Arquivo Histórico: Lutas Estudantis Engolem o Brasil
Batalhas Campais Contra a Repressão do Estado Policial
Lutas Estudantis Engolem o Brasil
Este artigo foi primeiramente impresso em inglês em Jovem Spartacus, publicação de juventude da Liga Espartaquista dos Estados Unidos, em Julho/Agosto de 1977. Ele relata a luta dos estudantes brasileiros contra a ditadura militar e aponta a necessidade estratégica de que o movimento rompesse com as ilusões nos setores burgueses democráticos e se aliasse à classe trabalhadora. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em dezembro de 2011. Publicamos este material como inspiração para as lutas estudantis presentes e futuras e como um manifesto em defesa da aliança operário-estudantil.
Em 25 de junho, em um continente conhecido pela selvageria sem limites de suas muitas ditaduras militares, o regime brasileiro do “presidente” Ernesto Geisel adquiriu reputação pelo seu recurso arbitrário ao terror do Estado policial.
Há muito os queridinhos dos investidores imperialistas e de seus conselheiros acadêmicos, a camarilha dominante dos generais do exército, tem notoriedade ao redor da América Latina pela repressão brutal e tortura sistemática, e pelo “desaparecimento” de oponentes políticos do regime brasileiro. Mas nas semanas recentes, os carrascos brasileiros foram confrontados com uma erupção de descontentamento popular que abalou a sua “lei e ordem” com punho de ferro.
Pela primeira vez desde 1968, um grande levante de protesto estudantil contra o regime militar fez surgir uma série de confrontos corajosos com as brutais forças armadas do Estado. Apesar dos perversos ataques físicos da policia e prisões de massa, as greves estudantis continuaram a desafiar as autoridades, exigindo a soltura dos presos políticos e a concessão de plenos direitos democráticos – principalmente a liberdade de reunião e de expressão.
Primeiros Tremores de Protesto
Os primeiros tremores do atual levante ocorreram em 30 de março, quando estudantes realizaram um ato de rua no centro industrial de São Paulo. Em resposta a um anúncio do governo da redução de 40 por cento da verba para a Universidade de São Paulo, demissões generalizadas entre trabalhadores do campus e da faculdade e um aumento dos preços dos restaurantes universitários, os estudantes tomaram as ruas e distribuíram uma “carta aberta” que em parte declarou:
“A nossa luta não é apenas nossa; é a de toda a população, de todos que lutam contra uma vida difícil, por melhores salários, por mais escolas, por restaurantes universitários, pela liberdade de protestar.” (*) Reimpresso em Informations Ouvrieres, 2 de junho de 1977.
Embora este protesto tenha se mantido geograficamente isolado e politicamente limitado a preocupações locais do campus, ele representou um passo tentador rumo a uma mobilização mais ampla contra o regime Geisel.
Em 28 de abril, a atual onda de protestos começou quando a polícia prendeu oito estudantes e trabalhadores (aparentemente membros de uma organização de esquerda) enquanto eles estavam distribuindo panfletos chamando por um “Dia de Lutas” no primeiro de maio. Protestos rapidamente se alastraram depois que estudantes e membros da oposição sindical dos metalúrgicos de São Paulo lançaram panfletos exigindo a liberdade dos militantes de esquerda presos.
Para o receio de Geisel, o 5 de maio trouxe 10 mil estudantes (apoiados pelos metalúrgicos) para as ruas de São Paulo no que foi o maior protesto de rua desde 1968. O ato de rua – que eletrificou todo o espectro da vida política brasileira – testemunhou a publicação da segunda “Carta Aberta ao Povo Brasileiro”, que num formato mais político exigiu “que as autoridades respeitem a liberdade de protestar e o direito à expressão e à organização de todos os setores oprimidos da população” (*) (citado na Intercontinental Press, 13 de junho).
O desafio aberto às autoridades exibido no 5 de março em São Paulo atingiu o descontentamento generalizado da população trabalhadora brasileira com as contínuas arbitrariedades e repressão do regime. Sob o impacto do colapso do “milagre brasileiro” (que economistas burgueses impressionistas tais como Walt Rostow haviam tomado como prova do “estágio de propulsão” de teorias antimarxistas do desenvolvimento industrial) divisões ficaram aparentes mesmo dentro da camarilha bonapartista dominante. Cada vez mais isolado, Geisel foi forçado a dissolver o Congresso em abril e ficou sob pressão crescente da oposição de mentira do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e de renovadas agitações de descontentamento entre oficiais de baixa patente do exército.
