Partido Obrero (Argentina) e a colaboração de classes com a burguesia
Partido Obrero (Argentina) e a colaboração de classes com a burguesia
Por Icaro Kaleb
O artigo que segue foi originalmente publicado em fevereiro de 2013, como parte de uma polêmica sobre as incoerências do Partido da Causa Operária (PCO, Brasil) ao criticar outras organizações brasileiras por capitularem a governos e coligações eleitorais de colaboração de classes, ao mesmo tempo em que reivindicam como correto o apoio que eles próprios deram à coligação encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições presidenciais de 1989 e 1994, a qual já agregava alguns setores significativos da burguesia [1]. Nessa polêmica, apontávamos as raízes dessa capitulação do PCO à colaboração de classes no legado programático do Partido Obrero da Argentina, dirigido por Jorge Altamira, com o qual o PCO manteve relações por muitos anos [2]. Pequenas modificações foram feitas para a publicação desse texto como material separado do restante do original.
A questão da “frente popular” era, na época de Leon Trotsky, a “questão principal da estratégia da classe proletária na nossa época” (palavras suas, em Carta ao RSAP holandês, julho de 1936). Hoje, ela possui importância equivalente, dado o papel que organizações “de esquerda” tem cumprindo mundo afora, ao direcionar a classe trabalhadora para o apoio a governos de colaboração de classes. Ironicamente, a maior parte das organizações surgidas após a destruição da Quarta Internacional pelo revisionismo retrocedeu às mesmas concepções combatidas por Trotsky em seu tempo: identificar a “frente popular” (ou coalizações de colaboração de classes) com a classe trabalhadora, defender o apoio eleitoral a elas como algo “tático”, e mesmo tornar-se parte integrante de algumas.
O Partido Obrero (Argentina) de Jorge Altamira possui um histórico de polêmicas contra essa prática de colaboração de classes. Em várias ocasiões, denunciou outras correntes na esquerda por capitular a coalizões eleitorais de colaboração de classes, como foi o caso do efêmero bloco entre as correntes de Nahuel Moreno (liderada pelo PST argentino) e Pierre Lambert (cuja seção principal era a OCI francesa). O “Comitê Paritário / Comitê Internacional” Moreno/Lambert (1980-81) recebeu, dentre outras, a seguinte crítica do Partido Obrero argentino no fim dos anos 1990:
“A base política de sua unificação foi o apoio à frente popular, encabeçada na França por Mitterrand. Nesse sentido, o ‘recorde’ do Comitê Internacional é verdadeiramente impressionante considerando que apenas subsistiu por nove meses: apoio à frente popular francesa encabeçada por Mitterrand (à qual a OCI dizia que pretendia destruir a V República, quer dizer, lhe atribuía um objetivo revolucionário); apoio à frente com a burguesia na Nicarágua; pediu o ingresso (do PST) à ‘multipartidária’ dos principais partidos patronais da Argentina; a reivindicação de que a Constituinte peruana (quer dizer, o parlamento burguês — no qual uma frente única que integrava os partidos do CI havia conseguido 12% dos votos) tomasse o poder para ‘resolver as contradições do povo explorado’. A lista segue: Bolívia, El Salvador, Brasil…”.
La cuestión del programa, Luís Oviedo, EDM No. 16, março de 1997
http://www.forocomunista.com/t9112p20-po-partido-obrero#116216
Todavia, como é praxe entre organizações centristas, a posição formal correta nem sempre se traduz em prática política. Assim, apesar de suas polêmicas, a corrente altamirista jamais foi consistente em defender uma política de independência da classe trabalhadora. Muitos anos antes das eleições brasileiras de 1989, o PO já reivindicava posições “frentepopulistas”, como aquela aplicada em 1971 por seus então parceiros internacionais do POR (Partido Obrero Revolucionario) boliviano, associado ao dirigente histórico Guillermo Lora. Na situação potencialmente revolucionária em que vivia a Bolívia naquele momento, o partido de Lora realizou um bloco com a fração burguesa dirigida pelo General Torres, que havia sido deposto do cargo de presidente, sob a fachada de uma suposta “frente revolucionária anti-imperialista”. Essa “frente revolucionária” com o “general patriótico” e ex-presidente do regime burguês, ainda que não fosse durante uma disputa eleitoral, se tratava de um bloco de colaboração de classes. Ela serviu para iludir os trabalhadores mais avançados sobre o caráter supostamente “anti-imperialista” desse setor da burguesia boliviana. Essa política foi apoiada pelo grupo argentino de Altamira, então chamado Política Obrera, que se reuniria com Lora em uma “Conferência Latino-americana” no ano seguinte. Os dois dirigentes só se separariam no fim dos anos 1980.
