Balanço das discussões com o grupo Bolchevique da Ásia Oriental

No final de 2018, um camarada do Reagrupamento Revolucionário contatou membros do grupo Bolchevique da Ásia Oriental (Bolshevik East Asia — BEA), que havia rompido com a Tendência Bolchevique Internacional (IBT), em uma tentativa de entender melhor algumas de suas diferenças com os outros dois lados do rompimento em três partes da IBT. Sobre tal rompimento, veja (em inglês): https://bolsheviktendency.org/2019/04/13/why-things-fell-apart/

Inicialmente, o grupo Bolchevique da Ásia Oriental aliou-se ao agrupamento liderado por Tom Riley (ex-líder da IBT e agora no grupo “Tendência Bolchevique”) contra a noção incorreta defendida por Logan/Decker/Dorn de que a Rússia havia se tornado uma potência imperialista qualitativamente equivalente aos EUA e os imperialistas europeus. Mais tarde, eles romperam com Riley diante da posição de “neutralidade” de Riley no golpe militar no Egito em 2013 e na tentativa que ocorrera em 2016 na Turquia. Eles também proclamaram seu desacordo fundamental com a visão da IBT sobre os eventos de 1978/1979 no Irã.

Discordávamos da rejeição dos camaradas Bolcheviques da Ásia Oriental à posição da Liga Espartaquista (Spartacist League) em 1978/1979 sobre a revolução iraniana. A SL é a organização da qual se originou a IBT e cujo legado reivindicamos em oposição à maior parte da degeneração do trotskismo pós-Segunda Guerra Mundial. Pensamos que esses camaradas estavam respondendo de forma confusa, mas com bom instinto, à metodologia de Tom Riley de neutralismo e “não tomar partido” nos conflitos entre as forças burguesas em que havia uma clara vantagem para os trabalhadores derrotarem uma tentativa de golpe de Estado ou movimento reacionário.

Riley argumentou que os revolucionários não deveriam “tomar partido” quando dois lados em um conflito eram equivalentes em termos de sua rejeição da democracia burguesa. Ele reavaliou a oposição marxista ao golpe do general Franco e a subsequente guerra civil na Espanha e a oposição ao golpe contra a Frente Popular de Salvador Allende no Chile em 1973 como justificáveis ​​pelo fato de um lado estar à frente de uma democracia burguesa e o outro ser ditatorial. Posteriormente, o agrupamento de Riley também assumiu uma posição “neutralista” sobre o golpe / impeachment no Brasil em 2016, analisando que ambos os lados faziam igualmente parte do jogo da democracia burguesa. Sobre isso, veja (em inglês): https://bolsheviktendency.org/2019/08/28/on-the-igs-2016-capitulation-in-brazil/.

Para confusão ainda maior, Riley argumentou que suas opiniões derivavam da posição espartaquista no Irã em 1978/1979, em que o slogan “Abaixo o Xá, abaixo os mulás” supostamente significava que os revolucionários não deveriam ter “tomado lado militarmente” nem com o Xá do Irã, nem com as forças islâmicas. Em suma, ele acusou seus oponentes, incluindo alguns ainda agora na IBT, de “apoiar uma gangue de reacionários contra outra na Turquia, Egito e Irã”. Essa posição é defendida por Riley aqui (em inglês): https://bolsheviktendency.org/2019/04/12/marxism-islamic-reaction/

Tom Riley fez um excelente trabalho em gerar descrédito tanto para o trotskismo quanto para os melhores elementos da tradição espartaquista. Vamos tentar esclarecer essas questões. Os marxistas se opõem a guerras civis reacionárias, ataques violentos e golpes de Estado com o objetivo de remover um governo ou regime quando o que está em jogo é esmagar a resistência da classe trabalhadora ou os direitos da classe trabalhadora (sejam sociais ou democráticos). Muitas vezes, isso é feito por meio da destruição da democracia burguesa e sua substituição por um regime autoritário, particularmente comum nas nações neocoloniais. Muitas vezes, esses movimentos recebem apoio logístico / militar indireto das potências imperialistas. Às vezes, porém, não há destruição completa de um regime democrático, mas um hiato em seu funcionamento para o rearranjo das forças capitalistas. Outras vezes, o próprio regime neocolonial é uma semiditadura e não mais “democrática” do que seus adversários. Devemos ser neutros nesses casos?