As atividade grevistas se ampliaram, e por volta do “Dia Nacional de Lutas” de 19 de maio, ao menos 10 universidades ficaram fechadas. Atos de rua se espalharam por 16 cidades, incluindo Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Brasília (onde toda a população estudantil de 15.800 entrou em greve).
A polícia em todo o país atacou protestos de uma forma que testemunhas visuais descreveram como a repressão mais imoral desde 1968. 77 mil policiais e tropas foram colocados em alerta em São Paulo enquanto estimados 8 mil estudantes marchavam na escola de medicina da Universidade. Conforme a polícia se aproximou para prender os participantes do protesto, ela bateu em repórteres que estavam, apesar da censura do governo, cobrindo os eventos desde cedo.
Encontro Nacional de Estudantes
Logo depois do “Dia Nacional de Lutas”, “Comitês de Anistia Primeiro de Maio” começaram a se espalhar pelo Brasil conforme estudantes buscavam criar corpos nacionais para avançar a sua luta por direitos democráticos. Em São Paulo foram criados Diretórios Centrais de Estudantes livres. Nas palavras dos organizadores estudantis, estes corpos “são livres porque nós não seguimos as leis impostas pelas autoridades, que não permitem eleições livres diretas e restringem nossa liberdade de protestar e organizar”. Mais de 16 mil dos 30 mil estudantes da Universidade de São Paulo participaram das eleições do Diretório Central.
Enquanto isso, uma tentativa foi feita para reviver a União Nacional dos Estudantes, a organização banida que liderou os protestos estudantis brasileiros durante os anos 1960. Foi publicado um chamado por um “Encontro Nacional” em 4 de junho em Belo Horizonte – a capital do estado industrial de Minas Gerais – com o objetivo de eleger um órgão de liderança delegada em escala nacional.
A repressão policial mais uma vez se intensificou conforme o governo tentou interromper os protestos prendendo os líderes da greve estudantil. No Rio de Janeiro, 30 estudantes suspeitos de serem delegados do Encontro foram presos, interrogados e liberados só depois que já era muito tarde para viajar para Belo Horizonte. Em São Paulo, a polícia não conseguiu prender os delegados, mas de acordo com a revista semanal Veja (8 de junho), “a polícia de São Paulo tem em suas mãos os nomes de um bom número de delegados ao Encontro – as contas serão acertadas no seu retorno a São Paulo” (*). Quando o Encontro foi realizado como planejado, a polícia atacou e prendeu em massa mais de 800 estudantes; 98 serão julgados sob a draconiana Lei de Segurança Nacional.
“SWAT” ao Estilo Brasileiro
O palco foi armado para um grande confronto no segundo “Dia Nacional de Lutas” chamado pelos líderes estudantis para 15 de junho.
A atividade foi centrada em São Paulo, onde 32 mil policiais foram mobilizados – dois mil ocupando uma praça central para onde os protestos foram chamados para a hora do rush no início da noite. O cabeça da “segurança pública”, coronel Erasmo Dias, chegou no lugar e aproveitou a oportunidade para demonstrar as suas mais recentes “novidades” anti-protestos para a imprensa reunida: uma “lanterna” que projeta uma irradiação de alta intensidade capaz de cegar os participantes dos protestos por vários minutos, latas de gás lacrimogêneo que cabem no bolso (que ele “jocosamente” jogou para os repórteres) e uma coleção de rifles M-16 (muito populares entre o exército brasileiro após a introdução da série de televisão norte-americana “SWAT”). Balançando descontroladamente o seu revólver Browning de 9 milímetros favorito, o chefe Dias trovejou, “Ninguém vai passar por aqui” (citado em Veja, 22 de junho).
