável de desenvolvimento ‘endógeno’, Chávez, sem dúvida, involuntariamente, está ajudando a lançar as bases para uma direita ressurgente lançar uma sangrenta vingança no futuro. […]

A experiência ‘bolivariana’ só pode ser um interlúdio temporário. Existem hoje apenas duas vias na Venezuela: ou a classe trabalhadora vai para a frente para expropriar a burguesia (liquidando-a assim como classe) ou os capitalistas vão esmagar o proletariado. Não há nenhuma opção do meio, nenhuma ‘terceira maneira’.”

Por uma federação socialista da América Latina! Venezuela: Estado e revolução, 1917, n. 28, de dezembro de 2005.

https://rr4i.milharal.org/2008/04/29/venezuela-e-a-esquerda/

Hoje, de fato, o projeto bolivariano encontra-se em colapso completo. Com a queda dos preços internacionais do petróleo, o dinheiro secou e Maduro deu início a uma série de projetos de austeridade, que erodiram seu apoio entre as massas e abriram espaço para a atual nova ofensiva da oposição burguesa, que demonstra uma força muito maior do que jamais havia conseguido desde a eleição de Chávez em 1998. O marxismo não é uma “bola de cristal”, mas é o que temos de melhor para iluminar a complexa realidade e traçar os caminhos possíveis de emancipação da classe trabalhadora. Ao seguirem a reboque do projeto bolivariano – “criticamente” ou não – a maior parte das organizações socialistas não foram capazes de antecipar o cenário atual, pois se recusavam a ver tanto que Chávez buscava conciliar interesses fundamentalmente antagônicos, o que necessariamente não poderia se sustentar a longo prazo, quanto que ele em última instância atendia aos interesses do grande capital, dado que não tocou no fundamento “sagrado” da propriedade privada nem nunca apontou isso como um norte. Com isso, aqueles grupos com presença nos movimentos sociais venezuelanos não foram capazes de armar a classe trabalhadora para o necessário enfrentamento com a burguesia, tendo permitido que seus instrumentos de luta e organização, construídos desde os anos 1980, se tornassem apêndices do executivo chavista e caíssem nas mãos da burocracia do PSUV.

As respostas da esquerda para a atual crise

Ante o crescimento da oposição burguesa na esteira da queda da arrecadação estatal, e da erosão das próprias bases do bolivarianismo – como no surgimento de um setor de oposição ao governo Maduro, autonomeado “chavismo crítico” – Maduro tem aprofundado sobremaneira os traços bonapartistas do regime construído por Chávez. Conforme apontou recente reportagem da A Pública (http://apublica.org/2017/06/venezuela-sem-fake-news/), nos últimos anos, a presença das forças armadas na economia e na política aumentou enormemente, estando os militares hoje em posse de 11 dos 32 ministérios e possuindo a gestão de uma série de empresas estatais. Em troca, eles tem sido fiéis na proteção de Maduro, como na sua atuação no “Plano Zamora”, que, como apontou reportagem da BBC, basicamente instituiu um regime de exceção em certas partes do país, com a mobilização da “Guarda Nacional Bolivariana” (uma guarda pretoriana, diretamente ligada ao executivo) e da polícia para combater um “inimigo interno”, e com a possibilidade de julgar civis em tribunais militares (http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-39852853).

É com o apoio desse setor que Maduro tem se enfrentado com a oposição burguesa reunida em torno da Mesa da Unidade Democrática (MUD), a qual ganhou a maioria nas eleições para o legislativo nacional ano passado e que muito provavelmente teria desbancado o PSUV nas eleições para governos regionais, originalmente previstas para novembro passado, mas que foram suspensas por tempo indeterminado (ver https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/10/internacional/1486765279_008282.html). Confiante em suas forças, a MUD, que já teve várias lideranças presas ou impedidas de deixar o país, tentou emplacar novo referendo revogatório – como o que realizara em 2005 contra Chávez e no qual fora derrotada – mas a justiça eleitoral criou todo tido de imbróglio para invalidar sua convocação. Após uma tentativa fracassada de diálogo, isso levou, nos últimos meses, a um giro da oposição burguesa para as ruas, convocando massivos protestos, que tem sido violentamente reprimidos, com um saldo de mortes que já beira uma centena.

