Lenin e o Partido de Vanguarda (5)
A Luta Contra os Boicotadores
O quinto congresso do POSDR, ocorrido em Londres em maio de 1907 foi quase igualmente dividido entre os Bolcheviques com 89 delegados os Mencheviques com 88. No quarto congresso um ano antes, três partidos associados – a Liga (Bund) Judaica, os socialdemocratas da Letônia e a socialdemocracia do Reino da Polônia e da Lituânia (SDRPeL) de Luxemburgo/Jogiches – haviam sido incorporados ao POSDR numa base semi-federativa. No quinto congresso o Bund tinha 54 delegados, os socialdemocratas da Letônia 26 e o SDRPeL 45.
No decurso de um ano de luta fracional afiada contra o seguidismo liberal dos Mencheviques e a política dos Democratas pró-Constitucionais (Cadetes), os Bolcheviques haviam deixado para trás a sua posição de minoria dentro do movimento socialdemocrata russo. Entretanto, agora a tendência que lideraria o POSDR dependia de três partidos socialdemocratas “regionais”. O Bund apoiava categoricamente os Mencheviques. Os socialdemocratas letões geralmente apoiavam os Bolcheviques, mas ocasionalmente faziam a vez de mediadores entre os dois grupos hostis da Rússia. Foi pelo apoio do SDRPeL de Rosa Luxemburgo que Lenin conseguiu a maioria do quinto congresso e nos órgãos de liderança do POSDR pelos cinco anos seguintes. O bloco Lenin-Luxemburgo de 1906-11 é significativo não apenas em seu efeito histórico, mas também porque ele revela a relação entre o leninismo em desenvolvimento e aquela que era a mais consistente e importante representante da socialdemocracia revolucionária antes de 1914.
O assunto decisivo no quinto congresso foi a atitude com relação ao liberalismo burguês, e especificamente o apoio eleitoral ao Partido Cadete. Com o apoio dos letões e poloneses (e também do grupo de Trotsky/Parvus da ala esquerda dos Mencheviques), a linha Bolchevique venceu; o congresso condenou os Cadetes:
“Os partidos da burguesia liberal-monarquista, chefiados pelo Partido Constitucional Democrático [Cadetes], agora se votlaram definitivamente contra a revolução para se esforçarem impedí-la através de um acordo com a contra-revolução.”
– Robert H. McNeal, ed, Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética(1974)
Outra resolução instruiu a fração do POSDR na Duma (Parlamento) a se opor à “política traiçoeira do liberalismo burguês que, sob a palavra de ordem de ‘Proteja a Duma!’, na verdade sacrifica os interesses populares da imensa massa de trabalhadores” (idem.). Poucos meses após o congresso, uma conferência do partido decidiu apresentar candidatos independentes do POSDR nas futuras eleições da Duma e não apoiar nenhum outro partido.
Enquanto os socialdemocratas da Letônia e da Polônia/Lituânia apoiavam a linha geral dos Bolcheviques no quinto congresso, também moderavam a luta de Lenin contra os Mencheviques. Eles votaram contra a moção de Lenin para condenar a maioria menchevique que estava saindo do Comitê Central. A falta de apoio dos socialdemocratas da Letônia e do SDRPeL também foi a causa da única derrota séria de Lenin no congresso de 1907 do POSDR. O congresso votou em esmagadora maioria se opor às “operações de luta” dos Bolcheviques para “apreender fundos” do governo czarista.
Durante esse período o ataque menchevique sobre os leninistas foi centrado nessas expropriações armadas. Sua reação semi-histérica às expropriações dos Bolcheviques surgiu a partir do impacto chocante sobre a respeitabilidade liberal-burguesa. A expropriações também davam aos Bolcheviques superioridade financeira sobre os Mencheviques. Ao condenar as expropriações dos Bolcheviques sobre os fundos do governo, os Mencheviques estavam convencidos de que tinham a impecável ortodoxia socialdemocrata ao seu lado.
Os Bolcheviques, entretanto, não encaravam a situação normal em que tais roubos iriam imediatamente ativar o aparato de repressão de um Estado extremamente poderoso e centralizado. Muito menos arriscavam serem discriminados pelos trabalhadores que poderiam pensar que eles eram meros criminosos com roupagem política. Os Bolcheviques não mantinham essas expropriações como uma “estratégia” para ser levada a diante por um longo período, com o resultado provável de se degenerarem em um grupo lúmpen de atividade criminal.
