Três Dias em Agosto
Três Dias em Agosto
O Rubicão Soviético e a Esquerda
Esse artigo foi originalmente publicado em 1917 No. 11 (terceiro trimestre de 1992), pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional. Sua tradução foi feita pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2013.
Nas semanas que se seguiram ao fracasso da tentativa de golpe em agosto de 1991, a Tendência Bolchevique Internacional esteve virtualmente sozinha, entre as correntes que se reivindicam trotskistas, ao reconhecer que esse evento marcou o fim do Estado operário soviético. Todo evento político importante desde então confirmou nosso ponto de vista. Alguns dias depois do golpe, Gorbachev, sob a instrução de Boris Yeltsin, proclamou a dissolução do Partido Comunista Soviético. O Congresso de Deputados do Povo votou pela sua autodestruição. Em dezembro, Yeltsin anunciou a dissolução da União Soviética e a formação de uma assim chamada Comunidade de Estados Independentes. Ele fez isso sem nem mesmo se importar em consultar Gorbachev, cujas tentativas subsequentes de manter alguma aparência de governo unificado foram simplesmente ignoradas. No dia de Natal, Gorbachev renunciou como presidente soviético. A bandeira soviética foi retirada do Kremlin e substituída pelo emblema czarista. Yeltsin se mudou para o escritório presidencial soviético mesmo antes que Gorbachev pudesse empacotar suas coisas.
As principais instituições políticas do Estado soviético puderam ser desmanteladas sem uma resistência armada, porque o destino da URSS já havia sido decidido. Os desenvolvimentos no pós-golpe foram um mero epílogo aos três dias em agosto, quando os desmoralizados defensores do antigo aparato stalinista fizeram sua última aposta desesperada e perderam.
Yeltsin não perdeu tempo em lançar um ataque completo contra a economia estatal já em desintegração. No começo de janeiro, ele retirou subsídios estatais para alimentação e muitos outros itens, aumentando em muito a maior parte dos preços. Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas com o objetivo de substituir o planejamento centralizado pela anarquia de mercado. Agitações de protesto popular rapidamente se seguiram. Conforme Yeltsin viajou ao redor do país para aferir a reação pública, ele se confrontou com multidões raivosas. Motins reivindicando comida emergiram na capital usbeque de Tashkent, reclamando a vida de vários estudantes; trabalhadores, militares e membros do velho aparato de partido marcharam contra o novo regime na Praça Vermelha no Dia da Revolução; 5 mil oficiais do exército se reuniram no Kremlin para protestar contra os planos de Yeltsin de desmembrar o exército ao longo de linhas nacionais. Em fevereiro, 50 mil pessoas inundaram as ruas de Moscou no maior protesto contra o governo até agora. Os protestos anti-Yeltsin são extremamente heterogêneos. Enquanto alguns participantes carregavam bandeiras vermelhas e fotos de Lenin e Stalin, o ultradireitista Partido Liberal Democrático e outros elementos monarquistas e antissemitas também eram proeminentes. Como a região do Cáucaso permanece atormentada por matanças locais, e Yeltsin continua a disputa com o novo regime nacionalista da Ucrânia sobre a Frota do Mar Negro, está claro que estrada de volta ao capitalismo na antiga União Soviética não será tranquila.
As “reformas de preço” de Yeltsin foram introduzidas por orientação de Jeffrey Sachs, menino de ouro da Escola de Negócios de Harvard, que passou os últimos anos torturando os trabalhadores poloneses com a miséria do livre mercado. O propósito da reforma é reduzir a receita de Estado russa e estabilizar o rublo. Sob o antigo sistema de planejamento, os preços das commodities eram determinados não por forças de mercado, mas pelas decisões sociais e econômicas dos planejadores. O rublo funcionava mais como um vale de compra com base no trabalho do que uma medida de valor. Para estabelecer um regime de produção generalizada de commodities, e para abrir a economia da ex-URSS para o mercado mundial, primeiramente é necessário, de acordo com a Escola de Harvard, ter algum tipo de equivalente universal que estabeleça a medida pela qual vários produtos podem ser comercializados.
Sob quais termos a Rússia e as outras repúblicas vão se juntar à “família das nações” imperialista? A produtividade do trabalho na União Soviética sempre esteve atrás daquela dos países capitalistas avançados. Os produtos da indústria soviética simplesmente não podem competir em preço ou qualidade com os produtos do ocidente. Os capitalistas do ocidente estão relutantes em investir mesmo na Polônia e na antiga RDA (Alemanha Oriental), cuja planta industrial é mais avançada que na Rússia. As indústrias russas e ucranianas tem ainda menos probabilidade de encontrar compradores estrangeiros. Aspirantes russos a “empresários” não podem simplesmente obter as indústrias estatais existentes e começarem a fazer dinheiro. Para se tornarem competitivos internacionalmente, a maioria das empresas soviéticas iria exigir uma massiva troca de equipamentos e avanços, e isso só pode ser financiado de fora. Os gigantes imperialistas, presos em rivalidades econômicas cada vez mais intensas entre si, não estão dispostos a garantir o desenvolvimento de um novo grande competidor. A “ajuda” total destinada à antiga União Soviética até agora é apenas uma fração do que os imperialistas gastavam todo ano preparando-se para lançar uma guerra contra o “império do mal”. A assistência que eles estão dando é apenas para ajudar Yeltsin a manter uma mordaça em sua população rebelde. Não vai haver Plano Marshall tardio.
As terras que um dia fizeram parte da URSS não são sem valor para os predadores de Wall Street e Frankfurt. A antiga União Soviética era o produtor mundial número um de petróleo e lenha, e os seus territórios também são ricos em minerais, metais e grãos. A população é bem educada mesmo para os padrões ocidentais e é, portanto, um enorme mercado em potencial e reserva de trabalhadores que podem ser explorados. Mas os imperialistas veem a antiga União Soviética primariamente como uma produtora de matéria-prima e produtos agrícolas e como uma consumidora dos produtos manufaturados dos Estados Unidos, Europa e Japão. A desindustrialização que vai acompanhar a restauração do capitalismo vai prender as várias repúblicas em um padrão de dependência econômica e atraso mais parecido com países de terceiro mundo do que com o mundo capitalista desenvolvido.
A antiga União Soviética, entretanto, não é um país de terceiro mundo. A revolução bolchevique de 1917 lançou o antigo Império Czarista para fora da órbita imperialista e estabeleceu as fundações para transformar a Rússia de uma nação atrasada majoritariamente camponesa em uma grande potência industrial. Na época da revolução, mais de 80 por cento da população soviética vivia no campo; hoje, mas de 60 por cento são moradores das cidades.
A reintegração da União Soviética na divisão internacional de trabalho capitalista vai significar a ruína de setores econômicos inteiros: aço, maquinário, equipamento militar e bens de consumo e o desligamento de muitos dentre as dezenas de milhões de trabalhadores cujas vidas dependiam da indústria.
Os Estados que estão emergindo do desmantelamento da URSS provavelmente não irão ser reduzidos a um status de países do terceiro mundo sem explosões populares de raiva. Conforme a indignação de massas com a “terapia de choque” do livre mercado continua a crescer, Yeltsin poderia ser derrubado. Ele já foi forçado a modificar alguns dos aspectos mais severos do seu pacote econômico. Entretanto, nenhum dos aspirantes a sucessor de Yeltsin está menos comprometido que ele com a restauração capitalista; eles se diferenciam apenas sobre táticas e rapidez.
Por uma revolução proletária para esmagar a contrarrevolução!
A única força que pode virar a maré – a classe trabalhadora – está confusa e desmoralizada por anos de traição stalinista. O regime de Yeltsin permanece extremamente frágil e vulnerável a um levante vindo de baixo. Os revolucionários na antiga URSS devem buscar transformar a hostilidade popular àqueles que elevam os preços e aos especuladores alimentícios em uma arma contra todo o esquema de privatização. Formando comitês de representantes em cada local de trabalho e bairro operário, os trabalhadores poderiam se unir para reconstruir os sovietes de 1905 e 1917. Tais órgãos de poder popular poderiam garantir que os necessários suprimentos de comida fossem distribuídos igualmente. Eles também poderiam bloquear o completo loteamento e roubo das empresas públicas e combater as demissões com uma campanha por uma escala móvel de horas de trabalho e salários, e constituir a base organizativa de um Estado operário renascido.
A hostilidade de massas às medidas de austeridade de Yeltsin está sendo explorada por uma horda de demagogos nacionalistas de direita e descendentes antissemitas das Cem Negros. As manifestações contra Yeltsin nos meses recentes têm unido stalinistas “patrióticos” com nacionalistas-russos fascistas. A restauração capitalista liberou uma explosão de massacres nacionalistas reacionários pela região do Cáucaso, na Moldávia e em outras partes da antiga URSS. Os marxistas defendem o direito de todas as nações à autodeterminação e se opõem ao chauvinismo grão-russo do Kremlin de Yeltsin. Ao mesmo tempo, os socialistas lutam pela união voluntária dos povos da antiga URSS em uma renovada federação socialista.