Apesar da vigilância da polícia, um audacioso grupo de estudantes conseguiu realizar uma rápida marcha na praça. Evitando o escrutínio da polícia, aproximadamente 50 estudantes (em uma praça que em geral comporta 500 mil durante a hora do rush no início da noite) começaram a cantar “Liberdade, Liberdade!”. Uma vez começado, o canto foi uma deixa. Dias e os seus soldados entraram em um espanto atordoado quando a praça de repente ganhou vida com pessoas gritando em protesto. O que pareciam ser meros transeuntes e compradores acabaram se mostrando estudantes em protesto esperando a deixa para emergir das filas de ônibus e lanchonetes.
Quando a polícia começou a perseguição com cães treinados e a bater com selvageria em quem protestava com cassetetes e cintos, espectadores torciam para os estudantes, e as ruas ficaram inundadas de confetes jogados das varandas acima. Até mesmo os donos de lojas da vizinhança se solidarizaram com os estudantes. Os cinemas de São Paulo abriram as portas gratuitamente no dia seguinte em gesto de solidariedade.
Checando na imprensa, as greves continuam. Dez universidades estão completamente fechadas, ou por protesto estudantil ou por retaliação da administração. Encontros do corpo estudantil da Universidade de Brasília continuam votando unanimemente pela manutenção da greve – e o reitor fechou a escola por todo o período do recesso de julho. (Além disso, um Terceiro Encontro Nacional de Estudantes havia sido agendado para São Paulo em 21 de junho).
Abaixo Geisel!
Apesar da coragem manifesta dos estudantes radicais, falta ao protesto centrado no campus uma estratégia para a derrubada revolucionária da ditadura Geisel. Faixas proclamando “Trabalhadores e Estudantes, Unam-se” apareceram nos atos de rua, mas prevaleceu muito mais o slogan moralista “Ficar calado é ser cúmplice” (o equivalente brasileiro do ditado da Nova Esquerda “Se você não é parte da solução, você é parte do problema”). As “Cartas Abertas” ao povo brasileiro foram seguidas por uma carta aberta para [a primeira-dama norte-americana] Rosalyn Carter durante a sua estada no país – repleta de apelos pelo fortalecimento dos “direitos humanos” no Brasil. Ainda por cima, The Economist (28 de maio) publicou uma fotografia de estudantes vendando um busto de John Kennedy para “proteger os seus olhos” contra a investida policial – como se Kennedy não tivesse sido responsável por treinar torturadores da América Latina e dado uma mãozinha para ajudar tiranos de meia-tigela e ditadores militares através da sua, assim chamada, “Aliança para o Progresso”.
Além disso, estudantes em protesto por inúmeras ocasiões não apenas uniram forças com o MDB – o que, em si, não está incorreto – mas expressaram ilusões com as suas pretensões democráticas. Com as crescentes fissuras no governo militar, todo mundo no Brasil está pagando tributo à demagogia populista “democrática” – de Geisel em diante. Quando Geisel alterou arbitrariamente a Constituição brasileira em abril passado, de tal forma que a indicação de governadores dos estados estaria firmemente nas mãos dos seus lacaios, ele destruiu as esperanças de políticos do MDB que esperavam chegar ao poder em vários estados na próxima eleição. Consequentemente, o MDB foi levado a uma “oposição” de faz-de-conta a Geisel. As declarações ultra-democráticas do MDB foram tão longe a ponto de chamar por uma “Assembléia Constituinte que seja a síntese da luta pela legalidade democrática e a restauração da dignidade jurídica ao país” (*) (Jornal de Brasil, 19 de junho).
Mas aparte da sua retórica pseudo-democrática, o MDB pode ser contado entre aqueles que se opuseram aos estudantes no momento em que suas lutas estavam para colocar um desafio sério ao regime. O MDB foi formado em 1965 pela junta militar para cumprir o papel de “oposição eleitoral” domada à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) cativa dos militares. O MDB, que incluiu formações tais quais o Partido “Trabalhista” burguês do antigo homem-forte Getúlio Vargas, foi cúmplice nas atividades sanguinárias da ditadura brasileira ao longo do seu reino de terror de treze anos. Os estudantes não devem confiar em nenhum setor da burguesia brasileira para se oporem ao terror militar continuado. Os militares tomaram o poder em 1964 para prevenir o antigo presidente João Goulart de levar adiante a sua proposta de implementar a mínima reforma agrária (muito menos “reformadora” do que aquela realizada pelos governos burgueses na Itália e na Guatemala no período pós-Segunda Guerra), e dar restritos direitos democráticos aos soldados e oficiais não-comissionados. O medo de excitar as massas era tão intenso entre todas as seções da burguesia que não houve oposição significativa ao golpe – apesar do conhecimento de que o governo militar iria monopolizar o poder político em suas mãos. Assim, mesmo do alto da sua “oposição”, os líderes parlamentares do MDB tomaram as dores de denunciar os protestos estudantis em junho (Veja, 22 de junho).
