Lenin e o Partido de Vanguarda (1)

Kautskismo e as Origens da Socialdemocracia Russa 

 
Recentemente o Grupo Marxista Internacional britânico (GMI) e os Socialistas Internacionais (hoje Partido Socialista dos Trabalhadores – SWP/IST), dois dos maiores grupos da “extrema esquerda” britânica, decidiram revisar a história dos Bolcheviques. Esses grupos tentam negar ou ofuscar o princípio de um partido de vanguarda com centralismo democrático apontando elementos da socialdemocracia clássica mantidos pelos Bolcheviques antes de 1914 e também manobras táticas contra os Mencheviques.
 
O GMI, seção britânica do pseudo-trotskista Secretariado Unificado, realizou a memorável façanha de tornar Lenin um conciliador que preza pela unidade acima de tudo, baseando-se no fato de que, até 1912, os Bolcheviques e Mencheviques eram formalmente tendências dentro de um Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) unitário. O alvo particular desse revisionismo é justificar uma grande manobra de unidade na esquerda britânica. Sua linha é de que “as diferenças políticas que Lenin e Trotsky consideraram que poderiam ser contidas em uma organização única eram muito maiores do que aquelas de dividem a esquerda revolucionária na Grã-bretanha hoje” (Red Weekly, 11 de Novembro de 1976). Para um entendimento maior do revisionismo do GMI e seu propósito tático batido, leia “GMI Transforma Lenin em um Menchevique”, em Workers Vanguard Número 164, 1 de Julho de 1977.
 
A mais ambiciosa releitura da história dos Bolcheviques é a de Tony Cliff, líder de longa data do movimentista e reformista SWP/IS. A corrente de Cliff carrega hoje um manto de “esquerda”; algumas vezes eles até aparecem em protestos com retratos de Lenin e Trotsky. Mas esse grupo se perdeu há muito tempo quando, em 1950, sob a tensão de intensa opinião pública anti-comunista, se recusou a defender a Coréia do Norte contra o imperialismo dos EUA e rompeu com o movimento trotskista em cima desta questão. E ainda assim, esta completamente descarada “CIA socialista” agora se propõe a reinterpretar o que Lenin realmente quis dizer em O Que Fazer? 
 
No passado, Cliff foi um proeminente e explícito defensor anti-leninista do menchevismo. O seu livro de 1959, Rosa Luxemburgo, atesta: “Para marxistas nos países industriais avançados, a posição original de Lenin serve muito menos como um guia do que a de Rosa Luxemburgo”. Esta declaração ousada foi retirada da segunda edição (1968), mas a posição substantiva de Cliff se manteve a mesma.
 
Apesar disso, os seguidores de Cliff não fazem nada além de seguir a última moda. E em contraste com os anos de 1950 e 60, o bolchevismo “rígido” está agora “na moda” entre jovens de esquerda. Então Cliff escreveu recentemente uma aparentemente simpática biografia de Lenin, da qual dois dos três volumes planejados já foram publicados. Aqui Cliff apresenta Lenin à sua própria imagem, como um movimentista eclético e nacionalmente limitado. A mensagem central de Cliff é de que não existem princípios e nem mesmo normas sobre a questão organizativa:
 
“A atitude de Lenin com relação a formas organizacionais sempre foi concreta, por isso a sua força. Ele nunca foi enganado por esquemas abstratos, dogmáticos de organização, mas esteve sempre pronto a mudar a estrutura organizativa do partido para refletir o desenvolvimento da luta de classes.
“A organização é subordinada à política. Isso não significa que não tenha influênciaindependente na política. Mas ela é, como deve ser, subordinada às necessidades concretas de cada dia. A verdade sempre é concreta, como Lenin reiterou diversas vezes. E isso também se aplica às formas organizativas necessárias para realizar tarefas concretas.” [ênfase no original]
 
Em outras palavras, o que quer que funcione num determinado período, faça. 
 
