China: Rumo a uma Ruptura

Capitalismo em um Estado Operário Deformado

China: Rumo a um Ruptura

Artigo originalmente publicado na revista “1917” n. 26 (2004), pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional. Tradução para o português realizada pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2016.

Milhões de trabalhadores, camponeses pobres e outras vítimas do crescimento de relações sociais capitalistas na China tem se mobilizado em uma escala massiva. Suas organizações são incipientes e locais, mas os números e intensidade da resistência estão crescendo. Na primavera de 2002 no hemisfério norte, 50 mil trabalhadores petroleiros de Daqing e 30 mil metalúrgicos de Liaoyang, no cinturão industrial do nordeste, organizaram uma série de protestos de rua, bloqueios de rodovias e ocupações para protestar contra cortes e demissões. Enquanto essas ações foram realizadas para defender empresas estatais individuais e os direitos de trabalhadores em risco de demissão, sua lógica aponta para a necessidade de uma ofensiva para erradicar o tumor capitalista que ameaça destruir as instituições da propriedade nacionalizada e de planejamento central criados pela Revolução Chinesa de 1949.

A expropriação da classe dominante chinesa e de seus chefes imperialistas libertou a China da dominação pelo mercado mundial. O novo regime dirigido por Mao Tsé-Tung rapidamente introduziu medidas que produziram melhorias imediatas e substanciais nas condições de vida, saúde e educação. Os quadros do Partido Comunista Chinês (PCCh) estavam confiantes de que estavam lançando a fundação de uma nova China socialista. Entretanto, a economia de comando burocrático no estilo soviético estabelecida pelo PCCh não resultou – e não poderia resultar – em uma sociedade na qual a classe trabalhadora exercia poder político direto, uma precondição essencial para um desenvolvimento genuinamente socialista.

A China é um “Estado operário deformado”, qualitativamente similar à Coreia do Norte, Vietnã e Cuba. Nessas sociedades o capitalismo foi extirpado, mas o poder político foi monopolizado por uma casta burocrática privilegiada organizada pelo Partido “Comunista”. A exclusão dos produtores do processo de decisão impede que uma economia coletivizada funcione efetivamente, especialmente depois que os estágios rudimentares de industrialização tenham sido atingidos. Além disso, como Marx e Lenin repetidamente afirmaram, o socialismo só é concebível na base de uma divisão internacional do trabalho e conquista do poder pelos trabalhadores nos países capitalistas avançados. A ideologia do “socialismo em um só país”, abraçada por todas as burocracias estalinistas nacionalmente limitadas, é uma expressão, no fundo, do seu desejo de obter uma acomodação com o imperialismo mundial.

O tumor que é a casta burocrática à frente do PCCh não tem função social necessária. Ela está preocupada somente em tentar preservar seus próprios privilégios e prerrogativas. Seu programa é um amálgama de improvisos de curta visão e pedaços retirados de dois sistemas econômicos fundamentalmente incompatíveis: capitalismo competitivo e planejamento central. Conforme as contradições continuam a se acumular, o espaço de manobra do PCCh está diminuindo. Tanto a burguesia quanto o proletariado chineses são bem mais fortes hoje do que eram em 1949, quando o exército de guerrilha de base camponesa de Mao tomou o poder. A burocracia do PCCh é vastamente mais fraca em termos de moral, autoconfiança e autoridade social.

Logo depois da morte de Mao em 1976, a facção de Deng Xiaoping no PCCh tomou o poder prometendo acelerar o crescimento introduzindo elementos de competição de mercado. Enquanto a facção de Deng foi denunciada por seus rivais por tomar o “caminho capitalista”, ela via o uso de métodos capitalistas como meio para fortalecer, e não liquidar, a posição do partido dentro do Estado operário.

Até hoje, muitos setores estratégicos e potencialmente lucrativos da economia chinesa permanecem fechados ao investimento privado. Entretanto, a China está desempenhando um papel crescentemente importante na economia mundial – o Investimento Estrangeiro Direto (IED) cresceu de 1 bilhão de dólares em 1983 para 53 bilhões em 2002. Hoje a China está em sexto no ranking de comércio total (o valor combinado de exportações e importações), embora muito desse comércio consista das operações internas de corporações estrangeiras que importam maquinário e outros equipamentos e exportam produtos acabados:

“Entrando em qualquer Wal-Mart, você não vai se surpreender em ver as prateleiras cheias de produtos feitos na China – tudo, desde sapatos e roupas até brinquedos e eletrônicos. Mas o onipresente rótulo ‘Made in China’ obscurece um importante ponto: poucos desses produtos são feitos por companhias chinesas nativas. De fato, você teria dificuldade em encontrar uma única firma chinesa nascida no país que opera em uma escala global e promove seus próprios produtos no exterior.

“Isso ocorre porque o boom de exportação de manufaturados é largamente uma criação de Investimento Estrangeiro Direto (IED), o qual efetivamente serve como substituto de empreendedorismo doméstico.”

– Y. Huang, T. Khanna, Foreign Policy, julho/agosto 2003

O dramático crescimento do setor de bens de consumo nos últimos 25 anos, que significaram padrões de vida melhores para uma minoria significativa da população da china, também acentuou as contradições sociais, minando assim a estabilidade do regime. O desenvolvimento capitalista é severamente distorcido pela capacidade do PCCh de estabelecer as regras e pelo controle estatal da energia, indústria pesada e do setor financeiro.

Os milhares de novos milionários na República Popular da China estão ansiosos para se livrarem do PCCh e desmantelarem o que resta do planejamento central. Isso, entretanto, não pode ser alcançado por meio de um gradual acúmulo de “reformas” do PCCh. A transição de um sistema de propriedade coletivizada para outro no qual predomina a propriedade privada requer uma contrarrevolução social. A burocracia não pode se transformar em uma nova burguesia. Enquanto um setor dos quadros do PCCh poderia usar suas posições para construir fortunas individuais, muitos mais teriam que perder tudo com a restauração capitalista.

Burocracia e corrupção

O monopólio centralizado de poder político em uma sociedade crescentemente orientada pela busca de ganho privado é uma receita para corrupção monumental. Toda empresa na China de hoje, mesmo as maiores, depende dos favores políticos que pode garantir, ou pensa-se que garante. Nada é mais importante do que ter conexões políticas, administrativas e financeiras. Isso é conhecido como sistema guanxi. A posição contraditória da burocracia como mediadora entre os trabalhadores e os capitalistas se expressa na sua atitude com relação ao guanxi. O enriquecimento pessoal é amplamente visto como recompensa legítima de uma posição, mas a corrupção é um crime punível com execução, e a pena de morte é imposta frequentemente, ainda que inconsistentemente.

O sistema guanxi permitiu que filhos dos maiores líderes políticos acumulassem uma riqueza considerável. Nos anos 1990, Deng Zhifang, o filho mais jovem do ex-presidente Deng Xiaoping, enriqueceu nos ramos imobiliário e financeiro, enquanto Jiang Mianheng, filho mais velho do ex-presidente Jiang Zemin, fez fortuna como o “Rei do TI” de Xangai. Deng Jr. ficou bem conhecido pelo seu aforismo “ficar rico é glorioso”, mas existem limites e alguns dos “príncipes” do PCCh ocasionalmente tiveram suas asas cortadas.

