Arquivo Histórico: Carta Sobre a Iugoslávia

A Seção Britânica e o Secretariado Internacional 
Carta Sobre a Iugoslávia

[A seguinte carta para o Comitê Executivo Internacional da Quarta Internacional foi escrita por Jock Haston, líder do Partido Comunista Revolucionário (RCP), seção britânica da Quarta Internacional, a respeito do desvio centrista desta após ruptura entre os stalinistas iugoslavos e a burocracia soviética. Embora o documento não seja datado, provavelmente foi produzido no verão europeu de 1948. A carta foi importante ao apontar um erro grave da direção da Internacional, que flertou com a possibilidade de ganhar a burocracia iugoslava dirigida por Josip Broz Tito para o trotskismo, um tipo de perspectiva que se tornaria o cerne da organização com a ascensão do revisionismo pablista no Terceiro Congresso Mundial de 1951. Embora não compartilhemos a perspectiva e as posições políticas posteriores dos líderes do RCP, reconhecemos que estes prestaram resistência contra alguns desvios da Quarta Internacional em seus escritos no fim da década de 1940. A tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011.]

Para o CEI [1] 


Caros camaradas,

A disputa entre a Iugoslávia e o Cominform [2] oferece à Quarta Internacional grandes oportunidades para expor aos militantes de base dos stalinistas os métodos burocráticos do stalinismo. É possível sublinhar a forma com a qual as lideranças stalinistas suprimem qualquer forma genuína de discussão sobre o conflito ao distorcer os fatos e esconder as respostas da liderança do PCY [Partido Comunista da Iugoslávia] dos seus membros de base. Ao ressaltar tais aspectos da expulsão iugoslava, nós podemos causar um profundo efeito nos militantes dos partidos comunistas.

No entanto, a nossa aproximação com esse grande evento deve ser principista. Nós não podemos dar crédito, silenciando sobre aspectos da política e do regime do PCY, a nenhuma impressão de que Tito ou os líderes do PCY são trotskistas, ou de que não há grandes obstáculos que os separam do trotskismo. Nossa exposição das formas burocráticas da expulsão do PCY não podem significar que nos tornamos advogados da liderança do PCY, ou que criamos sequer a menor ilusão de que eles não permanecem sendo, apesar da ruptura com Stalin, stalinistas em método e treinamento.

Em nossa opinião, as Cartas Abertas do SI [Secretariado Internacional da Quarta Internacional] para o Congresso do PCY falharam em cumprir essas condições absolutamente essenciais. Elas falharam em pôr direta e claramente o que há de errado, não apenas com o PCUS, mas com o PCY. Toda a aproximação e o tom geral das cartas são tais que criam a ilusão de que a liderança do PCY é composta por comunistas, equivocados no passado, e que descobriram pela primeira vez os males dos métodos burocráticos de Moscou, ao invés de líderes que participaram ativamente e ajudaram a burocracia, ao agir como seus agentes no passado.

As cartas parecem se basear na perspectiva de que os líderes do PCY podem ser ganhos para a Quarta Internacional. Sob a pressão dos eventos, estranhas transformações de indivíduos já aconteceram, mas é excessivamente improvável, para dizer o mínimo, que Tito e outros líderes do PCY possam se tornar novamente bolcheviques-leninistas [3]. Obstáculos tremendos estão no caminho dessa eventualidade: tradições passadas e treinamento no stalinismo, e o fato de que eles próprios descansam sobre um regime burocrático stalinista na Iugoslávia. As cartas falharam em apontar a natureza desses obstáculos, falharam em sublinhar que para os líderes do PCY se tornarem comunistas, seria necessário que eles não apenas rompessem com o stalinismo, mas que repudiassem o seu próprio passado, os seus atuais métodos stalinistas, e reconhecessem abertamente que eles próprios nutrem responsabilidade pela construção da máquina que está agora sendo usada para esmagá-los. Não estamos tratando aqui de comunistas encarando um “terrível dilema”, sentindo uma “enorme responsabilidade” pesando sobre eles, a quem nós oferecemos um modesto conselho: é uma discussão sobre burocratas stalinistas se tornaremcomunistas.

O objetivo de tais Cartas Abertas só poderia ser limitado. Ao colocar na balança uma análise correta e principista do papel da burocracia stalinista e da liderança do PCY, e ao oferecer assistência ao PCY em uma luta comunista estritamente delimitada, as Cartas Abertas poderiam ser uma propaganda útil, ajudando a aproximação com a base que busca uma liderança comunista.