Leninistas verdadeiros reconhecem a prevalência dos princípios encarnados nos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista acima da prática bolchevique anterior a 1914. Além do mais, Trotsky sistematizou e aprofundou os conceitos leninistas desenvolvidos ao longo do turbilhão revolucionário entre 1917-23 ao construir a Quarta Internacional. Negar a evolução do bolchevismo de 1903 até 1917 é apagar a oposição principista do leninismo contra o kautskismo. Apelar à prática bolchevique pré-1914 contra o centralismo democrático da Quarta Internacional de Trotsky é equivalente a citar a “ditadura democrática do proletariado e do campesinato” de Lenin contra a “revolução permanente” de Trotsky.  
 
O Partido Kautskista de Toda a Classe 
 
O primeiro volume da biografia de Cliff, cujo subtítulo é “Construindo o Partido”, termina em 1914. Esse trabalho menciona Kautsky exatamente duas vezes e a Segunda Internacional nenhuma! Essa inacreditável omissão já valeria para desacreditar o livro de Cliff como um estudo sério da posição de Lenin sobre a questão do partido.
 
Da oferta de August Bebel em 1905 para mediar o racha bolchevique-menchevique até a “conferência de unificação” marcada pelo escritório da Internacional Socialista na véspera da Primeira Guerra Mundial, a liderança da Internacional prestou um papel significativo na vida interna do POSDR. Os elementos pró-unidade em particular, acima de todos Luxemburgo e Trotsky, foram chamados a conseguir pela Internacional centrada na Alemanha o que não tinham conseguido no movimento russo.
 
Lenin era um revolucionário socialdemocrata e, como o próprio Cliff nota no segundo volume, Kautsky “era o único líder socialista vivo que Lenin respeitava profundamente”. (Isso na verdade é um exagero: em 1905, quando Kautsky apoiou os Mencheviques, Lenin o criticou duramente). Um entendimento da posição de Lenin sobre a questão do partido deve, então, começar com a posição ortodoxa de Kautsky; essa era a doutrina do “partido de toda a classe” ou “uma classe – um partido”. O conceito de Kautsky de um “partido de toda a classe” não significava o recrutamento de toda a população proletária para o partido. Ele reconhecia que os ativistas políticos na classe trabalhadora seriam uma pequena minoria. Nenhum socialdemocrata negava que o critério para ser membro envolvia certo nível de consciência socialista, ativismo e disciplina. O que a doutrina de Kautsky significava era que todas as correntes que se reivindicavam socialistas deveriam estar em um partido unitário. Kautsky replicava que socialdemocratas revolucionários poderiam se unir e mesmo ter uma colaboração com reformistas não-marxistas. Assim, a liderança do Partido Socialdemocrata Alemão (SPD) por vários períodos colaborou de forma próxima com o declaradamente reformista, eclético socialista francês Jean Jaures.
 
A liderança do SPD era imensamente orgulhosa de sua unidade disciplinada pelo partido, que eles reconheciam ser a sua maior fonte de força. Bebel/Kautsky desempenharam um papel decisivo na reunificação dos socialistas franceses em 1905, superando o racha entre o Partido Socialista Marxista da França, liderado por Jules Guesde, e o reformista Partido Socialista Francês de Jaures.
 
Durante a campanha para reunir os franceses, a Internacional adotou a doutrina de “uma classe – um partido” em conformidade com a resolução de seu Congresso de Amsterdã:
 
“Para que a classe trabalhadora possa estender toda a sua força na luta contra o capitalismo é necessário que em cada país onde existirem partidos burgueses de diversos tipos, haja apenas um partido socialista, como existe apenas um proletariado. Dessa forma, é o dever imperativo de todos os camaradas e organizações socialistas fazer o esforço para construir essa unidade baseada nos princípios estabelecidos nos congressos internacionais, uma unidade necessária aos interesses do proletariado, antes dos quais são esses camaradas responsáveis, assim como pelas consequências fatais de uma violação continuada”. [ênfase no original] 
– reproduzido em Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial(1940) 
 