Lenin acreditava que havia uma contínua situação revolucionária, na qual a massa de trabalhadores e camponeses estavam ativamente hostis à legalidade czarista. As expropriações dos Bolcheviques eram concentradas no Cáucaso, onde o campesinato armado e bandos nacionalistas regularmente desafiavam as autoridades czaristas. Lenin considerava as expropriações como uma das muitas táticas de guerrilha no curso de uma guerra civil revolucionária. A disputa bolchevique-menchevique a respeito das expropriações armadas era então intrinsecamente ligada à sua diferença fundamental sobre o papel de vanguarda política e militar do partido proletário na revolução para derrubar a autocracia.
A posição de Lenin sobre as expropriações armadas foi apresentada numa resolução ao quarto congresso em abril de 1906. Ele continuou defendendo essa posição ao longo de 1907:
“Considerando que (1) quase em lugar nenhum da Rússia desde o levante de dezembro houve um completo cessar das hostilidades, na qual os povos revolucionários estão agora conduzindo-a na forma ataques de guerrilha esporádicos contra o inimigo…. Nós somos da opinião e propomos que o congresso concorde…. (4) que operações de luta também sejam permitidas para o propósito de captar recursos pertencentes ao inimigo, ou seja, o governo autocrático, para satisfazer às necessidades da insurreição, com cuidado particular sendo tomado para que os interesses dos povos sejam infringidos o mínimo possível.” – “Uma Plataforma Tática para o Congresso de Unificação do POSDR” (março de 1906)
Reação czarista e os Bolcheviques Ultra-esquerdistas
Pouco após o quinto congresso do POSDR em junho de 1907, o ministro czarista Stolypin executou um golpe contra a Duma. A Duma foi dissolvida e uma nova (Terceira) Duma proclamou as bases de um novo sistema eleitoral muito menos democrático. Em acréscimo, os deputados socialdemocratas foram presos e acusados de fomentar rebelião nas forças armadas.
O golpe de Stolypin marcou o final definitivo do período revolucionário de 1905. A vitória da reação czarista abriu uma fase nova, e de certa maneira terminal, no conflito bolchevique-menchevique, sobre a necessidade de restabelecer a clandestinidade como estrutura organizativa básica do partido. O início da reação também produziu uma afiada divisão no campo bolchevique entre leninismo e ultra-esquerdismo, uma luta fracional que deveria ser resolvida antes que o conflito histórico significativamente maior contra o menchevismo travasse o seu combate final.
O conflito entre Lenin e os bolcheviques ultra-esquerdistas foi centrado na questão da participação no reacionário órgão parlamentar czarista. Por trás dessa diferença paira o reconhecimento de Lenin de que um período reacionário havia se estabelecido, requerendo contenção tática por parte do partido revolucionário. A primeira batalha ocorreu na conferência de julho de 1907 do POSDR para determinar a política nas próximas eleições da Duma. Lenin ainda acreditava que a Rússia estava passando por um período geral de reação e considerava boicotar as eleições taticamente injustificável:
“Considerando que (1) boicote ativo, como mostrou a experiência da revolução russa, é a tática correta por parte dos socialdemocratas apenas sob condições de um avassalador, global e rápido levante da revolução, já transformando-se em levante armado, e apenas em conexão com os objetivos ideológicos da luta contra as ilusões constitucionais decorrentes da convocação da primeira assembléia constituinte do antigo regime; (2) na ausência dessas condições a tática correta por parte do partido dos socialdemocratas revolucionários é chamar pela participação nas eleições, como foi o caso com a segunda Duma, até mesmo caso todas as condições de um período revolucionário ainda estejam presentes.” – “Rascunho de Resolução sobre a Participação nas Eleições para a Terceira Duma” (julho de 1907)
Ao apresentar essa resolução Lenin se encontrou em minoria entre os nove delegados bolcheviques na conferência. A resolução foi aprovada com os votos dos Mencheviques, membros do Bund, e socialdemocratas da Letônia e da Polônia; todos os bolcheviques, com a exceção de Lenin votaram contra.