Mas, diferentemente do que argumentam os apoiadores de Maduro na esquerda, não é apenas a oposição burguesa que tem sofrido com a escalada autoritária. O governo de Maduro interveio recentemente nas eleições sindicais, suspendendo-as a pedido do PSUV, temeroso de perder espaço para setores opositores combativos, e tem reprimido com violência e prisões lideranças desses setores (ver http://www.esquerdadiario.com.br/Venezuela-O-Estado-esta-intervindo-nas-organizacoes-sindicais).

Com a escalada das tensões, praticamente a cada semana surge um novo fato espetacular, como a tentativa da suprema corte de encerrar as atividades do legislativo e passar a atuar em seu lugar – corte essa que foi composta por indicações feitas no apagar das luzes da legislatura anterior, de forma a ser solidamente pró-Maduro, e protegida por leis aprovadas também no apagar das luzes para que a nova legislatura oposicionista não pudesse alterar sua composição (ver http://g1.globo.com/mundo/noticia/tribunal-revoga-decisao-de-intervir-no-parlamento-venezuelano.ghtml). Ou a atual caça à procuradora-geral, que se declara “chavista crítica” e vem denunciando o crescente autoritarismo de Maduro e seus aliados, e que está impedida de deixar o país e na mira de acusações de corrupção convenientemente descobertas apenas agora (ver https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/29/internacional/1498698191_497160.html). Ou ainda, do lado da oposição burguesa, a recente entrada em cena de elementos das forças armadas, que, liderados por um oficial da aeronáutica, roubaram um helicóptero e atacaram o prédio da Suprema Corte (ver https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2017/06/27/helicoptero-dispara-contra-supremo-na-venezuela-maduro-fala-em-atentado-terrorista.htm).

A mais recente medida de Maduro e de seus aliados para reverter a escalada oposicionista foi a convocação de uma Assembleia Constituinte “popular”, somado a um terceiro aumento do salário-mínimo nesse ano, o qual se encontra profundamente desvalorizado como fruto de uma galopante inflação (ver http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,maduro-aumenta-pela-terceira-vez-em-2017-o-salario-minimo-na-venezuela,70001874735). A composição dessa constituinte não se daria por eleições gerais, mas por delegados escolhidos nos Conselhos Comunais, hoje rigidamente controlados pelo PSUV (ver http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/01/internacional/1493674085_087716.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM). Claramente se trata de uma tentativa de liquidar a presença da oposição burguesa no parlamento e autonomizar ainda mais o executivo, reforçando seu caráter bonapartista. Hoje, inclusive, já existe um “Parlamento Comunal”, composto por delegados desses conselhos, e completamente chapa-branca ante o governo Maduro (ver http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/12/151216_venezuela_parlamento_comunal_claves_dp). A constituinte “popular” não passará, portanto, de uma reedição desse órgão, mas com mais poderes.

Diante desse quadro de grave crise política, quais têm sido as respostas da esquerda socialista venezuelana, em particular do setor que reivindica o trotskismo? Uma das principais forças nesse campo é a Marea Socialista. Principal corrente do extinto agrupamento internacional Movimiento, que hoje se encontra dissolvido no interior do praticamente inexistente Secretariado Unificado, esse grupo – que no Brasil tem o MES/Psol como organização irmã – até poucos anos atrás era parte do PSUV, apoiando o governo Chávez. Desde 2014, todavia, se retirou do partido governista e se lançou na construção do bloco político “Plataforma do Povo em Luta e do Chavismo Crítico”. Por “chavismo crítico” entende-se uma oposição ao governo Maduro, por ver em seus projetos de austeridade, seu reforço das “cúpulas” – em especial do peso dos militares no regime –, sua maior aproximação com capitais internacionais e as constantes e crescentes violações do regime democrático, uma traição do projeto bolivariano. Mais especificamente, o “chavismo crítico” reivindica a última das muitas “autocríticas” feitas por Chávez, em outubro de 2012, antes de seu afastamento do poder e posterior morte, na qual ele, mais uma vez, reconheceu que o país não estava caminhando para uma “transição socialista”, e que mudanças se faziam necessárias – um golpe de timón, mudança brusca no timão do barco, para mudar sua direção, segundo o próprio. (ver http://portaldelaizquierda.com/2016/08/construir-desde-chavismo-una-oposicion-a-la-izquierda-del-gobierno/).