Antes da Primeira Guerra Mundial, Lenin nunca desafiou o princípio acima e o afirmou numa ocasião. Quando, em 1909, os Bolcheviques expulsaram a ultra-esquerda Otzovita (os “Ultimatistas”) dos seus quadros, Lenin justificou isso contrastando a exclusividade de uma tendência com a inclusividade de um partido socialdemocrata:
 
“Em nosso partido o bolchevismo é representado pela tendência bolchevique. Mas uma tendência não é um partido. Um partido pode conter uma gama inteira de opiniões e correntes de pensamento, cujos extremos podem ser diretamente contraditórios. No partido alemão, lado a lado com a pronunciadamente ala revolucionária de Kautsky, vemos a ala ultra-revisionista de Bernstein.” [ênfase no original]
– “Relatório da Conferência do Conselho Editorial Estendido do Proletary” (Julho de 1909) 
 
Em prática na Rússia, Lenin trabalhou para criar uma vanguarda disciplinada, programaticamente homogênea e revolucionária. Até a Primeira Guerra Mundial, entretanto, ele não rompeu em princípio com a doutrina kautskista de “partido de toda a classe”. O resolvimento dessa contradição dialética foi um dos mais importantes elementos criadores do leninismo como uma doutrina histórica mundial, como o marxismo da nossa época.  
 
Análise de Kautsky sobre o Oportunismo 
 
A doutrina kautskista do partido inclusivo foi construída sobre uma teoria histórico-sociológica particular do oportunismo. Correntes oportunistas, como foi colocado, seriam uma sobrevivência da democracia pequeno-burguesa representada majoritariamente pela intelligentsia (intelectualidade) e condicionada pela imaturidade econômica e ideológica das massas trabalhadoras. O crescimento do proletariado e de sua organização acabaria por reforçar a socialdemocracia revolucionária. Assim, Kautsky podia tolerar uma corrente como a de Jaures como uma forma de transição inevitável da democracia radical para o marxismo revolucionário.
 
A identificação de Kautsky do oportunismo com correntes pré-marxistas derivava da história da esquerda européia nas décadas seguintes às revoluções de 1848. As principais correntes opostas ao marxismo (por exemplo, as de Proudhon, Lassale e Bakunin) expressavam todas o desejo de uma classe artesã de prevenir sua queda no proletariado industrial. Marx e Engels entendiam que o socialismo utópico artesão não poderia ser vencido simplesmente por propaganda e agitação, mas requeriam um verdadeiro desenvolvimento da sociedade capitalista. Foi reconhecido na Segunda Internacional que o marxismo iria superar essas correntes primitivistas, como o lassaleanismo na Alemanha e o proudhonismo na França, principalmente pela transformação da classe dos artesãos urbanos em proletariado moderno. O processo pelo qual o marxismo superou o lassaleanismo, o proudhonismo, bakuninismo, etc. se tornou para Kautsky o paradigma da luta contra o oportunismo em geral.
 
A visão do reformismo como um atraso histórico ou regressão se mostra nos objetivos limitados de Kautsky na controvérsia “revisionista” com Bernstein. Ele desenhou uma linha reta entre os ingênuos reformistas pré-marxistas, como Jaures, e os conscientes revisores do marxismo. Numa carta de 23 de Maio de 1902 para Victor Adler, Kautsky defendeu a liderança socialista belga da acusação de revisionismo com o fundamento de que eles nunca tinham sido marxistas, para começar, e nem fingiam ser:
 
“Eu mantenho uma atitude inteiramente sem preconceitos em relação a eles; o palavreado sobre o seu revisionismo não me exalta. Eles não tem nada para revisar, porque eles não têm teoria. O socialismo eclético e vulgar para o qual os revisionistas gostariam de reduzir o marxismo é algo além do que eles [os socialistas belgas] sequer começaram a desenvolver. Proudhon, Schaffle, Marx – são todos um para eles, sempre foi assim, eles não retrocederam na teoria e eu não tenho motivo para censurá-los.”
– citado em George Lichtheim, Marxismo (1961) 
 
