Os Estados proletários burocratizados e as tarefas da época de transição

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Após anos de encarniçada guerra civil e invasão estrangeira, na qual a vanguarda proletária foi largamente destruída fisicamente, a democracia proletária, que é o regime necessário para a transição ao socialismo, não pôde se realizar na Rússia dos sovietes. Isso também foi ajudado por inexperiência e erros dos Bolcheviques. Apesar disso, ainda subsistia democracia nos debates internos do partido, nos sovietes e nas fábricas no início dos anos 1920. Nos anos subsequentes, a ditadura do proletariado foi crescentemente burocratizada, ou seja, o poder foi concentrado nas mãos de funcionários do Estado, que era ainda por cima composto por muitos elementos sem comprometimento político com o socialismo. O controle das empresas e a gestão da economia planejada foram cada vez mais retirados das organizações de base dos trabalhadores por funcionários todo-poderosos, e não apenas como medida temporária/emergencial. Os debates no interior do Partido Bolchevique foram fechados e a burocracia tornou-se cada vez mais incontrolável.

Muitos dirigentes históricos do Partido Bolchevique declararam guerra a esse processo, a começar pelo próprio Lenin. Cada um ao seu tempo e acumulando graus diferentes de erro, todos foram derrotados pela tendência representada pelos burocratas de Estado, um grupo ou camada social com interesses próprios, cujo poder se consolidou na autocracia de Stálin nos anos 1930. Nessa década, por meio dos Processos de Moscou, a burocracia da União Soviética eliminou os quadros políticos restantes do Partido Bolchevique que haviam realizado a revolução de 1917, consolidando assim o seu regime. Esse desenlace não foi apenas o resultado de uma luta interna, mas também causado pelo contexto de derrotas internacionais e isolamento da revolução, o que levou a um inchaço do aparato de Estado e ao enfraquecimento da disposição revolucionária entre os trabalhadores. Em consequência desse processo, a URSS se tornou o que o Trotsky nomeou de Estado operário degenerado, com um regime bonapartista de ditadura da burocracia (stalinismo).

A Segunda Guerra Mundial foi o momento decisivo para o Estado proletário burocratizado soviético. Apesar da decapitação do alto escalão do Exército Vermelho às vésperas do conflito pela onda de execuções e prisões realizadas pelo círculo stalinista, a URSS saiu vitoriosa devido à heroica luta de milhões de combatentes e trabalhadores, destruindo a besta nazista e restabelecendo esperança para a humanidade na meia-noite do século 20, evitando uma catástrofe colossal. O fôlego com essa vitória, que reduziu em certa medida o isolamento da URSS, permitiu a sobrevivência do Estado proletário soviético por mais 45 anos.

A vitória do Estado proletário levou à ocupação de inúmeros territórios na Ásia e na Europa, embora nem todos fossem depois reivindicados nos acordos com as potências imperialistas triunfantes dos EUA e do Reino Unido. No Vietnã do Norte, Coreia do Norte e em países do Leste Europeu, o aparato colonial e os antigos Estados burgueses foram efetivamente destruídos pelo Exército Vermelho, abrindo caminho para que o poder efetivo ficasse sob a sua proteção. A partir da pressão dos trabalhadores e diante da hostilidade das burguesias nativas em conluio com as potências imperialistas, esse novo poder realizou posteriormente a expropriação da classe capitalista. Consolidaram-se novos Estados proletários construídos desde o topo, com a burocracia governante exercendo desde o início o papel de árbitro, eliminando e impedindo a todo custo a construção de organizações democráticas de massa dos trabalhadores. Para isso, essa burocracia usou métodos repressivos, mas contou também com enorme popularidade diante da derrota do nazismo.