Para evitar o desastre, a classe trabalhadora necessita urgentemente de uma liderança revolucionária. Um partido revolucionário buscaria mobilizar o proletariado para retirar Yeltsin e outros potentados nacionalistas do poder, reverter os programas de privatização e colocar o local de nascimento do primeiro Estado operário do mundo de volta na trilha revolucionária internacionalista de Lenin e Trotsky.
Qualquer grupo que aspire ser uma liderança revolucionária deve ser capaz de reconhecer a realidade e dizer a verdade. A realidade política hoje é moldada pelo fato de que a vitória da contrarrevolução em agosto de 1991 destruiu o Estado operário soviético. A maior parte da economia ainda é formalmente propriedade estatal, como na Polônia, Tchecoslováquia e o resto da Europa Oriental. Mas aqueles que retêm o monopólio da força na sociedade estão comprometidos com o desmantelamento, não a manutenção, da propriedade estatal dos meios de produção. A classe que fez nascer a propriedade coletivizada e tinha o interesse maior em sua sobrevivência – o proletariado – foi excluída do poder político direto com a ascensão de Stalin em meados dos anos 1920. Entretanto, a burocracia stalinista, com todos os seus crimes contra a classe trabalhadora, derivava o seu poder social do seu papel como administradora da economia de propriedade estatal. Ela foi episodicamente compelida a defender as formas de propriedade proletárias da restauração capitalista e a reprimir elementos pró-capitalistas dentro das suas próprias fileiras para poder salvaguardar os seus privilégios. Com o fracasso do golpe de agosto, o aparato stalinista profundamente dividido e completamente desmoralizado desmoronou quando as forças que buscavam abertamente destruir as bases econômicas estabelecidas pela Revolução de Outubro tomaram o poder.
O sucesso dos organizadores do golpe poderia ter representado um obstáculo, ainda que temporário e insubstancial, à vitória dos restauracionistas que hoje estão no poder. Era, portanto, dever daqueles que defendiam a União Soviética contra a restauração do capitalismo, tomar o lado dos líderes do golpe contra Yeltsin, sem lhes oferecer nenhum apoio político. Entretanto, no nosso conhecimento, todas as ouras tendências que se reivindicavam trotskistas falharam no último teste de defesa soviética. A maioria ficou do lado das forças reunidas ao redor de Yeltsin em nome da democracia. Outras foram neutras. Para justificar a sua falha, muitos desses grupos agora encontram expediente para minimizar o significado da vitória de Yeltsin em agosto. Nós vamos examinar as respostas ao golpe de três organizações pseudotrotskistas: o Secretariado Unificado da Quarta Internacional, o grupo inglês Workers Power e os espartaquistas.
SU: “Ninguém aqui além de nós democratas”
Nos últimos quarenta anos, o Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU), comandado por Ernest Mandel, se especializou em distorcer e diminuir o programa revolucionário de Trotsky para se adaptar à última moda política na esquerda. A busca deles por um caminho fácil para a “influência de massa” os levou a apoiar stalinistas insurrecionais como Castro e Ho Chi Minh no fim dos anos 1960 e a um louvor irrestrito para os anticomunistas do Solidariedade polonês uma década depois. Conforme os ventos políticos predominantes viraram para a direita na última década e meia, o SU tem tentado encontrar um nicho nas franjas da socialdemocracia. Não é surpreendente, então, que durante o golpe de agosto Mandel e seus seguidores tenham ficado do lado de alguns milhares de liberais restauradores do capitalismo e comerciantes do mercado negro que correram ao palácio presidencial de Yeltsin. Junto com toda a burguesia internacional, o SU aplaudiu a vitória do presidente russo contra o Comitê de Emergência como um triunfo da “democracia”. Um dos afiliados norte-americanos do SU, a Tendência Quarta-Internacionalista (FIT) escreveu: “A derrota do golpe foi uma vitória genuína para os povos soviéticos” (Bulletin in Defense of Marxism, outubro de 1991). Outro grupo norte-americano do SU viu as multidões que apoiavam Yeltsin como um “levante popular” com “poucos precedentes desde a época da revolução russa de 1917, dirigida por V.I Lenin e Leon Trotsky” (Socialist Action, setembro de 1991). O próprio Mandel escreveu:
“Os (…) golpistas queriam severamente limitar ou mesmo suprimir as liberdades democráticas que existiam na realidade. (…) É por isso que o golpe tinha que ser combatido com todos os meios disponíveis. E é por isso que o fracasso do golpe deve ser saudado.”
Como todo bom kautskista, o maior critério de Mandel é a “democracia” abstrata. Os contrarrevolucionários no Kremlin e os seus apoiadores internacionais no FMI não estão tão preocupados com tais “liberdades”. As brutais medidas de austeridade requeridas pela restauração capitalista serão impostas às massas soviéticas com baionetas, não com discursos fajutos e apertos de mão no dia da eleição.
Os marxistas sabem que a democracia burguesa tem um conteúdo de classe. A desigualdade social real entre burgueses e proletários, entre o mendicante sem-teto e o presidente da General Motors, não é eliminada, mas ocultada, pela igualdade formal de direitos. As instituições parlamentares desempenham um importante papel em legitimar o poder da burguesia ao ocultar as políticas de classe dos governos capitalistas por trás de uma fachada de consentimento popular. A classe trabalhadora deve defender as liberdades democráticas em uma sociedade capitalista contra todas as tentativas de restringi-las ou suspendê-las. Entretanto, as conquistas da Revolução de Outubro pesavam bem mais que a democracia burguesa na escala do progresso humano. A abolição da propriedade privada sobre um sexto da superfície da Terra e a substituição da anarquia de mercado pelo planejamento econômico foram bases econômicas sobre as quais democracia poderia ser verdadeira para os milhões que não são donos de fábricas, bancos ou impérios de comunicação. Os hipócritas imperialistas “democráticos” odiavam os stalinistas não porque eles privavam os trabalhadores soviéticos de direitos, mas porque o poder deles dependia da sobrevivência das conquistas obtidas pelo proletariado russo em 1917. Nas palavras de Trotsky:
“Nós não devemos perder de vista nem por um momento sequer o fato de que a questão da derrubada da burocracia soviética para nós é subordinada à questão da preservação da propriedade estatal dos meios de produção na URSS (…).”
— Em Defesa do Marxismo
SU do lado errado das barricadas
As barricadas de agosto formaram uma linha divisória entre aqueles inclinados a restaurar o capitalismo e aqueles que queriam desacelerar as reformas de mercado e preservar, ao menos por um tempo, o status quo econômico e social. Socialdemocratas, liberais e todos aqueles que defendiam abertamente a restauração do capitalismo tiveram pouca dificuldade em entender o significado do golpe e da sua derrota. Os pseudotrotskistas, entretanto, precisam falsificar a realidade para justificar se esquivarem da defesa da União Soviética e se prostrarem diante da opinião pública liberal. É, portanto, extremamente importante para o SU “provar” que não havia diferenças fundamentais entre os organizadores do golpe e os seguidores de Yeltsin. Nat Weinstein, escrevendo em uma edição de setembro de 1991 de Socialist Action, opinou que:
“Enquanto há divisões entre aqueles no governo e no poder de Estado – desde Gorbachev, passando pelos organizadores do golpe, até Boris Shevardnadze – não é entre aqueles apoiando uma democracia capitalista de mercado de um lado e ‘comunistas linha-dura defendendo o socialismo’ de outro.”
Os líderes do golpe certamente não eram “comunistas defendendo o socialismo”, eles eram burocratas stalinistas tentando manter o poder e as prerrogativas do aparato central, que dependia da existência de uma economia estatizada, contra forças que haviam se declarado abertamente pelo capitalismo. Se o golpe não colocou os restauracionistas contra aqueles que resistiam à restauração, pelo que, de acordo com Weinstein, estavam brigando as frações rivais? Ele continua:
“Todas as principais correntes no aparato de Estado (…) apoiam a reintrodução do capitalismo.”
“A diferença fundamental entre elas era sobre se era possível continuar o processo de restauração capitalista por meios políticos ou se era necessária uma ditadura com punho de ferro para impor as medidas antioperárias que essa política exigia.”
Não é difícil ver para onde leva essa linha de raciocínio. Se os seguidores de Yeltsin e os líderes do golpe eram igualmente a favor do capitalismo, e se diferenciavam apenas sobre os meios políticos, a classe trabalhadora deveria apoiar a vitória da fração que buscava restaurar o capitalismo com métodos menos repressivos. Isso, como nós veremos, é o único argumento lógico oferecido por qualquer um dos pseudotrotskistas que se recusou a emblocar com os líderes do golpe. Acontece que a sua premissa principal – que os objetivos dos golpistas e de seus adversários eram os mesmos – é falsa.
Ernest Mandel concorda com Weinstein que Yeltsin representa uma ala da burocracia soviética, mas duvida que tanto o presidente russo quanto os líderes do golpe fossem ou pudessem restaurar o capitalismo:
“A burocracia soviética é muito vasta, suas conexões sociais são fortes, a teia de inércia, rotina, obstrução e sabotagem sobre a qual ela descansa é densa demais para que seja decisivamente enfraquecida por ações de cima (…).”
“Yeltsin, tanto quanto, se não mais que, Gorbachev, representa uma fração no alto escalão da burocracia. Yeltsin, por todo o seu passado e formação, é um homem do aparato. Seus dons como demagogo populista não lhe permitem a modificação do seu juízo (…).”
