Resposta à Luta Marxista
Resposta à Luta Marxista
Junho de 2017
Em junho de 2013, a Luta Marxista (LM), um grupo trotskista do Rio Grande do Sul, escreveu um texto intitulado Resposta a Icaro Kaleb (http://lutamarxistablog.blogspot.com.br/2013/06/resposta-icaro-kaleb.html). O título fazia referência ao nome de um companheiro do Reagrupamento Revolucionário (RR) e tecia críticas a comentários informais feitos por este companheiro numa postagem da LM no Facebook, divulgando o texto A frente única segundo a Liga Comunista (26/05/2013). Em seguida, criticava posições políticas presentes em textos do RR. A escolha do título citando um militante (e não o nosso grupo), assim como a reprodução de comentários individuais feitos no Facebook e que tinham um caráter claramente informal (e não de declaração pública da organização) não fazem parte do nosso método de debate. Também não pudemos deixar de notar que a LM não disponibilizou nenhum link para o nosso site ao longo do seu texto, dificultando aos leitores terem acesso à nossa formulação original. De qualquer forma, é para nosso demérito que não tenhamos respondido anteriormente à crítica da LM, diante das várias outras tarefas que foram colocadas para nosso grupo nesse meio tempo. Mas, como diz o ditado, antes tarde do que nunca. Por isso, tomaremos essa oportunidade para responder a tal crítica, ponto a ponto. (Os extratos do texto da LM estão em negrito).
Introdução: nossa relação com a Luta Marxista
O Reagrupamento Revolucionário realizou algumas trocas de correspondência com a Luta Marxista com a intenção de verificar proximidades políticas após a intervenção imperialista na Líbia em fins de 2011, quando nossos grupos tiveram uma resposta similar e tomamos conhecimento da existência da LM. Também foi satisfatório constatar que tanto nós quanto a LM rejeitamos as tradições revisionistas do trotskismo do pós-guerra, conhecidas pelos nomes de seus formuladores (morenismo, mandelismo, lambertismo etc.) e temos muitos elementos comuns em nossas críticas à esquerda centrista do Brasil.
Porém, depois de algumas interações, identificamos algumas áreas importantes de desacordo. Uma delas está no fato de que a LM acredita que atualmente já não resta mais nenhum Estado operário deformado, enquanto nós do RR consideramos que Cuba, China e Coreia do Norte seguem sendo-o (o mesmo valendo para Laos e Vietnã, ainda que tenhamos dúvidas sobre esses casos e tenhamos planos para estuda-los em maiores detalhes). Tivemos a impressão, com base nas nossas trocas de correspondência, que os companheiros colocam menor ênfase na luta contra a opressão racista do que nós, que consideramos tal batalha como estratégica para a vitória da revolução socialista no Brasil. Além disso, nós reivindicamos o legado programático de organizações do trotskismo pós-guerra que encaramos terem representado elos da continuidade revolucionária, por terem tanto resgatado elementos centrais do arcabouço original do movimento, em resposta a desvios revisionistas, quanto por terem avançado em elaborações e correções originais. São elas a ala majoritária do Partido Comunista Revolucionário inglês (RCP, anos 1940); a Tendência Vern-Ryan do SWP dos EUA (início dos anos 1950); a Tendência Revolucionária, também do SWP (início dos anos 1960); a Liga Espartaquista (Spartacist League, SL), formada após a expulsão desta última em 1963; e a Tendência Bolchevique Internacional (IBT), formada no começo dos anos 1980, em reposta ao processo de degeneração burocrática e programática da SL e que até os anos 2000 representou uma alternativa positiva à mesma, antes de passar por um processo similar de degeneração. Já a LM, no nosso conhecimento, não realizou um esforço de resgate histórico das contribuições positivas de setores do trotskismo pós-guerra.
Diante dessas importantes diferenças, nenhum dos dois grupos se entusiasmou em dar continuidade às discussões, mas continuamos a seguir atentamente as publicações das companheiras e companheiros. Uma diferença que constatamos posteriormente foi sua posição de não participar (“furar”) em greves convocadas pela CUT quando havia algum ponto de pauta nas greves que dava apoio a projetos do então governo do PT. Foi o caso das greves de 2012, 2013 e 2016, em que a direção da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) incluiu na pauta o apoio ao Plano Nacional de Educação, mas nas quais havia também pautas progressistas (ver, por exemplo, Nova marcha à Brasília semi-governista, 07/04/12, http://lutamarxistablog.blogspot.com.br/2013/04/nova-marcha-brasilia-semi-governista.html e É possível disputar o PNE e a “greve” nacional da CNTE-CUT?, 16/04/13, http://construcaopelabase.blogspot.com.br/2013/04/e-possivel-disputar-o-pne-e-greve.html). Para nós, o correto seria participar dessas greves denunciando os elementos de pauta governistas, mas apoiando o movimento pelo seu caráter relativamente progressivo contra interesses patronais e burgueses (devido à existência de outras demandas progressivas).
Esclarecendo a posição da Liga Espartaquista nos anos 1960-70 e a nossa. Porque não reivindicamos a “Frente Única Anti-imperialista”.
A postagem da LM nas redes sociais, e que deu início ao debate ao qual respondemos aqui, mencionava posições da Liga Espartaquista nos anos 1960-70 e debatia como os trotskistas deveriam se posicionar diante de ataques imperialistas contra países coloniais ou semicoloniais. O companheiro Icaro Kaleb questionou a crítica (contida de forma ambígua no texto da LM) de que a SL não teria tomado a defesa da Argélia ou de Angola diante dos ataques imperialistas a esses países na época. Os comentários de Kaleb continham citações de escritos da SL nas décadas de 1960 e 1970, que mostravam claramente a posição de tomar o lado contrário aos imperialistas, assumindo a defesa militar, mas sem dar apoio político, dos movimentos burgueses ou pequeno-burgueses das colônias. Posteriormente, a LM acusou o RR da mesma posição de “neutralismo” com relação à atual guerra civil na Síria (2011-presente):
O companheiro Icaro Kaleb contestou a seguinte frase do nosso documento “A Frente Única segundo a Liga Comunista”: “Pelo visto, os espartaquistas seriam contra, por exemplo, o apoio ao MPLA de Angola ou à Frente de Libertação Nacional da Argélia, ou a qualquer acordo com eles na luta contra o colonialismo português e francês”. Diz que estamos “falando besteira” e que não apresentamos “uma citação sequer para demonstrar isso”. Parece-nos que houve um equívoco. Não afirmamos que a Liga Espartaquista não tenha se posicionado pela defesa de Angola e da Argélia. Nada sabemos sobre a sua posição em relação a esses episódios.