Oficiais que são processados por corrupção ou entraram em conflito com superiores ou ainda foram expostos na mídia. Revelar corrupção tem sido uma arma padrão na guerra intraburocrática, mas esse pode ser um jogo perigoso e algumas vezes os próprios denunciantes acabam na prisão. Algumas formas de corrupção (por exemplo, participação no crime organizado, privatização de terras, roubo em larga escala de bens estatais) são punidos severamente, enquanto outras infrações menores são rotineiramente ignoradas (por exemplo, uso privado de limusines do Estado, imposição de pedágios não-oficiais em estradas, concessão de contratos ou empréstimos a amigos íntimos). O favoritismo é aceito como parte do sistema guanxi.

Um dos casos mais espetaculares de corrupção aconteceu em Shenyang, a quarta maior cidade da China, na província de Liaoning, no norte. Quando revelações sobre venda de cargos, roubo, contrabando, armação de contratos e assassinatos começaram a vir à tona em 1999, foram vigorosamente suprimidas. Zhou Wei, um oficial aposentado que tentou relatar a corrupção, foi sentenciado a dois anos em um campo de trabalho e Jiang Weiping, um jornalista que escreveu uma série de artigos para o Front Line, uma revista de Hong Kong, foi condenado a nove anos de prisão. Quando o governo finalmente reagiu, muitos dos suspeitos mais bem conectados escaparam de punição, incluindo o governador de Lianing, Bo Xilai, cujo pai tinha um assento no Bureau Político dirigente do PCCh.

A investigação oficial descortinou uma rede de corrupção na polícia, promotoria, juízes, legisladores, oficiais, banqueiros e executivos de companhias privadas, todos trabalhando juntos em Shenyang. Um oficial sênior, Liu Yong, foi tão longe a ponto de planejar os assassinatos de mais de 30 pessoas para liberar propriedades em que ele queria investir. O vice-prefeito da cidade, Ma Xiangdong, gastou 4 milhões de dólares de fundos públicos jogando em Macau e Las Vegas. O prefeito de Shenyang, Mu Suixi, escondeu o equivalente a 6 milhões em barras de ouro e 150 relógios Rolex nas paredes de suas duas casas de campo, que ele jocosamente decorou com uma coleção de antiguidades falsas.

Corrupção nessa escala coloca uma ameaça óbvia para a sobrevivência do Estado operário deformado. A apropriação de grandes quantidades de propriedade estatal por burocratas bem conectados é a reclamação mais frequente feita pelos cidadãos chineses, que veem a corrupção como um fator central no colapso das empresas estatais e no resultante desemprego em massa. O chamado pela criação de uma rede de comitês por local de trabalho para proteger a propriedade pública e extirpar a corrupção teria um apelo bastante difundido – e implicações potencialmente revolucionárias. Para serem efetivas, tais formações deveriam ser democraticamente eleitas em escritórios e fábricas por trabalhadores de base e ser completamente independentes do aparato do PCCh. Tais comitês poderiam representar um importante passo na mobilização do proletariado chinês contra a crescente maré da contrarrevolução.

O Exército de Liberação Popular

Por anos, o corpo de oficiais do Exército de Liberação Popular (ELP), uma parte integral da burocracia, administrou suas próprias fazendas, fábricas têxteis e outras operações. A decisão de Deng Xiaoping de permitir que empresas do ELP produzissem commodities para venda ao público geral previsivelmente resultaram em corrupção generalizada e crescimento de um sentimento pró-capitalista dentro do corpo de oficiais. Em O Estado e a Revolução, Lenin observa que o Estado, reduzido aos seus essenciais, é uma força armada que defende os interesses de uma classe social particular, ou seja, seu sistema de propriedade. Qualquer Estado está em perigo iminente quando elementos do seu exército começam a desenvolver um apego a um sistema social distinto. A ala mais abertamente pró-capitalista do PCCh, representada no fim dos anos 1990 pelo Primeiro Ministro Zhu Rongji, estava confortável com o crescente apego do ELP ao mercado. Mas a maior parte da burocracia não estava e, em julho de 1998, o governo exigiu que o exército se desfizesse de seus interesses comerciais. No começo de 1999, o regime foi um passo além e centralizou as licitações militares, cortando dessa maneira muitos laços que conectavam comandos militares locais e empresários.

O PCCh é uma formação profundamente heterogênea, que contém muitos tons de opinião política, dos abertamente pró-capitalistas aos ortodoxos “marxismo-leninismo-Pensamento Mao Tsé-Tung” que restaram da desastrosa Revolução Cultural dos anos 1960. O partido se mantém por dois motivos: um medo de que a China entrará em caos social se a burocracia perder seu controle e um desejo de preservação da segurança pessoal, autoridade política e privilégios. A liderança do PCCh está ciente do desastre político, social e econômico que resultou da restauração capitalista no bloco soviético, culminando com a fragmentação das antigas URSS, Tchecoslováquia e Iugoslávia.

Os burocratas menos bem posicionados para conseguir uma parte do saque – uma categoria que inclui a maioria dos oficiais do ELP – tem sérias reservas sobre a continuação do caminho da privatização e integração ao mercado capitalista mundial. A ala esquerda da burocracia – os elementos mais conservadores que desejam preservar as instituições sociais existentes – estão concentrados no decadente nordeste e nas áreas mais pobres e menos desenvolvidas do oeste e centro do país. O crescente sudeste da China, onde a atividade capitalista está concentrada, é o lar da ala direita da burocracia, ou seja, aquele setor mais disposto a pressionar por “reformas” econômicas que levem até o fim a restauração capitalista.

As disputas intraburocráticas estiveram até agora contidas dentro das estruturas existentes do PCCh. Uma fração intermediária de “pragmáticos” tem mantido um equilíbrio precário entre os conservadores e os “reformadores” pró-capitalistas. Os pragmáticos esperam que um crescimento continuado do setor privado e uma maior integração da China ao mercado mundial de alguma forma aumentem a produtividade e os padrões de vida o suficiente para permitir que a burocracia siga aos trancos e barrancos.

Até recentemente, o líder conservador mais proeminente no PCCh era o Primeiro Ministro Li Peng – o análogo de Egor Ligachev ou Gennady Yanayev no partido soviético antes da contrarrevolução de agosto de 1991. A figura principal entre os pró-capitalistas no PCCh – o análogo de Boris Yeltsin – era o ex-Primeiro Ministro Zhu Rongji. O sucessor de Deng Xiaoping, o Presidente Jiang Zemin, desempenhou o papel de Mikhail Gorbachev, se equilibrando entre os dois extremos.

A perestroika chinesa tem sido relativamente bem-sucedida, em parte, porque ela não foi acompanhada de uma glasnost, ou democratização. Jiang manteve o PCCh unido ao permitir desenvolvimento capitalista enquanto preservava a propriedade estatal em setores econômicos chave e guardava zelosamente o controle pela burocracia da mídia, polícia, forças armadas e todas as instituições jurídicas e regulatórias. O substituto de Jiang, Hu Jintao, foi selecionado por ser um pragmático comprometido em manter o PCCh intacto. Mas por segurança, Jiang manteve a posição de presidente do Comitê Militar Central, assim como fez Deng Xiaoping quando ele “se aposentou”.

