Sobre o Fundeb e outras lutas em Resende/RJ: Lições do último período (2020-2021)

Compartilhamos a seguir o texto escrito por L. H., professor da rede estadual do RJ na cidade de Resende, sobre a situação política na rede e os desafios mais gerais da esquerda no Brasil.

Janeiro de 2022

De uma forma cínica, em uma sessão convocada quase à surdina e realizada logo após o natal DE 2021, a câmara de vereadores de Resende sancionou que os profissionais da educação municipais não receberão qualquer abono do FUNDEB, apenas um pífio aumento parcelado ao longo de três anos, que não chega sequer a repor as perdas do último período. Vários detalhes revoltaram os professores, desde as justificativas de natureza burocrático-legais usadas pela gestão Balieiro para o não pagamento, até uma emenda que libera o prefeito para desviar para outros usos o dinheiro do fundo. Um verdadeiro escárnio com os servidores, que deve ser denunciado e combatido por todas as organizações que se reivindicam de esquerda na cidade, sem qualquer confiança nos vereadores dos partidos burgueses que loteiam a câmara há anos. Trata-se de uma luta que não deve ser realizada apenas na esfera jurídica, mas construída no chão de cada escola, dia após dia, sem dar espaço para que demagogos a serviço das elites locais, como Baliero, se construam junto à comunidade escolar.

No entanto, tudo o que aconteceu no dia 27 está longe de ser um relâmpago em céu azul. Esta situação veio sendo construída ao longo do tempo e se queremos ser consequentes no enfrentamento a essas políticas é preciso buscar as raízes do problema. Tratar cada episódio de luta como um fato fechado em si mesmo, se negando a fazer balanços e extrair lições equivale a tratar cada luta como se ela estivesse começando do zero. Além disso, qualquer organização séria e comprometida com princípios marxistas deveria debater os balanços com os trabalhadores, e não restringi-los a um pequeno grupo da direção, para que todos possam aproveitar ao máximo a experiência de cada processo de luta.

Mas como chegamos até este ponto?

Bom, é preciso lembrar que Resende não existe no vazio, está inserida em meio a processos históricos e geopolíticos muito maiores. Estamos no marco de uma intensa crise econômica internacional, fruto do esgotamento do modelo neoliberal pós-2008 que, entre outras coisas, levou a um rebaixamento da economia sul-americana na divisão internacional do trabalho (1). Esta situação econômica produziu (e ainda produz) vários fenômenos sociais e políticos no Brasil, como o aumento do autoritarismo judicial que levou a um golpe institucional no governo de conciliação de classes do PT e a ascensão de uma extrema direita fascistóide, como forma de prevenir o desenvolvimento da luta de classes (2). No Rio de Janeiro essa crise foi especialmente mais dura, com aumento expressivo da miséria, erosão das instituições burguesas e fortalecimento da milícia, inclusive a nível político.

O ano de 2020 trouxe mais um elemento para o agravamento da crise: anos de políticas neoliberais de sucateamento da saúde pública e da pesquisa cientifica, aliados a devastação sem precedente dos biomas naturais, levaram ao aparecimento de uma pandemia mortal que vem dizimando especialmente os setores mais precarizados da classe trabalhadora ao redor do mundo. Apesar de já termos condições técnicas de promover a erradicação global do coronavírus, o consenso da classe burguesa é seguir expondo a população ao vírus para evitar a redução dos lucros, mitigando a doença apenas o mínimo necessário para que não hajam revoltas (3). Esta situação impõe a necessidade de um programa da classe trabalhadora para o enfrentamento da pandemia, que diga claramente que nossas vidas valem mais do que o lucro dos patrões e que a COVID precisa ser erradicada.

Todos estes elementos se expressam em Resende. Com o freio no desenvolvimento do setor industrial na cidade, que havia explodido nos anos 2000 (4), o terceiro setor, referente a serviços e comércio, seguiu sendo a principal força econômica (5), usando-se disso para fortalecer a sua hegemonia na política local. Este setor viu em Diogo Baliero, cujo único antecedente político era ter nascido em uma família de médicos da região, o seu representante natural após ele ter removido as restrições ao comércio e a circulação de pessoas durante a pandemia. Longe de se aventurarem no populismo de extrema direita, a pragmática burguesia de Resende fez a aposta segura em quem não colocaria o lucro sob risco por conta da pandemia, mesmo que isso custasse a vida da população.