[…]
A nossa frase foi tirada do contexto. Quisemos apenas tirar a conclusão lógica dessa teoria que exclui a frente única. Quem exclui por princípio a frente única com a burguesia teria que ser logicamente contra a defesa de Petrogrado contra Kornilov em frente única com Kerensky, que ser contra a defesa da China contra o Japão, contra a defesa de Angola, da Argélia, de Moçambique, etc, etc, etc. É lógico que ninguém é tão estúpido assim. O nosso argumento procura mostrar a contradição dessa teoria. O que dissemos foi: “Pelo visto, os espartaquistas (de 2011) seriam contra o apoio ao MPLA…”. Quisemos dizer apenas que, para serem coerentes com a sua teoria, deveriam ser contra isso. Por fim, concluímos: “Esse tipo de radicalismo dogmático que contrapõe o objetivo final aos imediatos, a estratégia à tática, encobre a conivência com colonialismo”.
O equívoco de Kaleb serviu para que nos esclarecesse sobre a posição da Liga Espartaquista no episódio, a qual, pela sua citação, muito se parece com a proposta de Frente Única Anti-imperialista, embora não fique claro se efetivamente concorda com essa tática. Infelizmente Kaleb nada nos disse sobre a suposta incompatibilidade entre a tática de FUA e a Revolução Permanente. O nosso documento combate todos os “neutralistas”, ou que defendem a luta em duas frentes, que são muitos, não apenas essa fração do espartaquismo.
Vamos esclarecer essas questões. Ao contrário das guerras interimperialistas (nas quais nos opomos aos dois lados), os socialistas revolucionários defendem as nações oprimidas contra as intervenções e ataques das grandes potências. A derrota da potência contra uma nação subjugada é o mal menor, pois enfraquece a burguesia imperialista em casa (diante do proletariado) e fortalece o povo da nação oprimida na luta por sua libertação, explicitando as contradições de classe internas. Ao mesmo tempo, é necessário manter a plena independência política do proletariado, única classe capaz de conduzir a luta anti-imperialista de forma consequente (que necessariamente precisa se dar por meio da superação do capitalismo com o estabelecimento de um Estado operário). Isso é um ABC do trotskismo.
Os trotskistas devem tomar o lado militar da nação oprimida mesmo que aqueles que estejam em melhores condições de defendê-la sejam o regime burguês ou movimentos pequeno-burgueses nativos (ainda que o façam nos limites de seus próprios interesses). Se houver condições, o partido revolucionário pode formar uma cooperação temporária com tais setores para fins práticos, mas mantendo sua completa independência política, inclusive de crítica. Como o companheiro Icaro Kaleb apontou na postagem da LM, a Liga Espartaquista tomou exatamente tal posição diante dos ataques imperialistas contra Argélia e Angola, assim como em outras ocasiões até o fim da década de 1970, quando reivindicamos suas posições programáticas, no que esteve em contraste com a maior parte das correntes que se reivindicavam trotskistas na época:
Os marxistas são inimigos irreconciliáveis do colonialismo e assim, sem esconder nossa luta contra o nacionalismo burguês, daríamos apoio militar e quaisquer grupos pró-independência contra o exército português. […] Nas atuais circunstâncias, o nacionalista de esquerda MPLA não está lutando meramente contra a FNLA e a UNITA, mas contra uma coalizão imperialista, colonialista e anticomunista que, se vitoriosa, instalaria em Luanda um regime fantoche essencialmente subordinado à África do Sul e aos EUA. A política correta para os proletários revolucionário, portanto, é apoio militar ao MPLA contra a ofensiva sul-africana financiada por Washington.”
– Workers Vanguard No. 85, 14 de novembro de 1975, p.1
Enquanto blocos militares episódicos com as forças nacionalistas podem ser necessários, o proletariado dos países atrasados deve manter a sua independência de classe da burguesia e todas as formações pequeno-burguesas. Organizado de forma independente e sob a liderança de um partido de vanguarda trotskista, o proletariado deve mobilizar através de sua bandeira os camponeses e pobres urbanos, assumindo, assim, a hegemonia na luta anti-imperialista. A perspectiva trotskista da revolução permanente repousa sobre o princípio da independência da vanguarda proletária.
– Workers Vanguard No. 86, 21 de novembro de 1975, p.5
Não temos nenhum compromisso com o que defendeu a SL degenerada de 2011. Em 1983, por exemplo, a SL recusou-se a defender militarmente a reação de combatentes libaneses contra a ocupação do país pelos EUA (numa aparente posição de “neutralismo”); em 2001, esquivou-se de defender a derrota dos EUA na ocupação do Afeganistão ao dizer que ela era “impossível”; e, mais escandalosamente ainda, em 2010, apoiou por três meses a ocupação americana no Haiti, sob a “desculpa” de que era a única forma de proteger as massas do país após o terremoto que devastou essa pequena nação caribenha. Essas posições, todas as quais criticamos (ver A Liga Espartaquista apoia as tropas americanas no Haiti!, 15/2/10, https://rr4i.milharal.org/2011/07/08/polemica-com-a-liga-espartaquista-sobre-a-ocupacao-do-haiti/), estão em claro contraste com o que defende o RR e com o legado espartaquista que reivindicamos dos anos 1960-70.