“As pessoas dirão que, ao contrário de Gorbachev, que continuou se considerando de uma forma vaga como um socialista, Yeltsin saiu abertamente pela restauração do capitalismo. Fatos são fatos. Mas profissões de fé não são o suficiente para nós como uma análise dos políticos. Nós temos que olhar o que acontece na prática e quais interesses sociais eles servem.”
“Desse ponto de vista, Yeltsin e seus aliados na liquidação da URSS (…) representam uma fração da burocracia distinta das assim chamadas forças essencialmente burguesas (…) embora eles possam se aproximar nas margens.”
— International Viewpoint, 3 de fevereiro
Assim, de um lado, Weinstein argumenta que toda a burocracia soviética buscava restaurar o capitalismo, enquanto, de outro, Mandel é cético de que alguma ala da burocracia, incluindo os elementos mais direitistas seguindo Yeltsin, tenham a vontade ou o poder para fazê-lo. Essas duas análises da burocracia soviética estão diametralmente opostas, e dariam origem a uma disputa inflamada em qualquer organização que levasse tais questões a sério. Se, de fato, Weinstein e Mandel continuam a viver alegremente sob o mesmo teto política, é somente porque as suas aparentes diferenças ocultam um denominador comum muito mais significativo.
Mandel e Weinstein concordam que o golpe de agosto e o seu desfecho não colocaram em jogo a questão da sobrevivência do Estado operário soviético. Eles coincidem em afirmar que a principal diferença política de Yeltsin com o Comitê de Emergência era que aquele queria preservas as liberdades democráticas. Assim, desde premissas opostas com relação à natureza e trajetória da burocracia soviética, Weinstein e Mandel chegam à mesma conclusão de fundo: apoiar o campo “democrático” de Yeltsin. E, por uma feliz coincidência, essa conclusão prática situa o SU ao lado da contente opinião pública liberal e socialdemocrata. Para os oportunistas, a análise da realidade objetiva funciona não como um guia para a ação, mas como uma racionalização para encobrir falhas programáticas. Qual racionalização se escolhe é um problema menor desde que o valor da posição seja o mesmo.
Os partidários de Yeltsin e os organizadores do golpe: conflito de interesses
Como todas as racionalizações, as de Weinstein e Mandel contêm elementos de verdade enfatizados para falsificar o quadro completo. É verdade, como poderia apontar Weinstein, que o Comitê de Emergência, ao contrário dos stalinistas do passado, não buscava justificar as suas ações com a retórica do socialismo. Nem se pode negar que a sua atitude em relação à propriedade coletivizada expressada em suas declarações públicas era ambígua: de um lado, eles expressaram preocupação com o crescente perigo ao “mecanismo econômico nacional integral que tem estado em formação por décadas” e quanto à ofensiva que está “em andamento contra os direitos do povo trabalhador (…) ao trabalho, educação, saúde, moradia e lazer” (New York Times, 19 de agosto de 1991). Mas por outro lado, eles se comprometeram em respeitar as diferentes formas de propriedade que haviam emergido na União Soviética, incluindo a propriedade privada, e a continuar a seguir o caminho da Perestroika.
Essa confusão se explica pelo fato de que os organizadores do golpe tinham abandonado qualquer aparência histórica progressiva. Muitos poucos dentre eles, muito provavelmente, acreditavam na superioridade da propriedade socializada, muito menos no “socialismo”. Escrevendo no começo dos anos 1930, Trotsky descreveu a burocracia stalinista como uma mistura heterogênea: ela incluía uma gama de cores desde os funcionários temporários completamente cínicos que iriam trair o Estado soviético na primeira oportunidade, até socialistas revolucionários sinceros; desde fascistas como Butenko até internacionalistas proletários como Ignace Reiss. Os anos Brezhnev, entretanto, viram a erosão de qualquer convicção socialista que a burocracia poderia reter. Conforme a economia soviética perdeu o seu ritmo de crescimento, complacência, cinismo e corrupção dominaram o aparato em todos os níveis. Essa corrosão foi personificada pelo próprio Brezhnev, com seu notório gosto por acumular belas casas de campo e carros esportivos estrangeiros. A única convicção ideológica que motivava a “linha-dura” era o patriotismo soviético: um compromisso em manter a posição da URSS como uma potência mundial. Esse “patriotismo” explica o caráter inegavelmente heterogêneo da oposição a Yeltsin, e a curiosa afinidade entre a velha guarda dos funcionários e os czaristas antissemitas: para ambos, manter um Estado russo forte é muito mais importante do que as relações de propriedade que o sustentam.
Mas uma análise marxista da casta que dominava a União Soviética não se baseia primariamente no que pensam os burocratas, muito menos no que eles dizem em público. A chave para explicar o comportamento político de diferentes classes e camadas sociais está na sua posição social objetiva e nos interesses materiais que daí derivam. Ao contrário da burguesia, a burocracia soviética nunca foi um grupo dono de propriedade. Em agosto de 1991, assim como no auge do poder de Stalin, os seus privilégios derivavam do seu papel como encarregados de uma economia de propriedade estatal, administrada de forma centralizada. Conforme o poder do centro recebeu crescentes ataques de nacionalidades rebeldes, burocratas que se afastavam e apoiadores do livre mercado, era natural que algumas seções do Estado central e do aparato do partido tentassem reassegurar suas prerrogativas. Esse foi o significado da luta pelo poder dentro do partido que precedeu o golpe de agosto, e da própria tentativa de golpe em si (veja a declaraçãoda TBI de setembro de 1991).
O que exige explicação não é o fato de que uma seção da burocracia stalinista ofereceu resistência, mas sim por que ela permitiu ser derrubada tão facilmente na maior parte da Europa Oriental, e porque a tentativa de contra-ataque da burocracia soviética, quando ela finalmente veio, foi tão atrasada, irresoluta e patética. A esclerose do stalinismo foi de fato muito mais avançada do que se havia pensado antes de 1989.
O status quo que o “bando dos oito” buscou preservar incluía algo mais valioso para os trabalhadores soviéticos e para os trabalhadores do mundo do que mil constituições ou parlamentos: a propriedade pública dos meios de produção. Ninguém poderia saber na manhã de 19 de agosto que as barricadas erguidas em defesa do status quo se provariam tão efêmeras quanto o foram. Mas como nós escrevemos antes do golpe:
“É possível que alguns setores de liderança da burocracia tentem em algum momento futuro impedir o processo de restauração capitalista. Se isso acontecer, seria nosso dever tomar o lado militar dos ‘conservadores’ contra os partidários de Yeltsin. A casta stalinista é incapaz de resolver os problemas que deram origem às ‘reformas’ para começo de conversa, mas pisar no freio poderia ao menos conseguir algum tempo.”
— 1917 No. 10
Ernest Mandel, que complacentemente nos assegura de que a burocracia stalinista ainda está no poder, também sustenta seu argumento com alguns fragmentos de verdade. Yeltsin de fato é uma criação do aparato, primeiramente ganhando notoriedade nacional como chefe do partido na cidade de Sverdlovsk (hoje, como na época do czarismo, Yekaterinbug) e depois se tornando o chefe do partido em Moscou. Um homem impertinente, com uma alta opinião de si mesmo, Yeltsin fez pouco da disciplina autocrática do partido imposta por Gorbachev e criticou publicamente o Secretário do Partido por não levar a perestroika e a glasnost longe o suficiente. A ruptura de Yeltsin com Gorbachev finalmente levou à sua demissão como cabeça do partido em Moscou e à sua expulsão do Politburo. Posteriormente ele repudiou o Partido Comunista como um todo.
Yeltsin sobreviveu politicamente só porque a sua reputação como crítico mais proeminente de Gorbachev permitiu-o se tornar-se um porta-voz para forças fora do partido. Yeltsin foi eleito presidente da República Russa, contra a vontade do partido, como um defensor desses elementos na Rússia e na URSS como um todo, que buscavam destruir o monopólio político do PCUS [Partido Comunista da União Soviética]. Quando ele apareceu num tanque do lado de fora do seu palácio presidencial para confrontar os organizadores do golpe, ele falou como um representante do capital estrangeiro, dos separatistas nacionais e dos mafiosos de Moscou, especuladores de câmbio e outros “empresários” que, junto com seus seguranças privados, compunham a maior parte da multidão que correu ao seu apoio. Mandel só pode pintar Yeltsin como um “homem do aparato” ignorando a sua transição para o campo do inimigo de classe.
A “privatização espontânea” e a burocracia
A afirmação de Mandel, de que a burocracia permanece no poder, contém também um elemento de verdade. Os milhões de indivíduos que constituíam a burocracia não desapareceram e muitos deles nem mesmo perderam seus empregos. O presidente ucraniano, Leonid Kravchuk, e seu par cazaque Nursultan Nazarbayev, eram chefes do partido stalinista que se tornaram fervorosos nacionalistas apenas depois de agosto. Não é surpresa que muitos remanescentes do antigo regime, e os escalões burocráticos mais baixos nos quais eles se apoiavam, estejam disputando por posições de influência na nova ordem política e econômica. Se uma classe capitalista completamente desenvolvida, armada com um código legal e um aparato repressivo de Estado para proteger a propriedade privada fossem uma precondição para a restauração, o capitalismo nunca poderia ter sido restabelecido em nenhuma economia coletivizada.
