Polêmica com a LIT / PSTU sobre a Palestina

Internacionalismo proletário ou adaptação ao nacionalismo burguês?

Polêmica com a LIT / PSTU sobre a Palestina

  
Rodolfo Kaleb e Marcio Torres, janeiro de 2015
  
Recentemente nós do Reagrupamento Revolucionário publicamos uma declaração sobre a questão palestina e o massacre perpetrado pelo regime sionista de Israel contra a população de Gaza (Defender os palestinos! Nenhuma confiança no Hamas e no Fatah!, de agosto de 2014). [1] Nessa declaração, além de apontarmos nossa oposição em relação aos ataques israelenses e a defesa da Palestina de forma mais geral, também tecemos algumas breves críticas a algumas posições presentes na esquerda que se reivindica revolucionária. Esta frequentemente defende uma política desorientadora e oportunista sobre tarefas concretas para levar à emancipação do povo palestino e a um governo dos trabalhadores. Dessa forma, queremos aprofundar algumas dessas críticas, mais especificamente as que se aplicam ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e à organização internacional por ele dirigida, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT).


Capitulação ao programa e aos partidos nacionalistas burgueses
  
Comumente, o PSTU/LIT resume seu programa para a luta de classes na Palestina através do slogan “Por uma Palestina livre, laica e democrática” (acrescentando, às vezes, também “não racista”). Não é acaso que essa síntese de sua posição não coloque em questão o caráter de classe da Palestina que almejam. Analisando de perto o conteúdo desse slogan, vemos que ele se limita ao programa original da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), como o próprio PSTU já afirmou explicitamente:
  
 “Estamos juntos com as massas palestinas, libanesas e árabes na defesa da destruição do Estado de Israel. Contudo, diferentemente das correntes fundamentalistas islâmicas, fazemos esta defesa dentro da mesma perspectiva que existia na raiz da OLP: a criação de uma Palestina laica, democrática e não racista.”
  
― Pela destruição do “Estado policial” de Israel, de agosto de 2006. Ênfase nossa.
  
Criada em 1964, a OLP começou como uma coalização de forças políticas variadas adotando táticas de guerrilha, reivindicando o fim do sionismo, o direito de retorno dos palestinos expulsos de suas terras e o retorno à “Palestina histórica”, isto é, às fronteiras existentes antes de 1948. Como acontece com toda organização de massas sem uma delimitação classista, a OLP passou rapidamente a atender fundamentalmente aos interesses dos setores mais favorecidos economicamente da população palestina. Logo nos primeiros anos, o partido Fatah (Movimento pela Libertação Nacional da Palestina) dirigido por Yasser Arafat tornou-se a liderança da organização, o que lhe conferiu um caráter político nacionalista, sem nenhuma pretensão de confrontar o capitalismo. Com o tempo, esse programa levou à sua conclusão lógica: disposição a “negociar” os direitos dos palestinos em troca de alguma estabilidade econômica e política para os palestinos mais prósperos. Na década de 1980, sob a orientação do Fatah, a OLP aceitou negociar com Israel um “mini Estado” palestino, que compreendesse a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, abandonando abertamente as pretensões de derrotar o controle do Estado sionista sobre o território palestino e reconhecendo a legitimidade deste.
  
Qual força política é capaz de construir uma Palestina “laica, democrática e não racista”? Para os marxistas, só há duas classes na sociedade moderna que são capazes de realmente estabelecer seu poder: ou a burguesia ou os trabalhadores. A camada bastante frágil dos empresários palestinos já demonstrou sua completa bancarrota política ao aceitar uma “coexistência” sob o tacão dos sionistas. Cabe ao proletariado da região, em aliança com as massas camponesas pobres e os oprimidos pelo capitalismo sionista, lutar contra esse regime. Mas ao se organizar como vanguarda da luta contra o sionismo, o proletariado não irá se limitar ao programa democrático da pequena-burguesia. Ele vai necessariamente iniciar a construção do seu próprio governo, estabelecido sob as bases de expropriação da propriedade burguesa, administração democrática das empresas e armamento dos trabalhadores.
  
