As manifestações em Hong Kong e a defesa do Estado operário burocratizado chinês

Icaro Kaleb, abril de 2020.

Esse texto é um apêndice de “Desmistificando a China: uma análise do caráter de classe do Estado, da economia e das lutas dos trabalhadores“, que optamos por também publicar à parte para lhe dar maior visibilidade. Sugerimos a leitura do texto completo para uma melhor compreensão.

Hong Kong, antes colônia britânica, passou a ser uma região administrativa especial da China (um estatuto compartilhado com Macau), em 1997. Foi estabelecido um acordo sob o princípio de “um país, dois sistemas”. Hong Kong mantinha a sua economia capitalista e sua administração de forma oficialmente autônoma, mas com os cargos mais importantes indicados ou controlados indiretamente por Beijing; e a China continental mantinha seu sistema econômico, ainda controlado fortemente pelo Partido Comunista por meio das empresas estatais.

Hong Kong tornou-se então um enclave capitalista na China, similar a uma “Zona Econômica Especial”, mas que desempenha um papel de facilitador na abertura aos investimentos, uma “ponte” entre a China continental e o mercado mundial. A ilha dá mais um exemplo do colaboracionismo entre a burocracia do PCC e a burguesia internacional. Também concentra um forte polo de organização para tentativas de contrarrevolução. A postura vergonhosa dos burocratas chineses, que permitiram a livre exploração dos trabalhadores por uma burguesia nativa traiçoeira de origem colonial, contribui em muito para gerar descrédito do proletariado de Hong Kong pelas ideias socialistas.

As manifestações em Hong Kong em 2019 começaram como uma resposta a um acordo de extradição de prisioneiros entre Hong Kong e a China. Nós do Reagrupamento Revolucionário nos posicionamos contrariamente a tal lei, pois ela facilitaria a extradição de qualquer perseguido político chinês refugiado em Hong Kong, inclusive os proletários e comunistas que lutam heroicamente contra a burocracia chinesa e sua ditadura policial. Tais manifestações foram instigadas, portanto, pela inquestionável falta de transparência do sistema judicial chinês e a colaboração do governo de Hong Kong.

Porém, rapidamente as passeatas foram alinhadas aos interesses da extrema-direita de Hong Kong, uma oposição ao “colaboracionismo de classe” do governo chinês com os capitalistas de Hong Kong, mas num sentido reacionário. Os organizadores das manifestações querem uma “independência capitalista” da cidade e desejam também a queda do “comunismo” na China, e sua substituição por uma democracia de tipo ocidental. Obviamente, tal regime significaria uma plena liberdade de exploração para os imperialistas americanos, seguido de seus sócios ingleses e de outras potências.

Formalmente, os protestos defendem uma lista de pautas “pró-democracia”: a libertação dos presos durante as manifestações, a suspensão da sua caracterização como “distúrbio”, a realização de um inquérito sobre as ações policiais. Não há lideranças centralizadas, mas é evidente que se formaram blocos políticos, organizados por fóruns e aplicativos de internet. A mídia de Hong Kong fala em um setor moderado, e outro “radical”, que realizou inúmeras ações violentas, que tiveram o pico em janeiro de 2020, incluindo ataques incendiários a prédios, ônibus e vagões de metrô (com pessoas dentro). Os manifestantes também exigiam a renúncia de Carrie Lam, Secretária-Chefe de Administração de Hong Kong (governante da cidade).

A lei sobre o acordo de extradição foi abandonada pela pressão das manifestações em junho de 2019. Mas as manifestações a partir de então intensificaram o seu tom anticomunista. Passaram a ser comuns bandeiras da época colonial de Hong Kong, como quando da ocupação violenta Conselho Legislativo em 1º de julho, onde tal bandeira foi erguida no pódio. Apareceram muitas bandeiras americanas e britânicas em meio aos protestos. Houve também inúmeras expressões de xenofobia contra os chineses do continente entre os “mascarados de preto”, que é como o setor dito mais radical passou a se vestir. Foram realizados ataques com bomba contra um conjunto habitacional de chineses próximo à fronteira. Turistas e repórteres da China continental foram agredidos nas ruas por grupos de manifestantes em setembro e outubro.