O New York Times de 27 de dezembro de 1991 citou Graham Alison, um especialista em União Soviética, sobre o novo papel desempenhado por muitos diretores de firmas estatais:
“‘Você é o gerente de uma empresa estatal, digamos uma companhia aérea com 10 mil funcionários, e você começa a imaginar que não há ninguém acima de você’. Ele disse que não se recebem ‘ordens quaisquer, e o ministro ao qual você se reportava desapareceu. Você começa a imaginar que a propriedade é sua, e já que você não está recebendo suprimentos, você tem que pensar em si mesmo e nos seus funcionários. Algumas vezes você consegue que um estrangeiro compre metade da operação em uma joint-venture. Isso é privatização espontânea’.”
O International Viewpoint do SU (20 de janeiro) contém uma entrevista memorável com Yuri Marenich, acadêmico e delegado do Conselho (Soviete) dos Deputados do Povo de Moscou. Marenich descreve o processo pelo qual oficiais locais, partidários de Yeltsin, se apropriaram de grande parte dos imóveis e outras propriedades públicas:
“Eles lançaram suas campanhas eleitorais com o slogan: ‘tendo alcançado o poder, nós vamos desmonopolizar a propriedade e administrar a economia através do mercado’. Mas, uma vez no poder para administrar a propriedade pública, eles se encontraram sob uma tremenda tentação para agarrar essa propriedade eles próprios. Isso foi tornado fácil pela possibilidade de combinar empregos nas instituições governamentais com postos em firmas privadas lidando com o governo.”
“Em suma, aqueles no comando de supervisionar a privatização simplesmente transferiram a propriedade do distrito para companhias que eles próprios encabeçavam.”
“Todos os membros do comitê executivo dos sovietes estabeleceram companhias privadas que eles dirigiam. Uma firma tomou o serviço de informação soviético; outra os seus serviços legais, uma terceira tomou os imóveis, suas vendas e seus direitos de arrendamento no território do distrito (…).”
“É bastante simples. Desde 1930 nós tivemos um sistema de transferência de propriedade sem pagamento. Mas era tudo propriedade estatal e a transferência era de uma agência ou empresa estatal para outra. Todas as partes estavam agindo em nome de um único proprietário, o Estado. Agora, entretanto, nós também temos proprietários privados. Mas eles usam o mesmo procedimento para transferir propriedades do soviete do distrito, um órgão estatal, para uma companhia privada (…).”
Marenich especula que um padrão similar está sendo repetido ao redor do país. Muitos na antiga burocracia provavelmente irão encontrar um lugar como membros de uma nova classe capitalista pós-soviética. Aqueles que vão substituir os burocratas stalinistas vão sem dúvida continuar a operar com os mecanismos da propriedade pública por algum tempo.
A restauração do capitalismo deve obviamente vir como resultado de um processo no qual elementos de continuidade do modo anterior de vida econômica e social sobrevivam, conforme um burguesia nativa se forme a partir de fragmentos de outras classes e camadas sociais. Poderosas forças centrífugas estiveram trabalhando na economia soviética anos antes do triunfo de Yeltsin, em agosto. Mas a ênfase de Mandel nos elementos de continuidade obscurece o fato de que a derrota do golpe marcou uma mudança qualitativa. Enquanto o centro em Moscou pudesse exercer controle administrativo sobre a economia, burocratas locais e regionais eram obrigados a trabalhar dentro (ou em torno) do sistema organizado de cima; os seus apetites pelas prerrogativas de donos de propriedade encontravam um obstáculo objetivo. Apenas depois que o poder central foi definitivamente quebrado, em agosto, eles ficaram livres para embarcar no caminho da “privatização espontânea”. Os eventos de agosto fizeram soar o sino da morte do Estado operário soviético. Todas as garantias de Weinstein e Mandel de que nada fundamental mudou são, no fim, nada mais do que tentativas elaboradas de evitar responsabilidade por ter estado ao lado da contrarrevolução.
Workers Power: defensores da União Soviética em palavras, seguidores de Yeltsin nos atos
O grupo britânico Workers Power e seus companheiros na Liga por uma Internacional Comunista Revolucionária (LRCI) [hoje Liga pela Quinta Internacional, L5I] são bem mais francos do que o SU em reconhecer o significado do golpe abortado. Em princípio relutantes em admitir que o Estado operário soviético houvesse encontrado seu fim em agosto, eles inicialmente descreveram a situação pós-golpe como uma de “duplo poder”, na qual Gorbachev, representando a burocracia, continuava a rivalizar pela autoridade de Estado com os restauracionistas ao redor de Yeltsin. Quando, entretanto, o “polo Gorbachev” capotou com um peteleco de Yeltsin, em dezembro, o Workers Power finalmente reconheceu a realidade e concedeu que “A União Soviética está morta. O espectro que assombrou os capitalistas por mais de setenta anos foi posto para dormir”. (Workers Power, janeiro).
O Workers Power também enxerga a conexão entre a morte do Estado operário soviético e a vitória de Yeltsin sobre o golpe de agosto. Uma declaração de setembro de 1991 do Secretariado Internacional da LRCI afirma que a fração burocrática, representada pelo Comitê de Emergência, “esperava, através das suas ações de 19 de agosto, defender os seus privilégios com base em relações de propriedade pós-capitalistas” (Workers Power, setembro de 1991, ênfase adicionada). A declaração prossegue descrevendo as forças lideradas por Yeltsin da seguinte forma:
“A antiga camada de oposicionistas democráticos e nacionalistas (…) perdeu quase toda crença em reformar o ‘socialismo realmente existente’ e se orientava para uma democracia ocidental e uma economia de mercado como ideais. Estes – os antigos apoiadores de Gorbachev – ficaram desiludidos pelo projeto utópico de Gorbachev em um ‘socialismo de mercado’ e, irritados com as vacilações e compromissos de seu líder com os conservadores, atraídos a prestar serviço ao imperialismo como os restauradores do capitalismo na URSS.”
“O que a coalizão de forças liderada por Yeltsin representa politicamente? Yeltsin, Shevardnadze, e de fato todos os capangas militares e políticos do presidente russo, representam uma fração da burocracia que abandonou a defesa dos seus privilégios de casta e a sua fonte – o Estado operário degenerado – em busca de se tornarem os membros chave de uma nova classe dominante burguesa.”
Assim, de acordo com a LRCI, a identidade das forças em luta no confronto de agosto é clara: de um lado, o setor da burocracia soviética que, ainda que apenas para manter seus privilégios, buscou defender o Estado operário soviético; do outro lado, uma coalizão de nacionalistas, intelectuais “democráticos” e burocratas, que buscavam destruir o Estado operário e restaurar o capitalismo. Nesse confronto, o Workers Power não hesitou em tomar um lado… com aqueles que buscavam destruir o Estado operário! A mesma edição de Workers Power proclamou que “nós tínhamos que estar junto, e de fato na linha de frente, da luta para derrotar o golpe”. Para sublinhar esse ponto, a mesma edição tem um artigo chamado “A música deles parou de tocar”, que ridiculariza os “apoiadores do golpe na esquerda”. Para que ninguém duvide da seriedade da LRCI nesse ponto, eles recentemente romperam relações com um pequeno grupo na Califórnia, chamado Tendência Trotskista Revolucionária, que se recusou a apoiar os seguidores de Yeltsin contra o Comitê de Emergência.
Por qual milagre de contorcionismo ideológico pode a LRCI encaixar essa posição nas suas reivindicações de ser comunista, trotskista e defensora da União Soviética? A declaração do Secretariado Internacional da LRCI continua:
“Grandes questões são levantadas por esses eventos. A perspectiva da revolução política era irreal, uma perspectiva utópica? A resistência ao golpe dos conservadores era, em si, contrarrevolucionária? Teria uma reviravolta burocrática bem sucedida dado à classe trabalhadora um espaço para respirar? A resposta a todas essas perguntas é não!”
“Em que sentido pode-se dizer que o CESE [Comitê de Emergência] ‘defendeu as relações de propriedade planificadas’? Apenas nisso: eles resistiram à sua abolição somente no sentido em que estas eram o ‘hospedeiro’ da qual eles eram o parasita. Entretanto, esse parasitismo social massivo foi a principal causa da doença mortal da economia centralizada burocraticamente, da consequente desilusão das massas nela.”
“Através da sua ditadura totalitária, os stalinistas também eram um obstáculo absoluto à autoconsciência e auto-organização do proletariado e de sua habilidade de cristalizar uma nova vanguarda, que era a única capaz de ter não meramente preservado, mas renovado as ‘conquistas de Outubro’.”
— Workers Power, setembro de 1991
É axiomático para os trotskistas que os stalinistas são um obstáculo à auto-organização da classe trabalhadora e agiu como um parasita sobre a economia planificada, a qual eles arruinaram através da sua administração incompetente e que em última instância se mostraram incapazes de defender. É por isso que uma revolução política era necessária na URSS: para derrubar os stalinistas e preservar a economia planificada.
