Elementos para análise de conjuntura na América Latina

A sobrevida da conciliação de classes e a expansão do Estado policial

Contra los falsos pronósticos, América Latina en lucha

Dezembro de 2021

O seguinte documento foi originalmente escrito em meados de 2021 por uma então companheira do Reagrupamento Revolucionário, como contribuição ao debate interno sobre a conjuntura internacional. Decidimos posteriormente publicá-lo, realizando algumas pequenas correções e modificações como fruto do debate que se seguiu à apresentação do texto.

Esse texto não tem a pretensão de apresentar uma análise mais elaborada sobre a situação política do nosso subcontinente, mas tão somente apontar alguns elementos que permitam, num futuro breve, a construção coletiva de uma compreensão mais precisa do quadro político, econômico e social latino-americano. Dessa maneira, o que é apresentado a seguir são apenas apontamentos gerais da situação política na América Latina, com destaque aos países nos quais a luta de classes se apresenta, neste momento, de forma mais aguda.

Os efeitos da pandemia da COVID-19 aceleraram a tríplice crise pela qual passam os países latino-americanos. Essa crise que tem como aparência imediata a queda dos preços das commodities, tais como o petróleo, os minérios, a soja, a carne, etc., na verdade, trata-se de uma crise de mudança estrutural cujo principal elemento é o rebaixamento das maiores economias latino-americanas na divisão internacional do trabalho. O transcurso de desindustrialização dos centros operários na Argentina e no Brasil, com fechamentos de fábricas ou redução de efetivo, assim como o aumento da concorrência desses dois países com os demais países latino-americanos para exportar bens primários, em especial para a China, são as principais expressões desse rebaixamento.

No âmbito social, esse aprofundamento do caráter dependente do capitalismo na América Latina se desdobra como o aumento brutal da superexploração do trabalho, uma vez que para compensar suas desvantagens no mercado mundial, a burguesia interna retira da classe trabalhadora as condições mais elementares para a reprodução de sua força de trabalho, seja por meio do rebaixamento dos salários, do aumento da jornada de trabalho ou ainda pela combinação de ambas as situações mediante a desregulamentação do trabalho formal e a expansão de subempregos.

Em termos políticos, a desestabilização da classe operária, a expansão da classe trabalhadora em empregos precarizados e a proletarização de parte da pequena burguesia levaram às situações explosivas, com tempos desiguais entre os países do subcontinente, no final do século XX e na primeira década do século XXI.

Frente a isso e, na ausência de uma direção revolucionária, o capital conseguiu controlar essas revoltas por meio da combinação de duas políticas: a ascensão de governos de conciliação de classes e a criação ou aprofundamento do caráter policial de alguns Estados. Ocorre, no entanto, que no início dessa segunda década do século XXI, essas duas políticas enfrentaram desgastes nos países em que foram aplicadas, razão pela qual se alternam no bloco do poder do Estado quando possível e necessário.

Por um lado, no caso do Chile, do México e do Peru, países que sofreram significativo endurecimento do aparato repressivo nas décadas anteriores, mas que nesse momento ou são governados por governos que se propõem à conciliação de classes (México e Peru) ou tem perspectiva de sê-lo (Chile). Por outro lado, verifica-se um acelerado endurecimento do regime democrático burguês em países governados pela direita tradicional (Colômbia) e em países nos quais os projetos de conciliação de classes governaram em anos recentes (Brasil, Equador e El Salvador) ou ainda governam (Venezuela e Nicarágua).

Em ambas as situações, o que se evidencia é uma profunda instabilidade no domínio burguês por meio da política de reação democrática adotada após o fim das guerrilhas centro-americanas e do transcurso de redemocratização na América do Sul, no final dos anos de 1980.

A sobrevivência dos governos de conciliação de classes

A chegada de Andrés Manuel López Obrador à presidência do México, em 2018, e a recente vitória de Pedro Castillo, no Peru, bem como a possível vitória do candidato da “centro-esquerda democrática” para a presidência do Chile, desmistificam a caracterização de uma parte da esquerda e mesmo dos analistas burgueses a respeito de um suposto fim dos governos de conciliação de classes, caracterização essa que teve como base a queda do Governo Dilma, no Brasil, em 2016, a derrota do kirchnerismo, na Argentina em 2015 e a derrota da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), em 2019, em El Salvador.