Porém, a LM levanta também outra questão, que é a seguinte: “a posição da Liga Espartaquista no episódio […] muito se parece com a proposta de Frente Única Anti-imperialista, embora não fique claro se efetivamente concorda com essa tática. Infelizmente Kaleb nada nos disse sobre a suposta incompatibilidade entre a tática de FUA e a Revolução Permanente.” Em primeiro lugar, o companheiro Icaro Kaleb “nada disse” porque tratou-se de um comentário no Facebook. Até o momento, não tínhamos escrito nenhum texto elaborado sobre o assunto e seria, no mínimo, curioso exigir que explicasse todas as questões teóricas envolvidas numa plataforma tão limitada. Em segundo lugar, a LM conhece bem a posição do RR sobre a defesa das nações oprimidas, pois já afirmou acordo com a mesma no caso da Líbia, durante nossa comunicação de 2011. Não há absolutamente nada em nossos materiais que permite supor que opomos as táticas de defesa concreta contra o imperialismo ao objetivo estratégico da revolução socialista – ao contrário, nossos textos sobre o caso da Líbia deixam claro que ambos devem caminhar juntos (ver nosso livreto Líbia e a esquerda, 2º semestre de 2011, https://archive.org/download/LivretoLenin/01_L%C3%ADbia.pdf).
A única reserva que fazemos, é que não igualamos a defesa da nação oprimida, mesmo que seja em unidade tática com uma força burguesa ou pequeno-burguesa, com a linha “Frente Única Anti-imperialista” sem uma melhor qualificação, para evitar confusões. Pois essa política (FUA) tem duas versões principais nas tradições que conhecemos. A primeira foi formulada no IV Congresso da Internacional Comunista (1922) e prevê uma colaboração para fins práticos entre setores da burguesia nacional e o partido proletário, no contexto de movimentos de massa pela libertação nacional em países coloniais / semicoloniais. Tal tática, que se encontra nas Teses gerais sobre a questão do Oriente, apesar de alguns elementos ambíguos, que dão margem a entender que o caráter da revolução nesses países deve ser nacional-democrático / democrático-burguês, não estando a revolução socialista no horizonte histórico imediato, tem um caráter absolutamente correto, de privilegiar a perspectiva proletária e o objetivo de desmascarar os nacionalistas burgueses. A Oposição de Esquerda e a Quarta Internacional, porém, não reivindicavam tal tática. A razão principal disso parece estar na intenção de se desassociar da aplicação oportunista que a Comintern estalinizada deu à mesma, de subordinação política do proletariado à burguesia, especialmente na segunda revolução chinesa (1925-27).
Já a segunda versão, formulada por parte do revisionismo que se reivindica trotskista no pós-guerra (lambertismo, POR boliviano, PO argentino) chama de FUA a um bloco político com a burguesia, com a esperança de que um setor da classe dominante nativa seja capaz de defender os interesses da nação oprimida contra o imperialismo (uma variante de frente populismo), e vendo como necessário para a luta pela revolução socialista que antes haja uma luta democrático-burguesa no país (ver Partido Obrero (Argentina) e a colaboração de classes com a burguesia, http://rr4i.milharal.org/2017/03/29/partido-obrero-argentina-e-a-colaboracao-de-classes-com-a-burguesia/). Portanto, não vemos razão para reivindicar tal noção de FUA (não menos do que a Quarta Internacional viu a necessidade de se desassociar da FUA da Comintern estalinizada). É preciso prezar pela clareza daquilo que defendemos. Isso nada tem a ver com rejeitar tomar lado em defesa da nação sob ataque imperialista ou mesmo de realizar acordos práticos para combater o imperialismo. A própria LM, que na polêmica contra o RR soa como se considerasse a perspectiva de FUA apropriada, no texto que gerou o comentário original de Icaro Kaleb, aponta que:
A Frente Única Anti-imperialista (FUA) não fez parte do programa da IV Internacional, não porque invalidasse as Teses do Oriente. Não é verdade que a defenda, apenas sem utilizar a denominação, como afirma o Socialist Fight. Não, a IV Internacional não se valeu dessa tática porque não existiam mais as condições da década de 20, principalmente, um partido revolucionário. A FUA é um “acordo prático” entre organizações de massa. Carece de sentido a sua defesa por pequenas organizações. Nunca foi uma tática universal, como defendiam Lambert, Lora e agora a Liga Comunista (…).”
– Frente Única segunda a Liga Comunista, 26 de maio de 2013
http://lutamarxistablog.blogspot.com.br/2013/05/a-frente-unica-segundo-liga-comunista.html
Acrescentamos que a teoria da Revolução Permanente ofereceu também um prognóstico mais preciso da situação nos países coloniais e semicoloniais, ao generalizar a experiência das revoluções russas e da segunda revolução chinesa. A LM afirma que “A tática de FUA perdeu atualidade”. Isso não impediu, é claro, que Trotsky e a Quarta tomassem posição com a Etiópia contra a Itália, com a China contra o Japão ou (hipoteticamente) com o Brasil contra a Inglaterra, ao mesmo tempo em que defendiam a independência política e a hegemonia do proletariado na luta anti-imperialista. É isso o que reivindicamos.
A posição do RR é de “neutralismo” nos confrontos com o imperialismo e suas “tropas terrestres” na Síria? Não! A caracterização simplista da LM sobre as forças “rebeldes”.
Da confusa acusação de “neutralismo” feita à Liga Espartaquista, a crítica da LM estende a acusação ao RR em relação ao conflito sírio, em uma flagrante falsificação da nossa posição, exposta de forma clara em diversos textos. A LM diz que:
O próprio RR e Kaleb têm, em certo sentido, uma posição “neutralista” com relação à Síria, expressa no texto “O conflito sírio e as tarefas dos revolucionários”, assinado por Leandro Torres. Esse documento faz uma excelente análise desse conflito, mostrando a vinculação ao imperialismo de todos os componentes da oposição “rebelde”, membros do Conselho Nacional Sírio: Exército Livre da Síria, Irmandade Muçulmana e os Comitês Locais de Coordenação. Sob certas condições, admite tomar a defesa da Síria: “Se os imperialistas intervierem militarmente para apoiar o CNS/ELS, nossa atitude no conflito será tomar o lado militar da nação oprimida, desejando a derrota (ainda que pelas mãos do governo Assad) dos imperialistas e de seus apoiadores nativos”. Portanto, a defesa da Síria dependeria da intervenção imperialista direta, mas enquanto isso não acontece, a política do RR é de neutralismo: “O caráter armado do conflito não impõe a defesa de algum dos campos armados em luta, mas apenas a obrigação de combater politicamente ambas as frações nessa disputa onde somente estão em jogo os interesses estreitos da burguesia Síria. A tarefa atualmente posta na Síria é a criação de um movimento da classe trabalhadora que se contraponha aos interesses da burguesia e tome para si a defesa da democracia e do socialismo”.