Ao reivindicar o programa original da OLP, abandonado pelo próprio Fatah em razão dos interesses de classe burgueses e pequeno-burgueses que ele representa, os dirigentes do PSTU “esquecem” o “detalhe” de que uma Palestina realmente “livre, soberana, democrática e não racista” só é possível sob um regime de democracia proletária, e que isso jamais esteve no programa da OLP e nem estará, pois vai contra seu compromisso de manter o capitalismo. O resultado é que o PSTU se coloca em defesa de um programa pequeno-burguês. Muitos dos seus materiais de propaganda sequer colocam a tarefa de construção de um poder dos trabalhadores [2], ou colocam essa tarefa de forma deslocada da luta (considerada prioritária) por uma Palestina “democrática”. Sob essa configuração, a Palestina “democrática” defendida pelo PSTU seria um regime burguês para substituir Israel. É nos próprios partidos da burguesia e da pequena-burguesia que o PSTU busca um instrumento para realizar essa tarefa. Por muitos anos, chamou para que a OLP liderasse o povo palestino e lhe conferiu apoio político praticamente acrítico. Mas como nos últimos anos a capitulação da OLP ao sionismo ficou explícita demais, foi necessário ao PSTU buscar outra força política da qual esperar o objetivo utópico da “Palestina livre” sem menção ao caráter de classe. Em 2007, em um artigo publicado em seu site, o PSTU defendeu a seguinte “alternativa”:
  
“Nesse momento é muito importante realizar um chamado a todos os que desejam resistir a Israel e seus parceiros. O Hamas precisa estar à frente desse chamado a todas as organizações da resistência palestina, da esquerda e das próprias bases do Fatah, a romper com seu corrupto presidente e repudiar seu golpe. A paz só virá com a luta intransigente e até o fim contra o Estado de Israel e a construção de uma Palestina soberana, laica, democrática e não racista, com retorno de todos os refugiados.”
  
― Hamas toma controle da Faixa de Gaza, julho de 2007. Disponível em:
  
O Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) surgiu em 1987 como uma dissidência da Irmandade Muçulmana, sendo um partido que defende a construção de um Estado teocrático islâmico na Palestina. Em 2007, no ano do artigo escrito pelo PSTU, ele chegou ao governo da Faixa de Gaza e hoje controla a maioria dos assentos no parlamento organizado pela Autoridade Nacional Palestina. O Hamas ganhou bastante prestígio com as massas palestinas em razão da capitulação gritante da OLP ao regime sionista e, devido à situação extrema da Faixa de Gaza, ele frequentemente toma medidas de resistência armada contra Israel. Contudo, seus interesses nada tem a ver com os do proletariado. Não só ele também sustenta o capitalismo, como também é abertamente antidemocrático, sendo contra os direitos seculares das mulheres da Palestina e igualando todos os trabalhadores israelenses com os assassinos governantes de Israel.
  
Ao chamar para que o Hamas “esteja à frente” de toda a resistência palestina, o PSTU conferiu a esse partido nacionalista islâmico o “direito” de liderar inclusive os trabalhadores palestinos. Indiretamente, está abdicando da luta por um partido revolucionário para ganhar o proletariado da influência nociva do nacionalismo islâmico, dizendo inclusive que é o Hamas que deve chamar a romper a base do Fatah. Além do mais, como é possível que os dirigentes do PSTU acreditem que o Hamas seja capaz de levar a cabo uma luta por um programa que ele jamais teve, ou mesmo que seja possível que seus membros lutem por uma Palestina “laica” (sendo defensores da teocracia islâmica), “livre e soberana” (sendo que estão à frente de um governo capitalista num mundo dominado pelo capital imperialista); ou mesmo “democrática” (quando são fanáticos religiosos profundamente misóginos e homofóbicos)? O resultado de uma hegemonia do Hamas na resistência palestina contra Israel seria aprisionar as massas palestinas ao nacionalismo islâmico, alienar (ainda mais) os trabalhadores israelenses de qualquer oposição ao regime sionista e garantir que, de uma forma ou de outra, os interesses sujos da burguesia seriam assegurados. Nenhum marxista digno do nome pode sustentar tal posição.
  