Os boicotadores bolcheviques eram, com certeza, representados numa proporção exagerada nessa reunião do partido em particular. Lenin tinha apoio significativo para sua posição entre os quadros e na base dos Bolcheviques e foi rapidamente capaz de ganhar ainda mais. Entretanto, a tendência de ultra-esquerda de 1907-09 foi o mais significativo desafio à liderança de Lenin na organização bolchevique que ele já havia enfrentado. Os líderes ultra-esquerdistas – Bogdanov (que havia sido o principal seguidor de Lenin), Lunacharsky, Lyadov, Alexinsky, Krasin – eram bolcheviques muito proeminentes. Como nunca antes, a maioria dos militantes no campo bolchevique apoiou boicotar a Duma czarista nesse período. Apenas a enorme autoridade pessoal de Lenin preveniu o desenvolvimento de uma tendência de ultra-esquerda forte o suficiente para derrubá-lo e aos seus apoiadores no centro oficial bolchevique ou engendrar um racha majoritário.
Lenin foi ajudado nessa luta pelo caráter heterogêneo da tendência ultra-esquerdista. Uma questão tática pouco importante dividia os bolcheviques ultra-esquerdistas em dois grupos distintos, os otzovistas (“reconvocadores”) e os ultimatistas. Os otzovistas exigiam a imediata e incondicional reconvocação (retirada) da fração do POSDR na Duma. Os ultimatistas exigiam que a fração na Duma fizesse discursos inflamatórios, que levariam a autoridade czarista a expulsá-los ou pior. Na prática, ambas as políticas teriam o mesmo efeito e Lenin negou que havia uma divisão significativa entre os oponentes ultra-esquerdistas.
A posição de Lenin sobre a tendência de ultra-esquerda foi apresentada na forma de resolução numa conferência em junho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary, na verdade uma plenária da liderança central bolchevique. Nessa conferência, Bogdanov foi expulso da organização bolchevique. As passagens chave da declaração atestam:
“A luta revolucionária direta das amplas massas se seguiu de um severo período de contra-revolução. Se tornou essencial aos socialdemocratas adaptarem suas táticas revolucionárias à essa nova situação, e em conexão com isso, uma das tarefas mais excepcionalmente importantes se torna o uso da Duma como uma plataforma aberta para o propósito de ajudar a agitação socialdemocrata.”“Neste rápido curso de acontecimentos, entretanto, uma seção dos trabalhadores que haviam participado da luta revolucionária direta foi incapaz de realizar um salto para aplicar táticas socialdemocratas revolucionárias nas novas condições da contra-revolução, e continua simplesmente a repetir os slogans que haviam sido revolucionários no período da guerra civil aberta, mas que agora, se meramente repetidos, poderão retardar o processo de fechar as fileiras do proletariado nas novas condições de luta.” [ênfase no original]
– “Sobre Otzovismo e Ultimatismo”
A resposta de Bogdanov a Lenin é resumida em sua “Carta a Todos os Camaradas”, de 1910, um documento fundacional de seu próprio grupo independente:
“Algumas pessoas entre seus representantes no comitê executivo – o centro bolchevique – que vivem no exterior, chegaram à conclusão de que nós devemos mudar radicalmente a nossa avaliação bolchevique do presente momento histórico e manter uma linha não em direção a uma onda revolucionária, mas em direção a um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico. Isso os leva para perto da ala direita do nosso partido, os camaradas Mencheviques que sempre, independente de qualquer avaliação da situação política, lançavam formas de ativismo legal e constitucional, em direção a um “trabalho orgânico” e um “desenvolvimento orgânico.” – Robert V. Daniels, ed., A História Documental do Comunismo (1960)
A frase de Bogdanov sobre “um longo período de desenvolvimento constitucional pacífico” é ambígua, talvez de forma deliberada. Contra muitos mencheviques, Lenin não considera uma nova revolução como fora da agenda por uma época histórica inteira, ou seja, por muitas décadas. Em torno de 1908 ele concluiu que antes de outro levante revolucionário (como o de 1905) haveria um longo período em termos das perspectivas de trabalho do partido e relativas às experiências e expectativas passadas dos Bolcheviques. 1908 não era 1903. E essa realidade era precisamente o que os otzovistas/ultimatistas negavam.