Essa posição é equivocada embora contenha aspectos muito corretos que dizem respeito à independência de classe. A defesa das nações oprimidas não significa a suspensão da luta de classes contra todas as frações burguesas. Mas a criação de um “movimento independente da classe trabalhadora” contra essas frações não a desobriga da defesa de uma semicolônia. Não é apenas a ausência de bombardeios da OTAN que determina o caráter imperialista do conflito. Não é verdade que exista uma guerra civil isolada, como defende Leandro Torres. A afirmação de que “somente estão em jogo os interesses estreitos da burguesia Síria” é profundamente equivocada. Estão em jogo os interesses da burguesia internacional. A tomada da Síria é a antessala da guerra contra o Irã e do cerco à China e à Rússia. O imperialismo exerce uma pressão política, ideológica, econômica e militar contra o regime sírio. Não interveio diretamente, mas o faz através dos seus prepostos os chamados “amigos da Síria”. É notório o apoio militar aos “rebeldes” da Turquia, Catar e Arábia Saudita. Esse equívoco leva a uma política de neutralidade ou de luta em duas frentes que iguala os contendores e favorece o imperialismo.
Não é admissível neutralidade nas intervenções imperialistas, diretas ou indiretas, ou a luta em duas frentes militares. (…) Assad derrubado tanto pela OTAN como pelo CNS é o imperialismo que triunfa. Os trabalhadores devem posicionar-se no campo de luta contra o imperialismo e seus prepostos, o CNS e amigos da Síria. Enquanto lutam de armas na mão contra o bloco pró-imperialista, fazem na retaguarda propaganda revolucionária contra Assad. Não podem permitir que o imperialismo o derrote. Isso é tarefa sua.
Em primeiro lugar, a frase que diz que o caráter armado de um conflito não impõe necessariamente a tomada de um dos lados está absolutamente correta. Os revolucionários não apoiam nenhum lado em guerras interimperialistas, por exemplo. Também não é automático para os revolucionários tomar o lado em conflitos armados entre frações da classe dominante dos países periféricos para decidir qual delas vai oprimir os trabalhadores e servir ao imperialismo. O caso muda quando uma delas representa um aprofundamento qualitativo da opressão sobre o povo e os trabalhadores. O proletariado deve defender sempre os seus próprios interesses, assim como dos povos e nações oprimidos. Encontrar-se do mesmo lado da barricada que setores de outras classes é uma eventualidade (da qual, obviamente, deve-se tirar proveito).
O “Exército Sírio Livre”, assim como o “Conselho Nacional Sírio”, jamais teve unidade política ou militar. No texto que a LM considera uma “excelente análise desse conflito”, nós explicamos as diferentes formações que compunham tal oposição. Todas as forças principais tinham um caráter burguês, que era uma “base de unidade” dos seus componentes. Porém, muitos deles tinham um caráter islâmico fundamentalista (e hostil aos EUA), enquanto setores minoritários, chamados enganosamente de “moderados” pelos EUA e pela grande mídia empresarial, eram abertos à colaboração, armamento e financiamento dos EUA. Os setores islâmicos, que sempre tiveram um caráter preponderante na oposição, recebiam financiamento dos “Amigos da Síria” (Turquia, Arábia Saudita, Catar) mesmo que sem o pleno aval dos EUA. Não acreditamos que os Estados árabes que financiavam os rebeldes fossem meros “prepostos” americanos. São seus aliados políticos na região, é claro, mas também tem alguns interesses contraditórios com o mesmo. Inclusive, tais “amigos da Síria” sempre exigiram uma intervenção imperialista (tal qual o CNS), na qual os EUA nunca embarcaram, devido à ausência significativa de forças leais diretamente a si no território sírio (dentre outros fatores, como a menor quantidade de recursos pós crise de 2008 e maior oposição da população a intervenções militares no estrangeiro após o fiasco da invasão ao Iraque e Afeganistão na Era Bush).
O texto criticado pela LM foi escrito em meados de 2012, portanto no estágio inicial de uma guerra que começou em 2011. A essa altura, a intervenção imperialista no país tinha um caráter bem menos significativo. Lembremos que não havia emergido ao poder em 1/3 do país o Estado Islâmico, que desde então tem sido alvo dos bombardeios americanos e justificado o aumento da presença de especialistas militares dos EUA. Mas já ficava evidente a incapacidade do imperialismo de encontrar aliados locais confiáveis, e o receio de repetir a “traição” ocorrida na Líbia após a derrubada de Kadaffi, feita em associação a elementos fundamentalistas islâmicos nativos.
Em 2012, prevemos alguns cenários, como a possibilidade de os aliados dos EUA na Síria obterem hegemonia no “Exército Sírio Livre” e tornarem-se “tropas terrestres” do imperialismo (como ocorreu na guerra contra o regime de Kadaffi). Para esse caso, deixamos claro que tomaríamos o lado contrário e de defesa militar da nação oprimida, assim como fizemos na Líbia. Esse caso não se confirmou. Os EUA não puderam achar nenhum grupo significativo na guerra que defendesse seus interesses diretos. Ao longo de todos esses anos, os bombardeios imperialistas se restringiram ao Estado Islâmico (com assentimento inquieto de Assad). O único ataque imperialista contra o governo Assad foi o realizado recentemente por Trump (ao qual, obviamente, nos opomos – ver Defender a Síria, China e Coreia do Norte! Para garantir a paz, lutar pela revolução socialista internacional!, abril de 2017, https://rr4i.milharal.org/2017/04/23/declaracao-internacional-defender-a-siria-china-e-coreia-do-norte/).