O objetivo de Kautsky na controvérsia “revisionista” não ela limpar a Segunda Internacional de tendências, ou mesmo de práticas reformistas, mas preservar a integridade doutrinal do campo marxista. Se isso fosse atingido, acreditava Kautsky, o desenvolvimento da luta de classes acabaria por garantir o triunfo da socialdemocracia revolucionária.
 
Kautsky localizava a fraqueza da socialdemocracia revolucionária no atraso do proletariado, que refletia tanto uma contínua identificação com a pequeno-burguesia quanto uma falta de confiança no movimento dos trabalhadores:
 
“Mesmo após um grande tempo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade… Outros, novamente, foram mais além e reconheceram a necessidade de lutar contra os capitalistas que permanecem em antagonismo em relação a eles, mas não se sentem seguros o suficiente para declarar guerra contra todo o sistema capitalista. Estes buscam alívio nos partidos capitalistas e governos.”
– A Estrada Para o Poder (1909) 
 
Para Kautsky, o crescimento do proletariado, dos sindicatos, etc. fortalecia objetivamente as forças revolucionárias na sociedade. O que era necessário à socialdemocracia era uma paciente e pedagógica atitude com relação aos trabalhadores atrasados, embora Kautsky também reconhecesse que a consciência de classe poderia saltar durante uma crise revolucionária.
 
Com a exceção parcial de Luxemburgo, nenhum socialdemocrata no pré-guerra localizou a fonte principal do reformismo no conservadorismo da burocracia socialmente privilegiada criada pelo crescimento e força do movimento dos trabalhadores, dos partidos socialdemocratas e seus sindicatos afiliados.  
 
A Análise Sociológica de Lenin sobre o Menchevismo 
 
Lenin, seguindo a metodologia de Kautsky, considerou o menchevismo uma extensão do radicalismo pequeno-burguês do século XIX dentro do movimento dos trabalhadores. Porque considerava os Mencheviques uma tendência “intelectualista”, de certa forma estando de fora do movimento dos trabalhadores, ele podia romper com eles sem postular a existência de dois partidos socialdemocratas competidores, um revolucionário, o outro reformista. Lenin estava convencido de que o crescimento da organização socialdemocrata entre o proletariado russo iria garantir o triunfo do bolchevismo.
 
Lenin considerava o grupo de Martov de 1903 como uma expressão das atitudes e valores da velha, defensora de liberdades e individualista intelectualidade revolucionária, como uma rebelião do espírito dos círculos de debate contra a construção de um partido real de trabalhadores:
 
“Nós consideramos, entretanto, que a doença que afeta o partido é um problema de dores crescentes. Nós consideramos que a causa por trás dessa crise é a transição da forma de círculos de debate para a forma de partido, a forma de vida da socialdemocracia; a essência de sua luta interna é o conflito entre o espírito de círculos de debate e o espírito de partido. E, consequentemente, só nos livrando dessa doença, o nosso partido pode se tornar um partido verdadeiro….”
“Finalmente, os quadros da oposição tem em geral sido desenhados principalmente por aqueles elementos em nosso partido que consistem em intelectuais. A intelectualidade é sempre mais individualista que o proletariado, devido às suas próprias condições de vida e trabalho, que não envolvem diretamente uma combinação de esforços em larga escala, não a educam diretamente através do trabalho coletivo organizado. Os elementos intelectuais, então, acham difícil se adaptar à disciplina da vida de partido, e aqueles que não são iguais a eles naturalmente levantam a bandeira da revolta contra as necessárias limitações organizativas.” [ênfase no original]
– “Ao Partido” (Agosto de 1904) 
 