Da forma como estão, entretanto, pelo seu silêncio sobre aspectos fundamentais do regime na Iugoslávia e a política do PCY, as cartas atingem uma marca oportunista.

Não faz parte da nossa experiência que os mais corajosos e mais independentes militantes comunistas “estão hoje estimulados pela sua ação [do PCY]”. A crise do Cominform, ao invés disso, semeou confusão nas colunas do PC e desorientou os seus apoiadores. Isso é para nossa vantagem. Mas embora seja uma tarefa relativamente fácil expor as manobras do Cominform, há verdade suficiente em algumas das suas acusações contra Tito – particularmente no que diz respeito ao regime interno, à Frente Nacional [4] – para causar entre as colunas e bases stalinistas um mal-estar com relação aos líderes do PCY. Isso nos dá uma oportunidade para ganhar esses militantes, não para a causa de Tito, mas para o trotskismo.

Tito está tentando, e irá tentar, seguir um curso independente entre Moscou e Washington, sem alterar a máquina burocrática ou girar para o internacionalismo proletário. Um regime burocrático que tem sua base principalmente no campesinato não pode ter perspectiva independente entre a União Soviética e o imperialismo norte-americano. A ênfase principal das cartas deveria ter sido mostrar a necessidade de um rompimento radical com a política atual do PCY, a introdução da democracia soviética dentro do partido e do país, aliado a uma política de internacionalismo proletário. A posição deve ser colocada diante dos militantes iugoslavos, não como uma escolha entre três alternativas – a burocracia russa, o imperialismo norte-americano e o internacionalismo proletário – mas, primeiro e mais importante, uma escolha entre a democracia proletária dentro do regime e do partido, o internacionalismo proletário, e a presente estrutura burocrática instalada, que deve inevitavelmente capitular diante da burocracia russa ou do imperialismo norte-americano.

As cartas do SI analisam a disputa somente no plano da “interferência” dos líderes do PCUS, como se fosse somente uma questão dessa liderança buscar impor sua vontade sem consideração pelas “tradições, a experiência e as relações” dos militantes. Mas a disputa não é simplesmente a luta de um Partido Comunista por independência dos decretos de Moscou. É uma luta de uma seção do aparato burocrático por tal independência. A posição de Tito representa por um lado, é verdade, a pressão das massas contra os desmandos da burocracia russa, contra a “unidade orgânica” exigida por Moscou, descontentamento com os especialistas russos, pressão do campesinato contra uma coletivização excessivamente rápida. Mas por outro lado, há o desejo dos líderes iugoslavos de manter uma posição burocrática independente e promover as suas próprias aspirações.

Não é suficiente expor os crimes do stalinismo internacionalmente nas portas da liderança do PCUS. Não apenas com relação à Iugoslávia, mas também com relação aos outros países, a Carta Aberta dá a impressão inteiramente falsa de que a liderança russa é a única culpada. Colocar as relações do movimento stalinista internacional da forma como faz a carta do SI – que a liderança do PCUS “forçou Thorez [5] a desarmar os membros do partido francês”, “forçou os comunistas espanhóis a declarar (…) que a tomada das fábricas (…) era ‘uma traição’”, “proíbe completamente as lideranças dos partidos comunistas nos países capitalistas de falar de revolução” – pode criar ilusões de que os líderes dos partidos stalinistas nacionais poderiam ser bons revolucionários simplesmente se Moscou os deixasse em paz. É verdade que a degeneração dos PCs fluiu basicamente da degeneração da União Soviética. Mas a doença do movimento stalinista também é responsabilidade da corrupção completa das lideranças nacionais que estão ligadas à máquina burocrática. Esses líderes participam ativamente na preparação dos crimes. Então também para Tito, não foi uma questão de ter sido “forçado” a levar adiante os desejos de Moscou no passado.