Nossos critérios são guiados pelos interesses históricos dos trabalhadores, e nos opomos à “mudança de governo” quando ficou claro que a vitória da oposição significará uma destruição qualitativa das posições e ganhos da classe trabalhadora. Fazemo-lo sem dar qualquer apoio político ao status quo ou aos dirigentes atuais, mas defendemos uma posição revolucionária proletária. É por isso que nos posicionamos contra a junta militar no Egito em 2013 (ver: https://rr4i.milharal.org/2013/10/31/o-golpe-militar-no-egito-e-a-posicao-escandalosa-do-pstu-lit/) e contra a gangue de direitistas que retirou do poder a frente popular brasileira em 2016 por uma combinação de pressão de rua e processos parlamentares / jurídicos ilegais (ver: https://rr4i.milharal.org/2016/06/01/abaixo-o-governo-golpista/). O neutralismo de Riley resultaria na prostração do movimento dos trabalhadores em face da destruição de suas posições conquistadas na sociedade burguesa sempre que não se encaixasse em seu esquema abstrato.

No Irã, acreditamos que Riley está simplesmente confundindo coisas de natureza diferente. Havia uma revolução potencial se desenvolvendo no Irã, com guerrilhas de esquerda, greves e lutas, mas que pela falta de um polo revolucionário proletário independente, foi mais tarde engolfada pelas forças reacionárias pró-Khomeini. Muitos na esquerda à época viram essa predominância política dos islamistas como um elemento menor, acreditando que a luta se desenvolveria “objetivamente” no interesse dos trabalhadores. A derrota do corpo de oficiais em fevereiro de 1979 permitiu que a força política mais forte – os mulás islâmicos – preenchesse o vácuo de poder deixado pela destruição do regime do Xá e de seu “governo de conciliação” fantoche de Bakhtiar. A ascensão de Khomeini levou à subsequente “república islâmica” e à destruição / aborto de qualquer possibilidade real de uma revolução da classe trabalhadora contra o imperialismo e o capitalismo, sem falar na supressão de organizações de esquerda, sindicatos independentes, direitos das mulheres, etc. Veja esse texto explicando tal questão (em espanhol): https://rr4i.milharal.org/2011/08/20/iran-la-historia-se-venga/

Para começar, os revolucionários teriam intervindo em várias greves, manifestações de massa e outras lutas contra o regime do Xá. Os marxistas não analisam as coisas como se eles próprios estivessem separados da realidade, escolhendo lados abstratamente. Uma revolução potencial é um fenômeno complexo com vários eventos. Em alguns, “não tínhamos lado”. Não teríamos apoiado os islamistas em suas próprias marchas sectárias ou em qualquer aspecto relevante de seu programa. Mas teríamos “tomado lado militar” dos islamistas contra a repressão em massa da polícia política do Xá, por exemplo, ou se houvesse uma intervenção militar contra as lutas (mesmo aquelas lideradas pelos mulás reacionários). Essa, até onde sabemos, era também a posição da Liga Espartaquista, como citamos em uma de nossas cartas. Na edição nº 225 de seu jornal, a SL escreveu:

“Se tal confronto tivesse explodido em guerra civil, os marxistas teriam apoiado militarmente as forças populares reunidas pelos mulás contra uma casta de oficiais intacta, ao mesmo tempo em que nossa oposição política intransigente ao movimento liderado pelos reacionários buscaria polarizar as massas ao longo das linhas de classe e unir os trabalhadores e as camadas inferiores das massas pequeno-burguesas em torno do polo proletário”.

Os camaradas do BEA, porém, deram um passo adiante. Eles consideraram que a vitória dos islamistas reacionários sobre o regime de Bakhtiar e do Xá foi uma “vitória parcial”, ou melhor, uma vitória de Khomeini e dos trabalhadores juntos, e que a situação após a vitória dos islamistas sobre o regime do Xá era “muito melhor” do que antes. Esses camaradas tendiam a analisar a dinâmica das lutas contra o Xá da mesma forma que Riley – um “confronto de forças” abstrato. Mas em vez de “não tomar partido”, viram na vitória de Khomeini o lado melhor ou o lado “contra o imperialismo”. Sua justificativa para isso era igualar a ascensão de Khomeini à derrota de uma invasão / presença imperialista encarnada no regime do Xá. Em nossa correspondência, eles compararam repetidamente a situação com o lado que a Quarta Internacional tomou contra o Japão em sua ocupação da China nas décadas de 1930 e 1940 e outras posições anti-imperialistas que compartilhamos.

Os trotskistas se opõem a todos os setores da burguesia e promovem a independência da classe trabalhadora. Não promovemos uma ala dos capitalistas como supostamente “anti-imperialista” ou menos pró-imperialista, mas, em vez disso, mostramos a falsidade dessa afirmação. É impossível romper verdadeiramente com o imperialismo sem derrotar o capitalismo. Quando irrompe um conflito em que os resultados possam aprofundar o controle imperialista sobre uma nação oprimida ou destruir um movimento operário que luta contra os interesses imperialistas, tomamos partido para impedir a perda de posições já conquistadas.