Lenin da mesma forma analisou o liquidacionismo menchevique durante o período entre 1908-12 (oposição ao partido clandestino) em termos de intelectuais lutando contra o proletariado:
 
“Os primeiros a fugir da clandestinidade foram os intelectuais burgueses que sucumbiram à pressão contra-revolucionária, aqueles ‘companheiros de viagem’ do movimento da classe trabalhadora socialdemocrata que, como aqueles na Europa, tinham sido atraídos pelo papel libertador desempenhado pelo proletariado … na revolução burguesa. É fato bem conhecido que uma massa de marxistas deixou a clandestinidade após 1905 e encontrou lugar para si própria em todos os tipos de cantos aconchegantes legais para intelectuais.”
– Como Vera Zasulich Desenvolve o Liquidacionismo (Setembro de 1913) 
 
A análise sociológica de Lenin do menchevismo era válida até onde foi. O grupo de Martov em 1903 representava em parte os hábitos da velha intelectualidade revolucionária; leve-se em conta Vera Zasulich nessa consideração. O liquidacionismo menchevique representava em parte a fuga de intelectuais do POSDR em direção à respeitabilidade burguesa durante o período de reação. Mas o menchevismo não era primariamente uma tendência externa ao movimento operário. Os mencheviques russos anteciparam o reformismo operário da Segunda Internacional como um todo, incluindo particularmente seus partidos de massa. Foi somente durante a Primeira Guerra Mundial, em estudos que levaram a Imperialismo, que Lenin localizou a fonte do oportunismo socialdemocrata dentro do movimento dos trabalhadores – numa burocracia operária descansando no estrato mais alto da classe trabalhadora.  
 
Iskraismo 
 
O marxismo russo organizado se originou em 1883 quando Plekhanov rompeu com a corrente populista dominante para formar o pequeno grupo Emancipação do Trabalho no exílio. Durante o fim dos anos de 1880 e começo dos 90, o marxismo na Rússia consistia de círculos de propaganda locais projetados para educar uma fina camada de trabalhadores avançados. No meio dos anos de 1890, os círculos de propaganda se viraram em direção à agitação de massa intervindo em uma grande onda de greves. Essa virada foi em parte inspirada pela Liga Judaica. Solidariedade étnica permitiu à intelectualidade judaica marxista alcançar e organizar trabalhadores judeus na frente da socialdemocracia russa como um todo.
 
Em parte por causa da prisão dos mais experientes líderes marxistas (por exemplo, Lenin, Martov), a virada em direção à agitação de massa rapidamente degenerou-se em reformismo. Esta tendência, apelidada de “economicismo” por um hostil Plekhanov, limitou sua agitação a demandas sindicais simples, enquanto passivamente apoiava os esforços da burguesia liberal para reformar o absolutismo czarista. Em termos de socialdemocracia internacional, os economicistas eram hostis ao marxismo ortodoxo e consequentemente eram frouxamente associados com Bernstein na Alemanha e opossibilismo na França. No fim dos anos de 1890, o economicismo era a tendência dominante entre os socialdemocratas russos.
 
Em 1900, a segunda geração de marxistas russos (Lenin, Martov) fez uma coalizão com os fundadores (Plekhanov, Axelrod, Zasulich) para retornar a socialdemocracia russa para as suas tradições revolucionárias como encorpadas no programa do Emancipação do Trabalho. A tendência marxista revolucionária foi organizada através de jornal Iskra. Lenin era o organizador do grupo do Iskra. Ele enviou agentes pela Rússia cuja tarefa era ganhar os comitês socialdemocratas locais, ou rachá-los, caso fosse necessário. O Iskra forneceu, pela primeira vez, um centro organizador para um partido socialdemocrata russo.
 