Para a classe trabalhadora e o campesinato pobre, a defesa do sistema de propriedade socializada e planejamento estatal é uma questão de vida ou morte. Enquanto defende a derrubada do PCCh por uma revolução política proletária, os marxistas defendem incondicionalmente o Estado operário deformado chinês contra a restauração capitalista, e estão preparados para tomar um lado militar com os burocratas stalinistas contra a contrarrevolução.

Em agosto de 1991, muitos trabalhadores soviéticos reconheceram nos seguidores de Yeltsin os seus inimigos, mas a única instrução que partiu dos burocratas stalinistas conservadores do Comitê de Emergência de Yanayev para a classe trabalhadora foi não fazer nada. Uma pequena organização revolucionária preparada para intervir antes que a contrarrevolução ganhasse força poderia ter potencialmente reunido um número suficiente de trabalhadores pró-socialistas para virar a balança. A vitória de Yeltsin não era inevitável – a ausência de liderança revolucionária foi o que condicionou o resultado.

Um Estado capitalista chinês não vai ser estabelecido com a velocidade e relativa ausência de derramamento de sangue que foram vistos na Rússia. Milhões de pessoas trabalhadoras na China, que entendem que seus interesses são contrapostos aos dos “introdutores do capitalismo” já começaram a agir de forma inteiramente independente da burocracia. O ritmo dos eventos tem sido muito mais lento e mais desigual na China do que ocorreu na Rússia no fim dos anos 1980. Ainda há oportunidade para o desenvolvimento da consciência, programa e organização necessários para defender de forma bem-sucedida o sistema de propriedade coletivizada e arrancar do poder a burocracia do PCCh.

Pretensos trotskistas e a China

O programa da revolução política proletária foi defendido originalmente por Leon Trotsky para o Estado operário burocratizado soviético nos anos 1930. Muitas das organizações que reivindicam o trotskismo hoje e que afirmam defender a perspectiva de Trotsky falham em fazê-lo na prática. A Liga Espartaquista dos Estados Unidos (SL na sigla em inglês), por exemplo, tem oscilado bizarramente sobre a China. Em 1997, a SL melancolicamente anunciou que os planos do PCCh de vender um bando de indústrias estatais “significaria a liquidação do que resta da economia planejada, coletivizada, e a restauração do capitalismo na China” (Workers Vanguard [WV], 3 de outubro de 1997, ênfase no original). Dois anos depois, WV (o jornal da Liga Espartaquista) ainda estava afirmando que “a principal força dirigindo o curso para a contrarrevolução capitalista hoje [na China] é o próprio regime stalinista” (WV, 11 de junho de 1999). Em 2000, a SL anunciou que a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) iria sinalizar efetivamente o fim do Estado operário deformado:

“A entrada na OMC significaria eliminar o que resta do monopólio estatal do comércio exterior, subjugando ainda mais a economia às pressões do mercado mundial capitalista. Iria, assim, agir como um aríete para forçar a decisão de 1997 do PCCh de privatizar o grosso da indústria estatizada.”

WV, 7 de abril de 2000.

Esse prognóstico pessimista se provou errado. A filiação da China à OMC representa um passo significativo rumo à integração no mercado mundial e aumenta a pressão pela restauração capitalista, mas até o momento não houve privatização dramática do setor estatal. A caracterização da SL sobre os stalinistas chineses como a força principal pela restauração capitalista faz lembrar a sua recusa em tomar o lado militar do Comitê de Emergência de Yanayev contra a facção em torno de Yeltsin em agosto de 1991. Eles criticaram nossa posição de apoio militar aos golpistas stalinistas que, segundo a SL, “eram tão comprometidos com a restauração capitalista quanto Yeltsin” (em “The International Bolshevik Tendency – What is it?”).

Os líderes do Grupo Internacionalista (IG – um racha de 1996 da SL), que defendem a posição de 1991 dos espartaquistas sobre o golpe por razões de prestígio pessoal, criticam a SL por tomar uma posição essencialmente idêntica sobre a China. A SL respondeu afirmando que o IG era um grupo stalinofílico, que conferia uma capacidade revolucionária à burocracia. O líder do IG, Jan Norden, foi denunciado por ter “dotado os geriátricos ex-estalinistas [da Alemanha Oriental] com algum tipo de apetite revolucionário instintivo” e por promover “a ilusão de que uma ala da burocracia de Beijing vai, ela própria, assumir a luta contra a contrarrevolução capitalista” (WV, 11 de junho de 1999). Na verdade, é inteiramente possível que elementos do aparato stalinista tomariam o mesmo lado que os trabalhadores contra a restauração capitalista. E os revolucionários iram certamente querer explorar as contradições no seio da burocracia para fortalecer a posição dos trabalhadores mobilizados em uma ação política independente.

As críticas de stalinofilia feitas pela SL soam particularmente estranhas vindo de um grupo que, no começo dos anos 1980, marchava em protestos sob o nome de “Brigada Yuri Andropov” e que deu “vivas” à intervenção de Leonid Brejnev no Afeganistão. A stalinofilia da SL atingiu o seu auge em janeiro de 1990, quando James Robertson, o fundador e líder do grupo, tentou marcar uma reunião pessoal para oferecer conselhos gratuitos para três chefes stalinistas em Berlim Oriental: o general soviético B.V. Snetkov, Markus Wolf, um oficial-chefe de inteligência da Alemanha Oriental, e Gregor Gysi, líder do partido dominante (veja “Robertsonites in Wonderland”, em 1917 No. 10).

Os giros stalinofílicos da SL foram acompanhados por ocasionais desvios stalinofóbicos como, por exemplo, quando WV denunciou a destruição de uma provocação imperialista (o incidente com o avião espião KAL 007, em 1983) como “pior que uma atrocidade bárbara” (veja o Trotskyist Bulletin No.1). O IG é uma representação da SL congelada no modo stalinofílico – eles nunca repudiaram a aproximação com Gysi, Snetkov e Wolf, e presumivelmente iriam apoiar uma tentativa similar de ganhar a confiança da liderança da burocracia chinesa.

Ao contrário do IG, a posição da SL não está congelada – os quadros da SL não são, no fundo, leais a nenhum programa particular, mas sim ao líder James Robertson, que pode mudar à vontade a posição do grupo várias vezes seguidas. Depois de, por muitos anos, considerar os burocratas chineses como meros restauradores capitalistas, a SL, talvez castigada pela falha de suas previsões pessimistas em se materializarem, silenciosamente mudou sua linha e mais uma vez está discutindo a possibilidade de que uma resistência séria à restauração capitalista poderia rachar o PCCh.