A escandalosa caracterização do proletariado israelense
  
Se a palavra de ordem do PSTU por uma “Palestina livre, laica e democrática” é uma clara limitação a um programa democrático burguês, fruto de sua capitulação ao nacionalismo árabe procapitalista, há ainda outro aspecto da sua política que também é um enorme obstáculo para qualquer perspectiva de revolução proletária. Segundo a caracterização feita pela LIT em 2011:
  
“Assim como o Estado sionista não é um Estado normal, mas sim um enclave militar, tampouco o é a classe operária que lá vive. Ao ser Israel um Estado artificial, baseado no roubo e superexploração dos palestinos, a classe operária judia em Israel é também parte da ocupação, ou seja, recebe privilégios da ocupação. Em outras palavras, tem um nível de vida melhor do que o dos trabalhadores árabes exatamente porque recebe migalhas derivadas da exploração destes, e pelo dinheiro que Israel recebe dos EUA.
  
“Nenhuma classe operária no mundo, como já dizia Marx, luta para piorar seu nível de vida ou para perder seus privilégios. Por isso a classe operária israelense não é (e nem será) revolucionária, sequer reformista. É intrinsecamente reacionária. Seu bem-estar depende da continuidade e da ampliação da ocupação do território palestino, de seu caráter de Estado policiesco. Não se pode esperar dos trabalhadores judeus uma mudança [de] caráter do Estado sionista, para que este deixe de ser racista e expansionista. Israel não pode ser reformado, só pode ser destruído.”
  
― Sobre o movimento dos “indignados” de Israel, Partido Operário Internacionalista (POI – Rússia), setembro de 2011. Ênfase nossa. Disponível em:
  
Comecemos pela caracterização de Israel como um “enclave militar”. O regime sionista certamente é financiado pesadamente pelo imperialismo, mas a base da sua existência é também a exploração dos trabalhadores israelenses e das massas palestinas, de forma que não se trata de uma mera instalação imperialista no Oriente Médio. E Israel não é o único Estado que recebe insumos financeiros e militares por ser um aliado fiel das potências imperialistas. O mesmo se dá com vários países árabes, como é o caso da Arábia Saudita, que as grandes potências usam como fantoches locais para contrabalancear os governos burgueses “instáveis”, como o Irã.
  
Além disso, conforme afirmamos em nossa já mencionada declaração, “A população israelense não pode ser considerada simplesmente como colonos nesse momento da história. Quer queira quer não, se desenvolveu na região uma nacionalidade de fala hebraica.” (Defender os palestinos! Nenhuma confiança no Hamas e no Fatah!de agosto de 2014). Ao apagar a existência dessa nação (e sua divisão em classes fundamentalmente antagônicas) a LIT reduz a contradição fundamental da sociedade israelense, não à luta entre burgueses e proletários, mas a uma luta de ambos os burgueses e proletários israelenses contra o povo palestino (também aqui tomado em bloco, como se não houvesse contradições de classe).
  
Os marxistas não se opõem ao direito dos judeus de habitar na Palestina, nem aos direitos daqueles que para lá emigraram. A oposição dos marxistas é ao projeto sionista, que defende um Estado exclusivamente israelense, com um regime teocrático e que oprima as massas palestinas, segregando-as sistematicamente através de métodos jurídicos e militares. Corretamente, a Quarta Internacional foi contra a fundação do Estado de Israel em 1948, ao mesmo tempo em que buscava ganhar os trabalhadores israelenses contra o sionismo [3]. É de um simplismo absurdo tentar reduzir toda a sociedade israelense de hoje em dia a um “enclave militar”. Isso secundariza a divisão dessa sociedade em classes fundamentalmente antagônicas, colocando em um mesmo patamar os exploradores e os explorados.
  
Em segundo lugar, embora tenha melhores condições de vida do que a maior parte dos seus irmãos nos países vizinhos do Oriente Médio, o proletariado israelense não é mais privilegiado do que aquele dos países imperialistas (na verdade, possui condições de vida bastante inferiores). Tanto sua vida não é perfeita e harmônica, que nos últimos anos temos visto massivos protestos em defesa de mais recursos públicos para serviços e políticas sociais como saúde e educação – algo muito mais próximo de uma consciência reformista do que de uma consciência “intrinsecamente reacionária” [4]. A LIT se opõe a esses protestos e, ao menos nisso, tem a mesma atitude dos dos burocratas sionistas que desejam ver tais lutas minguarem e fracassarem.
  