No México, a ascensão da Frente Popular foi apoiada, diretamente, pelo próprio imperialismo estadunidense, preocupado, sobretudo, com o crescimento das revoltas populares contra os contínuos massacres como no caso de Ayotzinapa, mas também com a manutenção da Zona de Livre Comércio que, entre outras coisas, permite uma brutal extração de mais-valia no norte mexicano que é escoada para o capital ianque por meio das atividades das maquiladoras. Ademais, outra tarefa importante delegada pelos EUA para o governo frentepopulista de Obrador foi o controle, mediante repressão, das fronteiras entre os dois países, razão pela qual a violência, a perseguição e as prisões contra os trabalhadores centro-americanos no México aumentam velozmente desde 2018 e se manteve na pandemia. Basta mencionar que somente entre 2020  e 2021, os EUA, com a ajuda de Obrador, conteve um milhão de imigrantes que tentavam atravessar a fronteira.

No cenário interno, apesar da péssima gestão do combate à pandemia e do crescimento avassalador do desemprego, López Obrador tem 60% de apoio popular, explicado em parte pela cooptação dos movimentos sociais e sindicais, além de políticas sociais de redistribuição de renda e a manutenção da imagem de combate à corrupção e aos crimes de extermínio, tal como se expressará na consulta popular para julgar os ex-presidentes do país envolvidos com o narco e grupos paramilitares.

No caso peruano, a vitória de Pedro Castillo não se trata de uma resposta planejada e desejada pelo imperialismo para controlar a crise institucional no país, tudo ao contrário. É preciso recordar que antes do pleito no qual Castillo apareceu como elemento surpresa já no primeiro turno. O Peru vivia uma crise do regime democrático burguês e uma crise social profunda, com dois presidentes destituídos em menos de dois anos, Pedro Pablo Kuczynski, em 2018 (devido aos escândalos de corrupção com a Odebrecht) e Martín Vizcarra, em 2020, devido à disputa inter-burguesa com os parlamentares fujimoristas.

Em meio a isso, Castillo capitalizou o sentimento antissistêmico de parte significativa dos trabalhadores e da pequena burguesia empobrecida, em especial nas áreas rurais, regiões nas quais se misturam a exploração com a secular opressão racial contra os indígenas. Sua imagem associada às greves de professores e à autodefesa (rondeiro) contra os massacres do Estado e os abusos do Sendero Luminoso, ajudou a criar uma imagem de líder popular carismático que ao mesmo tempo em que usa o discurso anti-imperialista e de soberania nacional, também se apóia no enorme conservadorismo da sociedade rural peruana, daí seu discurso em “defesa da família”, pela manutenção da criminalização do aborto e da negação de direitos à população LGBT. Além disso, o fato de sua oponente ter sido Keiko Fujimori, ligada a grupos de extermínio no campo e à corrupção em Lima, contribuiu para a adesão popular à candidatura do Peru Libre.

No entanto, apesar do entusiasmo quase hegemônico da esquerda latino-americana com a vitória de Castillo, o certo é que longe de representar uma inovação, Castillo e o seu partido, Peru Libre, possuem vínculos e vícios com a ordem institucional capitalista há muito tempo. O próprio Castillo é ex-militante do partido de direita Peru Possible, partido pelo qual concorreu as eleições municipais em 2002. E o seu atual partido, Peru Libre já governou algumas regiões do país nas quais se envolveu em escândalos de corrupção e negociatas com a burguesia, como no Estado de Jenín, em 2013, quando o principal dirigente partido e então governador do estado, Vladimir Cerrón, foi condenado por superfaturamento em obras de saneamento.

Dessa forma, não é surpreendente que antes mesmo de terminar a contagem dos votos no segundo turno, Castillo tenha tentado acalmar o mercado por meio de seu Ministro da Fazenda, Pedro Francke, economista neoliberal que garantiu que não haverá  expropriação, nacionalizações e tampouco ruptura com a atual independência do Banco Central, independência para que os amos imperialistas comandem a política econômica do país. Ou seja, na prática, tudo indica que por sua vontade o Governo Castillo será mais recuado que o chavismo na época de Chávez e que sua proposta de Constituinte será limitada à possível criação de um Estado Plurinacional no estilo boliviano ou uma Constituição Cidadã ao estilo de Rafael Correa, no Equador. O que ainda não está claro é se haverá uma ruptura da classe trabalhadora com esse governo, e para isso terá que acontecer uma ruptura também com as direções da esquerda peruana que apóiam Pedro Castillo, ou se a classe operária conseguirá ainda que pontualmente arrancar algumas conquistas mais significativas.