A falha da SL em oferecer qualquer explicação para seu desvio stalinofóbico anterior não a impediu de repreender indignada os reformistas inescrupulosos que lideram o Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores (CIT/CWI), por adotarem a mesma posição:

“Comentando sobre o 16º Congresso do PCCh, a tendência baseada na Grã-Bretanha e liderada por Peter Taaffe escreveu: ‘A China está a caminho da completa restauração capitalista, mas a casta dominante está tentando fazê-lo gradualmente e mantendo seu controle repressivo autoritário’ (Socialist, 22 de novembro de 2002). Ao rotular o governo da China como um regime restauracionista ‘autoritário’, os seguidores de Taaffe e sua laia podem justificar defenderem as forças anticomunistas apoiadas pelo imperialismo na China, em nome de promover a ‘democracia’, assim como apoiaram a contrarrevolução ‘democrática’ de Boris Yeltsin na URSS em 1991.”

WV, novembro de 2003.

A SL sabiamente aponta:

“Uma contrarrevolução capitalista na China (assim como na Europa oriental e na antiga URSS) viria acompanhada pelo colapso do bonapartismo stalinista e pelo fraturamento político do Partido Comunista dirigente.”

Idem.

Mas em agosto de 1991, durante a crise política terminal da burocracia stalinista soviética, a SL adotou a mesma atitude pela qual eles hoje atacam Taaffe, e afirmaram que não havia diferença entre os “conservadores” do Comitê de Emergência que queriam preservar a União Soviética e a turba em volta de Yeltsin, que queria restaurar o capitalismo.

O Socialist Equality Party de David North [Comitê Internacional], que também reivindica a herança política de Trotsky, regularmente lança artigos sobre a China em seu site [World Socialist Web Site] que cuidadosamente evitam a questão elementar sobre se a China é um Estado burguês ou um Estado operário deformado. O grupo de North tem um histórico consistente de stalinofobia, tendo tomado o lado de Boris Yeltsin, Lech Walesa e virtualmente todos os outros contrarrevolucionários no bloco soviético. Acreditamos que em qualquer confronto futuro eles irão novamente sair abertamente ao lado da contrarrevolução “democrática”.

Outros grupos supostamente revolucionários são menos cuidadosos. O grupo britânico Workers Power [Liga Pela Quinta Internacional], por exemplo, afirma que o Estado operário deformado chinês já se transformou sem ruptura (e sem ser notado) em um Estado capitalista. Mas analistas burgueses sérios tem outra opinião:

“O maior mito sobre a China nos anos 1990 é de que o país deixou de ser socialista. Apesar de um governo autoproclamado comunista, operando por meio de um Bureau Político, um Comitê Central e uma rede nacional de 50 milhões de membros do partido, esse mito tornou-se opinião comum. Foi repetido em jornais e revistas, sem mencionar em salas de reuniões, ao redor do globo. O credo oficial de ‘socialismo com características chinesas’, propagandeado diariamente pela mídia oficial, foi tomado pelo mundo exterior como uma formulação chinesa para um conceito ainda politicamente difícil de capitalismo […]. O país nos anos 1990 não é uma economia de mercado, mas um país fundamentalmente socialista passando por algumas modificações chinesas.”

The China Dream, Joe Studwell.

Bolsas de valores, bancos e participação chinesa na OMC

O capitalismo fez penetrações perigosas na China até o momento, mas ele ainda está restrito em uma ordem política e social que é antitética ao livre mercado. Ao contrário de uma economia capitalista de mercado, nem as bolsas de valores chinesas e nem os seus bancos funcionam para canalizar investimentos para empresas que pareçam mais prováveis de gerar altas taxas de lucros. Na China, o investimento é controlado pelo aparato de Estado, e o critério definitivo não é a maximização do lucro, mas a manutenção da posição e controle da burocracia dominante. Isso é visto como muito perverso por comentaristas burgueses:

“No começo dos anos 1990, quando a China estava registrando taxas de crescimento de dois dígitos, Beijing investiu massivamente no setor estatal. A maior parte dos investimentos não eram comercialmente viáveis, deixando o setor bancário com um enorme número de empréstimos que não dariam resultado – totalizando possivelmente até 50% dos ativos bancários.”

– Y. Huang, T. Khanna, Foreign Policy, julho/agosto 2003.

A bolsa de valores capitalista permite às companhias levantar capital por meio da venda de “ações” dos ativos e futuros lucros. Os preços das ações flutuam de acordo com a lucratividade potencial e qualquer investidor que controle a maioria das ações de uma companhia pode determinar suas decisões.

Para que uma bolsa de valores capitalista funcione apropriadamente, informação sobre a lucratividade de oportunidades de investimento rivais deve ser amplamente acessível. É por isso que, mesmo sob condições rígidas de censura da imprensa, a imprensa financeira nos países capitalistas é geralmente mais ou menos irrestrita. Os mercados tem elaboradas regras regendo a divulgação, prestação de contas, auditoria e relatório que, em teoria, eliminam distorções devido a acesso privilegiado a informações. Enquanto os grandes jogadores ignoram rotineiramente proibições sobre venda de informações, violações a partir de certa escala são sujeitas a sanções porque podem desestabilizar mercados financeiros e, assim, ameaçam os interesses da classe capitalista como um todo.

Os mercados de ações de Xangai e Shenzen tem operado por duas décadas e hoje 60 milhões de chineses tem contas de negociação. Entretanto, em vez de canalizar investimento para empresas lucrativas, o papel dessas trocas é fornecer apoio financeiro às firmas que tem permissão de listar suas ações – a maioria das quais são Empresas de Propriedade Estatal (EPEs). O governo não apenas decide quais empresas tem permissão de listar nas trocas, mas também quais informações financeiras estão disponíveis. Como resultado, os preços variam bruscamente com base em informações manipuladas, venda de informações internas e embustes, muitos dos quais seriam expostos pela imprensa financeira em um país capitalista. Os donos de ações podem ganhar ou perder dinheiro conforme os preços das ações sobem ou descem, mas eles tem a mesma relação com as firmas nas quais investem que um apostador em um hipódromo tem com os cavalos nos quais fazem apostas:

“Na China[ …] os burocratas seguem sendo os zeladores, controlando rigidamente a alocação de capital e restringindo severamente a capacidade de companhias estatais de obter acesso a bolsas de valores e ao dinheiro que precisam para crescer. De fato, Beijing tem usado o mercado financeiro principalmente como forma de manter as EPEs no azul. Essas políticas tem produzido enormes distorções […].”

Idem.

A enormidade das distorções faz com que a bolsa de valores de Xangai seja aproximadamente 800 vezes mais volátil do que a de Nova Iorque, de acordo com um artigo na edição do verão de 1998 da Harvard China Review.

Quando entrou na Organização Mundial do Comércio em dezembro de 2001, a China concordou em permitir que commodities importadas sejam vendidas pelo preço do mercado mundial. Isso promete devastar o campo chinês, no qual a maioria da população ainda vive, assim como indústrias estratégicas tais como aço. Mas apesar do acordo no papel, Beijing reteve um controle considerável sobre sua economia doméstica. Por exemplo, as companhias de seguro estrangeiras, que supostamente teriam acesso ao mercado chinês em dois anos, não tem permissão de operar sem uma licença do governo, que as autoridades concedem a seu critério. Metade do mercado de telecomunicações da China seria supostamente aberto para propriedade estrangeira, mas os termos são estabelecidos pelo órgão regulatório da Chiam, que controla o maior fornecedor de linhas fixas e as duas maiores companhias de telefonia celular. As regulações exigem que três quartos do capital seja levantado por um parceiro chinês doméstico (Financial Times [Londres], 15 de março de 2002).