É inadmissível vacilar sobre a natureza do PCY e a sua identidade, nos pontos fundamentais, com a dos outros partidos stalinistas. Tal vacilação só pode desorientar os trabalhadores stalinistas de base. No entanto, toda tentativa possível é feita pelo SI para estreitar o abismo que separa a política do PCY do bolchevismo-leninismo. Que outra conclusão pode ser tirada de declarações tais como esta a seguir:

(…) o Cominform acusa vocês de compreenderem errado o ‘internacionalismo proletário’ e de seguir uma política nacionalista. Isso é dito pela mesma liderança russa cuja propaganda chauvinista durante a guerra (…) é largamente responsável pela ausência de uma revolução na Alemanha enquanto que [ênfase do RCP] na Iugoslávia, o movimento partidário foi capaz de ganhar para as suas colunas milhares de soldados proletários dos exércitos de ocupação. Isso é dito por Togliatti [6], que não hesitou em se lançar, junto com os verdadeiros fascistas do Movimento Sociale el Italia (MSI) em uma campanha chauvinista pelo retorno das velhas colônias à sua terra natal imperialista. Isso é dito por Thorez, cuja histeria nacionalista na questão da reparação da França imperialista delicia os herdeiros burgueses de Poincaré [7].”

É verdade que os stalinistas iugoslavos resolveram, com algum sucesso, o problema nacional no seu próprio país. Foi o programa deles com relação a essa questão que lhes permitiu ganhar membros dos exércitos de ocupação das próprias nacionalidades. Mas os camaradas devem ficar cientes de que a propaganda do PCY em direção à Alemanha era do mesmo caráter chauvinista que a dos russos e outros partidos stalinistas. A carta do SI lida com a necessidade do internacionalismo proletário abstratamente, sem levantar a questão concreta da política do PCY hoje, nem no passado. Era certamente necessário apontar concretamente o que esse internacionalismo proletário significa ao lidar com a política passada e presente do PCY, que não tem sido um milímetro menos chauvinista do que a dos outros partidos stalinistas. O SI menciona o chauvinismo de Togliatti, a histeria nacionalista de Thorez, e deixa a impressão de uma comparação favorável entre a política dos outros partidos stalinistas e aquela do PCY. Nós não podemos silenciar sobre a campanha chauvinista do PCY em Trieste [8], a sua atitude sobre as reparações de guerra, o seu apoio acrítico à demanda da burocracia russa de reparações a serem cobradas do povo alemão. É necessário levantar estas questões de forma que fique claro precisamente qual é o abismo entre uma política nacionalista e uma política internacionalista, e precisamente contra o que é que os militantes iugoslavos devem lutar.

Mas há outro aspecto das cartas do SI que não pode passar pelo IEC sem que esse adote uma atitude e expresse uma opinião.

A maioria do Congresso Mundial adotou uma posição de que os países da zona intermediária [9], incluindo a Iugoslávia, eram países capitalistas. Ela rejeitou a resolução do RCP de que essas economias estavam sendo alinhadas com a da União Soviética e não poderiam ser caracterizadas como capitalistas. A emenda do partido britânico à seção “A URSS e o Stalinismo” foi derrotada. Mas é evidente, a partir dessas cartas, que o SI foi forçado pelos eventos a proceder de acordo com o ponto de vista do partido britânico, de que as relações produtivas e políticas na Iugoslávia são basicamente idênticas àquelas da União Soviética. 

Se, de fato, existe na Iugoslávia um Estado capitalista, então as cartas do SI só podem ser caracterizadas como completamente oportunistas. Isso porque o SI não coloca as tarefas para a Iugoslávia que deveriam ser levantadas caso lá as relações burguesas existissem como forma dominante. As cartas são baseadas sobre conclusões que só podem fluir da premissa de que aconteceu a derrubada básica do capitalismo e do latifúndio.

A segunda carta aberta apresenta inúmeras condições necessárias para que a Iugoslávia siga um progresso verdadeiramente revolucionário e comunista. No entanto, em lugar nenhum chama pela destruição das relações burguesas na economia e pela derrubada do regime e do sistema burgueses. As tarefas definidas na carta são:

Os comitês da Frente (…) devem ser órgãos de democracia soviética (…).”
Revisar a presente constituição [baseada na da União Soviética]
Admitir em princípio o direito dos trabalhadores de organizarem outros partidos da classe trabalhadora, com a condição de que estes se posicionem dentro dos limites da legalidade soviética.”
Buscar a participação mais ampla das massas na esfera do planejamento (…).”
Estabelecer a plena soberania dos comitês de fábrica (…) para estabelecer um verdadeiro controle operário da produção.”

