Um Conto de Fadas sobre o Liquidacionismo
O Xamã e o Pântano
Por “S. Aesop”
Originalmente publicado em abril de 1957 no “Boletim da Ala Esquerda”, pelo Núcleo da Ala Esquerda da Liga Socialista Jovem (YSL), grupo de juventude da Liga Socialista Independente (ISL) norte-americana. O Núcleo da Ala Esquerda se opôs ao plano do líder do partido, Max Schachtman, de dissolvê-lo, junto com seu grupo de juventude, na Socialdemocracia norte-americana, que apoiava a Guerra Fria. Posteriormente, os membros do Núcleo foram ganhos para o Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP) norte-americano e alguns deles dariam origem, em 1962, à Tendência Revolucionária, precursora da Liga Espartaquista. A versão para o português foi realizada julho de 2011 por Rodolfo Kaleb e Leandro Torres.
Era uma vez, há muito pouco tempo atrás, uma grande nação, não muito distante, onde viviam dois grupos de pessoas, muito diferentes.
Era uma vez, há muito pouco tempo atrás, uma grande nação, não muito distante, onde viviam dois grupos de pessoas, muito diferentes.
Um era chamado Homens Vermelhos, ninguém sabia bem por quê; os outros se chamavam os Outros, porque eles eram. Os Homens Vermelhos eram muito poucos, mas havia montes e mais montes de Outros. Não tinha sido sempre esse o caso, dizia-se, e os escritos tribais falavam de uma época em que montes (mas nunca montes e mais montes) de Outros eram Homens Vermelhos. Isso havia sido há muito tempo.
Os Homens Vermelhos eram bastante briguentos, por menores que fossem, e não viviam juntos. Eles viviam em tribos separadas, cada uma sendo a verdadeira tribo de Homens Vermelhos, e quando Homens Vermelhos de duas tribos diferentes se encontravam, eles às vezes discutiam de maneira barulhenta. Eles só concordavam, todos eles, que um dia, o Grande Poder iria resolver isso de forma que todos seriam Homens Vermelhos. E eles, ou a maioria deles, tentavam invocar o Grande Poder de tempos em tempos, mas nunca haviam conseguido muito bem.
Apesar disso, entre brigas e mudanças de tribo, os Homens Vermelhos pensavam muito sobre o Grande Poder e realizavam muitos rituais e faziam encantamentos poderosos para aproximar o seu dia. Cada tribo tinha seu próprio ritual e às vezes vários – já que apesar de pequenas, as tribos tinham muitas visões e de vez em quando uma tribo se dividia em clãs, cada um com seu próprio ritual.
Certa vez aconteceu que todos os Homens Vermelhos começaram a debater sobre uma nova idéia. Essa idéia era a de que todos os Homens Vermelhos deveriam se juntar e fazer uma pequena tribo maior ao invés de várias pequenas tribos menores.
Parece que essa idéia havia surgido da maior das tribos de Homens Vermelhos – que não era de verdade uma tribo de Homens Vermelhos, mas apenas dizia que era – porque o Grande Curandeiro havia morrido e o novo Xamã não podia mais esconder quão mal feito era o seu ritual. Era um ritual realmente muito, muito ruim mesmo e verdadeiros Homens Vermelhos começaram a deixar essa tribo.
Chegou então um dia em que cada uma das pequenas tribos (exceto por uma que vivia num alto planalto e outra que vivia em um pântano) queriam que esses Homens Vermelhos viessem viver com eles, ou melhor ainda, como declararam, que todos os Homens Vermelhos viessem viver juntos e formassem uma pequena tribo maior.
Uma dessas pequenas tribos ficou muito entusiasmada. Seu clã mais forte era liderado por um tipo de Homem Vermelho que era chamado de Grande Xamã. Ele era o chefe porque tinha feito seu próprio ritual, conseguia fazer incríveis encantamentos, e principalmente porque, apesar das muitas tribos às quais ele havia pertencido, ele próprio tinha construído esta.