Logo Altamira daria um exemplo de como seria uma “frente anti-imperialista” em seu próprio terreno nacional. Durante a redemocratização argentina no início dos anos 1980, a corrente altamirista (já chamada de Partido Obrero) fez um chamado recorrente pela formação de uma “frente anti-imperialista de toda a esquerda” para as eleições de 1983. Essa frente incluiria, além do partido stalinista pró-moscou, do partido socialdemocrata e de correntes maoístas, também a “ala de esquerda” do movimento peronista (nacionalista burguês). Essa “esquerda peronista” incluía personagens e partidos historicamente comprometidos com a classe dominante e com a manutenção do capitalismo. Essa frente não chegou a se realizar porque nenhum desses setores quis entrar em negociações com Altamira e lançaram suas próprias frentes eleitorais burguesas. Mas isso deixou claro que, mesmo antes do apoio à coligação petista de 1989, o PO já visava aplicar uma política de conciliação de classes. Política essa que recebeu novos exemplos práticos ao longo dos anos seguintes, como o apoio eleitoral, em 2005, ao Movimento al Socialismo de Evo Morales na Bolívia. A seguir detalhamos essas capitulações do PO de Altamira.
A associação ao POR boliviano e sua “frente revolucionária anti-imperialista” (1971)
O POR boliviano e a então Política Obrera argentino se agruparam em julho de 1972, através de uma “Conferência Latino-americana”, que reuniu ainda o agrupamento internacional dirigido por Pierre Lambert e sua OCI (Organisation Communiste Internationaliste) francesa. Uma das bases da formação desse agrupamento foi o apoio dessas correntes à política adotada pelo POR boliviano em 1971. Inclusive a OCI, que antes tinha críticas à linha do POR, deixou-as de lado com o objetivo de formar uma “Internacional” com bases políticas extremamente oportunistas. E qual foi a política do POR boliviano que serviu de base a essa fusão?
Em 1971, o então presidente da Bolívia, o general “patriótico” J. J. Torres, foi derrubado por um golpe militar reacionário. Durante a organização da resistência ao golpe, o POR (uma das poucas organizações trotskistas que possuiu influência de massas) desempenhava um papel de destaque na esquerda boliviana. Entretanto, a sua política não foi de denúncia implacável da burguesia nacional (incluindo Torres) e dos seus aliados reformistas, como o partido stalinista. Ao invés de adotar tal política principista, Lora e seus companheiros formaram um bloco com os reformistas — uma frente popular que subordinava a resistência proletária ao ex-presidente burguês, disfarçada sob a alcunha de “frente revolucionária anti-imperialista”.
Mesmo antes do golpe, o POR apoiou a perspectiva de criar um governo “anti-imperialista” com o general Torres. Isso foi uma expressão do típico etapismo menchevique/stalinista de criar um governo reunindo todas as classes supostamente “progressivas” e “anti-imperialistas” (incluindo a burguesia nacional) como um requisito prévio à luta pelo socialismo. Em um conjunto de teses aprovadas pela COB (principal central sindical dos trabalhadores bolivianos) antes do golpe, escritas pelos próprios dirigentes do POR e nas quais o partido votou, está escrito que:
“Para poder atingir o socialismo, parece ser necessário, antes de tudo, realizar uma unidade de todas as forças revolucionárias anti-imperialistas. A revolução popular anti-imperialista está ligada à luta pelo socialismo. A frente popular é uma aliança de classes relacionadas, e o instrumento unitário para fazer a revolução. A expulsão do imperialismo e a realização das tarefas nacionais e democráticas vão tornar possível a revolução socialista.”