Polemizando contra as táticas divisionistas bem-sucedidas de Lenin, os economicistas apontaram que a seção alemã não tinha procurado excluir os seguidores de Bernstein. Lenin não brigou e, de certa forma não poderia brigar pela exclusão dos oportunistas do parido socialdemocrata como um princípio. No lugar, ele justificou suas táticas de divisão por uma série de argumentos baseados na particularidade da situação do partido russo. Até a primeira Guerra Mundial, Lenin iria apelar para um ou outro aspecto particular da Rússia para justificar a construção de um partido de vanguarda programaticamente homogêneo.
 
Qual eram os argumentos de Lenin para construir o POSDR sem e contra os economicistas? O partido alemão tinha fortes tradições revolucionárias e uma liderança de autoridade. O partido russo era embrionário e poderia facilmente cair no oportunismo. A liderança alemã, Bebel/Kautsky, era revolucionária, enquanto os bernisteinianos eram uma pequena minoria; em contraste, os economicistas eram temporariamente a tendência dominante na socialdemocracia russa. Os “revisionistas” alemães aceitaram a disciplina do partido, os economicistas russos eram incapazes de aceitar a disciplina do partido. E, de qualquer forma, o POSDR não era uma organização centralizada. Esses argumentos estão expressos em O Que Fazer? (1902):
 
“O importante é notar que a atitude oportunista em relação aos socialdemocratas na Rússia é o oposto àquela na Alemanha. Na Alemanha … os socialdemocratas revolucionários estão a favor de preservar o que são: eles permanecem a favor do velho programa e das táticas que são universalmente conhecidas…. Os “críticos” desejam introduzir mudanças e, como esses críticos representam uma insignificante minoria, e como são muito tímidos e hesitantes em seus esforços revisionistas, é fácil entender os motivos da maioria em limitar-se à seca rejeição de tal “inovação”. Na Rússia, entretanto, são os críticos e os economicistas que querem expressar o que são; os “críticos” desejam que continuemos a nos considerar marxistas e que lhes seja garantida a “liberdade de criticar”, a qual eles se aproveitam ao máximo (porque, na verdade, eles nunca reconheceram nenhuma forma de laços partidários e, além disso, nunca tivemos um órgão do partido com reconhecimento geral que pudesse “restringir” a liberdade de criticar até mesmo através de aconselhamento.” [ênfase no original]
 
Como é reconhecido de forma geral, O Que Fazer? de Lenin (1902) era a declaração de autoridade do Iskraismo. Apesar de sua suposta simpatia quanto a Lenin, Cliff é por demais um movimentista e menchevique para aceitar O Que Fazer?. De fato, uma proposta central da sua biografia é discutir que a polêmica de 1902 é uma declaração exagerada, unilateral que Lenin repudiou, no seu conteúdo, posteriormente.
 
Primeiramente, Cliff vulgariza a posição de Lenin e então polemiza contra sua própria invenção fantoche:
 
“Em geral a dicotomia entre luta econômica e política é estranha a Marx. Uma demanda econômica, se é setorial, é definida como ‘econômica’ nos termos de Marx. Mas se a mesma demanda é feita contra o estado de coisas ela é ‘política’ …. Em muitos casos lutas econômicas (setoriais) não dão origem a lutas políticas (com conteúdo de classe), mas não há uma muralha da China entre as duas, e muitas lutas econômicas se tornamlutas políticas.” [ênfase no original]
 
Lenin não ataca os economicistas por serem indiferentes à política governamental. Os economicistas russos agitavam por reformas econômicas iniciadas pelo Estado e apoiavam direitos democráticos, particularmente o direito à organização. Nesse sentido eles apoiavam passivamente os liberais. Em O Que Fazer? Lenin ataca o programa político dos economicistas como encapsulado no slogan “dar à luta econômica em si mesma um caráter político”:
 