Bancos estrangeiros agora tem permissão de operar na China, sob os termos do acordo com a OMC, mas o governo chinês estipulou que cada banco só pode abrir uma nova agência por ano. Dado que os quatro grandes bancos estatais já tem um total de 130 mil agências ao redor do país, vai demorar algum tempo até que os bancos estrangeiros possam competir efetivamente. Esses quatro bancos, que contam com dois terços de todas as transações, são propriedades exclusivas do ministério das finanças. A maioria dos outros bancos e instituições de crédito chineses são propriedades de agências governamentais e são todos rigidamente controlados por autoridades centrais que os usam como mecanismos de financiar novos investimentos. Na China, ao contrário de um país capitalista, o investimento é determinado pelas exigências da burocracia dominante:

“O governo central trata os bancos como uma ‘verba secundária’, um lugar conveniente para encontrar fundos com os quais cobrir problemas do passado. Ajudar empresas de propriedade estatal é apenas o começo. Há, além disso, zonas de tecnologia a construir, rios a represar, e sempre alguma coisa na região oeste da China a desenvolver. Os líderes de Estado esperam que os bancos façam sua parte.”

The Coming Collapse of China, Gordon G. Chang.

Uma grande proporção dos empréstimos bancários vai para as EPEs, que ainda empregam 55% da força de trabalho urbana. O fato de que a maior parte delas não consegue pagar suas dívidas é irrelevante. No capitalismo, os bancos e as estatais que eles mantêm com subsídios e empréstimos a juros baixos seriam forçados à falência. Mas na República Popular da China, empresas de propriedade estatal só poder ir à falência por decreto governamental.

ZEEs & EPEs

Uma das “reformas” principais introduzidas depois da morte de Mao foi a dissolução das fazendas coletivas e sua transformação em empresas familiares. Hoje na China rural, milhões de famílias arrendam pequenas parcelas de terra do Estado. Enquanto alguns fazendeiros acumularam capital suficiente para lançar operações de grande escala, muitos outros afundaram para a miséria. Entretanto, mesmo os fazendeiros chineses mais bem-sucedidos não podem competir com o agronegócio do ocidente. Por exemplo, o milho foi listado na bolsa de commodities de Chicago em setembro de 2000 a 100 dólares por tonelada. Na China, estava sendo vendido por 175 dólares (Minneapolis Star Tribune, 1º de outubro de 2000). Quase 20% da força de trabalho rural já está desempregada. Mais de cem milhões de antigos camponeses foram forçados ao comércio de rua, prostituição ou criminalidade nas favelas que circundam as cidades chinesas. O Ministério da Agricultura chinês projetou que o relaxamento dos controles de importação exigido pela OMC vai custar pelo menos mais 20 milhões de empregos no campo.

Em 1980, o governo abriu quatro Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) para investimento estrangeiro em Guangdong, perto de Hong Kong. Existem hoje cerca de 12 mil ZEEs, a maioria concentradas na costa sudoeste. Elas são essencialmente colônias econômicas capitalistas no Estado operário deformado, responsáveis por um oitavo do total da produção industrial da China e metade das suas exportações. Os capitalistas chineses em Hong Kong e Taiwan que fizeram a maior parte dos investimentos iniciais acharam as ZEEs bastantes lucrativas. A China tem uma das forças de trabalho mais baratas do mundo: os salários são metade dos níveis mexicanos e um vinte avos do americano. Os salários são rebaixados porque o PCCh, que estabelece as regras, suprime impiedosamente qualquer tentativa de criar sindicatos efetivos [e subsidia, via serviços públicos, muitos dos gastos de subsistência].

As enormes Empresas de Propriedade Estatal do nordeste, que são administradas diretamente pelo PCCh, constituem o núcleo da economia coletivizada estabelecida pela Revolução de 1949. Nos anos 1980, as EPEs contavam por virtualmente toda a produção não-agrária da China, mas hoje a sua fatia caiu para meros 30%. Entretanto, elas ainda constituem setores vitais da economia (indústria pesada, alta tecnologia, armamentos, energia e telecomunicações), representam cerca de 70% de todos os ativos fixos e pagam uma parcela desproporcional de impostos, que financiam o Estado. As EPEs, através das quais o Estado garantia aos trabalhadores a política da “tigela de arroz de ferro” – emprego, comida, saúde, moradia e pensão – permanecem sendo críticas para o controle do poder pela burocracia, embora sem a pressão do mercado ou o controle democrático dos produtores, a produtividade tenha decaído constantemente, tanto em termos absolutos quanto relativamente às corporações estrangeiras.

As EPEs são vistas pela imprensa financeira estrangeira como restos vestigiais de um sistema falido que deveriam ser desmanteladas tão cedo quanto possível. Mas a burocracia do PCCh, ela própria um “resto” do qual os imperialistas gostariam de se livrar, tem uma visão diferente. Desde o fim dos anos 1990, o PCCh tem tentado “racionalizar” as EPEs, fechando as menos produtivas, enquanto encoraja outras a imitar empresas capitalistas participando de fusões, abrindo ações e vendendo as partes menos viáveis de suas operações.

Em maio de 2003, o presidente Hu Jintao anunciou que as EPEs, antes geridas por vários ministérios e municipalidades, seriam a partir de então administradas por uma Comissão central de Administração e Supervisão de Ativos Estatais (CASAE). O objetivo é criar uma dúzia de Empresas de Propriedade Estatal internacionalmente competitivas em ramos industriais estratégicos, modeladas nas zaibatsu japonesas e nas chaebols sul-coreanas. Enquanto isso não vai resolver a contradição do controle burocrático em uma economia coletivizada, pode melhorar a performance das EPEs em curto prazo.

A “racionalização” das EPEs tem significado cortes de serviços para trabalhadores e aposentados e uma redução dramática da força de trabalho. Desde 1998, as EPEs eliminaram entre 25 e 50 milhões de empregos. Esse ataque amplo aos padrões de vida da classe trabalhadora tem enraivecido milhões. No cinturão industrial do nordeste da China, onde o desemprego está nos 40%, em vez de “polícia e bandido”, as crianças brincam de “matar o chefe”.

O “Grande Desenvolvimento do Oeste” e a questão nacional no Tibete e Xinjiang

Em anos recentes, o PCCh lançou um projeto de “Grande Desenvolvimento do Oeste” para as pessoas que moram em Gansu, Guizhou, Ningxia, Qinghai, Shaanxi, Sichuan, Tibete, Yunnan e Xinjiang. Essas regiões, que constituem mais da metade da extensão territorial da China e tem uma população de 300 milhões de pessoas, incluem as fronteiras estrategicamente cruciais, instalações militares chave e os depósitos mais importantes de petróleo e minérios do país. O isolamento geográfico, a instabilidade política, a infraestrutura incipiente e as populações dispersas e pouco escolarizadas tornam essas regiões pouco atrativas para investimento capitalista.