Traduzido da versão citada pela revista teórica da OCI, La Vérité, de outubro de 1970. Citado em “Centrist Debacle in Bolivia”, Workers Vanguard No. 3, dezembro de 1971. Disponível em:
https://rr4i.milharal.org/2010/05/21/desastre-centrista-na-bolivia/
Depois do golpe, a COB (que era largamente influenciada pelo POR) impulsionou uma “Assembleia Popular” que o POR considerou um embrião de duplo poder soviético, o que demonstra a gravidade da situação. Mas a linha do POR era de colaboração com o presidente do regime burguês deposto, não de independência da classe trabalhadora. Em uma declaração assinada juntamente com o Partido Comunista (stalinista), com os grupos nacionalistas de esquerda e pelo próprio general Torres, o POR declarou que:
“Portanto, a necessidade é inegavelmente construir uma unidade de luta de todas as forças progressivas e democráticas para que a grande batalha possa começar em condições de oferecer uma perspectiva real para um governo nacional e popular […].
“Esta não é uma batalha que diz respeito a apenas um setor do povo explorado, ou apenas uma classe, instituição ou partido (…). Qualquer forma de sectarismo é contrarrevolucionária. Sejamos dignos do sacrifício daqueles que caíram em 21 de agosto defendendo a Bolívia.”
Idem.
https://rr4i.milharal.org/2010/05/21/desastre-centrista-na-bolivia/
Na sua luta inconsistente contra o frentepopulismo do bloco Moreno-Lambert (montado depois que a OCI lambertista se separou de Lora e Altamira no fim dos anos 70), Altamira reivindicou a política do POR em 1971 como se ela não significasse uma subordinação à burguesia nacional e o POR não tivesse realizado “nenhuma concessão” que comprometesse a luta revolucionária das massas. Ao mesmo tempo, disse que um partido revolucionário não deveria de forma alguma chamar as massas romper com “as forças frentistas aliadas”:
“[…] Mas o que não é puramente ocasional é a tática de Frente Única Anti-imperialista, dirigida a todas as organizações que se encontrem sob a pressão das massas, com vistas a uma luta revolucionária comum.
“O comando político da COB (outubro de 1970) durou três meses, e o POR defendeu que, em vista da radicalização das massas, ele estava esgotado, e que devia lançar a consigna soviética de Assembleia Popular.
“A oportunidade da tática da FUA está relacionada com uma situação em que o imobilismo das massas já foi sacudido e, por isso, se abriu a perspectiva, com avanços e retrocessos, de uma prolongada luta anti-imperialista.
“Na Frente Anti-imperialista, o partido operário deve manter por inteiro a sua independência política. Não pode fazer nenhuma concessão que comprometa a luta revolucionária das massas apenas para manter seus aliados na frente comum. O partido revolucionário não entra na frente na qualidade de seita, mas sim de partido e por isso não tem por finalidade a ruptura, nem se empenha tampouco em uma campanha para que as massas rompam com as forças frentistas aliadas (…). A vigência de uma forma determinada da Frente Anti-imperialista (por exemplo, um bloco de partidos dirigindo uma luta de massas ou uma campanha eleitoral) e sua passagem a outras (sovietes de trabalhadores, camponeses, soldados e nacionalidades oprimidas) incluídas as rupturas, dependem da experiência mesma das massas e das mudanças de conjunto na situação política”.
Las ‘tesis’ del Comité Internacional, por Jorge Altamira e Júlio N. Magri, Internacionalismo No. 3, agosto de 1981. Reimpresso em “No fue un martes negro más” pág. 343.
