O que a resposta da China ao novo coronavírus nos diz sobre o caráter de classe do Estado
Icaro Kaleb, abril de 2020.
Esse texto é um apêndice de “Desmistificando a China: uma análise do caráter de classe do Estado, da economia e das lutas dos trabalhadores“, que optamos por também publicar à parte para lhe dar maior visibilidade (no texto original, é o Apêndice 4 – Coronavírus, burocracia e empresas estatais). Sugerimos a leitura do texto completo para uma melhor compreensão.
Foi na China que se iniciou o contágio de humanos pelo novo coronavírus, que agora se tornou uma pandemia global. Provavelmente, era um dos países mais preparados do mundo para lidar com tal ameaça, pois já tem larga experiência com epidemias menos perigosas similares, como a da Gripe A (2009) e da SARS (2003). Ocorre um monitoramento constante de doenças infectocontagiosas por parte dos médicos e órgãos de medicina. A forma como as instituições de saúde e as autoridades chinesas lidaram com o surgimento do vírus mostra o pior e o melhor lado do Estado operário burocratizado.
Um dos primeiros pacientes conhecidos, Wei Guixiam, foi atendido em 10 de dezembro de 2019. No dia 16, vários pacientes já tinham dado entrada no Hospital Central de Wuhan, capital da província de Hubei. No fim desse mês, médicos já sabiam que se tratava de uma nova variedade de coronavírus, detectaram sua origem em pessoas que haviam tido contato com mercados de animais locais, e publicavam informações para alertar às autoridades, assim como aos escritórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) na China.
Fen, diretora médica no Hospital Central de Wuhan, divulgou informações na internet sobre o novo vírus, especialmente para colegas da área médica, em um aplicativo de mensagens. Ela foi repreendida por seus superiores, que lhe disseram para não compartilhar mais nada a respeito. Pouco depois, outro médico de Wuhan e membro do Partido Comunista, Li Wenliang, também circulou mensagens sobre o novo vírus por mensagem. Ele foi chamado para interrogatório logo depois. Tragicamente, Li foi um dos profissionais de saúde infectados pelo vírus, e veio a falecer em 7 de fevereiro de 2020, aos 33 anos de idade. Posteriormente, o PCC teve de se retratar pela acusação que havia sido lançada a ele, de “espalhar rumores”.
No início de 2020, a comissão de saúde de Wuhan notificou os hospitais sobre uma “pneumonia de causa pouco clara” e ordenou que qualquer informação fosse reportada unicamente a ela. Depois, levou para interrogatório oito médicos que postaram informações sobre a doença em aplicativos de mensagens. Um funcionário da Comissão Provincial de Saúde de Hubei ordenou depois que os laboratórios públicos que já haviam determinado de forma autônoma que o novo vírus era semelhante ao SARS, parassem de testar amostras e destruíssem amostras existentes. Testes seriam realizados de forma centralizada apenas com autorização governamental.
Em 21 de janeiro, o novo vírus finalmente foi reconhecido como um risco grave. O jornal principal do PCC, Diário do Povo, mencionou a epidemia e as ações de Xi para combatê-la. Wuhan e outras três cidades entraram em quarentena em 23 de janeiro, mas o vírus já havia se espalhado para outras regiões, e inclusive chegado em outros países, como Tailândia, Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos. A China ampliou depois o bloqueio para cobrir 36 milhões de pessoas na província de Hubei e começou a construir rapidamente um novo hospital em Wuhan, que ficou pronto em menos de dez dias, com três mil novos leitos. A partir deste ponto, medidas muito rigorosas continuaram a ser tomadas em todo o país no controle da epidemia. Isso se deu durante as comemorações do ano novo chinês, entre 24 e 30 de janeiro, o que é impressionante, considerando as dimensões de tal comemoração no país.
No momento em que este texto foi escrito, em abril de 2020, a epidemia parece praticamente contida na China, em tempo recorde. A combinação de um isolamento social bastante eficiente, com uma política de testagem massiva, obviamente deu resultados. Além disso, a construção rápida dos hospitais com os recursos das empresas estatais, e o deslocamento de equipamentos e funcionários de saúde de um sistema quase integralmente público, foram responsáveis por salvar muitas vidas. Enquanto países como Espanha, Itália e os Estados Unidos rapidamente superaram a China em número de infectados e de mortes, abandonam enormes populações sem cuidados de saúde e não veem ainda saída para a doença, o Estado operário burocratizado chinês lidou de forma muito mais capaz com esse desafio.