Um dos cenários prováveis para o Brasil num futuro próximo é a formação de um novo governo Lula/PT. Tal governo seria de uma linha ultraconciliadora com a burguesia nacional, para manter as medidas de austeridade e o controle das revoltas dos explorados e oprimidos. Para os revolucionários, esse possível cenário demanda desde já uma política dura de rompimento com qualquer apoio político ao petismo, assim como uma demarcação clara com os reformistas e centristas na esquerda que irão apoiar eleitoralmente o PT e seguir uma linha de adaptação ou encobrimento do seu governo pela esquerda.

O aumento do Estado policial

Ainda como resposta à crise política, econômica e social que se abate em toda América Latina, outra resposta burguesa segue em curso no subcontinente: o fortalecimento do Estado policial.

Antes de tudo, é preciso caracterizar que o atual aumento da repressão, perseguição, tortura e assassinatos de lideranças populares não é uma política antagônica à política de conciliação de classes, ao contrário, em muitos casos o endurecimento dos aparelhos repressivos do Estado ou a consolidação de semiditaduras deriva diretamente de governos conciliadores. Os casos nos quais essa característica aparece de forma mais acabada são Venezuela e Nicarágua.

Na Venezuela, a prisão e a condenação do líder operário Rodney Álvarez e a tentativa do PSUV de impedir candidaturas inclusive de seu campo de alianças, como as do PCV, mostra que o regime de Nicólas Maduro segue disposto a eliminar não apenas a direita pró-imperialista representada pelo fantoche Guaidó, mas também eliminar a oposição de esquerda. Para tanto, utiliza-se do apoio interno que tem nas Forças Armadas e na “boli-burguesia”, representada pelo ex-presidente da Assembleia Nacional – o militar Diosdado Cabello.

Além disso, Maduro ainda conta com o apoio externo que recebe financeiramente da China e militarmente da Rússia, apoio esse que até hoje impediu uma ação militar direta dos EUA no mar do Caribe venezuelano. Portanto, sem fissuras em suas bases militares, não há expectativa, em curto prazo, do fim ou enfraquecimento do regime de Maduro, ainda que exista uma crise humanitária sem precedentes no país e que levou à fuga de mais de 4,6 milhões de pessoas, em sua maioria trabalhadores pobres que tentam sobreviver na Colômbia ou no norte do Brasil.

Situação semelhante ocorre na Nicarágua, sob o governo de Daniel Ortega desde 2018, quando o movimento sindical, estudantil e campesino foi às ruas contra a política de austeridade. Desde então, sob o governo da Frente Sandinista para Libertação Nacional (FSLN), o regime político no país rapidamente transitou de uma democracia liberal carcomida para uma ditadura pessoal centrada em Ortega e sua esposa, Rosario Murilo (vice-presidente). Desde 2018 até 2020 mais de 1614 pessoas foram presas na Nicarágua por participarem de protestos.

Assim como na Venezuela, Ortega se mantém mediante uma política de privilégios aos militares e agrados ao capital financeiro internacional, isso em detrimento da pobreza dos trabalhadores nicaragüenses que estão entre os que mais tentam atravessar a fronteira do México com os EUA.

Ao lado da aprovação da Lei N◦ 996 que anistia não apenas os militares dos crimes cometidos durante o período da guerra civil, mas também dos crimes cometidos recentemente, Ortega enviou no ano passado um projeto de lei que prevê a pena de prisão perpétua para aquilo que classifica como crime de terrorismo e distúrbio da ordem. Essa situação ganha agora um salto de qualidade com as prisões, no último dia 9 de junho, de ex-dirigentes do FSLN que até então apoiavam o governo, tais como o ex-general Hugo Torres e a ex-guerrilheira Dora María Téllez, todos eles membros do UNAMOS, ruptura de direita da FSLN. Além disso, o governo decretou a prisão dos quatro pré-candidatos da oposição de direita à presidência: Cristiana Chamorro, Arturo Cruz, Juan Sebastián Chamorro e Félix Maradiaga. Nessas circunstâncias, diferentemente da Venezuela que conta com o apoio da China e da Rússia, é possível que a ditadura sandinista se isole no cenário internacional, algo que pode enfraquecer seu apoio interno nas Forças Armadas.