Filosofia e Política
Otzovismo/ultimatismo estava associado com o dualismo idealista neo-kantiano representado pelo físico e filósofo austríaco Ernst Mach, uma doutrina filosófica então muito em voga nos círculos intelectuais da Europa central. O livro de Bogdanov Empiriomonismo (1905-06) foi uma tentativa ambiciosa de reconciliar o marxismo com o neo-kantianismo. Em 1908 o companheiro de tendência de Bogdanov, Lunacharsky, aprofundou este idealismo em espiritualismo definitivo, posicionando a necessidade de uma religião socialista. A “construção de deus” de Lunacharsky foi, nem é preciso dizer, uma grande vergonha para os Bolcheviques como um todo, e até mesmo para a tendência otzovista/ultimatista.
A simpatia de Bogdanov pela doutrina filosófica neo-kantiana era não só bem conhecida como também de longa data. Até quando Bogdanov foi o representante de Lenin, e não representava em si mesmo uma tendência política distinta, seu neo-kantianismo era considerado uma particularidade pessoal entre ambos Mencheviques e Bolcheviques. Mas uma vez que Bogdanov tinha se tornado o líder de uma tendência distinta e por um tempo significativa na socialdemocracia russa, suas visões filosóficas se tornaram foco de uma controvérsia política geral. Plekhanov, em particular, explorou a doutrina de Bogdanov para atacar o programa bolchevique como o produto de um flagrante idealismo subjetivo. Lenin gastou assim a maior parte de 1908 estudando para uma polêmica maior com o neo-kantianismo de Bogdanov, Materialismo e Empiriocriticismo, para livrar o bolchevismo da mancha do idealismo filosófico.
A colaboração política próxima de Lenin com Bogdanov, apesar do posterior neo-kantianismo por um lado, e sua polêmica massiva contra as visões filosóficas de Bogdanov, por outro, foram usadas para justificar desvios simétricos nessas questões por marxistas pseudo-revolucionários. Que o neo-kantiano Bogdanov foi um importante líder bolchevique é algumas vezes citado para argumentar por uma atitude de indiferença diante do materialismo dialético, uma crença de que a mais geral e abstrata expressão da visão de mundo marxiana não tem implicação na política prática e relação organizativa associada. Quando rompeu com o trotskismo em 1940, o revisionista norte-americano Max Shachtman justificou um bloco com o anti-dialético e empiricista James Burnham citando o “precedente” de Lenin e Bogdanov.
Por outro lado, a polêmica principal de Lenin contra um desvio idealista adversário do marxismo encorajou a tendência a “aprofundar” cada luta fracional trazendo questões filosóficas – reduzindo todas as diferenças políticas à questão única do materialismo dialético. Essa mistura de pomposidade e idealismo racional se tornou uma marca do grupo britânico de Healy. (O grupo de Gerry Healy/Michael Banda se tornou tão bizarro que ele não pode mais ser levado a sério, muito menos nas suas mistificações filosóficas).
Os membros do grupo de Healy justificaram seu racha de 1972 com os antes parceiros de bloco, os neo-kautskistas franceses da Organização Comunista Internacionalista (OCI), colocando a primazia da “filosofia”. Eles apelaram para a polêmica de 1908 de Lenin contra Bogdanov como um precedente ortodoxo:
“Lenin estudou incansavelmente as idéias do novos idealistas, os neo-kantianos, na filosofia, até mesmo durante a mais árdua luta prática para estabelecer o partido revolucionário na Rússia. Quando essas idéias, na forma de “empiriocriticismo” foram reivindicadas por uma seção dos próprios Bolcheviques, Lenin fez um estudo especializado e lhes escreveu um longo trabalho, Materialismo e Empiriocriticismo.”“Lenin entendeu muito bem que os anos da extrema dificuldade e isolamento após a derrota da revolução de 1905 expuseram o movimento revolucionário à maior pressão do inimigo de classe. Ele sabia que a tarefa mais fundamental de todas era a defesa e o desenvolvimento da teoria marxista no nível mais básico, aquele da filosofia.” [nossa ênfase]
– Comitê Internacional, Em Defesa do Trotskismo (1973)
Essa passagem é uma completa falsificação em diversos níveis. Para começar, a luta política de Lenin mais historicamente importante no período de reação não foi contra os bolcheviques de ultra-esquerda de Bogdanov, mas contra os mencheviques liquidacionistas. Nessa luta posterior, questões filosóficas não desempenharam nenhum papel particular.