Os motivos para que o PCC buscasse esconder o problema no início sem dúvida envolviam preocupação diante do atual momento complexo, desde a disputa comercial com os Estados Unidos até os protestos em Hong Kong, e os possíveis impactos disso na estabilidade de seu regime. Isso não tem nada a ver com os problemas do “sistema comunista”, mas sim com a falta de transparência de governantes que colocam seu prestígio burocrático acima das vidas dos trabalhadores. Se medidas de segurança tivessem sido tomadas logo no começo do ano, o que já era concebível (portanto três semanas antes do que fez o governo chinês), talvez a pandemia pudesse ter sido controlada ainda no seu nascedouro.
Por outro lado, uma vez que a crise se mostrou impossível de ser “escondida”, e foi tratada, os elementos planejados da economia chinesa, sobretudo suas enormes e dominante empresas estatais, demonstraram a sua superioridade sobre os países capitalistas. A construção do hospital com tamanha rapidez foi possível apenas pela existência de grandes estatais em Wuhan, que não estão voltadas predominantemente para o lucro. O governo de Wuhan ordenou a uma dessas empresas que projetasse e construísse instalações de emergência. Isso prova que a predominância do setor estatal na economia chinesa, apesar de enormes aberturas ao capital privado, é uma conquista importante, que possibilitou enfrentar o coronavírus de forma mais resoluta.
Os investimentos e alocação de recursos na área da saúde fazem parte da “tigela de arroz de ferro” dos subsídios estatais aos trabalhadores, que está ficando mais frágil a cada dia, apesar de algumas melhorias parciais. O tratamento de saúde na China é subsidiado pelo Estado, muitas vezes em grande porcentagem, mas não é gratuito. Com uma vitória dos trabalhadores contra a elite burocrática (revolução política), seria uma tarefa garantir um sistema público universal, inclusive nacionalizando os recursos de milhares de hospitais privados hoje existentes na China, que realizam um pequeníssimo número de atendimentos (para os que podem pagar) e que certamente poderiam ser mais bem utilizados se postos a serviço dos interesses dos trabalhadores.
Como relatado pela própria OMS, houve um massivo deslocamento de recursos, com muitos médicos realizando consultas online, para que as pessoas não precisassem sair de casa. Cestas básicas e remédios foram entregues em casa. Mais de um milhão de testes rápidos foram produzidos por dia para controlar o vírus, com os resultados saindo em menos de 4 horas. No total, mais de 40 mil profissionais de saúde foram deslocados de outras regiões para Hubei. O sistema de saúde público da China emprega pelo menos 89% dos trabalhadores urbanos que trabalham neste setor (dados de 2011), inclusive centenas de médicos, técnicos e enfermeiros que foram deslocados para esse esforço. Isso sem considerar empresas de municipalidades e cooperativas que também são controladas pelo Estado. Os hospitais públicos foram responsáveis por 85% dos atendimentos em 2017. Hoje, a China não possui um sistema de saúde capaz de cobrir a todos (especialmente nas áreas rurais). Mas a saúde ainda tem um amplo predomínio estatal.
“De acordo com estatísticas da Comissão Nacional de Saúde, no final de 2017, havia mais de 18.000 hospitais privados na China, representando 60% do número total de hospitais. O número de hospitais privados excedia o de hospitais públicos, mas eles foram responsáveis por apenas 490 milhões de atendimentos, menos de 15% do total. Yang concordou com a falta de confiança em hospitais particulares. ‘Especialmente para doenças complexas, a primeira escolha dos pacientes é um grande hospital público, onde especialistas trabalham. Além disso, a maioria dos hospitais privados não é coberta por seguro médico e os pacientes têm encargos financeiros relativamente pesados’. Atualmente, os hospitais públicos ainda desempenham um papel dominante na China. Por outro lado, os hospitais privados estão em uma posição fraca, limitada pela falta de recursos, baixa cobertura de seguro médico e fraca imagem da marca”.
— O futuro das instituições médicas privadas parece promissor, China Daily, setembro de 2018.
Nós rejeitamos a narrativa reacionária que culpa a China pela pandemia do coronavírus, e que fomenta o racismo e a xenofobia contra os chineses em várias partes do mundo. Se a doença tivesse surgido em qualquer outro país do mundo, a lentidão da detecção e tragédia subsequente teria provavelmente sido bem maior. Ao mesmo tempo, não aceitamos a narrativa de uma postura supostamente “exemplar” dos dirigentes do PCC. Como mostrado, falharam no tempo da resposta e buscaram intimidar aqueles que alertavam para o problema de forma precoce. Mas acima de tudo, destacamos a superioridade dos elementos de transição ao socialismo, ainda existentes na economia e sociedade chinesas, apesar de corroídos pela burocracia, para enfrentar grandes crises. Enquanto dezenas de milhares de mortos já se somam na Itália, Espanha e Estados Unidos, a China conseguiu parar o número de mortos em torno cerca de três mil, e conter a propagação do vírus.