“Dar ‘à luta econômica em si mesma um caráter político’ significa, então, se esforçar para assegurar a satisfação por estas demandas econômicas, a melhoria de condições de trabalho em cada ramo separado por meio de ‘medidas legislativas e administrativas’ …. Isso é exatamente o que os sindicatos fazem e sempre fizeram….”
“Assim, a pomposa palavra de ordem ‘dar à luta econômica em si mesma um caráter político’ que soa ‘incrivelmente’ profunda e revolucionária, serve como uma venda para esconder o que é, de fato, o esforço tradicional para degradar as políticas socialdemocratas ao nível das políticas sindicais!” [ênfase no original]
 
Para Lenin, consciência de classe política, ou consciência socialista, era o reconhecimento pelo proletariado da necessidade de se tornar a classe dominante e reconstruir a sociedade sobre bases socialistas. Qualquer coisa a menos era consciência sindical.
 
Como todas as outras correntes movimentistas e socialdemocratas atuais, Cliff deve atacar a famosa declaração de Lenin de que consciência socialista é levada aos trabalhadores de fora por intelectuais revolucionários, que consciência de classe não surge simplesmente através das lutas operárias para melhorar suas condições. Aqui estão as observações factuais de Cliff sobre essa questão:
 
“Não há dúvida de que essa formulação enfatizou exageradamente as diferenças entre espontaneidade e consciência. Por que, de fato, a completa separação de espontaneidade da consciência é mecânica e não-dialética. Lenin, como nós veremos depois, admitiu isso. Pura espontaneidade não existe na vida….”
“A lógica da justaposição mecânica de espontaneidade e consciência era a completa separação entre o partido e os verdadeiros membros da liderança da classe trabalhadora que já haviam se elevado na luta. Ela assumia que o partido tinha respostas a todas as perguntas que a luta espontânea pudesse trazer a tona. A cegueira dos muitos envolvidos na batalha é o trapézio invertido da omnisciência dos poucos.” [ênfase no original]
 
É importante citar a declaração de Lenin inteira para entender o que ela significa e não significa:
 
“Nós dissemos que pode não haver ainda consciência socialdemocrata entre os trabalhadores. Esta consciência só pode ser levada a eles de fora. A história de todos os países mostra que a classe trabalhadora, exclusivamente por seu próprio esforço, é capaz de desenvolver apenas consciência sindical, por exemplo, ela pode perceber por si própria a necessidade de participar de sindicatos, de lutar contra os empregadores e de se esforçar para fazer o governo aprovar legislação trabalhista suficiente, etc. A teoria do socialismo, entretanto, cresceu a partir das teorias filosóficas, históricas e econômicas que foram elaboradas pelos representantes cultos das classes possuidoras, os intelectuais. De acordo com seu status social, os fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenceram à intelectualidade burguesa (intelligentsia). Similarmente na Rússia, a doutrina teórica da socialdemocracia surgiu de forma bem independente do crescimento espontâneo do movimento trabalhista; ela surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento de idéias entre a intelligentsia socialista revolucionária.” [ênfase no original]
– O Que Fazer? 
 
Esta não é uma declaração programática, mas antes uma análise histórica com implicações na questão organizativa. O movimento socialista precedeu o desenvolvimento das organizações econômicas de massa do proletariado industrial. O movimento socialista surgiu de dentro das correntes democrático-burguesas revolucionárias (a tradição babouvista representada pelo blanquismo na França e pela Liga dos Justos na Alemanha). Com exceção da Grã-bretanha, os primeiros sindicatos surgiram pela transformação do velho sistemas artesanal baseado em guildas.
 
Por exemplo, na revolução alemã de 1848 o movimento de sindicatos de massa de Stephan Born, a Irmandade dos Trabalhadores, era largamente baseada na tradicional estrutura de guilda. Os líderes dos sindicatos embrionários eram geralmente figuras tradicionais de autoridade da comunidade plebéia. Ministros metodistas, como o radical tory J. R. Stephens, desempenharam importante papel de liderança no movimento dos trabalhadores Britânicos no começo do século XIX. Padres católicos tiveram um papel semelhante nos primeiros sindicatos franceses, como por exemplo entre os revoltos trabalhadores têxteis de Lyon. Na maioria dos países o crescimento do movimento de trabalhadores socialistas resultou da vitória política da intelligentsia revolucionária contra os líderes tradicionalistas das primeiras organizações operárias. Quando Lenin escreveu O Que Fazer?, as organizações econômicas de massa da classe trabalhadora russa eram os sindicatos liderados pela polícia (zubatovitas), cujo mais proeminente líder era o padre Gapon.
 