Os membros do grupo de Healy também falsificam a relação de Lenin com Bogdanov. Quando Bogdanov se tornou parte da liderança Bolchevique em 1904, ele já era bem conhecido como neo-kantiano (machiano). Lenin e Bogdanov concordavam que a tendência Bolchevique como tal não tomaria posição em controversas questões filosóficas, Lenin explica isso numa carta para Maxim Gorky, (25 de fevereiro de 1908) na qual ele defende seu relacionamento passado com Bogdanov, apesar de seu desvio filosófico posterior:
“No verão e outono de 1904, Bogdanov e eu atingimos uma completa concordância, comobolcheviques, e formamos um bloco tácito, que de forma tácita tratava filosofia como um campo neutro, que existiu ao longo da revolução e nos permitiu na revolução levantar juntos as táticas da socialdemocracia revolucionária (bolchevismo), as quais, eu estou profundamente convencido, eram as únicas táticas corretas.” [ênfase no original]
Foi o menchevique de direita Plekhanov quem trouxe a questão de materialismo dialético versus neo-kantianismo para o topo da pilha com o objetivo de descreditar e rachar a liderança bolchevique revolucionária. Ao defender os Bolcheviques contra Plekhanov, Lenin foi tão longe a ponto de negar que a questão do revisionismo neo-kantiano fosse em todo relevante para o movimento revolucionário na Rússia. No congresso só composto pelos Bolcheviques em abril de 1905, Lenin declarou:
“Plekhanov puxa Mach e Avenarius pelas orelhas. Ele não consegue entender nem para salvar a vida de alguém o que esses escritores, pelos quais eu não tenho a mais estreita simpatia, tem a ver com a questão da revolução social. Eles escreveram sobre experiência de organização individual e social, ou tema semelhante, mas eles nunca realmente pensaram em nada a respeito da ditadura democrática.” – “Relatório sobe a Questão da Participação dos socialdemocratas num Governo Provisório Revolucionário” (abril de 1905)
Em parte como resultado de sua luta posterior contra Bogdanov, Lenin modificou sua posição de 1905, que desenhava uma linha muito arbitrária entre diferenças políticas e filosóficas. Ele constatou que diferenças fundamentais entre marxistas sobre materialismo dialético vão provavelmente produzir divergências políticas. Entretanto, para Lenin o programa permanecia primário para a definição de políticas revolucionárias e associado à questão organizativa. Lenin nunca repudiou sua colaboração próxima com Bogdanov em 1904-07. E ele estava absolutamente certo em se aliar com o Bogdanov socialdemocrata revolucionário, apesar de neo-kantiano, contra o o Plekhanov socialdemocrata pró-liberal, apesar de materialista dialético. Apenas quando as concepções neo-kantianas de Bogdanov se tornaram associadas com um programa político contrário e anti-marxista, foi que Lenin fez a defesa do materialismo dialético contra o idealismo filosófico uma tarefa política central.
Contra a Mistificação da Dialética
O programa marxista como a expressão científica dos interesses da classe trabalhadora e do progresso social não é derivado simplesmente de um desejo subjetivo por um futuro socialista. O programa marxista necessariamente inclui um entendimento correto da realidade, da qual a mais geral ou abstrata expressão é o materialismo dialético. Entretanto, o próprio Marx escreveu em 1877 no jornal populista russo, Otechestvenniye Zapiski, que ele não oferece uma “teoria histórico-filosófica geral, a virtude suprema a qual consiste em ser supra-histórico” (Marx e Engels, Correspondência Selecionada [1975]). O materialismo dialético é um quadro conceitual que permite, mas não garante, um entendimento científico da sociedade em seu desenvolvimento histórico concreto. Em outras palavras, um entendimento da natureza dialética da realidade social guia um complexo de generalizações históricas (por exemplo, que o aparato estatal sob o capitalismo não pode ser reformado em um órgão de administração socialista, que em nossa época um sistema econômico coletivizado representa a dominação social do proletariado) que dão base aos princípios programáticos marxistas.