O que deveria ter sido feito?
Mesmo um agrupamento revolucionário relativamente pequeno poderia ter tido um grande impacto durante aqueles críticos dias em agosto, quando os fracos e vacilantes golpistas enfrentaram a mistura heterogênea que apoiava Yeltsin. A fraqueza e desorganização evidente em ambos os lados apresentou uma oportunidade para um grupo trotskista comprometido com a preservação da propriedade nacionalizada sob a direção de órgãos democráticos de poder dos trabalhadores. O objetivo tático imediato naqueles primeiros dias teria sido organizar um ataque para dispersar as poucas centenas de apoiadores fracamente armados de Yeltsin, dentro e em torno do palácio presidencial russo.
Uma iniciativa determinada contra os contrarrevolucionários teria ganhado o apoio amplo da classe trabalhadora, que já estava cheia da Perestroika. Isso também teria sido visto com simpatia por uma considerável parcela das forças armadas, e poderia ter galvanizado apoio ativo dos elementos pró-socialistas. Os homens cinzentos que organizaram o golpe teriam pouca escolha a não ser aceitar essa “ajuda” que, entretanto, ao ser conduzida em nome do poder proletário, acabaria ameaçando também os interesses deles. Após a dispersão dos apoiadores de Yeltsin poderia ser feito um chamado por representantes de cada fábrica, quartel ou bairro operário para se reunirem no palácio presidencial para criar um soviete de verdade, democrático, em Moscou.
O sucesso de uma iniciativa como essa poderia ter lançado uma faísca para lutas de massas dos trabalhadores por toda a URSS, para enterrar os restauracionistas capitalistas. Isso também enfraqueceria ainda mais o punho do aparato do PCUS. Um bloco militar com os golpistas contra Yeltsin não se contrapunha a uma luta pela democracia soviética. Assim como o bloco de Lenin com Kerensky contra o General Kornilov, em agosto de 1917, preparou a derrubada do Governo Provisório burguês, uma luta contra Yeltsin na qual formações proletárias independentes apontassem suas armas na mesma direção que os golpistas, teria energizado as forças defendendo uma revolução política e bloqueado os esforços dos líderes do golpe, Yanayev, Pugo e companhia, de ressuscitar os seu sistema de repressão política.
Não há como garantir de antemão que um ataque contra Yeltsin teria sido bem sucedido. Entretanto, mesmo uma derrota sangrenta seria preferível a sucumbir sem luta. Milhões de trabalhadores teriam recebido uma exposição do programa do trotskismo. A tentativa de derrotar a restauração do capitalismo e de lutar pelo poder direto dos trabalhadores permaneceria como um exemplo e um importante foco de debate na consciência em desenvolvimento da classe trabalhadora russa. Mas nas circunstâncias reais, a derrota de forma alguma era inevitável. A intervenção de um pequeno, mas coeso grupo, armado com uma orientação política correta, poderia muito bem ter alterado a correlação de forças contra a contrarrevolução.
Infelizmente, a classe trabalhadora soviética não desempenhou nenhum papel político independente. A luta pelo poder foi entre os parasitas stalinistas, que buscavam preservar seu hospedeiro, e os restauracionistas apoiando Yeltsin, que queriam destruí-lo. O Workers Power reclama que os stalinistas defendem a propriedade coletivizada “apenas” como um parasita. Mas a pequena palavra “apenas” obscurece a convergência de interesses que, durante aqueles três dias de agosto, foi uma questão de vida ou morte para o Estado operário soviético. Um parasita não pode sobreviver sem seu hospedeiro e, portanto, tem um interesse distinto em preservá-lo. Se, na hora de perigo mortal, o parasita está armado e o hospedeiro não, a sobrevivência do hospedeiro depende da vitória do parasita. Que os stalinistas arruinaram a economia planificada e que não se podia contar com eles para defendê-la no futuro não altera o fato de que, ao buscar preservar os status quo, os seus objetivos, nesse ponto, coincidiam com os interesses da classe trabalhadora. Quando Trotsky falou da defesa incondicionalda União Soviética, ele não queria dizer que a Quarta Internacional deveria defender a URSS só se os stalinistas deixassem o poder, ou se eles se tornassem mais competentes ou mais puros de coração.
Yeltsin era o maior perigo
O Workers Power emblocou com os apoiadores de Yeltsin porque considerou os stalinistas um inimigo maior para classe trabalhadora do que os restauracionistas capitalistas. Isso é revelado na edição de setembro de Workers Power:
“a única força capaz de defender a propriedade estatal (…) é a classe trabalhadora. E ela não pode agir quando as suas greves são proibidas, quando ela está sujeita a toques de recolher e a censura política. É muito melhor que as incipientes organizações de trabalhadores na URSS aprendam a nadar contra a corrente do restauracionismo burocrático do que sejam amontoadas no ‘espaço para respirar’ de uma cela de prisão.”
O espaço “democrático” para respirar que o Workers Power tanto valoriza provavelmente não vai durar muito sob Yeltsin, como o próprio WP admite: “Uma vez instalado no poder e buscando cristalizar uma nova classe de exploradores, mesmo direitos democráticos amplos e consistentes para as massas vão se tornar intoleráveis.” (Idem.). Então a única diferença entre os stalinistas e os partidários de Yeltsin com relação às liberdades democráticas é o tempo necessário para aboli-las. Os stalinistas, se tivessem prevalecido, teriam um Estado policial já pronto para usar contra os trabalhadores. Os partidários de Yeltsin, por outro lado, precisam de mais tempo para consolidar um aparato repressivo e ainda não podem se livrar de muitas liberdades democráticas.
O Workers Power reconhece que o capitalismo vai significar “pobreza, preços altos, desemprego, trabalho exaustivo, opressão social e ameaça de guerra” (Workers Power, janeiro) e também “uma expropriação sem precedentes dos ‘frutos do trabalho’ dos trabalhadores rurais e urbanos” (Workers Power, dezembro de 1991). A repressão política stalinista é mais nociva para a classe trabalhadora como força de luta do que o caos social e a destituição de massas da restauração capitalista? Para justificar a sua decisão de apoiar Yeltsin contra os organizadores do golpe, o Workers Power deve responder essa pergunta afirmativamente. Mas tal resposta foge de todo o conjunto dos escritos de Trotsky sobre a questão russa. Trotsky insistiu que luta para derrubar os oligarcas stalinistas não era contraposta, mas sim baseada (e em última instância subordinada), à defesa da propriedade coletivizada. É por isso que o Workers Power, que se coloca enquanto uma tendência trotskista ortodoxa, não pode declarar abertamente a sua posição verdadeira: que a defesa das conquistas sociais da Revolução Russa era, para eles, subordinada à derrubada da burocracia stalinista. Mas a posição deles nos eventos de agosto não permite outra conclusão.
Trotsky definiu o centrismo como revolucionário em palavras e reformista nos atos. O Workers Power oferece um exemplo puro desse fenômeno. Enquanto eles frequentemente analisam eventos e forças políticas de forma precisa, os seus impulsos oportunistas para adaptar sua política à opinião pública radical/socialdemocrata os impede de traduzir essa análise em um programa para a ação, e às vezes os leva a conclusões práticas que contradizem os seus próprios raciocínios. Eles ainda precisam aprender com Ernest Mandel e o SU que a lacuna entre a teoria oportunista e a prática oportunista só pode ser resolvida por representações falsas da realidade. Para preencher essa lacuna, o SU afirma que não havia diferenças entre os partidários de Yeltsin e o Comitê de Emergência quanto às formas de propriedade – apenas sobre o uso de métodos democráticos ou autoritários. O Workers Power, por outro lado, reconhece que os dois campos rivais representavam objetivamente formas de propriedade opostas, mas de qualquer forma lançam seus esforços com Yeltsin, e tenta racionalizar essa contradição com uma série de non sequiturs “ortodoxos”.
Espartaquistas: “Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”
A Liga Espartaquista de James Robertson e os seus apêndices de além-mar na Liga Comunista Internacional (LCI) há muito conclamam que, dentre todos os grupos que reivindicam o trotskismo no planeta, só eles verdadeiramente defendem a União Soviética. Entretanto, essa postura contrasta com a sua completa confusão sobre a vitória contrarrevolucionária de Yeltsin. A edição de janeiro/fevereiro de Workers Hammer, a publicação da filial britânica da LCI, contém uma polêmica com Gerry Downing, da Liga Internacionalista Revolucionária (RIL), intitulada “RIL: Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”, que condena a RIL por permanecer neutra no golpe:
“para a RIL, não existe diferença entre uma ala da burocracia de um lado e uma ala do imperialismo mundial e da restauração capitalista de outro. E claro, se o stalinismo é igualado com o imperialismo, então a possibilidade de um bloco militar com um setor da burocracia contra os restauradores do capitalismo é necessariamente excluída, já que no seu ponto de vista, isso acabaria sendo um bloco contra a restauração do capitalismo com ‘restauradores do capitalismo’.”