Revoluções socialistas também triunfaram em nações subalternas pouco depois. Quase ao mesmo tempo em que se deu a expansão militar da URSS pelo Leste Europeu, revoluções autóctones ocorreram na Iugoslávia e Albânia, que foram libertadas do jugo nazista por forças militares locais de resistência, hegemonizadas pelos Partidos Comunistas desses países. Tendo destruído o aparato de Estado burguês e tendo o grosso da economia já sido estatizada anteriormente pelas forças nazistas, a burguesia nativa desses países ficou extremamente fragilizada. Apesar de tentativas iniciais de pactuar com tal burguesia, os Partidos Comunistas logo se viram forçados a consolidar Estados proletários deformados (burocratizados desde a formação) como forma de assegurar seu poder contra ameaças contrarrevolucionárias. O fizeram num contexto de forte mobilização proletária e camponesa por melhores condições de vida e com grandes expectativas em uma transformação socialista.

A mais impressionante revolução, contudo, foi sem dúvida a revolução chinesa, na qual o Partido Comunista da China enfrentou o regime cambaleante do partido nacionalista Kuomintang depois da derrota da ocupação japonesa e a retirada das tropas Aliadas. Mesmo com pouquíssimo apoio soviético, as tropas do Exército de Liberação Popular lideradas pelo PCC destruíram o regime do Kuomintang em 1949, apoiando-se pesadamente nos levantes de trabalhadores rurais, assim como de camponeses pobres desenraizados de suas terras e outros elementos da força de trabalho rural, majoritária no país. Posteriormente, os trabalhadores urbanos também desempenharam um papel, com insurreições e ocupação de fábricas, fazendo com que a liderança em torno de Mao Zedong rompesse empiricamente com seu projeto de construção de um regime democrático-burguês, a “Nova Democracia”, e embarcasse numa efetiva eliminação do capitalismo na nação mais populosa do planeta.

Em 1959, um levante com características similares triunfou em Cuba, destruindo o regime burguês ditatorial comandado por Fulgêncio Batista. Dessa vez, a revolução foi liderada por um movimento de origem pequeno-burguesa e democrática-radical, o M26 de Fidel Castro e Che Guevara. Após quase dois anos de diferenciação no interior do movimento, com pressões vindas dos trabalhadores e após uma tentativa de invasão imperialista americana apoiada pela burguesia nativa, triunfou a ala inclinada a uma expropriação da classe capitalista e um alinhamento à URSS.

A contrapressão ao imperialismo representada ainda pelo Estado soviético deu às tendências políticas pequeno-burguesas tanto na China quanto em Cuba uma alternativa distinta de alguma via capitalista “democrática”. O movimento proletário não estava ainda suficientemente organizado e preparado para cumprir sozinho esse papel de polarização, e não possuía uma liderança marxista à sua frente. Mas mesmo com uma liderança vacilante, pendendo em vários momentos à colaboração de classe, e sem uma perspectiva internacionalista de transição ao socialismo, a luta de classes pode, em casos excepcionais, chegar à destruição do Estado burguês e a criação de outro de tipo diferente. Posteriormente, na década de 1970, ocorreu a expansão do Estado proletário deformado do Vietnã do Norte para o Sul do país, reunificando-o, e um processo revolucionário no Laos, semelhante aos descritos anteriormente.

A ausência de partidos proletários marxistas nesses eventos revolucionários não permitem desconsiderar a sua importância. Porém, o movimento dos trabalhadores não deve contar com a excepcionalidade ou que eventos similares poderão se repetir sem um partido revolucionário. Diferentemente do que fizeram os setores revisionistas do movimento trotskista da época, não vemos em tais processos supostas “novas vias estratégicas” para a revolução socialista. Na grande maioria das vezes, lideranças e partidos conciliadores, reformistas ou vacilantes à frente do movimento levam à frustração, traição ou desmoralização das lutas, conduzindo-as para a derrota e a uma ou outra variante do regime capitalista.