A mistificação do grupo de Healy da atitude marxista com relação á filosofia é um produto de sua degeneração em um bizarro culto ao mestre. No começo de 1960, a Liga Trabalhista Socialista (SLL) de Healy entendia que materialismo dialético não era nada mais do que uma expressão generalizada de uma visão de mundo unitária, e não um esquema abstrato ou método existente independente da realidade empírica. Os artigos de 1962-63 de Cliff Slaughter sobre os estudos de Lenin sobre Hegel em 1914-15, reimpressos em 1971 como um livro, Lenin sobre Dialética, contém um ataque mordaz conta a idealização da dialética:
“Lenin dá grande ênfase à insistência de Hegel de que a dialética não é uma chave-mestra, um tipo de estojo de números mágicos pelos quais todos os segredos são revelados. É errado pensar na lógica dialética como alguma coisa completa em si mesma e então ‘aplicada’ a exemplos particulares. Ela não é um modelo de interpretação para ser aprendido, e então enquadrado na realidade a partir de fora; a tarefa é mais descobrir a lei de desenvolvimento da realidade em si própria…”.“A ciência da sociedade fundada por Marx não tem espaço na filosofia como tal, na idéia de pensamento independente em movimento, com um desenvolvimento subjetivo-material próprio, independente da realidade mas às vezes descendo para se aplicar nela.”
Slaughter cita então o julgamento de Marx sobre o conceito de filosofia na Ideologia Alemã: “Quando a realidade é representada, a filosofia, como um ramo independente de atividade perde o seu meio de existência.”
Mas no fim da década de 1960, o grupo de Healy havia “redescoberto” um meio de existência para a filosofia como uma teoria independente. O materialismo dialético foi apresentado com muita pomposidade como a “teoria do conhecimento do marxismo”, como uma expressão da categoria filosófica conhecida como epistemologia. Assim, em uma coleção de documentos sobre o racha com a OCI (Romper com o Centrismo! [1973]), nós podemos ler:
“O que foi mais essencial na preparação das seções foi desenvolver o materialismo dialético numa luta para entender e transformar a consciência da classe operária para a mudança da condições objetivas. Isso significa entender e desenvolver o materialismo dialético como a teoria do conhecimento do marxismo….”“Nós podemos certamente dizer que o materialismo dialético é a teoria do conhecimento do marxismo, no caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade – não verdade “final”, mas avanços contínuos através da luta contraditória para chegar ao verdadeiro conhecimento do mundo objetivo.”
Essa noção do grupo de Healy sobre materialismo dialético é ao mesmo tempo enormemente restritiva e uma idealização do conhecimento. Não existe uma teoria do conhecimento válida em separado. No nível da cognição individual, uma teoria do conhecimento é derivada de investigação científica biológica e psicológica. No nível da consciência social, uma teoria do conhecimento é parte constituinte de um entendimento de relações sociais historicamente específicas. Assim, é central para o entendimento marxista de conhecimento o conceito de falsa consciência, a distorção necessária da realidade associada a vários papéis sociais.
A categoria filosófica tradicional da epistemologia (em ambas suas formas empiricista e racionalista), ao separar o sujeito consciente da natureza e da sociedade, é em si própria uma expressão ideológica de uma falsa consciência. O materialismo dialético critica os vários conceitos tradicionais de epistemologia assim como outros conceitos e categorias filosóficas. Mas o marxismo não critica a filosofia tradicional se colocando como uma filosofia nova, alternativa, que de forma semelhante existe independentemente de um entendimento cientifico (ou seja, empiricamente verificável) da natureza e da sociedade.
A mistificação do grupo de Healy sobre o materialismo dialético – “o caminho do enfrentamento entre o erro e a verdade” – é primariamente uma justificativa para a infalibilidade do culto ao mestre. O programa, análise, táticas e projeções da liderança de Healy são postas como isentos de verificação empírica. Por exemplo, até hoje o grupo de Healy considera que Cuba é capitalista! Dizem aos críticos e opositores que estes não entendem a realidade; sendo essa capacidade monopolizada pela liderança, que sozinha dominou o método dialético. Essa similaridade entre a visão do grupo de Healy sobre dialética e o misticismo religioso não é uma coincidência.
Para resumir, a rejeição sistemática do materialismo dialético (por exemplo, Bogdanov, Burnham) levará cedo ou tarde a um rompimento com o programa marxista científico. Mas acreditar, como Healy, que toda diferença política séria dentro de um partido revolucionário pode ou deve ser reduzida a conceitos filosóficos antagônicos é uma espécie de idealismo racional. Tal reducionismo filosófico nega que diferenças políticas normalmente surgem de diversas pressões e influências sociais que atingem a vanguarda revolucionária e seus componentes, e também diferenças ao avaliar as condições e possibilidades empíricas.