Infelizmente o papel que a esquerda local desempenhou nas eleições, longe de constituir uma oposição, de fato acabou contribuindo para que Baliero, o candidato dos empresários, obtivesse mais de 80% dos votos. Desde o primeiro momento PT e PC do B, partidos conciliadores, se colocaram subordinados ao programa da burguesia para o enfrentamento a pandemia e acabaram trabalhando para ajudar a naturalizar as mortes, ao tratarem a pandemia como se ela não existisse. O candidato do PC do B chegou ao ponto lamentável elogiar a saúde em Resende na gestão Baliero, ignorando completamente o alto índice de mortes decorrentes da COVID na cidade. Com todo respeito aos companheiros destes partidos, mas uma esquerda que não se coloca como uma alternativa a direita, por definição, não é uma esquerda. Inclusive essa crítica é válida também para o PSOL, que por mais minoritário que seja, procurou igualmente evitar se posicionar sobre a política da cidade durante todo o período. E assim perpetuam-se as oligarquias locais…

Contudo, apesar da estrada aberta para se reeleger, Baliero encontrou resistências no novo mandato. O ano de 2021 iniciou-se com um movimento de greve dos profissionais da educação da rede municipal. Havia muita insatisfação com a situação econômica, principalmente em relação ao piso salarial, mas naquele momento pesava principalmente o problema da imposição que estava sendo feita pela prefeitura de um retorno inseguro das aulas presenciais, justamente no momento mais grave da pandemia até então. Longe de apostar na construção de um processo de mobilização da base, a direção psolista do SEPE avaliou que não haveria desenvolvimento desta luta nas escolas e correu para fechar um acordo com a prefeitura, acordo esse que acabava ratificando essa abertura insegura das escolas. E como a realidade mostrou, essa leitura era baseada em nada! Passado algum tempo após este encerramento apressado da greve, os próprios professionais da educação paralisaram as escolas contra o retorno presencial. E mais uma vez a direção do SEPE correu para fechar um novo acordo com a prefeitura, que no final das contas mais uma vez não resolvia o problema do retorno inseguro as aulas, já que bastaria que apenas os profissionais da educação estivessem vacinados para que as escolas reabrissem.

Mas é importante destacar que neste episódio bastou apenas o peso da demonstração de disposição de luta para que a prefeitura apressasse a vacinação dos professores. No final das contas o que assusta a burguesia é a movimentação dos trabalhadores. As direções sindicais, quanto mais afastadas de suas bases estão, mais agem como negociadores entre os conflitos entre os patrões e os trabalhadores, ao invés de fomentadores das lutas. Neste sentido a linha adotada pela direção psolista do SEPE Resende, não é muito diferente da linha adotada pela direção da APMR, subordinada as soluções da burguesia para a crise. Isso descamba em uma judicialização de todas as lutas, e abre mão de colocar em debate uma alternativa dos trabalhadores. No SEPE Resende essa linha de subordinação política foi tão extrema que propostas concretas elaboradas por professores da rede estadual para o município foram solenemente ignoradas (5).

Conforme a gestão desastrosa da pandemia foi se tornando mais visível, e a medida que os impactos das reformas neoliberais levaram ao aumento da crise social, setores da população começaram a se levantar contra o governo federal. Isso fez com que as direções nacionais dos partidos de esquerda convocassem mobilizações neste período mas estas acabaram sendo organizadas de cima para baixo, com pouco ou nenhum espaço para as bases expressarem suas pautas, e assim acabaram convergindo para um apoio a CPI da COVID e em uma antecipação da disputa eleitoral de 2022, em uma situação onde o percentual das pessoas vacinadas ainda era muito baixo e com risco real de piora da pandemia. E mesmo assim, ao contrário do prognostico sombrio repetido por muitos, de que “não há disposição de luta”, centenas de milhares de pessoas foram as ruas. A medida que as manifestações cresceram, quem correu para conte-las foram os próprios partidos de esquerda, desejosos de evitar um tensionamento do ambiente político(6). Em outras palavras, abortaram os protestos contra Bolsonaro para não correrem risco de perder o apoio da burguesia para as eleições de 2022. Longe de derrubar Bolsonaro, os atos na prática serviram para fortalecer o protagonismo do centrão no governo (7).