Dificilmente alguém suspeitaria que a LCI, assim como esses centristas que eles censuram, também se recusaram a tomar um lado no golpe. Se o Workers Hammer deseja que alguém explique sua posição de neutralidade, nós sugerimos que comece pela sua publicação irmã nos Estados Unidos, Workers Vanguard (WV), que respondeu ao golpe na sua edição de 30 de agosto da seguinte forma:
“Mesmo antes do golpe, muitos dos trabalhadores mais avançados que se opunham aos planos de Yeltsin, de realizar uma completa privatização, e às reformas de mercado de Gorbachev, olhavam para a chamada linha-dura ‘patriótica’ da burocracia. Não há mais espaço para tais ilusões.”
“O seu programa declarado [dos golpistas] era a lei marcial para impedir a URSS de entrar em colapso, o que significa perestroika sem glasnost: a introdução do mercado, mas não tão rápido, e de boca calada (…).”
“Durante o golpe, um conselho de trabalhadores em Moscou (…) lançou um chamado para: ‘Formar milícias de trabalhadores para a preservação da propriedade socializada, para a preservação da ordem social nas ruas de nossas cidades, pelo controle da execução de ordens e instruções do Comitê de Estado para a Situação de Emergência’.Não houve uma palavra de crítica ao GKCHP [Comitê de Emergência]. Um chamado por milícias de trabalhadores para esmagar as mobilizações contrarrevolucionárias de Yeltsin certamente estava na ordem do dia. Mas se o Comitê de Emergência tivesse consolidado o poder, ele teria tentado dispersar quaisquer dessas milícias de trabalhadores que, de outra forma, teriam inevitável e rapidamente escapado do seu controle político.”
Prodígios de interpretação seriam necessários para compreender as passagens acima como sugerindo outra coisa que não “Nem o Comitê do golpe, nem Yeltsin”. E nenhuma quantidade de estilo retórico bombástico pode encobrir o fato de que os argumentos dos espartaquistas parecem muito com os dos mandelistas, de que não havia nenhum conflito essencial entre Yeltsin e o Comitê de Emergência. Como Mandel, os espartaquistas buscam racionalizar a sua falha em tomar um lado reivindicando que a derrota do golpe manteve o caráter de classe do Estado inalterado. Para a LCI, o Estado soviético ainda existe e Boris Yeltsin, mesmo agora, preside sobre um Estado operário degenerado.
Mas, ao contrário de Mandel, os espartaquistas não podem simplesmente reivindicar um posição de condenação igual dos dois lados. Até agosto de 1991, eles frequentemente suportavam a chacota de toda a esquerda por reivindicar um bloco militar com os stalinistas contra as forças restauracionistas. Os espartaquistas corretamente tomaram o lado do regime de Jaruzelski em seu confronto de 1981 com os contrarrevolucionários do Solidariedade, e deu apoio militar às tropas soviéticas combatendo a insurgência reacionária apoiada pelo imperialismo no Afeganistão. Os espartaquistas foram, de fato, tão entusiastas sobre tomar o lado dos stalinistas, que eles começaram a confundir a linha de divisão entre apoio militar e político. A neutralidade deles em agosto representa, portanto, um desvio radical das suas afirmações inoportunas de serem os últimos e melhores defensores da União Soviética.
Neutralidade com uma consciência pesada
Por esse giro não ter base programática real, a liderança dos espartaquistas tem estado relutante em reconhecer que uma mudança importante na linha política aconteceu. Portanto, eles insistem, em desafio a toda lógica e em desacordo com os seus pronunciamentos escritos, que eles não foram neutros. Eles apresentam sua posição como perfeitamente consistente com posições anteriores, cercam-se com uma variedade de qualificações, formulações ambíguas e distorções factuais. Para obscurecer a semelhança evidente entre muitos dos seus argumentos e aqueles de outros pseudotrotskistas reformistas e centristas, os espartaquistas precisam aumentar o volume das polêmicas. Mas um volume mais alto só torna mais audível o som de discórdia que emana da sede de Robertson, em Nova York.
Até onde os espartaquistas lançam qualquer argumento coerente, eles ficam em volta da afirmação altamente dúbia de que o Comitê de Emergência não realizou nenhuma tentativa de dispersar a ralé contrarrevolucionária que se reuniu para defender o palácio presidencial de Yeltsin. Assumindo, pelo bem do argumento, que essa afirmação seja verdade, isso significaria que, ou os líderes do golpe não estavam realmente em conflito com Yeltsin, ou que eles se opunham a Yeltsin, mas eram fracos e indecisos demais para agir contra ele. Os espartaquistas nunca são claros sobre qual dessas interpretações eles defendem. A sua afirmação repetida de que a luta pelo poder do Comitê de Emergência representou um “golpe perestroika” aponta para a primeira. A caracterização que eles fazem do golpe como “patético” e a de seus líderes como “o bando dos oito que não sabe atirar direito”, por outro lado, se inclinam para a segunda. Qualquer das conclusões, entretanto, leva a uma desesperançosa teia de contradições.
Como, por exemplo, pode a afirmação de que ambos Yeltsin e o Comitê de Emergência eram igualmente a favor da penetração do mercado ser encaixada com a afirmação, no mesmo artigo, de que “O povo trabalhador na União Soviética e, de fato, os trabalhadores do mundo, sofreram um desastre sem paralelo” e que o fracasso do golpe “liberou uma maré contrarrevolucionária pela terra da Revolução de Outubro” (WV, 30 de agosto)? Como poderia uma maré contrarrevolucionária ter sido liberada a não ser que um grande obstáculo a ela tivesse sido removido? As forças que os líderes do golpe representavam eram tal obstáculo? Ou eles teriam lançado uma maré contrarrevolucionária similar se tivessem vencido? Nesse caso, como essa derrota foi um “desastre sem paralelo” para a classe trabalhadora? O Workers Vanguard não tem como responder a essas perguntas.
A afirmação do Workers Vanguard, de que o Comitê de Emergência defendia “perestroika sem glasnost”, ecoa os argumentos de Weinstein e Mandel. Todos eles concordam que Yeltsin e os líderes do golpe se diferenciavam somente sobre a questão dos direitos democráticos, com os últimos querendo impor o capitalismo por meio de uma “ditadura com punho de ferro”. Um seguidor pensativo de Robertson pode se perguntar se os trabalhadores soviéticos não estariam em uma posição melhor para se organizarem contra a restauração com a glasnost do que sem ela. É claro, isso rapidamente leva ao apoio ao campo “democrático” de Yeltsin. Ao contrário do SU, o Workers Vanguard não segue a linha desse argumento até a sua conclusão lógica.
Então há o segundo conjunto de desculpas para a neutralidade: que o Comitê de Emergência de fato representou aqueles elementos na burocracia com interesses que conflitavam fundamentalmente com aqueles do campo de Yeltsin, mas eles eram muito vacilantes e inaptos para parar os partidários de Yeltsin. Primeiro, deve-se notar que esse julgamento foi feito com o benefício valioso da análise a posteriori: os desenvolvimentos se deram tão rapidamente que os primeiros artigos de WV sobre o golpe foram publicados alguns dias depois que seu destino já havia sido decidido. Os espartaquistas afirmam ter sabido de antemão que o golpe iria fracassar tão miseravelmente? Era, havia muito, evidente que o stalinismo soviético tinha alcançado o fim da sua energia, e não podia de forma alguma restaurar o status quo anterior a Gorbachev. Mas essa análise geral não era suficiente para inferir a exata correlação de forças em 19 de agosto. Esta só poderia ser testada em ação. Mesmo se uma vitória dos líderes do golpe representasse somente uma desaceleração no ritmo da restauração, isso por si só era uma base adequada para um bloco militar. Os trotskistas não escolhem lados de acordo com a decisão, o refinamento tático ou a força de campos opostos, mas com base no seu caráter político. Os golpistas ou tinham um interesse em parar Yeltsin, ou não tinham. Mas os espartaquistas querem dos dois jeitos: eles, ao mesmo tempo, afirmam que o Comitê de Emergência nunca teve a intenção de parar Yeltsin para começo de conversa, e os critica por não fazer o serviço direito.
As críticas dos seguidores de Robertson ao Comitê de Emergência ganham um tom ainda mais bizarro quando eles condenam o “bando dos oito” por falhar em mobilizar a classe trabalhadora contra Yeltsin:
“O ‘bando dos oito’ não apenas não mobilizou o proletariado, eles ordenaram a todos que ficassem no trabalho.”
“O ‘bando dos oito’ foi incapaz de repelir Yeltsin em sua patética desculpa para um golpe, porque esse era um ‘golpe perestroika’; os golpistas não queriam lançar mão das forças que poderiam ter derrotado os contrarrevolucionários mais extremados, pois isso poderia ter levado a uma guerra civil se os partidários de Yeltsin realmente reagissem.”
— Workers Hammer, janeiro/fevereiro
O mesmo artigo relembra orgulhosamente a posição espartaquista sobre o Solidariedade, de uma década antes:
“A Polônia de 1981 levantou a mesma questão que na União Soviética hoje, mas no caso anterior os stalinistas realmente tomaram medidas para temporariamente suprimir a contrarrevolução. Diante desse confronto era impossível ficar de braços cruzados (…).”