É chocante o quão distante do trotskismo são estas posições. Trotsky chegou a afirmar que “Não há maior crime do que uma coalizão com a burguesia em um período de revolução socialista” (Trotskyism and the PSOP, julio de 1939). O revolucionário russo explicou detalhadamente a política dos bolcheviques com relação a esse tipo de frente popular em uma situação revolucionária:
“Esquece-se frequentemente que o maior exemplo histórico de Frente Popular é o da revolução de fevereiro de 1917. De fevereiro a outubro, os mencheviques e os socialistas-revolucionários, que constituem um bom paralelo com os ‘comunistas’ e os socialdemocratas de hoje, fizeram uma aliança estreita e em coalizão permanente com o partido burguês dos ‘cadetes’, com os quais eles formaram uma série de governos de coalizão. Sob o emblema de Frente Popular, se encontrava toda a massa do povo, inclusive os sovietes dos operários, dos camponeses e dos soldados. É claro que os bolcheviques participaram dos sovietes. Mas eles não fizeram nenhuma concessão à Frente Popular. Eles exigiam a ruptura com essa Frente Popular, a destruição da aliança com os cadetes, e a criação de um verdadeiro governo operário e camponês”.
A seção holandesa e a Internacional, julho de 1936, ênfase no original.
Desde essa época, a “frente revolucionária anti-imperialista” (ou “frente única anti-imperialista”) tornou-se um dos fios condutores, quase como um guia, da política das correntes de Lora e de Altamira. O significado dessa política é nada menos do que a traição “frentepopulista” à independência da classe trabalhadora, o atrelamento do proletariado a um projeto de manutenção da ordem burguesa capitalista.
O chamado pela construção de uma “frente popular” na Argentina (1983)
A vitalidade dessa posição oportunista pode ser vista no fato de que, nas eleições argentinas de 1983 e ainda depois do seu término, a principal demanda do Partido Obrero foi pela formação de uma “frente anti-imperialista de toda a esquerda”, que tinha o objetivo de reunir o PO com os stalinistas, socialdemocratas e principalmente com a “esquerda peronista”:
“A questão mais importante de tudo isso é que o que está acontecendo seja denunciado aos trabalhadores; que se ponha em evidência a conexão política reacionária da cúpula peronista, e que assim compreenda a esquerda peronista. Para essa tarefa é fundamental que se estruture no país uma frente anti-imperialista de toda a esquerda.” (ênfase nossa).
El Partido Obrero y el Peronismo”, Edições Prensa Obrera, setembro de 1983, pg. 117.
O Partido Obrero também explicitou quais organizações compunham a “esquerda” a qual se direcionava a “frente anti-imperialista”:
“As coisas são claras: os eleitores peronistas são chamados a votar por dois colaboradores da ditadura. Tanto um como outro gozam do favorecimento do imperialismo e do clero (este último em particular). A Intransigência Peronista, a tendência em que militava Cambiaso e tantos outros, é chamada a votar pelos colaboracionistas e encobridores do sistema e do aparato dos assassinos de Cambiaso e de outros. O Partido Intransigente, o PC, os socialistas autênticos e populares, os partidos do Trabalho e da Nova Democracia – todos os quais prometeram votar pelo peronismo ou pela primeira minoria no colégio eleitoral – são chamados a votar pelos candidatos do imperialismo e do Vaticano. E disseram que o fariam. É necessário apurar o veneno até a última gota.
“As posições políticas da maioria dos partidos de esquerda são claras, mas comportam uma contradição. (…) A posição da maioria da esquerda reflete a posição da pequena-burguesia que busca evitar a passagem a uma luta revolucionária junto ao proletariado, e que segue sonhando em por de pé o sistema democrático sobre as bases tradicionais do regime capitalista.
“O chamado a uma frente anti-imperialista de toda a esquerda, efetuado pelo Partido Obrero, tende a lutar contra essa confusão política e, significativamente, tem tido uma grande repercussão entre os ativistas da esquerda.” (ênfase nossa)
Idem, pg. 120 e 121.
É necessário esclarecer quem são esses grupos com os quais o Partido Obrero desejava fazer uma frente comum “de esquerda”. A fração “Intransigência Peronista”, dirigida por Vicente Saadi, era parte do Partido Justicialista (peronista). Saadi foi senador e governador da província de Catamarca, na qual sua família dominou a política por décadas. Quando Saadi foi eleito senador na redemocratização em 1983, liderou os peronistas no Congresso. Já o Partido Intransigente (um filhote da União Cívica Radical) havia sido fundado uma década antes das eleições de 1983 por Oscar Alende, um político burguês de longa trajetória que colaborou com vários governos militares. Durante a ditadura burguesa argentina de 1955-58, por exemplo, Oscar Alende foi parte de uma “Junta Consultiva Nacional” para assessorar os militares no poder. O PC stalinista dispensa apresentações diante dos rios de sangue que separam o stalinismo do trotskismo.