Mesmo nos casos excepcionais em que as revoluções triunfaram, houve o elemento da deformação burocrática, que faz com que estejam longe de serem modelos a se reivindicar. Nos países onde se estabeleceram Estados proletários, seguia sendo importante a construção do partido marxista, para que pudesse representar o interesse dos trabalhadores contra a condução da elite burocrática, uma camada que age empiricamente sob as pressões ora dos trabalhadores ora do imperialismo, mas que tem como marca a falta de comprometimento com o processo de construção do socialismo, tanto em seus pré-requisitos políticos (a democracia proletária), quanto materiais (o planejamento econômico democrático e a luta pela vitória da revolução a nível mundial).

Foi o acúmulo de contradições da gestão burocrática, somado à tremenda pressão imperialista e ao atraso da revolução internacional que levou aos processos contrarrevolucionários nos países do Leste Europeu (1989-90) e na União Soviética (1991). Tais processos não foram fruto de invasões imperialistas, mas das tendências à restauração capitalista no interior dos próprios países, em especial das alas pró-capitalistas dentro dos próprios círculos governantes da burocracia, desejosas de se tornarem proprietários individuais. Esses eventos foram derrotas gigantescas para os trabalhadores de todo o mundo.

Os Estados proletários burocratizados ainda existentes na atualidade são China, Cuba, Coreia do Norte, Vietnã e Laos. Defendemos incondicionalmente esses Estados e seu direito de defesa contra as ameaças, tentativas de golpe e invasão imperialista. Denunciamos as campanhas de mentiras e difamação dos grandes monopólios midiáticos contra esses países. Também nos colocamos contra as sanções e bloqueios econômicos que debilitam suas economias e atingem duramente seus povos.

As burocracias governantes passaram por diferentes realinhamentos ideológicos e correlações de forças com o imperialismo ao longo dos anos. A experiência mostrou a incapacidade de dirigir de forma eficiente uma economia industrializada apenas com o planejamento burocrático. Emergem daí duas possibilidades: incorporar os trabalhadores na administração (planejamento democrático), que entra em conflito com o monopólio politico da burocracia, ou aceitar o papel do mercado como meio de alocar investimentos. Atualmente, essa segunda tendência foi seguida, apoiada também pelo aumento da pressão econômica da burguesia mundial por aberturas após a queda da URSS, e levou à criação de um setor capitalista (não dominante) nas economias desses países, com o qual há uma relação de aceitação e crescente dependência. O bonapartismo burocrático desses regimes se baseou desde o inicio na mediação entre as pressões dos trabalhadores e da burguesia internacional. A criação de burguesias nativas com influencia social não destruiu decisivamente esse equilíbrio, mas o coloca em crescente instabilidade.

Criticamos as visões que afirmam que China ou Cuba se tornaram ditaduras capitalistas ou, inclusive, potência imperialista no caso da China, após as reformas econômicas das últimas décadas. Também combatemos, por outro lado, aqueles que minimizam os enormes riscos e desigualdades criadas pelas reformas e apoiam o rumo tomado pelos Partidos Comunistas governantes. As declarações públicas do governo chinês, por exemplo, que afirma estar “construindo o socialismo”, são pura enganação. Essas sociedades transitórias tendem, se os trabalhadores não assumirem o leme, a um pleno restabelecimento do modo de produção e do Estado capitalista. Os líderes do Partido Comunista da China tentam inventar uma nova doutrina ao proclamar a perfeita harmonia entre uma economia de mercado de um lado e a propriedade coletivizada de outro, o “socialismo de mercado com características chinesas”. Tal aberração só terá um fim concreto se não for derrotada a tempo: a ruína do que ainda resta das conquistas sociais da revolução chinesa, levando a uma precarização brutal das condições de vida dos trabalhadores.

A questão da contrarrevolução capitalista está colocada, mas ela ainda não foi resolvida pela história. Tende a adquirir uma urgência maior conforme surjam crises nesses países. Isso é especialmente verdade na China, onde a imensidade das contradições só é mantida pelas altas taxas de crescimento econômico, esperando a chegada de uma crise para irromper com toda força para o terreno concreto. O futuro aponta para dois possíveis caminhos: avançar para uma ditadura proletária baseada em conselhos de trabalhadores, ou recuar para um terror burguês autoritário, ainda que busque uma fachada “democrática”. A questão da futura crise chinesa é fundamental para a revolução global e os revolucionários devem ser capazes de desenvolver uma perspectiva correta em relação a ela.