O fato de que a classe trabalhadora em alguns países é privilegiada em comparação com a de outros não muda o fato de que é da classe proletária que depende uma revolução vitoriosa (e especialmente a classe trabalhadora dos países imperialistas, sem os quais o socialismo não pode triunfar a nível mundial). Essa desigualdade é um elemento estrutural no qual os capitalistas se fiam para dividir a classe trabalhadora em linhas nacionais, mas o trabalhador israelense tem muito mais vantagens em romper com a “sua” burguesia e buscar um poder em conjunto com as massas palestinas do que manter sua atual condição de classe dominada, explorada e oprimida.
  
Ao contrário dos sionistas, os marxistas argumentam que o sionismo NÃO serve aos interesses objetivos da classe trabalhadora israelita. O Estado de Israel, como Trotsky havia previsto, pode acabar sendo uma “armadilha fatal” para os judeus que emigraram para lá. Os trabalhadores judeus não se beneficiam de viver sob o capitalismo sionista, e o seu atual apoio à “sua” classe dominante, assim como o apoio que a classe trabalhadora de muitos países presta aos “seus” governos, é uma falsa consciência que os revolucionários devem buscar desmascarar.
  
Ao fim e ao cabo, é de uma total falta de coerência que supostos marxistas acreditem seriamente que trabalhadores tem a perder (“piorar seu nível de vida” ou “perder seus privilégios”) ao derrotar seus patrões e assumir o controle da riqueza por eles produzida. Certamente, do que os trabalhadores israelenses jamais poderão ser convencidos é apoiar partidos nacionalistas islâmicos como o Hamas (e que o PSTU considerou em 2007 que deveria estar à frente dos palestinos) que são contra seu direito a existir enquanto povo. Mas eles têm todas as razões objetivas para lutar lado a lado das massas palestinas pela destruição do regime sionista e por uma Palestina socialista dos trabalhadores de todas as religiões e etnias (que é uma tarefa que o PSTU relega a um futuro incerto). O que impede os trabalhadores israelenses de lutar por esse objetivo é sua cegueira diante da ideologia sionista e a ausência de um partido revolucionário que defenda a união internacionalista dos trabalhadores dos dois povos contra seus verdadeiros inimigos.
  
Essa escandalosa caracterização realizada pela LIT, faz com que ela subestime completamente o proletariado israelense como um poderoso aliado em potencial das massas palestinas na luta por sua libertação. Tal postura de considerar que a classe trabalhadora de Israel é “intrinsecamente reacionária” também significa o abandono de qualquer perspectiva realista de revolução socialista na região, uma vez que os trabalhadores israelenses constituem atualmente o maior componente da classe trabalhadora.
  
Esse abstencionismo diante do proletariado israelense é o lado reverso da sua capitulação aos partidos nacionalistas árabes. E tal capitulação é tão profunda que chega ao extremo de defender e legitimar ataques reacionários indiscriminados contra a população israelense,
  
“As organizações da esquerda mundial devem responder claramente às seguintes perguntas: estamos a favor de que a atual guerra se desenvolva até derrotar completamente o exército sionista e o Estado de Israel? Estamos a favor de que as ações contra a população do enclave colonial israelense – por parte do Hizbollah, do Hamas e do Jihad Islâmica – aumentem e sejam cada vez mais efetivas? (…) Aqueles que responderem negativamente a estas questões deixaram de ser revolucionários para, nas palavras de Lênin, transformarem-se em ‘meros pacifistas pequeno-burgueses’. De nossa parte, reiteramos a resposta afirmativa a cada uma destas questões.
  
― Pela destruição do “Estado policial” de Israel, de agosto de 2006. Ênfase nossa.
  
Duas coisas estão amalgamadas nesse parágrafo. Primeiro, o PSTU parece se referir à defesa da Palestina e de outras nações oprimidas por Israel (como era o caso do Líbano, que estava sendo atacado em 2006), que é uma tarefa de todos os comunistas consequentes. É evidente que, por desejarem a derrota do Estado sionista por uma revolução, os trabalhadores se beneficiam do enfraquecimento de Israel sob os golpes de uma nação por ele subjugada, ainda que não devam dar nenhum milímetro de apoio político aos nacionalistas burgueses. Mas a seguir, o PSTU reivindica o apoio a atos de agressão contra a população de Israel (o que incluiria certamente a sua classe trabalhadora). Não há nada de “leninista” em apoiar atos sanguinários de ódio étnico. O PSTU menciona Lenin (sem citar nenhum texto seu) afirmando que quem não apoia tais atos é um “pacifista pequeno-burguês”. Ainda que não concordem com métodos “terroristas”, os comunistas não condenam atos de violência que tenham como alvo membros da burguesia, seu exército e sua estrutura de repressão (como aqueles que realizavam os Narodiniki russos). Mas nada há de vantajoso para os trabalhadores em reivindicar ataques, digamos, a residências, escolas ou estações de trem em Israel por grupos islâmicos. Tais ataques são reacionários e só reforçam o clima de ódio comunal da região, atingindo principalmente trabalhadores.
  