A diplomacia americana apoia o CNS, mas pode amanhã apoiar o regime Assad, caso veja vantagens políticas e econômicas para tal. Combatemos a presença imperialista sob todos os aspectos: econômico, político e militar. Mas o que é determinante para tomar um lado na guerra é se um dos lados é um agente subordinado militarmente ao imperialismo (como rapidamente se tornaram os “rebeldes” líbios em 2011). A LM se engana ao dizer que o RR não reconhece as intervenções imperialistas “indiretas”. O próprio caso da Líbia é uma variante disso, pois não havia tropas imperialistas no terreno. Na Síria, entretanto, não houve o estabelecimento significativo de “tropas terrestres” do imperialismo recrutadas entre forças nativas. Os “rebeldes” sírios eram e são uma força burguesa reacionária, mas cuja maioria dos grupos não pôde cumprir esse papel. Não lhes damos nenhum apoio político ou militar na sua empreitada reacionária. Mas tampouco vemos razão para tomar o lado do regime Assad de forma irrestrita. O caráter da guerra entre o regime Assad e a maioria dos “rebeldes” não se tornou preponderantemente imperialista.
Em 2015, descrevemos de forma mais clara a situação. Deixamos claro que tomamos a defesa da nação oprimida, ainda que na mesma trincheira de seu governo tirânico, quando este se confronta com os imperialistas e suas “tropas terrestres” – que, no caso da Síria, ao longo do tempo se tornou claro que existem, ainda que de forma minoritária em relação ao conjunto dos “rebeldes” no interior do ELS e constituindo força ainda militarmente muito frágil em relação às demais em campo:
Os Estados Unidos não conseguiram uma aliança duradoura com a maioria dos rebeldes, que não foram considerados “moderados” o suficiente. Washington tem tomado mais cuidado com seus aliados desde a desastrosa experiência na Líbia, onde muitas das armas enviadas acabaram caindo nas mãos de extremistas antiamericanos. Algumas unidades específicas do ELS, entretanto, receberam significativa ajuda militar dos Estados Unidos e, nesse momento, Obama já começou a treinar o seu próprio “grupo rebelde”, o qual deve ser denunciado enquanto uma tropa terrestre do imperialismo.”
[…]
Nós não temos nenhuma pena pelas derrotas que os imperialistas sofrerem no Iraque e na Síria. Não nos esquecemos dos crimes cometidos pelos imperialistas no Iraque (incluindo as mortes de cerca de 120.000 civis iraquianos) e consideramos sua expulsão do Oriente Médio, assim como a derrota de suas “tropas terrestres”, como uma prioridade.
[…]
O mais importante é que nos opomos à intervenção dos imperialistas e suas “tropas terrestres” como uma prioridade. Isso significa que iríamos, em princípio, tomar o mesmo lado militar com o regime Assad ou grupos rebeldes jihadistas em ocasiões em que eles se confrontassem com forças imperialistas. Em segundo lugar, nos opomos aos avanços do EI e buscaríamos defender a classe trabalhadora e as minorias religiosas e étnicas oprimidas por seu ataque. Em terceiro, nos opomos a ambos os lados na guerra entre o regime de Assad e os rebeldes que não estão subordinados às potências imperialistas.”
– Guerra civil síria, Estado Islâmico e a batalha por Kobane: Defender a Síria contra o imperialismo! Por um polo proletário independente!, janeiro de 2016
https://rr4i.milharal.org/2016/01/31/guerra-civil-siria-estado-islamico-e-a-batalha-por-kobane/
Afirmamos o mesmo numa declaração ainda mais recente:
Na emaranhada guerra civil que tem devastado a Síria há quase 6 anos, nós temos nos pronunciado sistematicamente contra toda a investida americana: o financiamento de certos grupos combatentes dentro do Exército Livre Sírio, os bombardeios contra o Estado Islâmico e as ameaças de ataque ao governo sírio. A Síria é uma nação oprimida pelo imperialismo. Apesar de não termos nenhuma simpatia e não darmos nenhum apoio político ao tirano Assad, nos confrontos com os grupos de combatentes armados e treinados pelos EUA dentro da oposição (suas “tropas terrestres”), tomamos o lado militar do governo sírio, pois a derrota e a expulsão dos imperialistas do Oriente Médio é uma prioridade máxima. Na eventualidade de uma guerra direta dos EUA contra a Síria, também temos um lado: contra os imperialistas e seus aliados. Isso não significa nenhum apoio às atrocidades e desrespeitos aos direitos humanos do governo sírio. Desejamos que os trabalhadores sírios derrubem Assad e estabeleçam seu próprio poder. Ao mesmo tempo, quando o que se coloca no período imediato é um confronto entre um país subjugado e outro opressor, aqueles que defendem o socialismo não podem ser neutros.
– O imperialismo americano estica suas garras: Defender a Síria, China e Coreia do Norte! Para garantir a paz, lutar pela revolução socialista internacional!, abril de 2017
A diferença entre nós e a LM está em que não consideramos o ESL como um todo (até porque não existe uma homogeneidade, trata-se de um emaranhado de milícias bastante independentes uma das outras) como “tropas terrestres” do imperialismo. Nos confrontos entre os jihadistas sunitas reacionários ou a “Frente Muçulmana” e o governo Assad, não tomamos o lado de nenhum deles. Ambos são forças com o interesse de manter sua dominação em bases capitalistas acima do proletariado, inserida no cenário de um mundo dominado pelo imperialismo. Não há entre eles uma diferença qualitativa. A tarefa de forjar forças proletárias independentes, que é permanente, não exige aqui que tais forças se posicionem em um lado ou outro da barricada. O caso é diferente quando estão envolvidas as “tropas terrestres” do imperialismo. A LM prefere simplificar uma realidade complexa.