Declarar que os resultados do Irã após fevereiro de 1979 foram uma “vitória” para os trabalhadores e a situação “muito melhor” não ajuda a defender quaisquer posições, exceto confundir os trabalhadores sobre o perigoso significado da ascensão dos islamistas. Embora os camaradas do BEA nunca o tenham formulado claramente, seria consistente com essa posição promover a vitória de Khomeini desde o início (já que seria uma “vitória parcial”). Na verdade, em determinado momento das correspondências, eles escreveram que a tarefa desde o início da revolução até a queda do Xá / Bakhtiar era “lutar junto com os seguidores do aiatolá Khomeini para derrubar o regime” e “após a vitória da luta do contra o Xá” (!) eles lutariam pelo poder dos trabalhadores:

“Desde o início da revolução em 7 de janeiro de 1978, até o colapso dos militares em 11 de fevereiro de 1979, lutaríamos junto com os apoiadores de  Khomeini para derrubar o regime. Ao mesmo tempo, protegeríamos incondicionalmente a independência política e organizacional e alertaríamos a classe trabalhadora sobre a natureza reacionária dos seguidores de Khomeini. Após a vitória da luta contra o Xá, lutaríamos para construir o poder dos trabalhadores”. (1º de agosto de 2019).

Concordamos, por exemplo, que considerávamos a nacionalização de certas empresas americanas pelo regime de Khomeini um ganho parcial e deveríamos defendê-lo. Embora pudéssemos ficar do lado dos apoiadores de Khomeini em um nível prático em certas questões específicas, não poderíamos ter uma orientação geral de lutar “junto com eles” (em oposição a uma orientação proletária independente) para derrubar o regime. No quadro geral, escrevemos: “não confundimos as duas coisas porque, muito mais importante do que algumas medidas anti-imperialistas pontuais, é o fato de que o novo regime se dedicou a destruir a revolução e qualquer chance de anti-imperialismo sólido e real.” (12 de junho de 2019).

Ficou claro que isso era mais do que uma “diferença histórica” quando percebemos que a visão desses camaradas também se refletia em outros eventos, como a substituição em 2011 do ditador egípcio Mubarak por uma junta de seus generais e seu ex-primeiro-ministro como forma de tentar conter as lutas massivas e greves contra a austeridade e opressão política. Os camaradas do BEA também viram isso como uma “vitória parcial” e não uma manobra para distrair os trabalhadores e as massas. Apontamos que isso tinha muitas semelhanças com o pensamento revisionista (como dos pseudo-trotskistas morenistas).

As discussões também envolveram as consignas espartaquistas na revolução iraniana, o significado da revolução de fevereiro de 1917 na Rússia, outras posições anti-imperialistas, como nas guerras na Líbia e na Síria e, posteriormente, a participação imperialista no impeachment / golpe no Brasil em 2016. A partir da nossa carta de 9 de julho de 2020, os camaradas do projeto Bolchevique-Leninista da Austrália participaram nas discussões escritas e no nosso chat online. Sua ajuda política e técnica foi muito significativa para a continuação das discussões.

Apesar de um início promissor, no qual concordamos em questões significativas, as discussões terminaram em frustração, com os camaradas do BEA nos acusando de sermos teimosos e de usar uma falácia de espantalho contra eles. Eles então decidiram encerrar as discussões conosco. Em nossa última carta a eles durante um período de quase 2 anos, concluímos:

“Quanto a sermos teimosos em relação às nossas posições, não o negamos em absoluto, mas definitivamente não somos desonestos. Até o fim, tentamos honestamente convencê-los dentro de nossa capacidade, em um idioma no qual nenhum dos nossos grupos é fluente. Vimos as discussões com vocês como uma oportunidade séria de reagrupamento. Buscamos ativamente discussões com grupos e indivíduos internacionalmente, na tentativa de construir uma tendência internacional com base em nossas posições. Vamos continuar a fazer isso teimosamente!

“Uma semana antes de vocês enviarem sua carta em 14 de setembro, vocês demonstraram desejo de divulgar o conteúdo de nossas cartas trocadas e perguntaram se concordávamos com a postagem de nossas cartas para vocês. Isso nos indicou que as discussões da sua parte estavam encerradas, embora vocês tenham ignorado nossas perguntas diretas a respeito. Declaramos claramente a vocês: ‘Concordamos em tornar públicas as cartas, mas provavelmente também iremos querer responder à carta de vocês. Ela será adicionada depois?’. Para nossa surpresa, vocês optaram por postar apenas o seu lado das discussões. Publicaremos todo o conteúdo das discussões em nosso site (incluindo suas cartas para nós). Pedimos que vocês façam o mesmo em seu site para uma representação honesta das opiniões de ambos os lados.” (28 de setembro de 2020).

Agora disponibilizamos as cartas de ambos os lados, na tentativa de ajudar no esclarecimento da questão para aqueles que buscam uma política revolucionária.

Clique aqui para acessar o índice com as cartas trocadas (disponíveis em inglês).