O fato de os dirigentes da LIT preferirem ignorar os interesses comuns entre os explorados árabes e os explorados israelenses demonstra uma total falta de fibra revolucionária para defender o programa da classe proletária e uma vontade de “escolher a linha de menor resistência”. A consciência de classe atrasada dos trabalhadores israelenses, grande parte dos quais (contra os seus interesses objetivos) defende formas de ideologia burguesa como o sionismo, faz tais revisionistas acharem um “refúgio” numa popular ideologia nacionalista árabe, também burguesa, porém mais receptiva. Contra essa capitulação, os marxistas reiteram que a sua guerra contra o regime sionista é uma guerra de classe, a ser protagonizada pelos trabalhadores palestinos e israelenses (junto às outras classes oprimidas e com apoio dos proletários do restante do Oriente Médio). A posição dos revolucionários de defesa tático-militar dos palestinos contra Israel, incluindo alianças tático-militares com os partidos burgueses ou pequeno-burgueses palestinos que resistem aos ataques sionistas, deve sempre vir acompanhada de uma denúncia implacável da falsa política do nacionalismo burguês.
  
Nahuel Moreno e seu fatalismo antimarxista
  
A capitulação da LIT ao programa do nacionalismo árabe (já abandonado por seus próprios representantes) e aos limites capitalistas desse programa possui em sua raiz as posições programáticas desenvolvidas por Nahuel Moreno, o falecido dirigente argentino fundador dessa organização. Em 1982, numa polêmica publicada em Correio Internacional número 8 (setembro de 1982), Nahuel Moreno discutiu com um companheiro da seção chilena da LIT, que levantou críticas bastante pertinentes (ainda que limitadas) à sua política oportunista. O primeiro questionamento levantado pelo “companheiro chileno” (cujo nome não é revelado) foi o seguinte:
  
 “1. Por que levantamos como consigna central a de ‘Palestina laica, democrática e não racista’ burguesa? Por que estamos pela construção de um Estado burguês na Palestina? Fica entendido que, se surgir um Estado com essas características na luta contra o sionismo e o imperialismo, o apoiamos, mas não está claro porque hoje a reivindicamos como nossa consigna”.
  
“2. Não fazemos com isso uma concessão à ideologia reacionária da ‘revolução por etapas’, tão cara ao estalinismo e à pequena-burguesia? Se não nos equivocamos, essa foi a consigna central do estalinismo e da burguesia e pequena-burguesia palestina até agora pouco (como assinala Correio Internacional 7). Não dizemos o mesmo que o estalinismo quando afirmamos que esse Estado burguês palestino servirá ‘como um passo na luta pelo socialismo’ (declaração da LIT)?”.
  
— “Carta de um camarada chileno” (espanhol). Disponível em:
  
De fato, Moreno realizou uma profunda revisão do arcabouço programático do marxismo na questão da estratégia revolucionária. Diferente do esforço feito pela Internacional Comunista e pela Quarta Internacional para buscar uma estratégia para a revolução proletária mundial mesmo nos países atrasados do capitalismo, onde era fundamental ganhar o apoio do campesinato (que era maioria da população), Moreno se adaptou à ideia de que era necessário se limitar a um programa democrático-burguês numa “primeira fase” da revolução em todos os países do mundo. Ele colocou abertamente que era necessária uma “etapa”, que chamou de “revolução democrática”, na luta pela revolução socialista. Isso não é uma leitura parcial, mas algo que Moreno afirmou abertamente:
  
“Aqui há um problema político grave, tremendo, que toco de passagem – se tivermos tempo, faremos um grande livro. Parece que o fato da contrarrevolução capitalista recolocou a necessidade de que haja uma revolução democrática. E ignorar que o que está acontecendo nos países adiantados, onde há regimes contrarrevolucionários, também é uma revolução democrática, é maximalismo, é tão grave quanto ignorar a revolução democrático-burguesa nos países atrasados. Isto é muito importante. Não sei se é correto ou não. Se é correto, é preciso mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente.”
  