À medida que o governo Bolsonaro começou a derreter, a extrema direita tentou ensaiar também algum nível de mobilização, mas sem muito sucesso. Assim, na tentativa de manter a sua base mais “dura” mobilizada, a extrema direita passou a fazer uso mais abertamente do aparato estatal para voltar a perseguir os professores, alvos preferenciais de sua campanha difamatória desde antes da eleição, promovendo diferentes formas de censura em algumas escolas. Em Resende, o E.M. Getúlio Vargas, foi alvo da absurda acusação de “apologia ao comunismo” e dessa vez houve abertura de um espaço para a denuncia política na mídia de esquerda, embora nenhum ato tenha sido chamado, o que corrobora que a linha da esquerda em Resende, mesmo sob ataque ideológico, acompanha a linha de suas direções nacionais: “não tensionar o ambiente político”. Mesmo o PT local, que sofreu diversos ataques no plenário da câmara e ensaiou uma resposta mais contundente sob a tática da “tribuna livre”, não levou essa iniciativa até o final, abrindo a tribuna para propostas com independência de classe ao enfrentamento a crise.

Assim, mesmo quando a inquietação em torno da possibilidade do rateio do FUNDEB tomou a forma de um ato simbólico na câmara de Resende, os vereadores, de partidos do centrão, e o próprio prefeito já haviam entendido a mensagem de que a esquerda não iria tensionar o ambiente, e por isso mesmo sentiram-se confiantes para não apenas vetar o rateio, como também para abocanhar uma parte do fundo. Por que afinal é para isso que também serve o estado burguês: abocanhar recursos para promover a expansão do capital financeiro.

Conclusão: o que há para ser feito?

O que tentei demonstrar no balanço acima é que a subordinação política dos grupos de esquerda ao programa da burguesia leva tanto ao enfraquecimento da organização dos trabalhadores, quanto fortalece os grupos políticos ligados as elites locais na hora de atacarem os trabalhadores. Enquanto formos pautados por aqueles que querem descarregar os efeitos da crise em nossas costas, nunca sairemos da defensiva e estaremos sempre lutando para nos recuperar das perdas, que continuarão aumentando. Mas para mudar este cenário, é preciso que apresentemos propostas alternativas, que representem efetivamente os interesses dos trabalhadores, e um programa assim só pode surgir do debate concreto no dia a dia, não podemos esperar que caia pronto do céu em um passe de mágica feito por uma mente iluminada que não existe.

Também é preciso dizer que é muito fácil para as direções da esquerda, após qualquer ataque, dizer que ela pode ser revertido na justiça e com isso abandonar a perspectiva de construir a mobilização. É preciso entender que os ataques só ocorrem quando a burguesia se sente confiante para fazê-los, porque sabe que a chance de resultar em um processo de luta de classes é pequena. Levar todas as lutas para esfera judicial é tirar a agencia dos trabalhadores e colocar na mão de representantes da burguesia que sequer foram eleitos. Isso sim é construir a passividade. E mesmo quando os trabalhadores obtêm vitorias na justiça, elas são sempre pequenas o suficiente para não representarem uma ameaça à ordem capitalista. Da mesma forma é ingênuo acreditar que pressionar os representantes da burguesia sem que essa pressão se efetive em alguma forma de confronto pode resultar em alguma vitória.

Resende precisa de um núcleo marxista, pautado pelo principio de independência de classe e pela perspectiva de emancipação da classe trabalhadora. Termino esse texto fazendo um chamado a todos os companheiros da região, independente do partido, que queiram dar este passo ou que estejam interessados em aprender mais sobre o marxismo, a formarem um circulo de estudo onde possamos debater as experiências históricas da classe trabalhadora para a partir daí orientar nossa luta de uma forma mais eficiente contra este sistema que reproduz a injustiça e a miséria.

Referências

  1. https://rr4i.milharal.org/…/elementos-para-analise…/…
  2. https://www.esquerdadiario.com.br/Quais-herancas-do…
  3. https://www.wsws.org/pt/articles/2021/11/05/pers-n05.html
  4. https://www.revistaespacios.com/a16v37n21/16372118.html
  5. https://www.facebook.com/plugins/post.php…”
  6. https://movimentorevista.com.br/…/o-governo-bolsonaro…/
  7. https://movimentorevista.com.br/…/bolsonaro-em-uma…/
  8. https://www.brasildefato.com.br/…/artigo-or-por-que…/