No caso soviético, os espartaquistas elevaram o ficar de braços cruzados em uma arte. Mas a comparação com a Polônia de 1981 vem a calhar. Nós não lembramos de Jaruzelski mobilizando a classe trabalhadora polonesa contra Walesa. Os espartaquistas parecem esquecer que os stalinistas no poder raramente mobilizam a classe trabalhadora politicamente, porque a própria existência de uma casta burocrática é garantida através do monopólio do poder político. Tornar o apoio militar aos stalinistas combatendo os restauracionistas como algo condicionado a que eles mobilizem a classe trabalhadora é equivalente a exigir que eles deixem de ser stalinistas.
Em outras partes da mesma polêmica, o Workers Hammer dá a entender que eles teriam apoiado quaisquer medidas que o “bando dos oito” tivesse tomado contra Yeltsin:
“Chamar os trabalhadores a varrer as barricadas de Yeltsin teria significado um bloco militar com qualquer das forças do golpe que se movimentasse para esmagar a ralé contrarrevolucionária (…). Contra o terceiro-campismo da RIL nos eventos de agosto, nós escrevemos: ‘em uma luta armada que coloque os abertamente restauracionistas contra os elementos recalcitrantes da burocracia, a defesa da economia coletivizada estaria posta na agenda quaisquer fossem as intenções dos stalinistas. Os trotskistas entrariam em um bloco militar com ‘a seção termidoriana da burocracia contra o ataque aberto da contrarrevolução capitalista’, como Trotsky postulou no Programa de Transição de 1938’”.
A repressão de Jaruzelski em 1981 não envolveu luta armada porque o Solidariedade não ofereceu resistência armada. A Lei Marcial foi imposta através de uma série de medidas policiais. Os espartaquistas parecem estar sugerindo aqui que eles teriam emblocado com o Comitê de Emergência se ele tivesse se movimentado mais decisivamente para forçar uma Lei Marcial. Por essa lógica, o apoio militar se torna condicional à firmeza e habilidade das táticas stalinistas, e não ao caráter social dos stalinistas, os alvos políticos da sua ação e as consequências objetivas da sua vitória ou derrota. Ou, mais precisamente, os espartaquistas julgam os objetivos políticos e o caráter social da “linha-dura” stalinista pelo seu comportamento no golpe.
O argumento tem uma qualidade circular: o Comitê de Emergência não tomou medidas adequadas contra Yeltsin porque eles não tinham diferenças fundamentais com ele. Como sabemos que eles não tinham diferenças fundamentais? Porque eles não tomaram medidas adequadas. Em outras palavras, esqueça o fato de que a maioria da burocracia tinha um interesse objetivo em preservar o Estado do qual eles derivavam seus privilégios e prestígio; esqueça também que toda a luta intrapartidária que precedeu a tentativa de golpe, na qual Gorbachev ficou sob crescente ataque por dar terreno demais para Yeltsin e os nacionalistas; esqueça, em poucas palavras, que a tentativa de golpe por si só era um ataque direcionado contra os restauracionistas de Yeltsin. Os espartaquistas tratam os motivos dos stalinistas como opacos, e o golpe como um evento sem contexto ou cenário prévio.
Os golpistas foram atrás de Yeltsin?
A eficiência das táticas dos líderes do golpe é uma questão de importância secundária. Mas o Comitê de Emergência de fato tentou se movimentar contra Yeltsin? Nos dias que se seguiram à derrota do golpe, relatos vieram à tona de que a divisão elite de comando da KGB, conhecida como Grupo Alpha (a mesma unidade que assassinou o presidente afegão Hafizullah Amin em 1979), recebeu ordens de atacar o palácio presidencial de Yeltsin, mas se recusou a obedecer a ordem. Essa versão dos eventos foi primeiramente relatada pelo próprio Yeltsin e depois confirmada pelos oficiais do Grupo Alpha. Os espartaquistas foram muito longe para desmerecer esses relatos. O Workers Vanguard de 6 de dezembro contém um artigo intitulado “Porque Eles Não Foram Atrás de Yeltsin – União Soviética: o Raio X de um Golpe”. O artigo cita um texto de Robert Cullen, do New Yorker de 4 de novembro de 1991, que descredita a versão dos eventos dada pelos oficiais envolvidos: “As entrevistas do Grupo Alpha no pós-golpe, de fato, só tem uma coisa em comum: em cada caso, o oficial que está respondendo tenta assumir o crédito por ser o herói cuja recusa em obedecer as ordens frustrou o golpe.” O “raio x” do Workers Vanguard confia pesadamente em trechos dos interrogatórios dos organizadores do golpe depois da sua prisão, publicados em Der Spiegel, no qual todos negam ter emitido ordens para atacar o palácio presidencial de Yeltsin. É peculiar que o Workers Vanguard seja tão cético sobre as afirmações dos oficiais do Grupo Alpha, mas tão crédulo sobre as negativas dos organizadores do golpe enquanto estes se preparavam para ir a julgamento por suas vidas.
O Workers Vanguard, além disso, cita muito seletivamente o texto de Cullen do New Yorker. Cullen relata ao menos uma tentativa do Grupo Alpha, apoiada pelas unidades paraquedistas, de avançar sobre o palácio presidencial. A primeira tentativa, de acordo com Cullen, fracassou quando a multidão pró-Yeltsin cercou o comboio de militare que se deslocava para sua posição e um chefe-militar pró-Yeltsin, o general Constantine Kobets, encontrou o comandante dos paraquedistas e persuadiu-o a não atacar. Cullen relata que esse revés não impediu que o Comitê de Emergência tentasse montar um segundo ataque:
“Informações vazadas, vindas do palácio presidencial, sugerem que os conspiradores estavam desesperadamente tentando encontrar unidades capazes de, ao mesmo tempo, tomar o prédio e dispostas a seguir a ordem de fazê-lo (…). ‘Eu sei que havia um pequeno grupo se reunindo no Ministério da Defesa considerando a realização do plano para tomar o prédio’, disse-me Kobets.”
O segundo ataque nunca se materializou. Cullen acrescenta:
“Depois do seu fracasso final, conclusivo, várias fontes ofereceram várias explicações para a impotência dos conspiradores (…). Todas as explicações, apesar de variadas e contraditórias, tinham um ponto em comum: o exército soviético havia se recusado a derramar sangue em nome da conspiração.”
Então, de fato, a afirmação dos espartaquistas de que o Comitê de Emergência não tentou nenhuma medida concreta contra os seguidores de Yeltsin sofre carência de uma fonte crível que seja para sustentá-la.
A vitória de Yeltsin: triunfo contrarrevolucionário
Os detalhes do que aconteceu durante o golpe ainda são um pouco obscuros. Mas seria um erro contrapor a timidez e a incompetência dos conspiradores à recusa dos seus subordinados em obedecer a suas ordens. As duas explicações são complementares, não mutualmente excludentes. Os homens no Comitê de Emergência não eram stalinistas-modelo dos anos 1930. A sua força de vontade estava comprometida pelo fato de que eles estavam suficientemente desmoralizados para aceitar a inevitável perda de controles centrais e de dar às forças de mercado um escopo mais amplo. A diferença deles com Yeltsin era que eles defendiam “reformas” de mercado dentro do sistema geral de domínio burocrático. No momento em que eles decidiram agir em defesa do sitiado aparato central de Estado, foi em um estado de decadência já tão avançado que eles não tinham mais o apoio inquestionável das forças armadas. Esses fatores alimentaram um ao outro, levando à derrota de agosto. Os espartaquistas dão ênfase às óbvias afinidades entre o Comitê de Emergência e Yeltsin para poderem obscurecer o fato de que o seu conflito desembocou em uma luta pelo destino do poder de Estado soviético.
O aparato stalinista, que era o esqueleto do domínio burocrático, foi abalado para sempre com a derrota do golpe. Os espartaquistas, que se recusaram a emblocar com os stalinistas na sua última tentativa de manter os “portões da contrarrevolução” fechados, agora buscam racionalizar esse lapso de julgamento argumentando que a antiga União Soviética ainda é (severamente enfraquecida e gravemente em risco) um Estado operário. Isso lembra as garantias dadas pelo dono de uma loja de animais, no programa de humor Monty Python, para um cliente que recentemente havia adquirido um papagaio que permanecia imóvel e sem vida no fundo da gaiola. Quando o cliente exige um reembolso, o dono da loja insiste que o papagaio não está morto, apenas descansando, tirando uma soneca, em um estado suspenso de animação, etc. [assista aqui: http://youtu.be/GSC6RayVSqI].
Os seguidores de Robertson meramente afirmaram a sua posição de que a ex-URSS permanece um Estado operário sem tentar argumentar seriamente nesse sentido. Em fóruns públicos e em pessoa, eles oferecem um leque de explicações, algumas vezes contraditórias entre si.
Primeiro, eles apontam o fato de que a maior parte da antiga economia soviética ainda não foi privatizada e permanece formalmente nas mãos do Estado. O capitalismo não pode ser restaurado por decreto governamental. A sua restauração envolve desfazer estruturas, formas organizativas e hábitos de vida construídos nos últimos setenta anos. Em novembro de 1937, Trotsky assinalou que:
“Nos primeiros meses de poder soviético, o proletariado governava na base de uma economia burguesa (…). Se uma revolução burguesa vencesse na URSS, o novo governo por um longo período teria de basear-se sobre a economia nacionalizada.”