O projeto representa uma expansão massiva do setor estatal, incluindo a construção de rodovias, ferrovias, aeroportos e um oleoduto de 14 bilhões de dólares para transportar gás natural por 2500 milhas de distância de Xinjiang até Xangai. Xinjiang, a maior província da China, é também uma das mais pobres e lar de oito milhões de uigures de língua turca, dentre os quais o descontentamento nacionalista islâmico é latente. No começo de 1997, algo em torno de 500 uigures foram presos durante protestos antichineses na cidade de Yining, no oeste de Xinjiang. A Anistia Internacional relatou que 30 uigures foram sentenciados à morte em abril de 2001 por atividades religiosas e separatistas.

O governo está ativamente promovendo a imigração han para Xinjiang, que tem dois principais produtos de exportação, petróleo e algodão. Os han já controlam a indústria do petróleo e as suas novas companhias de algodão de larga escala estão superando as pequenas parcelas produtoras dos uigures. Enquanto os uigures ainda são numericamente superiores aos han, estes serão os principais beneficiários de qualquer futuro desenvolvimento financiado pelo Estado.

A opressão aos uigures recebe pouca atenção da mídia ocidental, talvez porque 300 dos prisioneiros do Talibã capturados pelas forças americanas no Afeganistão sejam uigures. Mas, apesar das covardes tentativas de Beijing de se juntar aos Estados Unidos na sua “guerra ao terror”, os EUA se recusam firmemente em reconhecer a preocupação da China com a existência de fundamentalismo islâmico em Xinjiang, ou devolver os prisioneiros uigures. Os legisladores americanos estão, presumivelmente, considerando usar fanáticos islâmicos em Xinjiang para a mesma razão pela qual a CIA armou e treinou os mujahedin afegãos de Osama Bin Laden há duas décadas.

Ao contrário dos uigures, o estado dos tibetanos é mais próximo dos sentimentos dos “democratas” pró-imperialistas, que tendem a ignorar o fato de que em 1949 o Tibete era uma sociedade feudalista, governada por monges e extremamente atrasada, na qual a expectativa de vida média era de 30 anos. No começo dos anos 1950, quando chegou ao poder na região, o PCCh buscou uma “frente unida” com os teocratas e parasitas aristocráticos do Tibete e tentou ganhar as graças do mimado Dalai Lama adolescente e sua comitiva. Esse acordo se desfez dentro de alguns anos e, em 1959, uma rebelião em larga escala foi abafada pelo ELP ao custo de dezenas de milhares de vidas tibetanas. O Dalai Lama fugiu pelos Himalaias até a Índia. Beijing tomou o controle direto e procedeu para extirpar o sistema social tradicional, dividindo as terras da nobreza e dos monastérios para o campesinato.

Está claro que o povo tibetano, que tem seu próprio idioma, cultura e território, se ressente da dominação han. Assim como os uigures, os tibetanos tem direito à sua própria existência nacional, mas para os socialistas, a defesa dos direitos nacionais dos povos oprimidos na China deve ser subordinada à defesa do Estado operário deformado. A campanha internacional para “libertar o Tibete” é uma arma da investida imperialista contra a China. Esse não é um evento novo: o envolvimento da CIA no levante de 1959 há muito é uma questão de conhecimento público e, há alguns anos, a Associated Press relatou que “A administração do Dalai Lama reconheceu hoje que recebeu 1,7 milhão de dólares por ano da Agência de Inteligência Central nos anos 1960” (New York Times, 2 de outubro de 1998). Um subsídio anual de 180 mil dólares era “destinado diretamente ao Dalai Lama”.

Os marxistas reconhecem que os sentimentos e ideologias reacionários estão enraizados na desigualdade material de uma sociedade dividida em classes. Sempre que possível, buscaríamos corroer a influência dessas concepções sociais retrógradas por meio da educação e incentivos econômicos em vez de repressão. Um regime leninista combateria o chauvinismo han combinando generosos subsídios para o desenvolvimento com verdadeira autonomia regional para as minorias nacionais, incluindo o direito de controlar as instituições políticas locais, receber educação e serviços governamentais no idioma de preferência, liberdade de deslocamento e de expressão política. Ao concordar que os tibetanos e os uigures têm direito de controlar seus próprios assuntos internos, um governo revolucionário na China sinalizaria sua disposição em coexistir com a casta dominante tradicional do Tibete e os sacerdotes de Xinjiang enquanto eles tiverem apoio popular.

O cerco imperialista

O cerco imperialista em volta do pescoço da China apertou consideravelmente nos últimos anos. A restauração da China como um terreno de saque imperialista irrestrito segue sendo uma prioridade estratégica para os Estados Unidos. Um dos objetivos das recentes guerras neocoloniais dos EUA foi aumentar seu espaço de manobra com o Estado operário deformado chinês. A China está cada vez mais dependente de petróleo importado e a criação de um Estado fantoche dos EUA no Iraque representaria uma ameaça real para Beijing.

As instalações militares dos EUA no Quirguistão e no Uzbequistão, estabelecidas durante a conquista do Afeganistão, afastaram a influência chinesa na antiga Ásia central soviética. Além das suas bases no Afeganistão, Coreia do Sul e Japão, os EUA estão atualmente negociando com o Vietnã e a Tailândia por instalações navais e aéreas e continuam armando Taiwan. A política dos EUA está atualmente focada em exercer pressão econômica sobre a China e conter sua capacidade de projetar seu poder externamente. Ao mesmo tempo, os mísseis americanos miram permanentemente instalações chinesas, e o risco de ação militar agressiva contra o Estado operário deformado chinês com um pretexto ou outro permanece muito real.

Falun Gong: ameaça ao PCCh?

O PCCh já reserva obsequiosamente o seu monopólio como organização política. Como Joe Studwell observa em The Chinese Dream: “Alguns cidadãos chineses não podem começar um clube de pesca, ou um grupo de autoajuda para alcoólatras ou uma comunidade de correspondência sem uma sanção oficial”. Qualquer organização que conecte pessoas com outras fora da sua própria localidade imediata é vista como uma ameaça. A mídia jornalística chinesa rotineiramente deixa de registrar grandes acidentes industriais, escândalos de corrupção, greves e protestos para evitar causar um apelo público em escala nacional.

Mas o controle do PCCh sempre foi imperfeito, e o advento da internet apresentou ao regime uma nova ordem de problemas. A internet é responsável pelo rápido crescimento do Falun Gong, um tipo de meditação chinesa Nova Era e exercício motor que se desenvolveu a partir de sessões públicas de tai-chi e chi-kung. O governo costumava ver o tai-chi como uma fonte inofensiva de exercício e atividade social para os participantes (na maioria, idosos), e fazia vista grossa para as bases filosóficas anti-materialistas de muitas vertentes do movimento. O regime até mesmo patrocinava uma associação de pesquisa chi-kung, dentro da qual o Falun Gong se desenvolveu no começo dos anos 1990, sob a liderança de Li Hongzhi. Em 1994, Li rompeu com a associação e se mudou para Nova Iorque.