Nossa posição somente é “neutralista” (na verdade, de oposição aos dois lados) quando o imperialismo não está envolvido nem de forma direta, nem de forma indireta (financiamento, treinamento etc. para subordinação de tropas nativas aos seus interesses). O Programa de Transição aponta que “os sectários só são capazes de distinguir duas cores: o branco e o preto. Para não se expor à tentação, simplificam a realidade.” Na sua época, Trotsky criticava os sectários que se recusavam a tomar o lado das nações coloniais ou semicoloniais, o que não é o caso da LM. Mas o método é similar. O fato de os rebeldes na Síria serem “pró-imperialistas” não os torna diferentes do governo sírio, que nada tem de “anti-imperialista” (que é o que acredita parte da esquerda). O que é determinante é saber quais setores estão agindo para o aprofundamento do domínio imperialista sobre o país e se há uma diferença qualitativa entre eles e o status quo. Achamos que os setores rebeldes que caracterizamos como “tropas terrestres” são exatamente isso e, nesses casos, tomamos o lado oposto, ainda que este seja hegemonizado por Assad.
O RR defende que os revolucionários deveriam participar dos protestos que significassem apoio aos “rebeldes” armados? Não!
A falsificação da LM em relação à nossa posição acerca da Líbia e da Síria continua, na forma de uma distorção do que havíamos afirmado em 2012 frente às manifestações de rua contra Assad, como se estivéssemos defendendo algum tipo de capitulação aos “rebeldes” e ao imperialismo:
Embora Leandro Torres diga que o CNS “não merece nenhum apoio por parte do proletariado”, defende contraditoriamente uma política de disputa das bases dos Comitês Locais de Coordenação: “Encaramos assim, que a tarefa colocada pelos revolucionários na Síria é de intervir em todos os protestos de rua pró-democracia que tenham um caráter mais à esquerda, buscando convencer a juventude e demais elementos que se inspiram nos Comitês Locais de Coordenação de que o CNS e seus braços auxiliares não são capazes de garantir uma verdadeira democracia…”. Então, deveríamos participar “em todos os protestos de rua” convocados pelos Comitês Locais, buscando convencer suas bases “de que o CNS e seus braços auxiliares (entre os quais os próprios Comitês) não são capazes de garantir uma verdadeira democracia”. Essa política ignora a realidade. Numa guerra civil, onde o fator militar é o elemento preponderante, normalmente as mobilizações estão subordinadas aos interesses da guerra, dificilmente podem ser independentes. Esse é o caso Sírio. Por mais legítimo que seja o ódio do povo sírio contra Assad, todas as mobilizações promovidas pela oposição “rebelde”, mesmo pelos setores mais à esquerda, em nome da democracia, servem de fato, objetivamente, aos interesses do imperialismo, porque reforçam o bloco pró-imperialista. Somente poderíamos participar de um movimento realmente independente. É um grave erro disputar as bases do movimento “rebelde”. Embora as melhores das intenções, isso seria participar criticamente do campo imperialista.
O que é colocado pela LM é uma deformação da nossa posição, que é atacada como um espantalho. Trata-se de um jogo de palavras, onde fica em maior evidência o fato de a LM não ter providenciado nenhum link direto para o nosso texto, pois a leitura do mesmo tornaria as suas acusações inócuas.
Em primeiro lugar, consideramos que existiram, no período inicial do conflito, protestos espontâneos ou semi-espontâneos onde o caráter político não estava definido de antemão (embora, é claro, houvesse uma presença crescente dos Comitês Locais, que logo se integrariam ao CNS). Nesse contexto, vamos reler o escreveu o RR sem as “interpretações” da LM.
Encaramos assim, que a tarefa colocada para os revolucionários na Síria é de intervir em todos os protestos de rua pró-democracia que tenham um caráter mais à esquerda, buscando convencer a juventude e demais elementos que se inspiram nos “Comitês Locais de Coordenação” de que o CNS e seus braços auxiliares não são capazes de garantir uma verdadeira democracia, além de buscar prioritariamente expandir esse convencimento ao proletariado.
– O Conflito Sírio e as tarefas dos revolucionários, setembro de 2012
https://rr4i.milharal.org/2012/09/15/o-conflito-sirio-e-as-tarefas-dos-revolucionarios/
O que está descrito nesse trecho é a possibilidade de participar dos protestos com caráter progressivo (“mais à esquerda”) com o objetivo de desmascarar a política dos “democratas” do CNS, inclusive os Comitês Locais de Coordenação. Em nenhum momento falamos de participar de atos “convocados pelos Comitês Locais” para auxiliar os rebeldes armados (no contexto da guerra). Essa acusação da LM não tem base alguma. Em nenhum momento do nosso texto escondemos o caráter dos CLC. Ao contrário, os denunciamos abertamente, o que não fica claro pelos trechos destacados pela Luta Marxista. Escrevemos:
O Conselho Nacional Sírio (CNS) é a coalização que congrega mais setores da oposição, entre eles os chamados Comitês Locais de Coordenação e o grupo armado “Exército Livre da Síria”. […] Não obstante o caráter altamente reacionário e violento do regime de Assad, os “rebeldes” do “Exército Livre” comandado pelo CNS não merecem nenhum apoio por parte do proletariado sírio e dos revolucionários. Tampouco o merecem os “Comitês Locais” […] Os “Comitês”, ao estarem organizando massivos protestos de rua, poderiam apresentar um caráter progressivo apenas se fossem instrumentos que atuassem de forma independente da burguesia. (ênfase no original).