Significado da Luta Contra Otzovismo/Ultimatismo
O fim da luta fracional entre os leninistas e os otzovistas/ultimatistas ocorreu na previamente mencionada conferência de julho de 1909 do conselho editorial estendido do Proletary. A conferência decidiu que bolchevismo “não tem nada em comum com otzovismo ou ultimatismo, e que a ala bolchevique do partido deve o mais resolutamente combater estes desvios do marxismo revolucionário”. Quando Bogdanov se recusou a aceitar essa resolução, ele foi expulso da tendência Bolchevique.
Como nós apontamos no primeiro capítulo desta série, ao justificar a expulsão de Bogdanov Lenin claramente reafirmou sua aderência à doutrina kautskista de que o partido deveria incluir todos os socialdemocratas (ou seja, socialistas orientados para a classe operária). Ele fazia uma distinção afiada entre o “partido” kautskista e uma tendência, sendo que a última requeria um programa político e perspectivas homogêneos:
“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência Bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein. Não é esse o caso com uma tendência. Uma tendência ou seção de um partido é um grupo de pessoas com pensamento próximoformada com o propósito primário de influenciar o partido para uma determinada direção, com o objetivo de assegurar a aceitação dos seus princípios na forma mais pura possível. Para fazer isso, unanimidade real de opinião é necessária. Os diferentes níveis que são colocados para unidade de partido e unidade de tendência devem ser analisados por todos que desejam saber como as questões de discordância interna na tendência Bolchevique realmente ocorrem.” [ênfase no original] – “Relatório sobre a Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909)
Depois da expulsão de Bogdanov, ele e seus aliados estabeleceram seu próprio grupo ao redor do jornalVperyod, deliberadamente escolhendo o nome do primeiro órgão bolchevique (de 1905). Os Vperyodistas reivindicavam aos membros dos Bolcheviques serem o verdadeiro bolchevismo. Embora muitos trabalhadores bolcheviques tenham apoiado a posição otzovista/ultimatista sobre participação na Duma, eles não desejavam romper com a organização de Lenin por causa desta questão. Assim, Lenin teve que combater atitudes ultra-esquerdistas difusas nas colunas bolcheviques durante alguns anos seguintes até que as tendências otzovistas/ultimatistas tivessem se dissipado por completo.
A reivindicação otzovista/ultimatista de representar a verdadeira tradição bolchevique, e de que Lenin havia se tornado um conciliador menchevique, não poderiam ter sido desconsideradas de primeira como ridículas. Bogdanov, Lyadov, Krasin e Alexinsky tinham estado entre os principais seguidores de Lenin, o antigo núcleo do centro bolchevique. Lunacharsky tinha sido um proeminente propagador e orador bolchevique. Assim, os Mencheviques atacaram Lenin sob o aspecto da deserção de seus mais conhecidos e talentosos colaboradores. Através da luta fracional de 1907-09 contra otzovismo/ultimatismo, uma nova liderança leninista foi cristalizada a partir de quadros bolcheviques mais jovens – Zinoviev, Kamenev, Rykov, Tomsky e um pouco depois Stalin. Esse seria o núcleo central da liderança bolchevique no primeiro período do regime soviético.
Como se explica o fato de que a maior parte da primeira geração de líderes bolcheviques desertaram para o ultra-esquerdismo, dando lugar a uma segunda geração que assimilou o leninismo em seu desenvolvimento maduro? Os bolcheviques se originaram não apenas como a ala revolucionária da socialdemocracia russa, mas também como empiricamente otimistas sobre as perspectivas da luta revolucionária. E esse otimismo autoconfiante foi corroborado pelo acontecimentos. O período de 1903 a 1907 foi em geral um período numa linha crescente de luta revolucionária que permitiu que os Bolcheviques se tornassem um partido de massas. É fácil entender então, que um setor dos Bolcheviques não ficaria desejoso de encarar o fato de uma vitória reacionária que iria exigir um amplo recolhimento organizativo. Esses bolcheviques reagiram a uma realidade desfavorável com um radicalismo dogmático, estéril, que em última análise tomava a forma de espiritualismo socialista. É uma marca de Lenin como grande político revolucionário o fato de ele ter reconhecido por completo a vitória da reação e ter adaptado as perspectivas da vanguarda revolucionária de acordo, apesar de isso ter significado romper com alguns dos seus colaboradores mais próximos até então.