Em oposição à MUD – que corretamente denunciam como uma força política reacionária – a principal posição da Marea Socialista tem sido, coerentemente com a lógica do “chavismo crítico”, a contraposição ao governo Maduro da defesa da Constituição Bolivariana, a “Constituição de Chávez”, segundo seus artigos. Desde essa posição, apontam que o projeto de Maduro, de convocar uma constituinte chapa-branca, muito provavelmente servirá para legalizar retrocessos políticos e sociais em relação a atual carta. Porém, se limitam à defesa da constituição burguesa anterior (ver http://portaldelaizquierda.com/2017/05/editorial-21-de-marea-socialista-frente-a-la-falsa-constituyente-referendo-consultivo-y-apego-a-la-constitucion-del-99/). Se trata, portanto, de uma posição legalista burguesa, incapaz de trazer mudanças profundas para o proletariado – o que demandaria ir além do regime capitalista – e que, pior ainda, busca o resgate e manutenção do projeto de conciliação de classes e suposta transição gradual ao socialismo de Chávez, em um cenário econômico em que a lua de mel que ele construiu com a oposição burguesa entre 2006 e 2013 claramente já não é mais viável.

Corretamente, a Marea Socialista denunciou a recente tentativa de golpe do supremo e se opõe ao golpismo da MUD, se colocando como oposição tanto ao governo, quanto a seus adversários burgueses – os quais às vezes até mesmo iguala. Mas, por seu apego a uma concepção reformista de socialismo, a despeito de sua retórica avermelhada, ela falha em traçar uma linha de independência de classe nesse momento crítico, que coloque a ação independente dos trabalhadores e um projeto revolucionário no centro do seu programa. Sua organização irmã no Brasil, o MES/Psol, segue a mesma linha, reproduzindo as ilusões da Marea Socialista no projeto bolivariano e na “Constituição de Chávez”, e defendendo “chamar o povo a decidir” como solução para a atual crise, disseminando ilusões no método plebiscitário, como se fosse uma forma real de poder dos explorados e oprimidos sob o capitalismo. Essa ilusão fica nítida na fala de Luciana Genro, para quem, sob Chávez, se avançou no “empoderamento e a organização da maioria da população” – quando o que ocorreu, conforme visto, foi a “captura” pelo Estado burguês de organismos de autogestão popular existentes antes da chegada de Chávez à presidência, e a criação preventiva de novos organismos, bastante tutelados. (ver http://esquerdasocialista.com.br/chamar-o-povo-decidir-e-relancar-transformacao-social/)

Já as organizações que reivindicam na Venezuela o legado morenista padecem de um outro desvio. Trata-se da Unidad Socialista de los Trabajadores (UST), seção simpatizante da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-CI, no Brasil o PSTU, sua principal seção) e do Partido Socialismo y Libertad (PSL), seção venezuelana da Unidade Internacional dos Trabalhadores (UIT-CI, no Brasil a CST/Psol). Elas corretamente se opõem ao projeto de colaboração de classes do chavismo (ainda que a UST integre a “Plataforma do Povo em Luta e do Chavismo Crítico”), e se opõem ao governo Maduro, que caracterizam de “bonapartista” e “semiditatorial”, respectivamente.