O Falun Gong prega a “verdade, benevolência e paciência”, enquanto alerta que pessoas de raças miscigenadas vão ter dificuldade de encontrar um lugar apropriado na vida após a morte. Ele também ensina que as máquinas modernas (como computadores e aviões) foram criadas por extraterrestres disfarçados de seres humanos. Os devotos do Falun Gong são ensinados que, praticando uma série de cinco movimentos, eles podem desenvolver um “Falun” giratória de cor dourada em seus corpos que os permitirá absorver energia de diferentes universos, enquanto simultaneamente obtém iluminação religiosa e saúde física. Esse nonsense tem um apelo óbvio em uma sociedade na qual um número crescente de pessoas encaram um futuro sem aposentadoria ou acesso a tratamento médico. Não é surpreendente que o Falun Gong seja particularmente popular com pessoas mais velhas, desempregadas e outras que não estão tendo sucesso na “nova” China.

Em 1999, depois que autoridades locais começaram a reclamar sobre os efeitos incômodos dos encontros de Falun Gong, He Zouxiu, um físico teórico na Academia de Ciências chinesa, escreveu uma crítica bastante divulgada sobre os seus ensinamentos. Em resposta, 10 mil seguidores do Falun Gong se reuniram em 25 de abril de 1999 para uma sessão de meditação do lado de fora do complexo Zhongnanhai, em Beijing, lar da elite política chinesa. A manifestação pegou as autoridades completamente de surpresa. Enquanto o PCCh se sente compelido a tolerar protestos localizados em razão de preocupações imediatas, ele proíbe terminantemente qualquer atividade organizativa que não seja controlada por ele próprio. Depois da manifestação de abril, os exercícios de Falun Gong foram proibidos e muitos dos seus líderes presos. Mas o Falun Gong permanece. Em pelo menos cinco províncias diferentes, os apoiadores do Falun Gong hackearam canais de televisão do governo, permitindo que eles transmitissem mensagens que iam desde simples exortações de que “Falun Gong é bom!” até programas de uma hora de duração fazendo proselitismo do culto.

Os stalinistas chineses são politicamente falidos para combater efetivamente as noções primitivas do Falun Gong. A liderança do PCCh não funciona mais em termos de ideias, só de repressão. Sem dúvida, o Falun Gong é apoiado pelos imperialistas e contrarrevolucionários freelancer mas, ao contrário do Solidariedade polonês, cuja direção funcionava como uma agência pró-imperialista consciente dentro do Estado operário deformado, o Falun Gong não defende nenhum programa social ou político específico. Os marxistas não apoiam a supressão pelo PCCh dessa vertente particular de nonsense supersticioso.

O Falun Gong é claramente um ópio pernicioso adotado por muitos chineses desesperados por um refúgio das inseguranças e privações materiais da vida em um Estado operário que está desmoronando. Há, entretanto, forças pró-capitalistas muito mais perigosas na China, incluindo aquelas dentro da liderança do próprio Partido Comunista. O fato de que o Falun Gong era amplamente praticado dentro do ELP, e mesmo nos altos escalões do PCCh, é uma evidência de que o partido cujos quadros já foram animados pelo “marxismo-leninismo-Pensamento Mao Tsé-Tung” já não está comprometido com mais nada além dos seus próprios privilégios e prerrogativas.

Proletariado chinês: uma história de luta

A classe trabalhadora tem repetidamente formado suas próprias organizações ao longo da história da República Popular da China. Durante o breve período da campanha de liberalização das “Cem Flores”, em 1956-57, uma corrente de “sociedades de reparação das reclamações”, baseadas nos locais de trabalho, fugiu do controle da organização oficial “Federação dos Sindicatos de Toda a China” (FSTC) e liderou uma onda de greves. O ponto alto desse movimento foi atingido quando metade da força de trabalho do porto de Guangzhou (Cantão) se mobilizou contra um corte de pagamento. No final, entretanto, o PCCh conseguiu esmagar as greves e despachou muitos militantes proletários para campos de trabalho.

A disputa intraburocrática por poder no meio dos anos 1960, conhecida como “Revolução Cultural”, teve o efeito colateral não intencionado de brevemente criar brechas para ações operárias independentes. Houve um levante significativo de combatividade da classe trabalhadora de 1966-67, particularmente em Xangai, onde organizações de massa envolvendo centenas de milhares de trabalhadores foram criadas. Essas formações desempenharam um papel na derrubada da administração municipal do PCCh e no estabelecimento de uma breve Comuna Popular de Xangai. No começo de fevereiro de 1967, a comuna foi lançada com uma manifestação de um milhão de trabalhadores. Ao longo de sua curta vida, a Comuna de Xangai foi efetivamente controlada por uma fração descontente de quadros do PCCh, que proclamava sua intenção de governar com base nos princípios delineados por Karl Marx em A Guerra Civil na França, seu estudo clássico da Comuna de Paris de 1871 (embora eles tenham ignorado sua observação de que os líderes deveriam ser eleitos pela população e revogáveis a qualquer momento). Depois de apenas três semanas, a comuna foi liquidada por “pedido” do próprio Grande Timoneiro. O entusiasmo deslocado dos trabalhadores de Xangai com uma “comuna” que era, de fato, apenas uma ferramenta para uma facção do PCCh, mostrou ao mesmo tempo a instabilidade da burocracia e a volatilidade da classe trabalhadora.

Em abril de 1976, outra onda de atividade baseada nos locais de trabalho despontou brevemente como reação às políticas ultra-maoístas da “Gangue dos Quatro”. Deng Xiaoping foi brevemente deposto pela segunda vez por seu papel nesses distúrbios, mas ele logo retornou ao poder. Os trabalhadores tiraram vantagem de uma atenuação da repressão política, conforme os “introdutores do capitalismo” de Deng consolidavam o poder, para exigir sindicatos independentes e denunciar baixos salários, gestão arbitrária e outras características das novas “reformas” de mercado. Um jornal com base na Fábrica de Aço e Ferro de Taiyuan propôs que, para realmente defender seus interesses, os trabalhadores precisavam de suas próprias organizações, com delgados eleitos e revogáveis. Tais vozes foram rapidamente silenciadas, mas as suas ideias sobreviveram.

No começo de abril de 1989, quando protestos estudantis ocuparam a Praça Tiananmen para exigir reformas democráticas, logo se juntaram a eles delegações de trabalhadores das fábricas de Beijing. No fim do mês, a Federação Autônoma dos Trabalhadores (FAT) de Beijing havia surgido, a partir dos setores ferroviários, aço e aviação. Formações similares logo emergiram em outras grandes cidades. Inicialmente, essas organizações focaram em exigir a legalização de sindicatos independentes separados da FSTC. Entretanto, eles logo começaram a levantar questões de salário, condições de vida, privilégio burocrático, desigualdade de renda e democracia no local de trabalho. Organizações dos trabalhadores em diferentes cidades começaram a se ligar e muitas enviaram representantes para a FAT de Beijing, que começou a funcionar como centro dirigente do movimento.