Em outro texto publicado no mesmo ano, apontamos: “Traição e derrota: é exatamente isso que espera o proletariado sírio no caso de este apoiar uma vitória do CNS, seja este a governar diretamente, ou mesmo os Comitês Locais de Coordenação a ele subordinados.” (O Morenismo e a Posição da CST (UIT) na Síria, outubro de 2012, http://rr4i.milharal.org/2012/10/09/o-morenismo-e-a-posicao-da-cst-uit-na-siria/). As acusações da LM são infundadas. Sobre a participação em protestos de rua, ela aponta que “Essa política ignora a realidade” pois “Numa guerra civil, onde o fator militar é o elemento preponderante, normalmente as mobilizações estão subordinadas aos interesses da guerra, dificilmente podem ser independentes.” Sem dúvida esse é o caso muitas vezes, e cada vez mais com o prolongamento do conflito. Mas nem sempre foi o caso, especialmente em 2011/2012, quando existiram protestos desse tipo no encalço da “Primavera Árabe”. Nesse sentido, também apontamos, no parágrafo imediatamente seguinte ao que é citado pela LM:
Concretamente, se faz necessário proteger os protestos de rua contra os massacres de Assad, através da urgente organização de comitês de autodefesa dos trabalhadores. A defesa dos protestos contra os ataques do ditador é uma medida básica para garantir o direito da classe trabalhadora e outros setores oprimidos de se reunir, discutir política e lutar contra o governo. Mas essa defesa deve ser feita com os métodos independentes do proletariado, e combinada com uma campanha implacável de denúncia contra o CNS, e de sua meta pró-imperialista, como parte de uma luta mais ampla para ganhar o proletariado sírio para um programa de ruptura com o capitalismo. (ênfase no original)
Não achamos que há nada de errado com tal orientação. A acusação levantada pela LM, de que defendemos ir em manifestações dos CLC em apoio aos “rebeldes”, ou que “servem de fato, objetivamente, aos interesses do imperialismo” na guerra, é um absurdo. O que apontamos é que, em protestos com pautas progressivas, a orientação dos revolucionários deveria ser combater as ilusões da juventude e dos trabalhadores com os elementos burgueses. Esses protestos e manifestações não apenas existiram, como é importante defendê-los contra os ataques de Assad ou da oposição reacionária. São duas coisas completamente diferentes.
O RR acha que a Síria tem “resquícios de feudalismo” ou defende uma “revolução democrática” no país? Não! Por que a LM precisa falsificar nossa posição?
Por fim, as falsas acusações da LM em relação à nossa posição sobre a Síria chegam ao absurdo de afirmar o exato oposto do que defendemos em nossos diferentes textos sobre o assunto:
O RR não incorre nesse desvio social-democrata [“de crer, como os revisionistas, que a revolução democrática seria feita por algum setor da burguesia e se transformaria em socialista, sem necessidade de uma insurreição”], não delega qualquer papel progressista à burguesia. Entretanto, diversas passagens do texto de Leandro Torres deixam claro o caráter democrático da futura revolução síria: “Cabe ao proletariado, portanto, implementar tais tarefas democráticas e nacional libertadoras”. Não por acaso, enfatiza “a enorme atualidade da teoria da Revolução Permanente”, citando-a: “Para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado (…)”. O companheiro está muito equivocado. A Revolução Permanente mantém sua vigência apenas com relação ao papel do proletariado, mas está desatualizada quanto às tarefas da revolução democrática, que perderam preponderância em relação às tarefas socialistas. Não existe mais revolução democrática. Trotsky jamais pensou que a sua teoria seria supra-histórica, mantendo atualidade por mais de um século.
A revolução era considerada democrática porque as suas tarefas preponderantes eram abolir os restos do feudalismo (a monarquia e o latifúndio semifeudais) e realizar a independência nacional. Nos dias de hoje, não existe mais monarquia e latifúndio semifeudais. Mas não é assim que pensa Leandro Torres, para quem existiriam ainda “resquícios de arcaísmo”, que somente se pode entender como resquícios de feudalismo, porque somente isso justificaria a preponderância das tarefas da revolução democrática, que segundo o mesmo seriam as seguintes: “a submissão ao capital imperialista, a opressão nacional dos curdos, a opressão aos diferentes credos religiosos e a democratização do acesso à terra”.
Atualmente, nenhuma dessas tarefas caracteriza a revolução democrática, nem são preponderantemente democráticas. Os aspectos democráticos foram suplantados pelos aspectos socialistas. Naquela época, a libertação nacional dizia respeito basicamente à expulsão política e militar do imperialismo. Na atualidade, esses aspectos permanecem, mas os monopólios passaram a dominar toda a economia mundial. Nessas condições, não pode mais existir independência nacional baseada apenas na expulsão do imperialismo. O elemento dominante para a independência nacional passou a ser a expropriação dos monopólios multinacionais, que é uma tarefa eminentemente socialista. A opressão nacional dos curdos é um subproduto da dominação imperialista, que fatiou a sua nação entre a Turquia, Iraque, Irã e Síria.
O acesso à terra nada mais tem a ver com o fim do latifúndio semifeudal, que é hoje uma empresa capitalista. A reforma agrária não é mais a bandeira principal, mas a expropriação do capital agrário e a socialização do campo, porque desmembrar uma empresa agrícola é um retrocesso das forças produtivas. A defendemos ainda porque é uma aspiração do movimento sem-terra e é progressista em relação ao latifúndio improdutivo. A opressão aos credos religiosos é um resquício do passado mantido pelo capitalismo. O fim dessa opressão é uma bandeira democrática, mas não caracteriza uma revolução democrática. Ressuscitar, nos dias de hoje, a revolução democrática, isso sim, é um resquício de “arcaísmo”.
Aqui, há uma descaracterização ainda mais profunda da nossa posição. Mais uma vez, a LM confunde completamente o leitor. Qualquer pessoa que leia o texto do Reagrupamento Revolucionário percebe que nada tem a ver com a “interpretação” da LM, que deixa a entender que o RR defende uma “revolução democrática” para a Síria, ou que as tarefas democráticas são preponderantes. Citemos um trecho do mesmo texto que é criticado pela LM:
Está na ordem do dia começar a construção de uma organização revolucionária dos trabalhadores da Síria. Este partido deverá ser o núcleo de uma luta verdadeiramente revolucionária dos trabalhadores do país, a luta pelo fim do capitalismo através do enfrentamento aos efeitos da crise econômica sobre os trabalhadores sírios, visando uma melhoria radical das suas condições de vida, tornando o proletariado a classe dominante. Um partido que lute pela construção de uma revolução socialista, e não de uma variante do regime burguês.