Nos Estados proletários burocratizados remanescentes, é necessário estabelecer democracias proletárias, isto é, um poder político baseado em conselhos de trabalhadores, a partir dos quais se erga um sistema de órgãos regionais e nacionais de gestão. Os representantes eleitos serão revogáveis pela base das organizações proletárias, de forma que estejam politicamente subordinados à classe trabalhadora e não sejam, como é hoje a burocracia nesses países, uma camada parasitária dotada de enorme autonomia.

As organizações dos trabalhadores devem revisar a economia, o que nas atuais circunstâncias inclui renacionalizar grande parte da indústria e comércio privados, expropriando sem compensação os investimentos capitalistas. Devem também realizar a revisão do setor estatal (que ainda é componente fundamental das economias desses países) no interesse dos verdadeiros produtores, eliminando o parasitismo da burocracia. Um dos primeiros efeitos será uma redução das desigualdades sociais.

Os marxistas defendem o fim de todos os privilégios e regalias da burocracia governante. Cada funcionário de Estado deve receber apenas o salário médio de um trabalhador. Custos com as funções oficiais serão mantidos pelo Estado proletário, mas deve-se impedir que se use os cargos para ganho pessoal. A fortuna acumulada por dirigentes em cargos superiores da burocracia deve ser imediatamente confiscada, quebrando ainda o seu sigilo.

Fim imediato do uso do aparato policial contra os movimentos dos trabalhadores e da juventude que estão lutando contra a restauração capitalista e a opressão burocrática! Queremos um julgamento popular dos déspotas corruptos que contribuíram para o crescimento das desigualdades e do avanço de relações de produção capitalistas. A luta contra a opressão política deve levar à expansão das liberdades democráticas para a classe trabalhadora e suas organizações, mas não para a burguesia ou grupos políticos agindo diretamente no interesse dela. Os jornais, sites e livros dos marxistas, trabalhadores combativos, círculos estudantis radicais e militantes de esquerda devem ter plena liberdade de circulação e discussão. Plena liberdade de organização sindical e partidária para aqueles comprometidos com a defesa da revolução e suas conquistas sociais!

Queremos também o envolvimento dos Estados proletários na arena internacional a favor das lutas dos trabalhadores e das lutas anti-imperialistas, apoiando-as materialmente de forma ativa e também com um programa que aponte para a ditadura do proletariado. Pois nenhum país pode chegar ao socialismo por conta própria – é necessária a vitória da revolução em vários países, incluindo as metrópoles imperialistas. Para o efetivo cumprimento desse papel internacionalista e de todas as outras tarefas aqui apresentadas, é necessária a ascensão de uma liderança proletária – uma revolução política dos trabalhadores que retire do poder a camarilha governante por meio de uma insurreição e subordine o aparato político-administrativo aos organismos de poder da classe trabalhadora.

Por outro lado, diante de tentativas de contrarrevolução vindas do imperialismo, das forças burguesas nativas, de setores da burocracia ou ainda uma combinação dessas forças, reivindicamos que os trabalhadores se coloquem pela defesa dos Estados proletários, por todos os meios disponíveis. Os trabalhadores de outros países devem realizar movimentos em solidariedade contra tais investidas, especialmente aqueles dos países imperialistas que estiverem participando das tentativas de contrarrevolução. No caso de que certos setores da burocracia também se coloquem contra as forças contrarrevolucionárias (por seus próprios interesses), defenderíamos uma unidade de ação pontual em cima dessa questão, sem em nenhum momento abandonar a independência política dos trabalhadores. Abaixo a elite burocrática! Viva a democracia proletária! Viva a revolução socialista internacional!

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