Era com esses senhores (e mais alguns outros), em razão da popularidade que tinham no movimento de massas, que o Partido Obrero queria uma “frente anti-imperialista de toda a esquerda”. É até desnecessário argumentar sobre o caráter reacionário de indivíduos e grupos com essa ficha política. Como o PO pretendia “colocar em evidência a conexão política reacionária da cúpula peronista” estando aliado com alguns membros “de esquerda” dessa cúpula (como Saadi) e alguns outros partidos “democráticos” mergulhados até o último fio de cabelo na lama do Estado burguês? O mais irônico de toda essa história é que o PO contrapunha a sua “frente anti-imperialista” a outras iniciativas de colaboração de classes:
“O PI [Partido Intransigente] aparece claramente como um pivô de uma futura ‘frente popular’ (frente patronal de conciliação com o imperialismo), que submete a classe operária através de um setor da burocracia e do PC. Mas é precisamente pela existência de uma tendência ao frentepopulismo que se deve reivindicar a frente anti-imperialista revolucionária, para opor à ‘unidade anti-imperialista’ dirigida pela burguesia (de conciliação com o imperialismo e de subordinação da classe operária), a unidade anti-imperialista que permita a luta consequente contra a opressão nacional e que facilite para a classe trabalhadora a conquista da hegemonia na revolução.”
Idem, pág. 153.
Parece que, com esse jogo de palavras, tudo muda da água para o vinho; basta adicionarmos alguma retórica “revolucionária” e, é claro, incluirmos o Partido Obrero. Nesse esquema, uma frente com partidos da burguesia poderia ser tanto uma “frente popular” nociva ao movimento dos trabalhadores, quanto uma que permitisse uma “luta consequente” do proletariado.
Trotsky combateu severamente a ideia de que “acordos” ou “combinações” com a burguesia poderiam impedir que, em uma frente como essa, a burguesia desempenhasse o papel dominante. Uma frente de colaboração de classes (mesmo que seja indevidamente rotulada de “anti-imperialista”) inclui formações que dependem da manutenção da ordem burguesa para sua existência (como era o caso do Partido Intransigente, da Intransigência Peronista e outros). Por isso, nenhuma frente como essa pode ajudar o proletariado a perceber a demagogia do Estado burguês, mas apenas tentar iludi-lo a apoiar uma ou outra variante do regime burguês. O proletariado não pode dominar uma frente composta pelos seus exploradores, nem mesmo ficar em pé de igualdade. “Um homem montado num cavalo não é um ‘bloco neutro’ entre o homem e o cavalo”, como defendeu Trotsky (¿Adónde va Francia?, 1936). O proletariado só pode vencer se estiver em oposição a todos os setores que querem mantê-lo como uma classe explorada sob um regime de opressão. Mas essa lição foi “esquecida” pelo Partido Obrero.
O chamado para votar em Evo Morales (2005)
Um exemplo mais recente do apoio a coalizões burguesas foi quando o PO defendeu votar por Evo Morales nas eleições bolivianas de 2005. A Bolívia vivia novamente um momento de lutas de classe incandescentes, que haviam levado à queda de um presidente e à convocação de eleições antecipadas. Nesse contexto, a candidatura do MAS (Movimento ao Socialismo) de Evo Morales cumpria um papel claro de contenção social dos protestos do proletariado, dos camponeses pobres e povos indígenas, buscando manter os limites do capitalismo ao mesmo tempo em que sustentava uma retórica nacionalista/indigenista. A candidatura do MAS buscou o apoio de setores da burguesia e reivindicou a construção de um “capitalismo andino” com algumas reformas e nacionalizações dentro dos marcos capitalistas. Morales também se identificava com os governos burgueses de Lula (Brasil) e Kirchner (Argentina). Apesar de reconhecer isso, o PO de Altamira defendeu votar em Morales como uma forma de supostamente “golpear o imperialismo”. Na época das eleições bolivianas de dezembro de 2005, o Partido Obrero argentino afirmou que:
“O confuso programa do MAS é a expressão de seu impasse político, ou seja, da pretensão de amalgamar as violentas contradições sociais do país. Constitui um intento da raquítica pequena-burguesia profissional, que tende a ser cooptada pelas multinacionais ou suas dependências secundárias, de impor a sua saída às massas do Altiplano, que vivem na miséria. Em definitivo, não intenta mais do que teorizar uma transição do período revolucionário a uma etapa de características democratizantes, tutelada pelas burguesias dos países vizinhos e o imperialismo”.