Todavia, guiadas pela lógica mecânica desenvolvida por Nahuel Moreno – segundo a qual revoluções socialistas devem ser precedidas por “revoluções democráticas”, protagonizadas por massas amorfas do ponto de vista da divisão de classes e lideradas por não importa que programa e que forças políticas (ver https://rr4i.milharal.org/2016/06/18/moreno-e-trotsky-compare-e-contraste/) – os dois grupos veem nos protestos de rua convocados pela MUD parte de uma “rebelião nacional”. No caso do PSL, afirmam que se trata de uma “grande rebelião democrática”, ao passo que a UST denunciou uma “traição” de parte da MUD quando, alguns meses atrás, alguns setores optaram por não mais insistir no referendo revogatório e marchas de rua para, em vez disso, abrir diálogo com Maduro. A UST/LIT, embora esteja um pouco mais “independente”, ao não participar de todas as ações convocadas pela MUD, concorda que, se esta quiser efetivamente derrubar Maduro, seria válido participar conjuntamente desse intento: “Seguramente, muitos companheiros opinarão que com a MUD tiraremos Maduro e depois poderemos lutar mais facilmente. Isso poderia ser assim, se a maioria da MUD se propusesse a derrubar o governo. Mas por ora seus principais porta-vozes deixam claro que buscam ‘negociar uma transição’.” (ver https://litci.org/es/especial/crisis-del-chavismo/venezuela-no-vaya-a-votar-el-30-de-julio-por-la-ilegal-y-fraudulenta-constituyente/)

Coincidindo numa linha de agitação de “Fora Maduro!” – um grave erro em um momento no qual o único sujeito social e político capaz de realizar essa demanda é a oposição burguesa e a MUD – essas duas organizações todavia divergem nas suas “soluções de fundo” para a crise. A UST/LIT aposta na convocação de uma “greve nacional para colocar para fora este governo, e por um governo dos trabalhadores e do povo” (ver http://www.pstu.org.br/venezuela-fome-e-miseria-ate-quando/). Mas agitar um chamado como esse como tarefa imediata quando a classe trabalhadora encontra-se acuada e politicamente desorientada é puro voluntarismo. E um voluntarismo que, somado às ilusões na possibilidade de derrubar o governo conjuntamente com a MUD, só pode servir para confundir o programa do governo revolucionário dos trabalhadores com a campanha da oposição burguesa direitista, desmoralizando-o perante o proletariado venezuelano. Já o PSL/UIT, de forma mais coerente com o cânone morenista da “revolução democrática”, alia suas participações nas marchas e ações da oposição burguesa com um chamado por uma Assembleia Constituinte – e atribui a esse órgão burguês a tarefa de “decidir tudo” (ver http://www.uit-ci.org/index.php/donde-encontrarnos/venezuela/1144-venezuela-repudiamos-las-sentencias-del-tsj-que-profundizan-la-restriccion-a-las-libertades-democraticas e http://laclase.info/content/marea-socialista-no-convoca-a-derrotar-a-maduro/).

Um dos poucos grupos que mantém uma linha que realmente pode ser chamada de independência de classe diante do embate bolivarianismo (“crítico” ou não) versus direita burguesa, é a Liga de Trabajadores por el Socialismo (LTS), seção venezuelana da Fração Trotskista (FT-CI, no Brasil o MRT / Esquerda Diário). Esse grupo denuncia tanto o recrudescimento autoritário do governo Maduro, que encara estar se tornando cada vez mais “bonapartista”, quanto a tentativa hipócrita da oposição burguesa de se apresentar como defensora da democracia, e defende como saída a formação de uma frente única dos partidos, organizações e movimentos sociais que fazem oposição de esquerda a Maduro, como forma de erguer um terceiro polo político no atual cenário, um que seja da classe trabalhadora. Todavia, a LTS chama por uma Assembleia Constituinte para “ir ao fundo dos problemas e do exercício da ‘vontade popular’” (e denunciam a convocada por Maduro como chapa-branca). Dessa forma, disseminam ilusões na democracia burguesa, ora atribuindo a um órgão burguês tarefas de um governo revolucionário dos trabalhadores, ora vendo em sua convocação um passo prévio necessário à defesa de um governo desse tipo, para os trabalhadores “fazerem a experiência” com a democracia burguesa (como se já não a conhecessem há anos). E esse não é um desvio exclusivo da LTS, mas um programa que virou verdadeira fórmula de bolo para o conjunto da FT-CI nos últimos anos (ver https://rr4i.milharal.org/2016/05/13/a-demanda-de-assembleia-constituinte-do-mrt/). O caráter semi-etapista desse programa fica evidente pelas citações a seguir:


“[…] para promover uma saída independente para os trabalhadores, aumenta a necessidade de uma verdadeira Assembleia Constituinte, Livre e Soberana para atacar o avanço bonapartista e antidemocrático, que supere a forma de representação da Assembleia Nacional (que não é proporcional e sobre-representa a primeira força), que elimine a interferência da FANB [Força Armada Nacional Bolivariana] na vida econômica e civil e a sua intervenção repressiva na ordem interna. Mas principalmente uma Constituinte Livre e Soberana, onde se discuta a resolução efetiva de todas as demandas econômicas, democráticas e sociais de pessoas que trabalham e que reverta as medidas de entrega dos recursos nacionais ao imperialismo.”

Maduro convoca Constituyente a su medida para fortalecer su giro bonapartista, La Izquierda Diario, 2 de maio de 2017.
http://www.laizquierdadiario.com.ve/Maduro-convoca-Constituyente-a-su-medida-para-fortalecer-su-giro-bonapartista?id_rubrique=5442

“Uma Assembleia assim só pode ser conquistada através da mobilização, ligando-a ao conjunto das demandas operárias e populares para responder à crise. No caminho dessa luta, os próprios trabalhadores e setores populares podem realizar a sua experiência com as ilusões que possam ter com esta ‘democracia’, na qual os de baixo não temos nenhum poder real. Este processo pode levar os trabalhadores à convicção de que a única solução real é tomar em suas próprias mãos as rédeas do país, estabelecendo um autogoverno dos trabalhadores e pessoas pobres, com base nas organizações de luta, o único governo capaz de resolver completamente tarefas democráticas estruturais, como a dependência e libertação da dominação imperialista, e pavimentar o caminho para a construção do verdadeiro socialismo, sem capitalistas, proprietários de terras e exploração.”

Declaración política ante la crisis en Venezuela, La Izquierda Diario, 2 de abril de 2017.
http://www.laizquierdadiario.com/Declaracion-politica-ante-la-crisis-en-Venezuela

Por um programa classista e socialista revolucionário!

Pode-se ver, portanto, que as principais organizações à esquerda do governo Maduro no campo do trotskismo não traçaram um programa e uma estratégia de independência de classes coerente com o socialismo revolucionário. Isso por mais que algumas assumam posicionamentos consistentemente contrários aos dois polos burgueses, como a LTS, mas com uma proposta política de fundo restrita aos limites do Estado burguês. Para uma organização pequena e distante dos eventos em debate, é muito difícil (e até mesmo não recomendado) traçar posições para cada aspecto secundário da intrincada crise venezuelana que segue em curso. Mas estar distantes não pode nos impedir, como internacionalistas que somos, de traçar uma linha geral que encaramos ser correta, e de chamar os camaradas honestos das organizações socialistas venezuelanas a refletirem sobre a justeza dessa linha.

É consensual entre os grupos acima mencionados que o governo Maduro atua em prol de setores da burguesia nativa e internacional / imperialistas, e que aposta cada vez mais na militarização da política e na autonomização do executivo e do judiciário, como forma de se blindar tanto da oposição burguesa, quanto da oposição à esquerda – portanto, um regime cada vez mais bonapartista-burguês. Devemos denunciar e combater ativamente toda e qualquer ingerência e medida repressiva desse governo contra os movimentos sociais e organizações e partidos do proletariado. É urgente que se erga uma frente de lutas para se contrapor a seus ataques econômicos às condições de vida da população trabalhadora, na forma de uma frente única das organizações político-partidárias e dos movimentos sociais, começando por aqueles setores que já se encontram mobilizados de alguma forma, rumo a uma frente de dimensão nacional. Uma frente assim, organicamente vinculada às lutas, com compromisso das organizações em articularem conjuntamente a mobilização e com democracia para que as diferentes estratégias se expressassem na forma de um debate fraterno, seria capaz de inserir o proletariado como sujeito independente no cenário político, e apresentar uma alternativa política, que envolva a defesa dos direitos democráticos, dos empregos e salários e dos programas sociais que a burguesia teve que conceder ao longo dos anos de gestão chavista.