Em 18 de maio de 1989, um milhão de pessoas, a maioria trabalhadores, protestaram em Beijing. Uma semana depois, foi estabelecido um comitê preparatório para uma “federação nacional auto-organizada dos trabalhadores”. A burocracia do PCCh viu nisso uma séria ameaça ao seu poder. Em junho de 1989, a FSTC, que anteriormente havia concordado com as demandas de massa por uma greve geral, repentinamente começou a exigir que as FATs fossem postas na ilegalidade. Dois dias depois, unidades do exército leais ao regime atacaram brutalmente os participantes da manifestação, assassinando centenas. Milhares de trabalhadores que foram acusados de participar no movimento autônomo foram postos na cadeia ou executados.

Apesar de as FATs terem sido destruídas pela repressão, elas forneceram ao movimento dos trabalhadores um poderoso exemplo do potencial para ação política proletária independente. Entre 1990 e 1994, três tentativas de estabelecer organizações por direitos trabalhistas foram suprimidas, e seus organizadores presos. Apenas a FSTC (braço sindical do PCCh) é legalizada, e só tem permissão de defender “demandas razoáveis”, “apoiar as reformas [de mercado]” e “restaurar a ordem normal da produção tão cedo quanto possível” no caso de quaisquer distúrbios trabalhistas.

A onda crescente de luta proletária

A explosão de protestos de trabalhadores nos anos recentes, abastecidos por um desemprego massivo, já atingiu dimensões sem precedentes desde a Revolução de 1949. De acordo com relatórios atribuídos ao Ministério da Segurança Pública, o número médio de protestos diários mais que dobrou entre 1998 e 2002. Enquanto a maioria dessas ações tem foco em demandas imediatas pela restauração de empregos, seguro-saúde e seguro-desemprego para os trabalhadores de empresas privadas, os participantes também denunciam frequentemente as transações corruptas dos gerentes e autoridades locais.

O tamanho e escopo das mobilizações é uma preocupação real para as autoridades. Um estudo de 2001 do Comitê Central do PCCh relatou: “Em anos recentes, algumas áreas experimentaram, por causa de administração incapaz e outras múltiplas razões, números crescentes de incidentes de grupo, e sua escala tem expandido, frequentemente envolvendo milhares ou mesmo dezenas de milhares de pessoas” (New York Times, 2 de junho de 2001). O relatório reclamava: “Os manifestantes frequentemente fecham pontes e bloqueiam rodovias, atacam sedes do partido ou do governo, coagem membros dos comitês do partido e ocorrem até mesmo atos criminosos tais como agressão, depredação, saques e incêndios”. Ainda mais preocupante foi o fato de que a participação estava “expandindo de fazendeiros e trabalhadores aposentados para incluir também trabalhadores empregados, donos de pequenos negócios individuais, soldados e mesmo oficiais dispensados, professores e estudantes”.

Alguns dos militantes envolvidos no levante operário de 1989 tem desempenhado um papel na atual onda de lutas de trabalhadores. Zhang Shanguang, que passou sete anos na cadeia por sua atividade na FAT em 1989, foi sentenciado a mais dez anos em 1998, supostamente por fornecer informações para a rádio Free Asia [Ásia Livre], um órgão de propaganda dos EUA. Seu verdadeiro crime, entretanto, foi organizar a Associação de Trabalhadores Demitidos da província de Shupu, que apoiava protestos de camponeses contra impostos arbitrários. Yue Tianxiang, um ativista sindical veterano que iniciou a Sociedade Operária de Ajuda Mútua da cidade de Shaoyang em 1983 e foi preso por liderar o Sindicato Operário Autônomo de Shaoyang em 1989, foi sentenciado a mais dez anos de prisão em 1999 por ter publicado o jornal China Workers Monitor na província de Gansu. Também em 1999, Xue Jifeng foi preso em um hospital psiquiátrico por ter organizado um sindicato independente na província de Henan. Um resumo de 30 de abril de 2002 da Anistia Internacional lembrou como Cao Maobing, trabalhador de uma fábrica de seda na província de Jiangsu, que tentou formar um sindicato independente e expor a corrupção da diretoria, foi mandado para um hospital psiquiátrico onde ele foi submetido forçosamente a uma “terapia” de remédios e eletrochoque.

Várias agências imperialistas, incluindo o China Labor Bulletin, baseado em Hong Kong (conectado com a rádio Free Asia) e o pró-capitalista Partido Democrático da China, estão hipocritamente promovendo as lutas do proletariado chinês como forma de atingir o PCCh. Enquanto a maioria dos militantes proletários está bem consciente sobre os efeitos negativos das “reformas” capitalistas de mercado, muitos têm ilusões nas promessas açucaradas dos agentes “democráticos” do imperialismo. Líderes de lutas localizadas vitimados pela repressão stalinista, que não veem alternativa a se aliarem com os “reformadores” pró-capitalistas, podem facilmente acabar agindo como agentes da reação capitalista.

Por uma revolução política proletária!

O triunfo da contrarrevolução no bloco soviético foi a maior derrota jamais infligida ao movimento internacional dos trabalhadores. Hoje a possibilidade de o Estado operário chinês sofrer um destino similar está agudamente posta. A acumulação de tensões sociais em termos étnicos, regionais e, mais importante, de classe, tornam o status quo insustentável. Entretanto, ao contrário dos trabalhadores soviéticos durante o período da perestroika nos anos 1980, dezenas de milhões de trabalhadores chineses estão bastante cientes que o crescimento das relações de mercado capitalista ameaça despedaçar suas vidas. Enquanto o descontentamento popular cresce, a cada vez mais poderosa burguesia chinesa também está entrando em atrito com as restrições ao desenvolvimento capitalista impostos pela burocracia stalinista. Os imperialistas e seus ideólogos buscam a derrubada do desmoralizado PCCh e a transformação da China em uma neocolônia capitalista “normal”, aberta às devastações da “globalização” e a privatização completa dos meios de produção. A única alternativa é uma revolução política proletária para derrubar o corrupto PCCh, expropriar toda a propriedade capitalista e estabelecer genuínas instituições de poder democrático dos trabalhadores.

Uma organização revolucionária com raízes no combativo proletariado chinês poderia rapidamente ganhar o apoio de centenas de milhões de trabalhadores que já percebem o crescimento do capitalismo como um perigo mortal. A classe trabalhadora chinesa demonstrou repetidamente que ela tem tanto o poder social quanto a vontade de resistir ao surgimento de uma nova ordem social capitalista. Esse é um fator criticamente importante. Na China de hoje, a questão central é lutar para construir o núcleo de um novo partido revolucionário dos trabalhadores – um partido trotskista – armado com um programa internacionalista de luta resoluta contra a devastação do imperialismo e comprometido com a defesa incondicional e extensão dos ganhos da Revolução Chinesa. Uma revolução política proletária na China representaria um golpe muito maior na ordem imperialista mundial que a “perda” original da China em 1949. Ela iniciaria uma onda revolucionária pelo Japão, Coreia e o resto da Ásia, que poderia transformar radicalmente a realidade política e social global, abrindo o caminho de um futuro socialista para toda a humanidade.