Por fim, nesse cenário de aumento do Estado policial na América Latina, a  situação da Colômbia segue como modelo clássico da manutenção das formas da democracia burguesa, mas de avanço da perseguição das organizações da classe trabalhadora, tortura e assassinato de militantes e ativistas de esquerda.

É válido lembrar que as cenas de repressão do Estado e de forças paramilitares contra lideranças sindicais e campesinas não são somente resultado das recentes mobilizações. Com o fracasso do acordo de paz com os ex-guerrilheiros da FARC, e a retomada das atividades das dissidências guerrilheiras na região Amazônica, o Estado colombiano deu um salto qualitativo em seu grau de perseguição contra indígenas e trabalhadores nas regiões mais afastadas de Bogotá.

Todavia, é preciso deixar claro que essa combinação de perseguição, prisão, tortura e execução ocorrem mediante dois elementos importantes: (1) a manutenção do rito democrático, isto é, com eleições periódicas, a liberdade de imprensa (dentro dos limites burgueses) e de possibilidades de organizações da chamada “sociedade civil”; (2) e com a repressão executada não apenas pelos aparelhos formais do Estado, mas também com realizada pelos bandos paramilitares que se deslocam de dentro das forças repressivas do Estado para formar falanges milicianas, em especial nas áreas rurais da Amazônia colombiana, onde há a disputa pela produção e distribuição da coca para o resto do mundo.

Nesse sentido, é fundamental estudar mais detalhadamente o Estado policial colombiano, pois é possível que outros países latino-americanos se aproximem desse modelo de gestão do capital, o qual inclui uma política ultraliberal com uma democracia de fachada, acompanhada de um patamar superior de repressão, contra o qual a classe trabalhadora enfrenta os órgãos oficiais e também os setores paramilitares.

Esse é outro cenário possível para o Brasil no decorrer dos próximos anos, com ou sem Bolsonaro, a depender do desenrolar das batalhas de classe. Para estarmos também preparados, os revolucionários devem estimular o rompimento com todas as ilusões ou expectativas na democracia burguesa, que está bastante carcomida, e estimular a preparação de autodefesas dos trabalhadores e dos outros oprimidos, tarefa que é ignorada pela esquerda adaptada à ordem.

Breves considerações finais

A luta de classes no subcontinente, que tem como fator recente o rebaixamento da América Latina na divisão internacional do trabalho e a crise econômica mundial, se acirrou nos últimos cinco anos. Entretanto, longe de encontrar uma saída revolucionária as heroicas mobilizações dos trabalhadores se deparam com dois obstáculos burgueses. Primeiro, a tática dos governos de conciliação ou nacionalistas burgueses, tática essa que ainda está presente na região. Segundo, a política de aprofundamento dos aparatos repressivos, seja por meio de ditaduras que podem surgir de governos da direita tradicional, como no caso colombiano ou mesmo de governos de conciliação de classes que rumam para o fechamento, como no caso da Venezuela e da Nicarágua.

Seja como for, não há um cenário de imobilismo subcontinental, ao contrário, antes mesmo da pandemia, as lutas já aumentavam e apresentavam casos de radicalização, como no Equador, Haiti, Colômbia e Chile. E agora com a crise econômica agravada pela péssima gestão dos governos diante da Covid-19, a tendência é que essas lutas se tornem ainda mais agudas e aprofundem a crise capitalista na região. Todavia, é preciso dizer que não há um determinismo entre o aumento e mesmo radicalização das mobilizações com uma possível abertura de um processo revolucionário, em especial porque dessas lutas  ainda não surgiram novas direções revolucionárias para o movimento, nem têm sido marcadas por perspectivas e métodos de organização marxistas. Diferente disso, o que ainda predomina é a tentativa de revigorar o sistema democrático burguês, como no Chile e do Peru recentemente. Dar um combate político e teórico contra tal perspectiva “democratista”, e defender o estabelecimento do poder dos trabalhadores, esmagando os órgãos do Estado burguês, é uma das principais tarefas de uma corrente revolucionária no período próximo.