Na época de decadência capitalista, a tendência para regimes bonapartistas – geralmente baseados nos militares – aumenta em países onde a dominação imperialista e a indústria moderna às vezes se colocam lado a lado com condições agrárias semi-feudais. As pretensões populistas “democráticas” dos oficiais de baixa patente e oposicionistas domesticados não são nada além de demagogia de pequenos aspirantes a Bonaparte fora do poder. Esses são os “oposicionistas” que ficaram parados observando enquanto os generais brasileiros fizeram por um período de treze anos o que a Aliança Anti-comunista Argentina tem feito nos últimos anos: assassinar, torturar e oprimir sem piedade.
Por um Governo Operário e Camponês no Brasil!
No contexto de desenvolvimento desigual e combinado do Brasil, o que começou como um protesto estudantil floresceu e atingiu um reservatório de ódio generalizado pela ditadura: o “milagre brasileiro” se mostrou um fiasco e no seu fim permanecem a mesma pobreza de massa, terror policial e pilhagem imperialista. Os modernos arranha-céus e fábricas tecnologicamente avançadas coexistem com favelas que se alastram e com a miséria abjeta dos peões que trabalham nos latifúndios. Isso fornece uma prova dramática de que na época imperialista, enquanto a burguesia mantiver o poder de Estado, os países atrasados como o Brasil não podem nem atingir o nível dos países industriais desenvolvidos nem elevar qualitativamente o padrão de vida das massas trabalhadoras. Ao mesmo tempo, um levante revolucionário centrado na classe trabalhadora contra os chefes militares iria claramente gerar um apoio popular de massas – incluindo largos setores da pequeno-burguesia urbana.
Em nenhum outro lugar está mais claro, e em nenhum outro lugar é mais importante lançar as bases para ações unitárias entre a classe trabalhadora e os estudantes radicalizados de São Paulo – a clássica cidade explosiva do Brasil. Neste moderno centro industrial ainda não existem esgoto ou saneamento básico para muitos dos seus 11 milhões de habitantes. O trabalhador médio – cujo salário de fome é rapidamente corroído pelos 44% anuais de inflação – perde seis horas por dia simplesmente viajando para ir e voltar do trabalho. O desemprego, que é endêmico entre as massas não-qualificadas, tem crescido agudamente mesmo entre os trabalhadores qualificados, dos quais 5.500 trabalhadores automotivos, assim como eletricitários e operários da construção civil foram colocados recentemente na rua.
A emancipação social das massas brasileiras empobrecidas e horrivelmente oprimidas espera a tomada do poder pelo proletariado e a formação de um governo operário e camponês. Os protestos estudantis de hoje devem ser conectados com o poder estratégico do proletariado nas zonas industriais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
As massas urbanas e rurais devem ser mobilizadas ao redor de um programa revolucionário que inclua as demandas democráticas, inclusive a liberdade imediata de todas as vítimas da repressão de direita, por plenos direitos sindicais, por uma revolução agrária avassaladora, por liberdade de expressão, imprensa e de associação política, e por uma genuína assembléia constituinte baseada no sufrágio universal. A luta pelas liberdades democráticas, a derrubada dos generais brasileiros e a expropriação dos vorazes imperialistas exigem, acima de tudo mais, a construção de um partido trotskista brasileiro, seção de uma Quarta Internacional reconstruída.
Nota da Tradução
(*) Todos os trechos indicados com um asterisco no fim foram traduzidos para o português a partir da versão em inglês do artigo de Jovem Spartacus, e podem não coincidir exatamente com o original em português.