A vitória de Yeltsin, Kravchuk e companhia, foi um triunfo das forças da contrarrevolução porque significou que, daí em diante, o poder político seria exercido por aqueles comprometidos sem ambiguidades com a restauração da propriedade privada dos meios de produção.
Confrontado com esses argumentos, os espartaquistas recuam para uma posição defensiva. Yeltsin, eles afirmam, dirige um governo pró-capitalista, mas ainda não consolidou seu poder no aparato de Estado. Em um fórum espartaquista na cidade de Nova Yrok em fevereiro, falou-se muito da reunião de 5 mil oficiais do exército no Kremlin, em janeiro, para protestar contra o desmembramento das velhas forças armadas soviéticas. Uma grande ofensiva da classe trabalhadora, argumentou a Liga Espartaquista, poderia dividir o corpo de oficiais, com um segmento significativo indo em direção aos trabalhadores. Tal desenvolvimento, dizem os espartaquistas, iria equivaler a uma revolução política, pela qual eles ainda chamam em sua propaganda.
Tais argumentos jogam com as inevitáveis ambiguidades da transição que está acontecendo. Os regimes que emergiram da destruição da URSS não presidem Estados capitalistas consolidados, assim como a Rússia, a Ucrânia, etc. não são sociedades capitalistas plenas. O poder de Yeltsin ainda é frágil, mas isso não muda o fato de que Yeltsin e seus aliados republicanos estão usando seu poder recém-adquirido para desencadear uma contrarrevolução social. O imperialismo, os milionários da perestroika e a máfia do mercado negro agora ditam as regras no Kremlin. Muitos antigos burocratas stalinistas estão se apropriando de grandes partes da propriedade estatal. Os homens de Yeltsin comandam as mais altas posições militares. Como o próprio Workers Vanguard relatou, a polícia de Moscou não hesitou em derramar sangue nos protestos em março, chamando pelo retorno da União Soviética. Um ano atrás, a Gosplan ainda orientava diretrizes de planejamento e patrulhas conjuntas do exército e da polícia estavam nas ruas perseguindo especuladores do mercado negro, e prendendo e confiscando a propriedade dos aproveitadores da perestroika. Agora, a Gosplan não existe mais e aproveitadores e milionários estão por cima.
A contrarrevolução social está longe de estar plenamente consolidada, mas ela foi vitoriosa. Um proletariado renascido lutando pelo poder iria encontrar bem menos resistência na Rússia hoje do que em um Estado capitalista maduro. Mas uma revolução proletária teria que enfrentar a máfia do mercado negro, suprimir os partidários de Yeltsin no exército e na polícia, reverter os avanços da privatização e restaurar a planificação estatal. Com o passar de cada mês, as tarefas confrontando o proletariado se tornam mais e mais as de uma revolução social e não de uma revolução política.
Os espartaquistas dizem que nós afirmamos que o Estado operário soviético está morto para podermos lavar nossas mãos da responsabilidade de defendê-lo. Esse argumento é claramente ridículo. A burguesia imperialista está agindo com o conhecimento de que o Estado operário soviético não existe mais. Os marxistas devem reconhecer essa amarga verdade. Os trabalhadores lutando para reverter a maré da contrarrevolução na ex-URSS vão querer saber quando o poder de Estado passou para as mãos dos seus exploradores. Eles também vão querer saber onde os vários grupos que reivindicam o trotskismo e que aspiram lidera-los estiveram no momento decisivo.
“Brigada Yuri Andropov” – há muito tempo e muito longe
Os seguidores de Robertson sempre se orgulharam de afirmar a sua sabedoria sobre a questão russa e a política dos Estados operários deformados. Entretanto, eles estiveram consistentemente errados ao longo da crise terminal do stalinismo. Quando manifestações de massa surgiram contra o regime stalinista da República Democrática Alemã (RDA) no fim de 1989, eles proclamaram o começo de uma “revolução política dos trabalhadores”. Eles pensaram que a perspectiva de reunificação provocaria suficiente resistência para rachar o SED (o partido stalinista dominante na RDA), com um amplo setor indo em direção ao proletariado em defesa da propriedade coletivizada. A LCI jogou grandes quantidades de dinheiro e cada militante disponível na sua intervenção. Em janeiro de 1990, quando o SED aceitou a proposta dos espartaquistas para uma mobilização antifascista no Parque Treptow, em Berlim Oriental, o líder absoluto dos espartaquistas, James Robertson, ficou tão entusiasmado com delírios de grandeza que ele (sem sucesso) tentou organizar reuniões com Gregor Gysi, então cabeça do SED.
Mas a antecipada revolução política nunca se materializou. Ao invés de resistir à reunificação, os stalinistas entraram em uma coalizão com partidos pró-capitalistas para arquitetar a liquidação da RDA. Na época em que eleições foram organizadas para o Volkskammer(o parlamento da RDA), em março, o esquema para a reunificação já estava decidido. Mas, ainda assim, os espartaquistas se apegaram teimosamente à noção de que uma revolução política dos trabalhadores estava acontecendo, que trabalhadores e soldados estavam prestes a montar sovietes, tomar as fábricas e estabelecer um duplo poder em oposição ao frágil governo pró-capitalista. A liderança da LCI esperou que centenas de milhares de trabalhadores apoiariam a sua campanha eleitoral e que eles iriam ser lançados à liderança de uma classe trabalhadores pró-socialista insurgente. Os resultados foram um desastre sem atenuantes para os espartaquistas, pois os seus candidatos terminaram bem atrás do Sindicato Alemão dos Bebedores de Cerveja.
O desastre alemão foi provavelmente a causa mais imediata do giro político que levou os espartaquistas à neutralidade no golpe de agosto. A Alemanha foi o ápice de um período no qual os espartaquistas exibiram um gosto pouco saudável pelos regimes stalinistas. Os trotskistas sempre emblocaram com os stalinistas contra ataques imperialistas ou contrarrevoluções internas, ao mesmo tempo em que reconheciam que os Estados operários deformados e degenerados só poderiam ser defendidos em longo prazo por uma revolução política para derrubar os parasitas stalinistas.
Durante os anos Reagan, entretanto, os seguidores de Robertson frequentemente cruzaram a linha que separa defesa militar e apoio político. Em 1983, uma coluna espartaquista em uma manifestação antirracista em Washington recebeu o nome de Brigada Yuri Andropov, em homenagem ao então chefe da União Soviética que, em 1956, desempenhou um papel chave na supressão da revolução dos trabalhadores húngaros. Quando Andropov morreu, o Workers Vanguard publicou um laudatório poema-obituário em sua capa. Uma foto do chefe militar polonês, General Jaruzelski, enfeitou as paredes da sede da Liga Espartaquista em Nova Iorque. E, ao invés de simplesmente chamar por uma vitória militar das tropas soviéticas no Afeganistão, os espartaquistas insistiram em dar “vivas” à intervenção do Kremlin.
Com o ignominioso colapso dos regimes burocráticos por toda a Europa Oriental em 1989, entretanto, esse desvio pró-stalinista começou a se tornar uma fonte de constrangimento. Meses antes do golpe, o Workers Vanguard já estava sinalizando um rumo indiferente entre os apoiadores de Yeltsin e a fração conservadora da burocracia (a qual eles se referiram apenas como os “patriotas”):
“O povo trabalhador soviético deve romper com a falsa divisão entre os ‘democratas’ e os ‘patriotas’, ambos produtos da degeneração terminal da reacionária e parasita burocracia stalinista. Ambos são inimigos e opressores da classe trabalhadora nos interesses do capitalismo mundial.”
— WV, 15 de março de 1991
Workers Vanguard nunca mencionou a possibilidade de essa “falsa divisão” poder levar a um confronto no qual fosse necessário para os trabalhadores tomar um dos lados. E quando esse confronto aconteceu em agosto, os espartaquistas mudaram da sua tendência prévia, de apoio político aos regimes stalinistas, para um abandono da tática trotskista elementar de bloco militar com os stalinistas contra as forças abertas da contrarrevolução. A vergonhosa neutralidade dos seguidores de Robertson em agosto e a sua acompanhada recusa em reconhecer o fato de que o Estado operário soviético não existe mais, demonstram o vazio das pretensões deles de ser uma liderança revolucionária.
Pelo renascimento da Quarta Internacional
Há mais de meio século, Trotsky escreveu que a luta por uma direção proletária é em última instância a luta pela sobrevivência da humanidade. A criação de uma nova liderança revolucionária para a classe trabalhadora depende acima de tudo de um esforço consciente de militantes socialistas comprometidos. É vitalmente importante que cada socialista sério compreenda as lições de toda a história de 74 anos da revolução russa: sua vitória, degeneração e por fim sua destruição. As forças do marxismo revolucionário hoje representam apenas uma pequena minoria. Porém, através de uma combinação de determinação revolucionária e uma disposição em lutar por clareza programática, os quadros serão organizados para abalar o mundo mais uma vez. O reagrupamento revolucionário começa com a exposição política da confusão, vacilação e traição dos vários reformistas, centristas e charlatães que falsamente reivindicam o legado do trotskismo. Através de uma dura luta política e um processo de rompimentos e fusões, a Quarta Internacional, o partido mundial da revolução socialista, vai renascer!