A tribo do grande Xamã era pequena e antiga, mas ela vivia bem perto de uma tribo mais jovem e mais forte. Essa tribo mais jovem curvou-se diante do grande Xamã e usou seu ritual e fez do seu sobrinho, Pequeno Xamã, o chefe, porque o Pequeno Xamã conhecia o ritual realmente bem e podia fazer quase tanto barulho quanto o Grande Xamã.
Os Homens Vermelhos na tribo do Pequeno Xamã ficaram ainda mais entusiasmados com a unidade tribal e falavam sobre ela o tempo todo.
Mas o Grande Xamã tinha uma estranha idéia que guardava só para ele. Em suas peregrinações, ele havia certa vez vivido com a tribo no pântano e ele sempre se arrependera de ter saído de lá. Ele havia ouvido que uma outra tribo (de Homens Vermelhos muito pálidos, por sinal) estava voltando para viver no pântano e torná-lo ainda melhor para aqueles que gostavam de viver nele.
Mas não se deve pensar que o pântano não era um lugar bom e seguro para os Homens Vermelhos viverem. Ele era. No pântano, um Homem Vermelho podia mergulhar bem embaixo na lama quentinha até o pescoço e quase ninguém iria saber que ele era um Homem Vermelho se ele não contasse.
Além do mais, no pântano um Homem Vermelho estaria seguro dos Outros. Os Outros (ou alguns deles) eram às vezes muito maus com os Homens Vermelhos e não deixavam eles caçarem ou pescarem em certos lugares e até coisas piores. Mas não no pântano. No pântano os Outros não faziam coisas más com os Homens Vermelhos, e se a tribo do pântano se comportasse bem (o que eles eram muito bons em fazer) e beijassem os pés dos Outros, e adotassem partes da religião dos Outros no ritual da tribo (o que eles faziam), então eles tinham a permissão de caçar e pescar por todo aquele espaço.
Bom, o Grande Xamã decidiu que ele estava solitário para viver no pântano e chamou junto o seu Conselho de Líderes. Alguns dos curandeiros bruxos do Conselho de Líderes pensaram que a lama e o lodo estavam muito fundos, mas eles foram vaiados pelos mais velhos, que continuavam pensando quão quentinho e seguro e confortável seria.
Então aconteceu que o Grande Xamã chamou o Pequeno Xamã e disse a ele para preparar a tribo mais jovem para marchar em direção ao pântano. O Pequeno Xamã voltou para sua tribo e fez um encantamento longo e alto. Os outros líderes do seu clã finalmente aceitaram porque ele os fez pensar que a verdadeira razão de ir para o pântano era tirar toda a lama de lá e construir uma poderosa e bela tribo que iria ganhar muitos Outros.
Alguns dos irmãos tribais do Pequeno Xamã se rebelaram, entretanto, e formaram um novo clã. Eles mostravam o pântano e os infelizes moradores dele, e também diziam não querer desistir do seu ritual e substituí-lo por aquele do pântano. Eles chamaram por uma nova tribo maior de todos os Homens Vermelhos, incluindo os infelizes moradores do pântano, em terra firme e seca e com um bom ritual.
O Grande Xamã e o Pequeno Xamã e seus chefes menores ficaram muito tristes por causa disso. Eles espalharam uma história de que o novo jovem clã não era leal ao ritual e era feito de traidores e espiões de uma tribo inimiga.
Isso era uma grande mentira, mas assustou muitos dos membros indecisos da tribo do Pequeno Xamã e alguns deles pararam de pensar pensamentos de revolta e voltaram a sentar placidamente aos pés do Grande Xamã.
Eles perceberam, entretanto, que os pés do Grande Xamã emanavam um estranho odor e eram cobertos de argila e lodo, devido às suas explorações no pântano.
Muitos deles simplesmente não conseguiam suportar o fedor e eles foram para o novo clã e o tornaram mais forte.
Finalmente, os Xamanistas não conseguiam mais suportar a terra seca e eles reuniram seus seguidores e, após pedir a permissão dos mais enlameados moradores do pântano, se jogaram para lá viver.
Eles acharam tão agradável, que a maioria deles foi até o fundo da lama e se enterrou tão profundamente que depois de um certo tempo ninguém, nem Homens Vermelhos e nem Outros, ouviu mais falar deles de novo.