Mas, para realizar tal tarefa, é imprescindível que não haja nenhuma ilusão nas marchas da oposição burguesa. Por mais que sua demagogia pró-democrática seja capaz de mobilizar setores da polução trabalhadora e os escalões inferiores das classes médias, ela não passa disso: demagogia. Os setores hoje encabeçando essa marcha são notórios representantes do grande capital nativo e estadunidense, e boa parte deles esteve em alguma medida envolvida no golpe fracassado de 2002. É necessário rechaçar e deixar a nu esses setores, para que os explorados e oprimidos não sejam enganados pelos seus discursos hipócritas. Obviamente isso não tem como ser feito sem que se critique também e com firmeza o governo Maduro, seus ataques à classe trabalhadora e aos direitos democráticos. Mas isso não será feito integrando e “disputando” as marchas da MUD ou colaborando com ela numa derrubada de Maduro, como os morenistas UST e PSL parecem crer ser possível, mas organizando a classe trabalhadora, para que se apresente como alternativa no atual cenário. No próximo período, os trabalhadores devem lutar contra qualquer tentativa de golpe orquestrada pela MUD, que tem recebido apoio logístico e financeiro do imperialismo estadunidense.

Os socialistas revolucionários defenderiam, além disso, uma série de demandas de tipo transitório, que liguem as necessidades mais imediatas da classe trabalhadora e dos oprimidos com uma luta socialista, tais como expropriação sem indenização das empresas que demitirem alegando falência, redução da jornada de trabalho sem redução de salário até zerar o desemprego, reajuste automático do salário de acordo com a inflação, salário-mínimo vital, igual salário para igual trabalho, expropriação dos imóveis ociosos e distribuição a famílias sem-teto ou em condições de moradia de risco.

Também defenderiam, somada a essas demandas, a perspectiva de fundo de que apenas um governo revolucionário dos trabalhadores pode de fato resolver de uma vez por todas as mazelas que afetam o povo trabalhador venezuelano, e que esse governo deve ser erguido através de uma ruptura revolucionária com o Estado burguês, e não ser construído “gradualmente”, através de ações vindas de governos “progressistas” que ocupam esse Estado. Pois o que tais governos fazem é desmobilizar a classe trabalhadora e as suas organizações, reprimindo os setores oposicionistas e integrando os demais à institucionalidade burguesa – e retórica “avermelhada” alguma, nem diversos programas de redução da desigualdade social, são capazes de apagar o fato de que foi isso que Chávez e seu bolivarianismo fizeram: acalmar a classe trabalhadora depois da crise de hegemonia aberta com o caracazo, propagando uma agenda de conciliação de classes. Portanto, é fundamental um acerto de contas da esquerda venezuelana com o chavismo, dizendo claramente o que ele significou, em vez de buscar fazer um “resgate” de seu utópico projeto de transição gradual ao socialismo – “resgate” esse, aliás, que convenientemente “esquece” todos os ataques feitos por Chávez à autonomia do movimento operário e à independência de classe, como se isso fosse uma “novidade” sob Maduro.

A atual crise é trágica, mas abre a oportunidade da classe trabalhadora venezuelana ir além do chavismo e pautar sua autoemancipação revolucionária. Qualquer organização que coloque entraves a essa possibilidade, seja na forma de ilusões no bolivarianismo; seja não alertando para o perigo das articulações da MUD e do imperialismo; seja na forma de ilusões nas instituições burguesas (como as de uma Assembleia Constituinte); não é digna de se reivindicar socialista revolucionária.