E por aí vai. Em nenhum lugar o SI julgou necessário chamar os trabalhadores iugoslavos a derrubar o capitalismo. Tivesse o SI que se basear no documento do Congresso Mundial, essa teria sido a demanda principista essencial. Os camaradas vão se lembrar que o documento do Congresso dá como sua primeira razão para o porquê declarar que “a natureza capitalista da zona intermediária é aparente” que “Em nenhum lugar a burguesia como tal foi destruída ou expropriada”. Por que nenhuma menção a isso nas Cartas Abertas? De todas as sete condições dadas no documento do Congresso que tornariam “aparente” a natureza capitalista da Iugoslávia e dos outros países intermediários, a carta do SI menciona apenas um – a nacionalização da terra. Mas até aqui, a questão da falha em nacionalizar a terra é levantada não do ponto de vista de provar a natureza capitalista da Iugoslávia. Ela é levantada para apontar, corretamente, que a nacionalização da terra é necessária para combater a concentração de renda e de terra nas mãos dos kulaks [grandes camponeses]. A questão é levantada no contexto geral da carta, como uma ajuda ao desenvolvimento socialista da agricultura em um país onde o capitalismo e o latifúndio foram derrubados, mas o perigo de nova exploração ainda está presente no campo.

Não só as tarefas principais colocadas pela Carta Aberta são idênticas àquelas que devem ser realizadas para depurar um Estado similar em relações políticas e produtivas à União Soviética, mas nós devemos adicionar que a impressão dada é de que essas relações são um bocado mais saudáveis do que na Rússia.

Os artigos que apareceram na nossa imprensa internacional revelaram uma coisa: as teses adotadas pelo Congresso Mundial falharam em prover um guia claro aos problemas que surgiram do racha entre o Cominform e a Iugoslávia e as tarefas dos revolucionários em relação ao regime e sua base econômica.

Nós apelamos para que o CEI rejeite a orientação da Carta Aberta, e para que corrija e repare o dano que foi feito, reabrindo a discussão sobre os países da zona intermediária, e coloque a nossa posição de acordo com os desenvolvimentos políticos e econômicos desses países.

Com saudações fraternais,
J. Haston
Em nome do Comitê Central do RCP 

Notas da Tradução 

[1] Comitê Executivo Internacional da Quarta Internacional, encarregado de avaliar a atuação do Secretariado Internacional, eleito entre os membros do primeiro. Era a instituição maior da Quarta Internacional entre os períodos do Congresso Mundial.

[2] Cominform, ou Escritório Comunista de Informação, foi a organização dirigida pela burocracia soviética que coordenou escassamente os partidos stalinistas entre os anos de 1947 e 1956, após a dissolução da Internacional Comunista (Comintern) em 1943. Em 1948, diante das divergências políticas entre as burocracias iugoslava e soviética, o partido iugoslavo foi expulso da organização.

[3] Diz respeito ao fato de que Josip Broz Tito, assim como outros líderes do PCY, participaram ativamente da revolução russa e dos primeiros e revolucionários anos da Internacional Comunista, para depois se degenerarem ao adotarem os métodos e o programa do stalinismo.

[4] Frente de Libertação Nacional, organização guerrilheira dominada pelos stalinistas que derrotou os nazistas no território iugoslavo antes da chegada do exército soviético. Continuou a existir após a instauração do regime titoísta como uma organização paraestatal dominada pelo PCY.

[5] Maurice Thorez, líder stalinista do Partido Comunista Francês. Foi presidente do PCF entre 1930 e 1964, ano da sua morte.

[6] Palmiro Togliatti, líder stalinista do Partido Comunista Italiano de 1927 até o ano da sua morte em 1964.

[7] Raymond Poincaré, presidente da França (1913-20) durante a Primeira Guerra Mundial. Conhecido pelo seu nacionalismo ufanista e pelo revanchismo contra a Alemanha no entre guerras.

[8] Cidade na fronteira entre a Iugoslávia e a Itália que foi ocupada pelo exército de Tito após a derrota dos nazistas. Em seguida à sua dominação, o exército titoísta esmagou a resistência nativa de Trieste, organizada no Comitê de Libertação Nacional. Durante os quarenta dias em que ocuparam a cidade (“os quarenta dias de Trieste”), os titoístas realizaram inúmeras execuções sumárias, não apenas de nazistas, mas de quaisquer opositores políticos, inclusive os trabalhadores de esquerda do Comitê de Libertação. 

[9] Região da Europa Oriental dos países ocupados pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial e compreendidos entre esta e os países imperialistas da Europa Ocidental. O termo reflete o período de incerteza a respeito da natureza desses países, antes que se tornasse definitiva para a Quarta Internacional a sua classificação como Estados operários deformados.