— Escola de Quadros, “Teoria da Revolução” (espanhol), 1984.
  
Tal postura altera a forma como se lida com os partidos burgueses e pequeno-burgueses. De inimigos da revolução proletária aos quais não se pode dar nenhum apoio político e dos quais se deve expor a capitulação e as vacilações para ganhar de suas bases os trabalhadores conscientes, eles passam a “líderes” de uma “revolução democrática”, aos quais os morenistas dão seu apoio. Prossegue Moreno:
  
“Se é correto, muda toda nossa estratégia com respeito aos partidos oportunistas e, em boa medida, com respeito aos partidos burgueses que se opõem ao regime contrarrevolucionário. Como um passo até a revolução socialista, nós estamos a favor que venha um regime burguês totalmente distinto.”
  
— Idem.
  
Este “etapismo” descarado, a disposição em orientar a luta do proletariado em torno de tal “revolução democrática”, a qual jamais existiu fora da imaginação fértil de Moreno e dos seus seguidores [5], “mudam a estratégia com relação aos partidos burgueses”. Na sua carta, o “companheiro chileno” astutamente pergunta: “O nosso método é seguir pela ‘esquerda’ a pequena-burguesia e ir retomando os restos das consignas que ela abandona no caminho de sua capitulação diante do imperialismo?”.
  
Efetivamente, Moreno e a LIT renegaram a posição trotskista de que a luta pela revolução proletária deve estar em primeiro plano político inclusive na defesa de uma nação oprimida. Moreno e Cia. renegam também que o sujeito político dessa revolução deve ser o partido de vanguarda do proletariado, armado com o programa bolchevique. Contrariando os ensinamentos fundamentais da Teoria da Revolução Permanente, preferem depositar suas esperanças na falsa noção de uma “revolução democrática” como a antessala daquela, sendo esta supostamente liderada por partidos oportunistas e mesmo burgueses.
  
O método de Moreno portanto não é o do marxismo, que é encontrar as formas de ganhar o proletariado para o programa da revolução socialista, fazendo-o romper com a ideologia burguesa e com os partidos burgueses, mas sim um método objetivista, para o qual não importa a atual liderança das massas ou seu caráter de classe, deve-se tentar “empurrá-la” para o caminho da “revolução democrática” (mesmo quando esses partidos burgueses rejeitam as demandas democráticas mais básicas, como é o caso do Hamas). Esse é também o motivo do seu abandono da luta para ganhar o proletariado israelense para o programa do marxismo, já que este é muito mais politicamente atrasado. Na sua resposta ao “companheiro chileno”, Moreno dá uma verdadeira “aula” do seu método objetivista:
  
“Se o propósito decisivo e fundamental é a destruição do Estado sionista, se trata de estabelecer quais são as forças objetivas que neste momento estão embarcadas nessa tarefa progressiva, histórica, e quais são as melhores consignas para apoiá-las e conseguir com que cumpram seu compromisso com o maior entusiasmo e força.”
  
“Acaso estão fazendo isso os explorados e discriminados sabras e sefarditas de Israel? Ou são os trabalhadores asquenazes? Nesse momento essas forças são o baluarte do Estado sionista e não a vanguarda da sua destruição. A aristocracia operária asquenaze, através do Partido Trabalhista, está em tudo com o sionismo. Os sabras e sefarditas deram a base eleitoral a Begin e apoiaram com entusiasmo seu plano de colonização das terras árabes.”
  
“Isso deixa atualmente como único setor social em luta permanente contra Israel o movimento árabe e maometano, em cuja vanguarda indiscutível estão os palestinos, expulsos de sua pátria pelos sionistas. Há 34 anos, quando se construiu o Estado racista, a forma de lutar pela sua destruição é apoiar a justa guerra dos palestinos e muçulmanos. Não vemos outra, porque não há outra força na realidade objetiva que se enfrente, de armas na mão, contra o sionismo.” (ênfase nossa).
  