Além disso, há claramente uma infiltração dos interesses pró-americanos. A organização oficial dos protestos partiu da “Frente Civil dos Direitos Humanos”, um bloco de ONGs e organizações políticas, das quais a maioria recebe financiamento do governo americano, por meio do “Incentivo Nacional pela Democracia” (NED), gerido pelo Departamento de Estado. Com ligações com as agências de espionagem, a NED financia grupos para fomentar rebeliões e manifestações no interesse do governo americano. Em novembro de 2019, o congresso americano passou uma “Lei dos Direitos Humanos de Hong Kong” para apoiar e conceder mais financiamento aos grupos organizadores das manifestações. Os comunistas sabem bem que quando os EUA têm uma postura tão “benevolente” em relação a rebeliões e protestos, isso geralmente significa que estão articuladas com os interesses da sua classe dominante.

Qual deve ser a postura dos revolucionários? O repúdio ao regime policial do PCC e aos crimes de seus dirigentes é absolutamente legítimo, assim como é a luta por mais direitos democráticos contra a brutalidade da polícia de Hong Kong, o que incluía oposição à lei de extradição. Se houvesse um partido revolucionário com influência entre os trabalhadores e a juventude, teria sido possível tornar as marchas ações de solidariedade ao proletariado chinês, contra a burocracia e principalmente contra o imperialismo, chamando pela expropriação da burguesia de Hong Kong.

Mas obviamente, não foi isso que aconteceu. Assim como as manifestações dos guarda-chuvas em 2014, esta se tornou uma onda reacionária diante da hegemonia dos grupos pró-imperialistas e direitistas, o que ficou patente pelo menos desde julho de 2019. A defesa dos direitos democráticos dos trabalhadores está também submetida ao caráter de classe dos manifestantes e à sua perspectiva política geral, que nesse caso se opunha diretamente à defesa das conquistas remanescentes da revolução chinesa. As passeatas deveriam ser denunciadas, e os trabalhadores deveriam boicotar e realizar contramanifestações. Algumas destas chegaram a acontecer, geralmente associadas ao governo chinês.

Nós nos opomos à mentalidade de apoio acrítico aos governantes nacionalistas ou estalinistas, que afirma que qualquer manifestação de protesto contra eles deva ser esmagada com força policial. Nós não temos nada além de ódio pelos governantes de Hong Kong, e denunciamos o uso brutal de violência policial, que seria também usada contra trabalhadores em luta. Mas é preciso ter clareza sobre o grau de seriedade atingido pela onda de protestos. Em alguns momentos, as manifestações se aproximaram de uma derrubada violenta do governo, como no evento de 26 de setembro, quando manifestantes cercaram a comitiva de Carrie Lam por quatro horas após uma reunião pública no Estádio Rainha Elizabeth, antes que ela pudesse escapar.

No caso de um confronto violento entre o bloco que dirige as manifestações, com o objetivo de provocar a separação de Hong Kong, e o status quo, nós defenderíamos o último, ainda que hegemonizado pelo PCC e seus aliados de Hong Kong. Isso não implica deixar de denunciar o regime chinês como o principal culpado por esta ameaça, diante de sua covardia em expropriar os capitalistas da cidade.

Nós rechaçamos a posição daqueles na esquerda que elogiam e apoiam as manifestações direitistas, como supostamente “progressivas”, incluindo muitos autodeclarados “trotskistas”. Eles escondem o verdadeiro caráter político e social de tais protestos, para realizar seu programa de apoio a qualquer campanha “pró-democracia”, mesmo que hegemonizada e no interesse dos imperialistas. Muitos repetem a postura que tiveram na destruição dos Estados operários burocratizados do Leste Europeu e da URSS, quando apoiaram as forças contrarrevolucionárias do Solidarność (Solidariedade) polonês, o grupo ao redor de Yeltsin na Rússia e outros.

Após a derrota do bloco de colaboração de classes “pró-China” nas eleições, e a chegada ao poder do bloco de partidos mais diretamente associados ao imperialismo americano, os protestos continuaram, com uma pauta clara de “libertação de Hong Kong” da China (para ser aprisionada pelos imperialistas). A epidemia do coronavírus levou a uma trégua, conforme foram feitos alertas para o isolamento social e muitas pessoas passaram a ter receio de ir às ruas.

A única forma de derrotar essa campanha reacionária de forma definitiva, e não de forma paliativa (burocrático-policial), é construindo uma forte campanha que ligue o combate por direitos democráticos à defesa da propriedade estatal chinesa; que combine a denúncia dos crimes da burocracia de Xi com a solidariedade entre os trabalhadores chineses do continente e de Hong Kong; que una o repúdio aos governantes da cidade com a luta por uma sociedade administrada democraticamente pelas organizações de trabalhadores em toda a China, baseada na expropriação dos capitalistas. Essa será a campanha capaz de levantar o proletariado da cidade e cumprir um papel progressivo na luta do proletariado internacional.