– O Conflito Sírio e as tarefas dos revolucionários, setembro de 2012
https://rr4i.milharal.org/2012/09/15/o-conflito-sirio-e-as-tarefas-dos-revolucionarios/
Onde está a “revolução democrática”? Não só a revolução que defendemos é chamada pelo nome – revolução socialista – como também apontamos que seu sujeito é a classe trabalhadora e que ela deve pôr fim ao capitalismo. Em outro trecho, a LM aponta que “Nos dias de hoje, não existe mais monarquia e latifúndio semifeudais. Mas não é assim que pensa Leandro Torres, para quem existiriam ainda “resquícios de arcaísmo”, que somente se pode entender como resquícios de feudalismo.” Só quem entende dessa forma é a LM, pois tal situação não está descrita em nenhum momento no texto. Sequer aparecem as palavras feudalismo ou monarquia. Chega a ser ridículo ter que desmentir tal acusação. Será que esse é o único significado possível de arcaísmo? A todo o momento, apontamos que a Síria é um país capitalista, assim como são burgueses todos os competidores principais pelo poder no país.
Ao mesmo tempo, insistimos: há tarefas democráticas e de libertação nacional a serem resolvidas na Síria. A dependência estrutural do país ao imperialismo é uma dessas tarefas. Os direitos nacionais curdos é outra. A LM nos diz que: “A opressão nacional dos curdos é um subproduto da dominação imperialista, que fatiou a sua nação entre a Turquia, Iraque, Irã e Síria”. Mas o fato de que é subproduto da dominação imperialista não muda a sua realidade, e de que foi historicamente mantida pelo regime Assad. Há também as reformas democráticas mínimas, como de liberdade religiosa e de expressão política e sindical, que podem ser alcançadas (de forma relativa), mesmo no capitalismo atrasado, mas que inexistem no país.
Se a LM discorda que existam tais tarefas nacionais e democráticas a serem realizadas, então deve esclarecer que essa é a sua posição (o que seria uma expressão de sectarismo, se for o caso). Mas se só o que a LM tem a dizer é que a resolução de tais tarefas está vinculada à expropriação do capital, então nada tem a acrescentar ao que já dissemos. Embora alguns aspectos da teoria da Revolução Permanente tenham se desatualizado, de forma geral ela ainda descreve corretamente uma situação de combinação desigual de elementos “avançados” e outros “arcaicos” na periferia capitalista e a incapacidade congênita da classe burguesa para resolver tais contradições. Acreditamos que a teoria não se limitou à época em que certos países ainda tinham resquícios feudais. A maioria das colônias obteve a independência formal, mas muitos países ainda tem uma dinâmica de semicolônia para com as grandes potências. A terra pode ser vendida e comprada, mas na maior parte dos casos, manteve-se nas mãos de clãs (agora capitalistas) herdeiros dos velhos proprietários. Com ares professorais, a LM nos diz que “Nessas condições, não pode mais existir independência nacional baseada apenas na expulsão do imperialismo. O elemento dominante para a independência nacional passou a ser a expropriação dos monopólios multinacionais, que é uma tarefa eminentemente socialista.” Repetem o que diz a teoria da Revolução Permanente, ou seja, que não pode existir independência nacional efetiva (não apenas formal) dos países capitalistas extremamente tardios que não seja por meio da ditadura do proletariado. É também exatamente o que nós dissemos:
Apontamos também que a burguesia síria está umbilicalmente ligada ao “arcaísmo” existente hoje no país, cuja face mais evidente é o fundamentalismo religioso de muitas de suas frações e a submissão política e dependência estrutural de toda essa classe com relação às burguesias imperialistas. O sucesso de uma luta pelos direitos democráticos na Síria, que incluem a emancipação das mulheres, da minoria curda, a distribuição da terra e a libertação do país contra o imperialismo passam necessariamente pela expropriação dos capitalistas.
– O morenismo e a posição da UIT na Síria, outubro de 2012
https://rr4i.milharal.org/2012/10/09/o-morenismo-e-a-posicao-da-cst-uit-na-siria/
A LM aponta que “Ressuscitar, nos dias de hoje, a revolução democrática, isso sim, é um resquício de “arcaísmo””. Mas só quem “ressuscita a revolução democrática” – para falsamente atribuir a nós a sua defesa – é a Luta Marxista. Por sinal, nestes textos nos dedicamos justamente a polemizar contra a ideia de uma “revolução democrática” na Síria, o que torna a acusação estapafúrdia. A única explicação possível para tal “interpretação” da LM está na tentativa dos autores do texto de “ganhar pontos fáceis”, ao buscar nos impingir uma posição que não defendemos.
Ao fim da Resposta a Icaro Kaleb, a LM nos diz que “Quisemos com estas considerações fazer uma crítica fraternal aos companheiros. Esperamos que sejam entendidas dessa forma.” Nós, do Reagrupamento Revolucionário, buscamos também responder de forma fraterna ao que consideramos serem diferenças efetivas entre nossas análises sobre a situação na Síria. Não consideramos que temos uma compreensão perfeita da situação e temos sempre buscado aperfeiçoá-la. Apesar de ser difícil aceitar a honestidade na afirmação de que o RR “ressuscita a revolução democrática” para a Síria, damos aos companheiros o benefício da dúvida e a chance de se retratarem dessa falsa acusação. Estamos também dispostos a discutir, de maneira fraterna, outras diferenças políticas que temos com a Luta Marxista, desde que sejam criticadas as nossas posições efetivas e não outras que nos sejam indevidamente atribuídas. Conforme apontou Trotsky (em sua luta contra a gangrena stalinista):
NADA testifica tão claramente o curso errôneo do grupo de Stalin quanto sua determinação incessante de polemizar, não com nossas opiniões reais, mas com opiniões imaginárias que nós não defendemos e nunca defendemos. Quando os bolcheviques estavam polemizando com os mencheviques e socialistas-revolucionários e outras tendências pequeno-burguesas, os bolcheviques expunham ante os trabalhadores as verdadeiras opiniões defendidas pelos seus oponentes. Mas quando os mencheviques ou socialistas-revolucionários polemizavam com os bolcheviques, em vez de refutar as opiniões reais deles, eles atribuíam aos bolcheviques coisas que eles nunca haviam dito. Os mencheviques e socialistas-revolucionários não podiam expor as visões dos bolcheviques diante dos trabalhadores de forma justa porque, nesse caso, os trabalhadores teriam apoiado os bolcheviques […].