— Polêmica sobre o Oriente Médio (espanhol). Disponível em:
  
O marxismo considera que a única classe consistentemente revolucionária da sociedade moderna é o proletariado. Os revolucionários não se desesperam diante da atual consciência atrasada dos trabalhadores. No Programa de Transição, Trotsky falou sobre a distância entre as tarefas históricas colocadas para o proletariado e o seu nível atrasado de consciência para cumpri-las. É preciso pacientemente construir aos poucos uma consciência revolucionária no seio das lutas do proletariado. Mas o que Moreno fez foi aceitar como “fato consumado” o atraso dos trabalhadores israelenses e que a liderança da luta contra o regime sionista seria a burguesia árabe, na figura da OLP, ignorando completamente as traições realizadas por essa direção, prometendo “apoiá-la”, adaptando para isso as suas consignas e o seu programa. Esse método é mantido até hoje pelos seus seguidores. Apoiar qualquer força “objetiva” (ou seja, com influência de massas) em luta contra governos inimigos do proletariado, independente do programa, liderança e classe social que esta força represente. É evidente que a OLP jamais cumpriu a esperança dos morenistas. Ao contrário, seguiu a sua trajetória esperada e cada vez se adaptou mais aos interesses sionistas e imperialistas.
  
Outro questionamento do “companheiro chileno” foi: “Por que sequer caracterizamos a OLP no Boletim Interno? Acaso não é uma organização frentista controlada pela burguesia e pequena-burguesia, com Arafat como expressão disso? Não é uma organização que já deu várias amostras de sua capitulação – em aberta contradição com o incrível heroísmo demonstrado pelo povo palestino?”. Em seu entusiasmo por embelezar a OLP como liderança de sua “revolução democrática”, Moreno rasgou completamente o marxismo:
  
“Vocês caracterizam a OLP como se fosse um partido político a mais. Para nós, representa a nacionalidade palestina como organização estatal sui generis laica, democrática e não racista, em guerra. É quase um Estado: é uma frente única que abarca todo o movimento palestino em luta para reconquistar sua pátria e voltar a ser um Estado. De fato, é um governo, exigimos o seu reconhecimento do mesmo modo como fazíamos pela FSLN na Nicarágua. É uma nacionalidade organizada à qual suprimiram a terra: quando a recuperar, voltará a ser nação. É uma nação sui generis.”
  
“Quando vocês não reconhecem essa função da OLP, considerando-a uma simples fração política dos palestinos, dão um fundamento ‘de esquerda’ à caracterização do imperialismo. Ele também não a reconhece como organização nacional palestina, definindo-a como uma corrente terrorista.”
  
— Idem.
  
Influenciado pela popularidade que então tinha a reivindicação da OLP de ser algo como um “governo no exílio” e legítimo representante das massas palestinas, Moreno introduziu uma categoria alheia ao marxismo, de que um partido político pode representar “uma nação” como um todo, cada uma de suas classes, do proletário e do camponês ao grande capitalista. Rejeitamos o amálgama morenista de que aqueles que expuseram o caráter burguês da liderança da OLP estavam “fundamentando a caracterização do imperialismo”. Trotsky combateu precisamente esse tipo de revisionismo básico contra Stalin e sua caracterização de que o partido nacionalista Kuomintang era um “partido de quatro classes” ou de que os governos burgueses de Frente Popular eram “governos democráticos antifascistas”. Em todas essas ocasiões, eram os estalinistas que defendiam a colaboração com a burguesia disfarçando-a de “representante de todas as classes democráticas”. Os marxistas não precisam inventar esse tipo de artimanha porque seu compromisso é com a revolução do proletariado. Ainda que taticamente possam defender alianças militares com os partidos burgueses de uma nação oprimida, como é o caso dos palestinos, reconhecem nestes o seu caráter de classe. A caracterização de Moreno servia apenas para tentar blindar a OLP de criticas, e assim pavimentar o caminho de sua traição das massas palestinas.
  