Llamamos a votar por Evo Morales y el MAS, El Obrero Internacional No. 4, dezembro de 2005. Reproducido em La Revolución Boliviana 2003-2006, pg. 40.
Tal caracterização, entretanto, não impediu o PO e sua “internacional”, o CRQI, de apoiar e comemorar a vitória eleitoral do MAS e de dizer, no mesmo texto, que a sua ascensão ao Estado burguês seria um “golpe no imperialismo”, ao supor que uma vitória eleitoral de Morales fortaleceria as demais nações oprimidas da América Latina contra as potências internacionais:
“Uma vitória do MAS seria um golpe no imperialismo, inclusive se esse golpe está condicionado às perspectivas que abre essa vitória. Chamamos a votar pelo MAS. Não amplia as margens de manobra de governos como os de Lula e Kirchner, mas os coloca de cara com a luta dos trabalhadores de seus países. Alarga o campo da luta de classes na América Latina. Reforçaria sim o governo de Chávez frente ao imperialismo, porque Chávez se encontra em um choque com o imperialismo, mas não o fortaleceria em seu propósito de reduzir a atividade independente das massas venezuelanas.”
Idem, pg. 41.
É claro que a perspectiva do PO de uma vitória do MAS que iria supostamente “alargar o campo da luta de classes na América Latina” se mostrou absolutamente falsa. Essa vitória só serviu para colocar no poder um governo que foi “cooptado pelas multinacionais ou suas dependências secundárias” e que certamente foi o pivô de uma “transição do período revolucionário a uma etapa de características democratizantes, tutelada pelas burguesias dos países vizinhos e o imperialismo” e que enganou as massas bolivianas. Isso foi demonstrado tanto pelo curso dos eventos quanto confirmado pelo próprio Partido Obrero em ocasiões posteriores. Mas, como é de costume, isso não o fez reavaliar criticamente a sua posição de dezembro de 2005.
NOTAS
[1] O artigo original se chama PCO, Partido Obrero e as frentes populares (fevereiro de 2013) e está disponível (em português) em: https://rr4i.milharal.org/2013/02/21/pco-partido-obrero-e-as-frentes-populares/. É importante ressaltar que, desde meados de 2013, o PCO passou a capitular sistematicamente ao governo de Dilma Rousseff e do PT, conforme denunciamos em Da histeria golpista à Copa do Mundo – As capitulações do PCO ao governismo (julho de 2014).
[2] O PCO integrava a “Coordenação pela Refundação da Quarta Internacional” (CRQI), agrupamento internacional encabeçado pelo PO. Até hoje, nenhum dos dois grupos esclareceu publicamente os motivos do afastamento do PCO. Se existem razões político-organizativas relevantes para o fim de uma relação internacional que durou por décadas, então qualquer grupo que afirme lutar para reconstruir a Quarta Internacional em tantos países quanto possível deve explicar porque abandonou seus companheiros brasileiros (no caso da CRQI e do PO) ou o agrupamento internacional do qual fazia parte (no caso do PCO). Mas não: o CRQI lançou o seu novo grupo brasileiro (que publica o jornal “Tribuna Classista”) sem explicar direito porque abandonou seus velhos amigos (volta e meia o PCO e o Partido Obrero trocam criticas, mas sem sequer mencionarem sua associação prévia). Seja qual tenha sido a razão para o rompimento, o silêncio de ambos os lados indica uma forte tendência a minimizar a importância da questão da Internacional e de que o CRQI não é uma “internacional” centralizada em torno de políticas concretas, mas uma federação de grupos reunidos por conveniência.