Lenin era um dialético que entendia que a consciência e liderança da classe trabalhadora passava historicamente por mudanças qualitativas. Com a importante exceção dos Estados Unidos, o economicismo sindical (associado com ilusões burguesas liberais e obscurantismo religioso) não é mais a ideologia dominante do proletariado mundial. Nos países capitalistas avançados, é socialista reformista, levada a diante pelos atuais socialdemocratas e burocracias trabalhistas stalinistas, que grudam a classe trabalhadora à ordem burguesa. Em países atrasados, nacionalismo populista com coloração socialista (por exemplo, Perón, Násser) é a forma característica da dominação ideológica burguesa sobre as massas trabalhadoras.
 
Na Rússia de 1902, uma pequena e homogênea vanguarda marxista, composta por intelectuais saídos de sua classe, com uma fina camada de trabalhadores avançados, foi capaz de fazer a massa dos trabalhadores romper com o sindicalismo policial e com a Igreja Ortodoxa. Hoje é necessária uma vanguarda trotskista internacional, necessariamente composta em seus primeiros estágios por intelectuais saídos de sua classe, com relativamente poucos trabalhadores avançados, para fazer a classe trabalhadora do mundo romper com a dominação do reformismo socialdemocrata e stalinista e com o nacionalismo populista.
 
Em sentido exatamente oposto ao de Cliff, O Que Fazer? não pode ser considerado como o posicionamento leninista definitivo sobre a questão do partido. Apesar da angularidade dessas formulações, a polêmica obra de 1902 não vai além dos limites da socialdemocracia ortodoxa anterior a 1914. Se esse trabalho tivesse significado uma quebra radical com a socialdemocracia, Plekhanov, Martov, etc., nunca o teriam aprovado. Foi apenas depois do racha em 1903 que Martov, Axelrod e outros líderes mencheviques descobriram em O Que Fazer? alegadas concepções substituístas e blanquistas. Foi a atitude intransigente de Lenin na prática contra o oportunismo, espírito de círculo de debate e todos os outros obstáculos para construir um POSDR revolucionário que causou o racha menchevique, não particularmente as ideias presentes em O Que Fazer?. Se Cliff acha O Que Fazer?leninista demais para o seu gosto, é porque sua hostilidade ao bolchevismo é tão forte que ele rejeita Lenin mesmo quando o último era ainda um revolucionário socialdemocrata. Na realidade a obra de 1902 é uma antecipação, não uma exposição completamente acabada do comunismo pós-1917.
 
É comum na esquerda considerar O Que Fazer? como uma declaração leninista definitiva sobre a questão do partido. Por exemplo, o americano da corrente de Schatman, Bruce Landau, em uma revisão crítica da biografia de Cliff (Revolutionary Marxist Papers Num. 8), concentra-se no período do Iskra. Ele justifica seu foco estreito citando Trotsky a respeito da elaboração de Lenin:
 
“Foi precisamente durante este curto tempo que Lenin se tornou o Lenin que seria para sempre. Isso não significa que ele não evoluiu posteriormente. Ao contrário. Ele cresceu em tamanho … até Outubro e mais além; mas as condições desse crescimento já estavam realmente dadas.”
– Sobre Lenin: Anotações para uma Biografia (1924) 
 
Trotsky aqui se refere ao desenvolvimento da personalidade política de Lenin, não de suas idéias e suas expressões programáticas. O período decisivo para o desenvolvimento da doutrina comunista leninista foi entre 1914 e 1917, não 1900-1903.