Temos aqui duas estratégias distintas: a do morenismo e a do marxismo revolucionário. O primeiro consiste em adaptar as palavras de ordem e as consignas ao objetivo de tentar “empurrar” os partidos nacionalistas burgueses para cumprir uma “revolução democrática” cujas demandas estes próprios rejeitam, e que teria como resultado esperado um Estado burguês. Também considera o proletariado israelense da região parte do mesmo bloco que seus opressores e se posiciona contra as lutas deste. Esse esquema se mostra completamente falso cada vez que um dos “líderes” da suposta “revolução democrática” trai as massas palestinas. Já o método do marxismo prevê corretamente que essas organizações burguesas vão inevitavelmente trair as massas palestinas, e deseja reunir estas sob a liderança do proletariado, ao mesmo tempo em que quer dividir o “monólito” sionista em linhas de classe. Busca assim unificar a luta dos trabalhadores israelenses e árabes em torno dos seus interesses comuns de classe e dos direitos democráticos dos palestinos na luta pela revolução socialista, que construa um governo proletário que possa acender a faísca da revolução internacional. Nesse momento, essa é a única via realmente realista para os que querem lutar pelo socialismo na Palestina.
  
Por uma aliança internacionalista entre trabalhadores árabes e israelenses!
  
O problema fundamental do proletariado na Palestina é a ausência de um instrumento com influência de massas que combata o Estado de Israel com os métodos e a bandeira internacionalista da classe trabalhadora, o partido revolucionário conjunto dos trabalhadores israelenses e palestinos que lute para pôr um fim definitivo ao terror sionista. Este objetivo só pode ser obtido através da mobilização dos trabalhadores das duas nações em prol da defesa dos palestinos e por demandas democráticas e transitórias que desmascarem o monstro sionista, assim como os débeis governantes da “Autoridade Palestina”.
  
Diante da inexistência de tal partido, os revolucionários não devem se adaptar à consciência atual dos trabalhadores, nem às variantes mais “radicais” dos interesses burgueses, como o Hamas. O seu papel é lutar contra as tendências nacionalistas, socialdemocratas ou stalinistas presentes no seio da classe trabalhadora, reunir e treinar uma coluna de quadros para construírem, quando a oportunidade surgir, o seu partido revolucionário.
  
Tal partido deve defender os direitos nacionais dos palestinos, incluindo o direito de retorno daqueles palestinos que emigraram à força, bem como a expropriação e socialização de toda a riqueza produzida pelos trabalhadores palestinos e israelenses e a utilização democrática, racional e planejada desses recursos para melhorar radicalmente as condições de existência desses dois povos, a viverem de forma fraterna em uma terra compartilhada por irmãos de classe, sem ódio religioso ou étnico. Apenas um partido assim será reconhecido pelos trabalhadores das duas nações como verdadeiramente seu – e carregará a bandeira da sua próxima vitória.
  
  
NOTAS
  
[1] Leia nossa declaração aqui.
[2] Veja, por exemplo, todas as declarações recentes publicadas pelo PSTU sobre a questão palestina. Nenhuma toca (sequer menciona) na questão das tarefas de uma revolução socialista, se limitando sempre ao programa da “Palestina laica, democrática e não racista”:
Gaza: uma vitória palestina: http://www.pstu.org.br/node/20963
Os sinais da Terceira Intifadahttp://www.pstu.org.br/node/20864
Juventude Palestina, exemplo de força e resistênciahttp://www.pstu.org.br/node/20864
Repudiamos a nova agressão de Israel aos Palestinos: http://www.pstu.org.br/node/20864
[3] A posição trotskista na Palestina: Contra a Corrente (1948):
[4] Tendo em vista o reacionário antissemitismo tão disseminado entre os russos por gerações de brutais opressores (dos Czares a Stalin), é preocupantemente suspeito que o artigo afirmando que os trabalhadores israelenses não podem ser “sequer reformistas” tenha sido escrito justamente pela seção russa da LIT, o POI. Cabe ressaltar que, apesar de essa posição ter sua origem em formulações do próprio Moreno, como demonstraremos na seção seguinte, ela não tem aparecido de forma explícita em artigos e declarações próprias do PSTU ou da direção da LIT. Cabe ressaltar ainda que esse tipo de afirmação justifica diretamente a defesa que a LIT faz de agressões contra a população israelense, como criticamos adiante.
[5] Somente nos últimos anos, tivemos dentre as “revoluções democráticas vitoriosas” propagandeadas pelos morenistas a intervenção imperialista sobre a Líbia que colocou os “rebeldes” no poder e o golpe militar contra o governo da Irmandade Muçulmana no Egito. Confira nossas polêmicas:
De que lado da trincheira?
O golpe militar no Egito e a posição escandalosa do PSTU/LIT: